Adormeci em Gaza, Gisandra Oliveira.......................................... 3 Comunicado contra o racismo...................................................... 4 Dentro e Fora, apontamentos-rabiscos da Gisandra.................... 6 Que mundo é este?, Cíntia Regala.................................................7 Para o homem de qan, a matéria sonhada, Fátima Vale............... 8 Erguer por Palestina, Tânia Santos...............................................13 O dilúvio e a árvore, Fadwa Touqan..............................................14 Desenho, Cátia.............................................................................15 Hadeel, Rafeef Ziadah..................................................................16 Sementes da resistência, Joshua Leifer.......................................18 Sem água, apontamentos-rabiscos da Gisandra.........................23 ICUNNUSCLASTA, Fátima Vale....................................................24 Olho na Palestina, Tânia Santos...................................................27 Nem Erótica Tua, Nem Exótica Tua, Suheir Hammad..................28 Informações e contactos..............................................................31
2. 2
Adormeci em Gaza, Gisandra Oliveira................................……………........ 3
Comunicado contra o racismo............................................……………............4
Dentro e Fora, apontamentos-rabiscos da Gisandra...........................…....... 6
Que mundo é este?, Cíntia Regala................................................................................7
Para o homem de qan, a matéria sonhada, Fátima Vale…....…………........ 8
Erguer por Palestina, Tânia Santos……………...……………………….......13
O dilúvio e a árvore, Fadwa Touqan...….……………………..................….14
Desenho, Cátia...…………………………………………...………….……….15
Hadeel, Rafeef Ziadah....................................…..……………………………..16
Sementes da resistência, Joshua Leifer..…...……………………….........…..18
Sem água, apontamentos-rabiscos da Gisandra...................….…………....23
ICUNNUSCLASTA, Fátima Vale………....……………………...……….….24
Olho na Palestina, Tânia Santos.…………………...………………...............27
Nem Erótica Tua, Nem Exótica Tua, Suheir Hammad…........................….28
Informações e contactos...…...……………………………………………..….31
índice
A selecção dos textos recebidos pelo GAP é feita com base em três critérios:
conteúdos não racistas, não anti-semitas, não incitativos ao ódio racial,
religioso, político. A opinião expressa nos textos das Folhas Soltas e a
escolha ortográfica são da responsabilidade das pessoas que os escreveram.
Uso de software livre: Scribus e Gimp para edição e paginação.
3. 3
AAddoorrmmeeccii eemm GGaazzaa
Esta noite adormeci em Gaza. Uma luz trémula na parede ardeu num último
pedaço de vela e o meu corpo encontrou um cobertor felpudo. Fechei os olhos
sem querer. Uma aragem fresca, vinda do mar com um cheiro a sal e fumo,
levantou o cortinado e enganchouse na cal das paredes. Encostei os olhos
numa almofada, mas não dormi completamente.
Gaza recolheuse no meu sono ou sonho. Encolheuse como se dobra
uma folha de papel. Ficou dobrada num envelope sem endereço. Nenhum nome,
nenhuma rua, nenhum código postal, nenhuma cidade, vila, aldeia, lugar ou
campo de refugiadas. O envelope ficou no bolso traseiro das minhas calças
recolhidas nas costas de uma cadeira junto ao fogão.
Num canto, um cesto com dois limões, uma beringela, uma botija de gás vazia,
um monte de almofadas e cobertores. Num canto, uma mesa com uma caneca
ainda fumegante de café com salva.
Gaza recolheuse nas ondulações irregulares do meu sopro. As linhas do muro
com as suas torres de vigia, com o seu arame farpado ficaram dobradas
nos vincos das medianas e diagonais numa folha de papel.
Esta noite dormi em Gaza. Encosteia num envelope sem destino no bolso
esquerdo das minhas calças dobradas a meio.
De olhos semicerrados ouvi os drones, autómatos anónimos das nuvens
esquadrinhando as ruas do campo. Viraram à direita em direcção ao mar
e perscrutaram as vagas escuras com relâmpagos de luzes. De onde virão
estes medonhos pássaros metálicos, de que terra, de que par de mãos e olhos
secos diante de um ecrã?
Dobrei Gaza num arfar de olhos. O mar ficou espalmado, nenhuma onda veio
acostar os barcos pesqueiros amarrados no porto, nenhum marulho. Todo o pó
dos dias anteriores repousou a sua fúria nas dobras da folha de papel e
as ruínas arrumaramse na esquina das dobras, nos vincos.
Esta noite, Gaza dormiu no bolso das minhas calças e ninguém morreu.
Ninguém pode ter morrido. Gaza espalhouse pelo mundo. A sua pequena
frota pesqueira galgava as vagas dos nas margens do Sena.
As suas crianças dançavam na 5a avenida em Nova Iorque. As suas avós
contavam histórias nas ruas de Dacar. Houve um estrondo, num esticão
despertei em sobressalto nas ruínas da Síria e de Gaza, nas margens do Líbano
e da Jordânia, nos subúrbios de Paris e de Filadélfia, as mesmas pessoas,
todas refugiadas. Assombrada, fitei o esgar da crueldade.
Gisandra Oliveira
7. 7
… que mundo é este? Que mundo é este que se regozija com a morte,
a putrefacção, o tacanho maldizer, a humilhação?
Eu não quero estar aqui! Não foi este o universo de que me falastes!
Nem sequer foi isso que me ensinastes!
Ouçam, ouçam os gritos da perda, da fome, da solidão, da desolação,
da miséria que move os seres, da pobreza que os torna inertes…
Eu não quero estar neste abismo escandalosamente amorfo
a tamanhas atrocidades…
Vejam, vejam, vejam as lágrimas que se esgotam
já em sangue pela tortura – corrosiva a dor – distantes divindades
amarfanhadas em telas de mentes dementes e descrentes
que esfolam as mentes dos seus entes… não faz qualquer sentido?
A cada dia que passa, penso, dêem-me as munições,
dêem-me as armas que eu não quero isto! Eu não sei viver assim
– a minha voz é insubmissa, as minhas mãos são da luta diária,
não sei estar sentada de pernas cruzadas à espera do incógnito…
... dêem-me as munições, as ferramentas, as armas todas
para aniquilar esta passividade, esta alienação, esta obediência
sujeita a qualquer crueldade que me atormenta e rói
o mais genuíno sentimento que ainda me arrebata
o humilde pulsar deste agitado coração...
... não consigo conceber que o abjecto cunho das bancas,
a infame cegueira provocada pelas religiões,
a corrupção e ganância destas e daquelas instituições
propagada aos olhos do comum fiquem impunes,
inocentes e isentas de uma merecida sentença...
… dêem-me forças, munições, ferramentas, e as armas
para aniquilar estas leis da manada que chacinam o respeito,
o amor e a dignidade do que me ensinaram a ser… humana…
...e tirem-lhes esta febre de ódio ou não vale viver…?
B. Vol. T.
19.07.2018 – 10.02.2019 - ...
8. 8
para o homem de quan
a matéria sonhada
a minha palavra será o pão e a alma
entre as mãos dos guerrilheiros
Samih Al Qassim
chove fogo
sobre as nossas bocas
sobre a cidade imaginada
relutantes calamos
vejo-te o rosto – silêncio enigmático
cratera inflamada
tu mesmo és a janela
por onde vejo
as crianças tremerem deitadas
o meu coração agita-se dentro do medo
como uma corsa ferida
os arcos lá fora
são derrubados
uma caravana desloca-se
dentro das íngremes emoções
ladram-me desejos
9. 9
pulsações paisagens
sonhos rasgados
chove gás sobre a multidão
sobre as preces desesperadas
e cavamos túneis de palavras
por onde sinto as tuas mãos apertadas
conterem a luz
o homem de quan
a matéria sonhada
CAMARADAVIDAERGUE-TE AGORA
longo me é o corpo sobre o veludo dos domingos
longínqua é a linha da ave desejada
longa me é a onda em que me vejo pensada
perto anda a bandeira da criança assombrada
os abismos profundos da mátria inventada
longo é o esquecimento da terra sagrada
onde a mulher rebenta antes de ser amada
CAMARADAVIDAERGUE-TE AGORA
a marcha da fome amotina-se lá fora
o amor derrama-se no chão saqueado
10. 10
haitham
haitam tinha uma bomba no coração
uma camisa a separa-lo da morte
conseguiu a paz
no momento em que uma bala
lhe abriu a alameda do infinito
por onde a mãe agora o canta
por delicadeza
tiraram-lhe a vida
era demasiado belo
meninos assim a sorrir
por aí à toa
são uma provocação
para a indústria das pistolas
e psicopatas de pardais
e como ali já não havia pardais
11. 11
CHOVEM BOMBAS EM GAZA
chovem bombas em gaza
quantos meninos gritam
alguém o sabe?
chovem bombas em gaza
nem silêncio tem a mãe
para velar o filho morto.
chovem bombas em gaza
só o sabereis se tiverdes
o sangue palestino
glorificado pelo amor
do laço sem fronteiras.
porque não matam os velhos
os carrascos sionistas?
é o futuro que massacram
jovens revolucionários
artilhados de liberdade
crianças como pássaros
mulheres delicadas
tenras vidas por florir
12. 12
hão-de ser lembrados
hão-de ser lembrados
o mesmo grão de poeira
que os cobre
os há-de preservar
no canto das flores sopradas pelo vento
há-de sempre polinizar-se a liberdade
nenhum lugar a tem tão semeada
e eu hei-de lembrar-me
eu hei-de lembrar-me
as pedras também
nenhuma lápide encerra o poder do amor
fátima vale, para o homem de qan – a matéria sonhada, 2018
16. 16
Hadeel
Rafeef Ziadah
A Hadeel tem nove
a Hadeel tem nove
não, desculpem, as minhas desculpas,
a Hadeel tinha nove
precisamente esta manhã a Hadeel tinha nove anos
e os oficiais disseram
os oficiais disseram que lamentam a sua morte
as autoridades israelitas disseram que lamentam a sua morte
mas o terrorismo tem de acabar, os rockets têm de acabar,
a resistência tem de acabar
ou continuarão, continuarão, continuarão bombardeando Gaza
até desistirmos da pouca dignidade que nos resta
até elegermos quem eles querem, assinarmos o que eles querem
e morrermos, morrermos, morrermos em silêncio,
da forma que eles querem
vêem? A segurança de Israel é absoluta, está escrita a sangue
e retroescavadoras
e a arte das mulheres porta-vozes
porque a morte é mais suave vinda de uma mulher
a morte, dizem-me, é mais educada e elegante
vinda de uma mulher
mas quem
quem dirá à mãe de Hadeel,
atarefada a cozer pão e za'atar,
que as pombas, as pombas não voarão novamente sobre Gaza
as pombas, as pombas não voarão novamente sobre Gaza
as pombas não voarão novamente sobre Gaza
a Hadeel está morta e o seu irmão Ahmed perdeu a visão
as pombas, as pombas não voarão novamente sobre Gaza
Hadeel.
cada súplica que recordo
cada súplica que recordo
e nem metade do que recordo te trará de volta
nenhuma súplica que recordo
nenhuma súplica que busco dentro de mim para recordar
te trará de volta
enquanto te envolves em histórias da Palestina
escondes-te de baixo da cama à espera que o próximo soldado
derrube a tua porta
para nos expulsar da história que carregamos às costas
17. 17
Hadeel. Hadeel. Hadeel.
quem, qual de vocês dirá a Hadeel que nada mudou no dia em que ela morreu
a próxima reunião, o próximo comboio
a próxima reunião, o próximo comboio
nem uma pausa, nem uma lágrima
merecerá um comunicado de imprensa?
merecerá um comunicado de imprensa?
apenas outra palestiniana morreu
merecerá um comunicado de imprensa?
a solidariedade de longe como uma piada de mau gosto
ou uma história cruel para se contar a uma criança
e dizem-me, eles continuam a dizer-me para não chorar pelos mártires
não chores pelos mártires
não chores pelos mártires
continua a lutar
continua a lutar
continua a lutar
continua a lutar
mas por Hadeel
por Hadeel dêem-me somente um momento de silêncio
não, dêem-me somente um momento de sincera resistência
sincera resistência
assim poderão manter a pouca dignidade que vos resta
por Hadeel…
Tradução e adaptação do GAP do poema Hadeel de Rafeef Ziadah
http://www.rafeefziadah.net/js_videos/hadeel/
18. 18
SSeemmeenntteess ddaa rreessiissttêênncciiaa:: aa mmuullhheerr qquuee lluuttaa ccoonnttrraa aa ooccuuppaaççããoo
ppeellaa aaggrriiccuullttuurraa
Vivien Sansour, fundadora da Biblioteca do Acervo de Sementes da Palestina
(PalestineHeirloomSeedLibrary),traduçãoeadaptaçãodaentrevistadadaàRevista
+972 sobre a herança agrícola palestina, a ocupação em contexto global e o
movimento para preservar as técnicas agrícolas locais e a biodiversidade.
Vivien Sansour é multifacetada. É escritora, fotógrafa, produtora de filmes e
fundadora da Biblioteca do Acervo de Sementes da Palestina (Palestine
Heirloom Seed Library) em Beit Jala, uma cidade perto de Belém, na
Cisjordânia ocupada. Sansour trabalhou com agricultores nas Honduras,
Uruguai e Palestina em questões relacionadas com a agricultura e a autonomia.
Foto: Vivien Sansour
19. 19
Como é que te interessaste pelo estudo da agricultura?
Cresci em Beit Jala, que hoje é apenas um monte de edifícios de cimento muito
pouco atraentes, mas que costumava estar cheio de terraços repletos de
biodiversidade e diferentes habitats naturais. A dada altura da minha vida
adulta, apercebi-me que cada vez mais as antigas oliveiras eram arrancadas
para construir outro prédio. Senti vontade de fazer alguma coisa. O que eu faço
hoje brotou provavelmente de um instinto para sobreviver: tentando participar
num movimento global para salvar a nossa herança agrícola e a biodiversidade.
O que é o património agrícola?
São os rituais, as práticas, os métodos que usamos ao longo dos
séculos, que herdámos dos nossos antepassados. Os agricultores
são cientistas e artistas ao mesmo tempo. Para que desenvolvam o
que comemos, têm que fazer perguntas e observações. Também
têm que imaginar novas possibilidades e experimentá-las, é o que
os artistas fazem. Teve que haver muita imaginação para os nossos
avós desenvolverem sementes. Requereu muita paciência, atenção
e imaginação para dizer: "Quero experimentar isto para ver se
funciona melhor”. Esta combinação do artista / cientista cria uma
cultura onde as coisas que desenvolveram ao longo de milénios se
tornaram parte da nossa vida quotidiana, da nossa prática diária. É
a nossa herança: o que os nossos antepassados desenvolveram
para que pudéssemos sobreviver. E não apenas sobreviver, mas
desfrutar - isto é algo que parece faltar muito quando falamos de
comida.
20. 20
Fundaste a Biblioteca do Acervo de Sementes da Palestina para preservar
a herança agrícola palestina. O que é a biblioteca de sementes? O que faz
uma semente desta herança diferente de outros tipos de sementes?
Uma herança é algo que nos é transmitido. Referimo-nos a sementes de herança
como tal, porque chegaram até nós através das gerações anteriores, e possuem
características específicas de que gostamos. Por exemplo, há um certo tipo de
curgete que foi desenvolvida porque fazemos curgete recheada com folhas de
videira. Esse tipo de variedade foi desenvolvida através da selecção natural e
reprodução pelos nossos antepassados. Uma semente de herança também é
adaptada ao microclima, permitindo que seja resistente a muitas doenças. Na
Palestina, muitas das nossas sementes de herança são o que chamamos
sementes de baal. Baal refere-se à deidade cananeia da fertilidade e destruição.
Usamos o termo ba'al hoje para significar sementes que não requerem irrigação.
Se são do Inverno, vivem da chuva. Se são do Verão, vivem tanto da humidade
que é mantida no solo durante a estação chuvosa, como do orvalho. A Biblioteca
do Acervo de Sementes da Palestina é uma biblioteca, excepto que se levantam
sementes em vez de livros. Podes ir à biblioteca, pegar algumas sementes e
comprometer-te a plantá-las, vê-las crescer durante todo o ciclo para no final
recolher as tuas próprias sementes. Muitas pessoas querem começar uma horta
e produzir a sua própria comida, então levam sementes e, no processo,
aprendem um pouco acerca da autonomia alimentar. Podem escolher entre as
coisas que cultivam - a espécie de que mais gostam, ou a que funciona
melhor no seu microclima -, e assim desenvolver as suas próprias heranças.
Qual foi o impacto da ocupação na agricultura palestina e na culinária
tradicional palestina?
Falo sobre a ocupação num contexto global, porque não existe isolada das
tendências globais. Por exemplo, os agricultores, que podem produzir os seus
próprios alimentos e as suas próprias sementes, representam uma ameaça
para qualquer poder hegemónico que queira controlar uma população. Se
somos autónomos, temos realmente muito mais espaço para rebelar-
nos, criar os nossos próprios sistemas, sermos mais subversivos.
A ocupação, assim como muitos poderes no mundo - incluindo o governo
mexicano, por exemplo em Chiapas - desempenhou um papel muito importante
na transformação da agricultura palestina passando de um sistema autónomo
baseado no solo e no sol para um que é muito baseado na importação de
produtos químicos e sementes híbridas, que inundam o mercado.
21. 21
A ocupação convenceu muitas pessoas de que realmente precisamos de sementes
híbridas, tecnologias agrícolas, "modernizar" e “desenvolver" as nossas práticas
agrícolas. Além disso, a ocupação transformou o agricultor de uma entidade
produtiva, de um ser humano produtivo, num trabalhador. São como máquinas
que simplesmente compram as sementes híbridas pré-embaladas e os produtos
químicos necessários. Se já não é um corpo autónomo, já não tem a liberdade
mental para se permitir criar a sua própria vida. Pára de imaginar, deixa de
acreditar que tem realmente algo para contribuir. Começa a seguir as regras, e é
isso que a agricultura convencional é: segue as regras, preenchendo os espaços em
branco. É este o maior desastre, porque a imaginação e o conhecimento dos nossos
agricultores estão gravemente ameaçados. Muitos dos génios e heróis com quem
vivemos estão a morrer ou não são membros activos da comunidade num
momento em que, mais do que nunca, precisamos dos seus conhecimentos.
Foto: Vivien Sansour
22. 22
Tradução e adaptação do GAP com base no artigo de Joshua Leifer
|Publicado a 8 de Março de 2018 na Revista +972
Fonte: https://972mag.com/seeds-of-resistance-the-woman-fighting-
occupation-through-agriculture/133677/
O que te inspira? O que te dá esperança?
Não sou inspirada por grandes líderes mundiais. Estou realmente inspirada
pelos agricultores que continuam a plantar, cultivar e alimentar o mundo. Há
tantas forças contra eles, mas continuam com um espírito generoso. Penso que
é essa generosidade de espírito que me inspira a querer fazer melhor como
indivíduo que tem um papel na sociedade.
A Biblioteca de Sementes quer trazer de volta para a mesa do jantar antigas
variedades da agricultura, quer seja a melancia, o trigo ou o pepino. Como parte
desse esforço, construímos uma cozinha itinerante que irá para diferentes
comunidades onde vamos cozinhar juntos e convidamos as pessoas a se
juntarem a nós para uma conversa sobre a importância da biodiversidade, as
nossas variedades herdadas e a nossa herança agrícola. Começaremos na aldeia
de Nufs Jubeil na área de Naplusa a 17 de Março e se as pessoas se
quiserem juntar a nós, são bem-vindas.
24. 24
I CUNNUSCLASTA
didascáli(d)a: só uma vulva em cena a lembrar sam
ainda a sentir os dentes de jerry
uma vulva-vale entre alpinas coxas
o corpo cenário
em sentido único
como o boulevard de onde barthés nunca voltou
a voz feminina sai de uma boca que está nas costas
de um homem
o homem já nem está
é só o fato vazio
afinal
mundo vem pôr
mundo vem tirar
apanhar uma menina pequenina
um carro maior
um rapazinho já com bola
uma fila de fome
uma cantina social
uma vulva mutante clarabóia
com vidros em torno de si
paredes duplas
relógios pendurados
civilização progressiva
um comboio entra e sai
pouca-terra pouca-terra
muita-sede muita-sede
meninos nascem a atirar pedras
25. 25
um bando de pretos voadores
constrói uma muralha da china
entre o ânus e a vulva
e as avós chamam-nos de dentro
as vozes ecoam na cabeça deles
o ânus tornou-se um lugar clandestino
e o amor de patas no parapeito
lança o hálito e resvala
uma vulva na cabeça de cada refugiado
os chama para reiniciar a vida
cada um entra e sai do seu destino
uma gota de sémen
um gueto
uma verdade precoce
uma guerra de ponteiros
o do tempo ponteiro maior
no sangue
o do espaço ponteiro menor
nos ossos
e AGORA aqui eu
a mil léguas de ti
lambo-me
guetizo o pensamento
bato contra as paredes
da minha pele
cresço nas próprias mãos
e a luz
seca-me
alguma boca me engole
para um lugar mais fundo
uma vulva cada vez mais imaginária
26. 26
A VULVA GUÉISER É REAL
desabou um eurodeputado
um banqueiro
um oficial da marinha
que vai dar os olhos no porto de baltimore
e ao fim de seis meses
chega à casa onde o filho já anda
expeliu a puta que paga as contas da mãe
e a cura pois sabe de medicina
um leito de sémen escorre
uma bandeira de paz
em campo menstruado
fátima vale, filo-café “os guetos”, 4 de março de 2017
Publicado na Revista Propulsão (Br)
28. 28
NNeemm EErróóttiiccaa TTuuaa,, NNeemm EExxóóttiiccaa TTuuaa
Suheir Hammad
Não quero ser exótica tua
como um pássaro sombrio, frágil, colorido,
preso e enjaulado
numa terra estranha ao desdobrar das suas asas.
Não quero ser exótica tua
por todo o lado, as mulheres parecem-se simplesmente comigo,
algumas mais altas, mais escuras, mais simpáticas do que eu,
mas como eu
apenas a mesma mulher por todo o lado
com o meu nariz nos seus rostos,
o meu nome nos seus espíritos
Não te deslumbres com a minha alteridade,
não tenho cabelo no toutiço para te prender num misterioso vodu negro
o bater das minhas pestanas umas contra as outras
não é um latejar sombrio do deserto
é apenas um pestanejar,
esquece!
Não construas à minha volta
a tua fantasia fetiche
a tua profanidade lasciva
para me enjaular, me cortar as asas
29. 29
Não quero ser exótica tua
o teu amor pela minha beleza
não é mais do que fornicação vigente
óbvia perversão rosa de facto necrofilia nojenta
porque a minha beleza está morta para ti
Eu estou morta para ti
Não sou menina do teu harém
não quero ser gueixa, boneca, colhedora de bananas,
menina de pompom sem pompom, fazedora de café, puta da cidade
dançarina do ventre, dançarina privada
a Malinche vénus hotentote,
menina da lavandaria, tua embarcação imaculada, princesa castradora
Nem erótica tua, nem exótica tua
Tradução e adaptação do GAP do poema
de Suheir Hammad
https://www.youtube.com/watch?v=xarc5PFknfw&feature=share