Este documento discute três tópicos principais:
1) A importância de se dedicar tempo suficiente para a aprendizagem e reflexão, em vez de se focar apenas nos resultados.
2) Como a quantidade de tempo dedicada à aprendizagem e à preparação de lições é importante tanto para as crianças quanto para os educadores.
3) A necessidade de se colocar a criança no centro da educação e de se respeitar seus ritmos e necessidades individuais.
1. Aula Aberta – ESE de Setúbal – 26 de março
"Todo o tempo do Mundo... ...ou talvez não!" (O tempo da(s) infância(s) e o tempo do
Educador)
Henrique Santos
Educador de Infância
Agrupamento de Escolas Professor Armando de Lucena - Malveira
Na Educação em geral, e na educação de infância em particular, temos sentido, ao
longo dos últimos anos, um fenómeno que parece indicar que a quantidade de tempo é
um indicador de valor para a avaliação e a autoavaliação da eficácia do trabalho
desenvolvido. Esta cada vez maior exigência social de produzirmos algo que seja útil
com o nosso tempo retira-nos a possibilidade de o ocuparmos com coisas inúteis mas
importantes, se não mesmo fundamentais.
Essa pressa de “fazer coisas” promove um estado de ansiedade e de quase demência e
estamos a deixar de saber estar presentes.
Como consequência, estamos a deixar de saber contemplar e de saber elaborar sobre o
que contemplamos.
Refletir, analisar, partilhar, co-construir são ações que necessitam de tempo.
De tempo útil. De tempo de pausa. Conseguiremos parar? Esta é a proposta…
Tempo para aprender…
A aprendizagem é um processo complexo que implica um processo neuronal de compreensão
e entendimento: inicialmente, a nossa “memória de trabalho” - que é utilizada todos os dias
para integrarmos os novos conhecimentos que adquirimos - promove ligações com os
conceitos e conhecimentos que já possuímos.
Assim, a base fundamental da aprendizagem está correlacionada com as ligações que fazemos
entre a “nova informação” e a informação já “registada”, que é facilitada por um conjunto de
dinâmicas que vão desde a motivação para a aprendizagem até aos processos de “significação”
da informação recolhida.
Não nos interessará, aqui, um aprofundamento dos processos neuronais de aprendizagem,
mas, enquanto profissionais de educação, é-nos fundamental perceber um conjunto de
processos que ocorrem diariamente e que, direta ou indiretamente, são basilares na
construção de estratégias e ações pedagógicas de que necessitaremos para, no fundo,
“exercer” a nossa função como educadores.
De uma forma geral, os processos de aprendizagem ocorrem quando a informação
disponibilizada é relevante para construir novas ligações neuronais e, sobretudo, quando
permitem “reforçar” os “pré-conceitos” existentes. Também é fundamental que exista
disponibilidade (motivação) para a recolha da informação.
Assim, façamos um pequeno exercício:
De que país é esta bandeira?
De certeza que muito poucos de nós alguma vez viram esta
bandeira e, se o fizemos, não conseguimos correlacionar a
informação momentânea com outra informação antes
recolhida.
Também não será menos verdade que, anteriormente, mesmo
que nos pudéssemos ter “cruzado” com esta imagem, nada
2. em nós tornou significativa a sua “gravação” na nossa memória de trabalho e, assim, não
construímos ligações neuronais a outros conceitos. Contudo, ao trazer-vos aqui esta bandeira,
iniciei um processo de “significação”.
Se, por um lado, a “inadequação” desta informação no contexto que nos junta promove,
automaticamente um processo interno de procura por significação, por outro, desperta
alguma motivação para a aprendizagem. Para o “saber porquê?”
Posso então que, de alguma forma, vos “motivei” a querer saber mais sobre esta bandeira.
Se agora vos disser que esta é a bandeira do Quirguistão, um país da Ásia Central, ex-
integrante da antiga União Soviética, que tem fronteira com o Cazaquistão, com o Uzbequistão
e com a China, que a sua capital é Bisqueque, e que a sua moeda é o Som, provavelmente, em
vós, e de forma automática, se iniciarão um conjunto de processos de significação (ligações
neuronais) que vos permitirão “construir conhecimento”.
Mais ainda se eu vos referir que o código internacional do país é o “.kg”, pois, nesta
informação, não só a expressão tem um significado presente no nosso contexto social e
cultural, como ao “ligar” internet e medida de peso, acabo por vos dar um “bónus” em termos
de significação e correlação cognitiva.
Ora, então, neste pequeno “exercício” de motivação para a aprendizagem usei alguns dos
“truques” que, para qualquer profissional serão “óbvios” mas, algumas vezes, são esquecidos
ou ignorados nos processos de construção e escolha de estratégias de aprendizagem
significativa.
Mas não ficarei apenas por aqui…
Neste mesmo contexto, o das “aprendizagens significativas, “motivação” e “circunstância”, o
que vos diz o número 170?
E o número 850?
E, já agora, 51000?
Por último, o que vos significa 3060000?
Sem uma “pista” (que na realidade será uma ligação relacional), será difícil descobrir o que são
estes números, mas se vos disser que 170 é o número de dias de atividade letiva média em
educação de infância no calendário escolar nacional, talvez consigam, rapidamente,
descortinar que 850 são as horas letivas, 51000 são os minutos e 3060000 são os segundos
que os docentes de educação pré-escolar, em média, dedicam aos seus grupos de alunos em
atividade presencial e letiva.
E, sequencialmente, se todos percebermos que, em pouco mais de três minutos aprendemos
tantas coisas sobre o Quirguistão, sobre a sua capital as suas fronteiras e localização
geográficas e até sobre o seu código de internet, apenas porque usámos um conjunto de
“interruptores” que procederam a diversas ligações neuronais, facilmente compreendemos
que em tantos minutos e em tantos segundos, na educação de infância há todo um “mundo”
de coisas para aprender.
Com a “agravante” de que, nas idades de educação de infância, os aprendentes são,
essencialmente, indivíduos a criarem conceitos de raiz…
O tempo da aprendizagem e o tempo da “ensinagem”…
Na Educação em geral, e na educação de infância em particular, temos sentido um fenómeno
que parece indicar que a quantidade de tempo é um indicador de valor.
A minha proposta é fazer um paralelo entre "o tempo que precisamos para aprender algo"
(crianças) e o "tempo que dedicamos a preparar a "aprendizagem" (adultos) e, a partir daí,
refletir sobre a forma como nos tornamos "escravos" de um tempo que não é o nosso nem o
da(s) infância(s).
Antes de mais, será importante refletirmos nesta cada vez maior exigência social de
produzirmos “algo” que seja útil. E esta utilidade das coisas (normalmente “coisas” físicas, mas
que eu entenderia como “produtos” palpáveis) não apenas nos retira a possibilidade de
3. usarmos o tempo para o dedicarmos ao processo, ao espaço de construção e reflexão da
aprendizagem. Ou seja, ao focarmos o processo de aprendizagem das crianças no “resultado”
acabamos por saltar etapas fundamentais, que se encontram nas diversas fases do processo
de progressão.
Este “foco” no resultado” (tão evidente, na educação de infância nos “miminhos”- entenda-se
manualidades - a que, muitas vezes se reduz a evidência do trabalho desenvolvido neste nível
escolar), ou na “comprovação” do conhecimento adquirido (i.e. fichas, manuais, processos de
“avaliação” quantitativa, etc.) acaba por funcionar como uma espiral sistémica que acaba por
revalorizar outros paradigmas educativos e funcionais e de deslocar a escola do espaço da
aprendizagem dos alunos para o da “ensinagem” dos docentes.
E também como consequência desta deslocalização da pertinência da escola, estamos a deixar
de saber contemplar e de saber elaborar sobre o que contemplamos e, sobretudo, estamos a
perder tempo de reflexão e partilha entre pares.
Se refletir, analisar, partilhar, co-construir são ações que necessitam de tempo, de tempo útil,
de tempo de pausa e sobretudo, de diálogo educativo, estaremos nós, enquanto docentes e
técnicos, preparados para despender de tempo nestas atividades? E, sobretudo, estremos
conscientes da necessidade de usarmos este tempo? Conseguiremos parar, depois destes
últimos anos em que nos temos tornado reféns de uma ideia que nos tem vindo a ser,
discretamente induzida, de que a escola deve produzir “seres produtivos” (mas pouco
conscientes, diria eu)?
Que jardim-de-infância tem e que jardim-de-infância quer?
...o adulto terá que facilitar a concretização daquilo que a criança estiver pronta a
encontrar, procurando acompanhar a omnipotência mágica da experiência dela
Winnicot
Na Antiguidade Grega, escola queria dizer loisir, tempo suficiente para se fazer o que é
agradável e a palavra “professor” estava associada a “mestre de jogo”.
A Escola, tal como a conhecemos atualmente, foi-se readequando, alterando e reconstruindo
tendo por base as diversas alterações e circunstâncias culturais e sociais das diversas
sociedades que, de alguma forma, servia e por elas era servida.
Não podemos ignorar que os processos evolutivos sociais não são simples nem lineares e, a
escola (ou antes, os sistemas formais de ensino), é apenas uma instituição concebida para
responder às necessidades dessas mesmas sociedades que lhes dão razão.
Não obstante, temos reparado, de há alguns anos para cá, que começa a coexistir, com a
“escola” que temos, um discurso de mudança, um discurso de apelo à mudança.
Lentamente vamos percebendo uma nova narrativa educativa e pedagógica que pressupõe a
recolocação da criança (aprendente) no centro da escola.
As Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (“renovadas” em 2026) vieram, de
alguma forma, consubstanciar esta “ideia” de mudança, nomeadamente ao recolocar no
centro da reflexão (e produção) pedagógica o “Brincar”, a “Agência da Criança” e o “Direito à
Equidade” como vetores de construção curricular e educativa.
Esta “nova” narrativa, que mais não é do que o acordar de um conjunto de indicadores e de
linhas de investigação e orientação educativa e que têm por base estudos com cerca de dois
séculos, começa a ganhar alguma importância nas dinâmicas e estratégias da educação de
infância.
Estas novas formas de “ler” a escola e as crianças decorrem também de novos (ou renovados)
olhares sobre as capacidades e competências das crianças e, paralelamente, de um “novo”
espaço social de abertura à diferença e à experimentação educativa e pedagógica.
4. Ao longo dos últimos anos, e especialmente nos mais recentes, foram introduzidos conceitos
educativos e pedagógicos que apelam, também, à alteração de Princípios e Valores mercê de
novos fundamentos e dinâmicas sociais.
As “novas” famílias, as “novas” profissões”, os debates, cada vez mais “fraturantes” sobre
ambiente, ecologia ou sociedade, as novas organizações sociais do trabalho, a preponderância
da economia na gestão social e política das comunidades ou mesmo a dependência
tecnológica que as sociedades foram assumindo obrigaram, de alguma forma, a que a Escola
iniciasse o processo de reflexão interna qua nos vai trazendo, pontualmente, a necessidade de
partilharmos novas ideias e novas formas de fazer.
Paralelamente, tona-se também fundamental promover a síntese das (re)conceptualizações do
processo educativo da infância adequando-os a novas exigências de “novos” tempos.
Assim, e promovendo um exercício simples de análise e reflexão, identificarei um
conjunto de frases que têm estado, cada vez mais, nos discursos e narrativas dos
profissionais de educação de infância, mas sobre as quais é fundamental uma reflexão
e debate mais profundo, de forma a tornar significativas as aprendizagens que possam
daí ocorrer:
“todos fazemos melhor”
É um facto que o trabalho conjunto e colaborativo é uma forma eficaz de atingir
resultados, sobretudo se os processos e as dinâmicas foram devidamente clarificadas e
comunicadas. Nesse sentido, torna-se imperioso que os profissionais de educação
tenham a capacidade de se desligar o seu papel de centralidade pedagógica e que
compreendam que são “apenas mais um” num grupo de aprendizagem ativa;
“aprendemos a(o) fazer”
A experiência e o conhecimento advêm da prática estruturada e continuada. E isso
implica o “fazer” em detrimento do “ouvir” e do “aceitar”. O papel da experiência
ativa, da experimentação, das “mãos na massa” na(s) infância(s) torna central os
espaços práticos em detrimento da ação (e análise) teórica do processo;
“aprendemos a(o) viver!”
E aprendemos quando nos é significativo e motivador. O brincar, na infância, é o
“viver”;
“aprendermos a(o) respeitar e a(o) SER”
Durante as idades pré-escolares dão-se as principais construções cognitivas sobre a
“pertença social” e a corresponsabilização. Saber isto é, para os profissionais de
educação, o primeiro passo para estruturar toda a planificação académica e curricular
em função das descobertas do “meu” espaço e do espaço do “outro”;
“aprendemos a(o) respeitar o nosso ritmo”
Apreender o corpo, os ritmos, as especificidades do contexto, a informação ambiental
é uma particularidade que a educação de infância, em oposição a quase todos os
outros ciclos e níveis educativos, têm preservado na sua estrutura curricular. O sono, a
alimentação, a necessidade de segurança e afeto são, nestes níveis iniciais, não apenas
fundamentais como obrigam a uma preparação (sobretudo por parte das famílias e
profissionais) que permita tornar centrais, na vida e no desenvolvimentos e
aprendizagem das crianças, os momentos significativos e motivadores
“nós somos o "outro"
Sejam as crianças, sejam os adultos, é cada vez mais evidente e central que as
comunidades se constroem com base no reconhecimento do “outro” como pilar
5. central da minha própria existência. Saibamos (e sejamos capazes de) preservar o
espaço de socialização como meio primordial de aprendizagem.
E, sobretudo, tentemos negar a frase do professor Carlos Neto quando ele afirma que “a partir
do momento em que vão para a escola, as crianças perdem o tempo que tinham para brincar”.
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