SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 32
Baixar para ler offline
Colocar algumas peças sobre a questão palestiniana
Gisandra Oliveira 3
Anarquistas contra o Muro (AATW)
Fonte: René Berthier 1 1
Dois estados para duas nações - são demasiados estados!
Anarchist Communist Initiative 1 2
Na origem
Kobi Snitz 1 5
A economia política da ocupação israelita
Maciel Santos 1 7
Um muro de segurança civil ou de dominação económica
Guy Davidi e Alexandre Goetschmann 28
Folhas Soltas no quadro das Jornadas Libertárias do Porto - 201 5 (9 de
Outubro no Gato Vadio: video-conversa com Ashley Bohrer, membro dos
Anarquistas contra o Muro).
A questão Palestiniana, embora justa, é uma causa perdida com um
ingrato sabor amargo. Se uma bandeira, o nacionalismo, a criação de
mais um estado são assuntos incompatíveis com o pensar anarquista,
como é que a solidariedade internacional se constrói na distância? Como
é que se luta contra a opressão, repressão e expulsão do povo
palestiniano? Como é que os Anarquistas contra o Muro (AAtW) lidam
com incompatibilidades ideológicas?
Onde nos situamos nesta luta?
1. Procurar estabelecer laços no panorama actual
Com alguma apreensão, mas sem emitirmos pios mobilizadores de uma
legítima preocupação, nem estilhaços de acções directas, vemos a Europa
consolidar, com algum secretismo (expondo agora de forma evidente os seus
procedimentos anti-democráticos), o TTIP (Transatlantic Trade and Investment
Partnership) ou a PTCI (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento).
Trata-se de um acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos da
América que está a ser arquitectado, desde Julho 201 3, entre a Comissão
Europeia e o Governo norte-americano com a participação de corporações
multinacionais. Esta parceria entre a União Europeia e os EUA, além de favorecer
o poder dos interesses corporativistas; ameaçar os direitos das trabalhadoras e o
direito ambiental; também ameaça invalidar as recentes medidas tomadas na UE1 ;
e limitar, impedir e até criminalizar qualquer expressão política e mobilização
solidária na luta pela liberdade dos povos. Entre estas, as possíveis acções da
sociedade civil de se poderem exprimir através do Boicote, Desinvestimento e
Sanções2 em solidariedade com o povo palestiniano.
Apesar das políticas europeias reforçarem o policiamento e a criação de
dispositivos de protecção nas fronteiras3, numa lógica em que a condição de
Colocar algumas peças sobre a
questão Palestiniana
Gisandra Oliveira
Porto, 201 5
Uma inteligência partilhada da situação não pode
nascer de um texto só, mas de um debate
internacional. E para que o debate aconteça é
preciso colocar algumas peças.
(Aos nossos amigos, 201 5,1 4)
1 - Linhas Directrizes, publicadas no Jornal Oficial da UE (201 3/C 205/05), relativas à “elegibilidade das
entidades israelitas, estabelecidas em territórios ocupados por Israel desde 1 967 (...)”. Consultável em
linha: http://www.eeas.europa.eu/delegations/israel/documents/related-links/201 3071 9_guidelines _on_
eligibility_of_israeli_entities_en.pdf
2- BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) é um movimento, iniciado pela sociedade civil
palestiniana em 2005, que tem vindo a ser uma fonte de preocupação crescente para o actual governo
de Israel e tem levado Israel e os EUA a tomarem as respectivas contra-medidas políticas e legais. O
Apelo do movimento BDS encontra-se consultável em linha: http://www.bdsmovement.net/call
3- Estes dispositivos constituem barreiras que podemos percepcionar como um prolongamento do muro de
separação, cuja construção foi iniciada em 2003 pelo governo de Israel, já que constitui um impedimento ao
movimento de pessoas e bens dentro desses limites, mas não entre Israel e o resto do mundo.
3
refugiado perdeu definitivamente o seu rosto humano, sabemos que a nossa
pertença ao mundo não acaba numa linha imaginária às portas do Mediterrâneo,
desde o mar do Norte, passando pelo Golfo de Biscaia, pelas Colunas de Hércules
e as Ilhas Gregas. Não podemos esquecer que as políticas securitárias decididas
pela União Europeia revestem várias formas e manifestam-se de várias maneiras,
contudo todas elas procuram propagar a ideia de uma “ameaça comum”,
validando as próximas “manobras” da NATO. Esta “operação musculada” chama-
se “Trident Juncture 201 5”4. As três pontas deste “tridente”querem reforçar o
estado de excepção paulatina e ardilosamente implementado nos Estados
Europeus. Uma das propostas, que vai decorrer em Lisboa no fórum industrial (1 9
e 20 de Outubro 201 5)5, propõe o aumento do orçamento e dos investimentos
militares alegando a necessidade da “defesa” através de operações com “efeitos
dissuasores”, que verá, a 5 de Novembro de 201 5, a realização de um “evento
marítimo pesado”6. Espanha, Itália e Portugal constituem o “tridente” que promove
a ficção da “ameaça comum” a que a NATO chama “potenciais inimigos”.
Mesmo se as lutas que nos são mais próximas levam-nos a uma postura
de territorialização e priorização das urgências, deixando-nos contaminar natural e
necessariamente pelas agendas partidárias, pelo ritmo político institucional ou pelo
que os media trazem à custa do voyeurismo social, não nos podemos pensar em
termos anarquistas7 separadas das grandes movimentações políticas europeias,
mas também não nos podemos alhear das lutas mundiais como o movimento
Zapatista, ou as lutas de Kobane/Rojava e muito menos da questão
Palestina/Israel8 por vários motivos. Sobre esta última, podemos de imediato
destacar três razões. Primeiro, porque forçámos a entrada das suas Histórias nos
anais da história do Ocidente e do Mundo. Segundo, porque a nossa humanidade
enforma os laços solidários diante da opressão, repressão, segregação e
destruição actuais como passadas. E finalmente, porque tudo contra o que
lutamos no geral- uma ordem social encostada a um sistema de dispositivos9
4- Notícia consultável em linha: http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-acolhe-em-201 5-exercicio-
da-nato-que-paises-do-leste-reivindicavam-1 668596
5- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/industryforumNotícia consultável em linha:
http://www.act.nato.int/industryforum
6- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/trident-juncture-1 5
7- Aqui o termo remete para 4 princípios gerais e básicos: autonomia, autogestão, internacionalismo e
acção directa.
8- O termo Palestina/Israel remete para o território do tempo do mandato britânico (1 920-1 948), posto
que a situação actual se definiu dentro dos limites desse território, cujo futuro político prescindiu da
consulta da população sendo atribuído aos Britânicos como uma das esferas de influência na região nos
acordos Sykes-Picot em 1 91 6.
9- A palavra dispositivo remete para o pensamento de Foucault, retomado por Agamben (2007, 31 )
como sendo “tudo aquilo que de uma forma ou de outra tem a capacidade de capturar, orientar,
determinar, interceptar, moldar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres vivos”.
4
manobrados e regidos pelo capitalismo e o Estado - encontra-se em jogo
quotidianamente na Palestina/Israel. Mesmo na distância geográfica que nos
separa do Médio Oriente, podemos encontrar múltiplas razões para uma actuação
mais regular e sistemática contra a máquina capitalista, os instrumentos dos
Estados e as engrenagens securitárias.
2. Quando as palavras estão contaminadas
Trazer a questão Palestiniana para a cena anarquista no Ocidente revela
certas reticências e apresenta algumas dificuldades. As reticências formulam-se
principalmente em torno da linguagem, enquanto as dificuldades envolvem
percepções políticas e noções ideológicas. Em torno da linguagem, a questão
Palestiniana está contaminada por dispositivos regidos pelo paradigma ocidental
que insistem em querer tratar do assunto. É uma máquina oleada pelo direito
internacional, envolvendo a Convenção de Genebra, o Tribunal Penal Internacional
e a ONU, que só funciona e se aplica no quadro da noção de Estado. Uma
máquina composta por Estados que votam e vetam alegremente num tabuleiro
geopolítico em que só há lugar para os interesses de alguns. Uma engrenagem
selectiva que legitimou o seu direito universal à ingerência internacional através de
recortes fronteiriços, pressões e sanções económicas e de intervenções militares.
De um modo geral, uma das dificuldades do anarquismo, sobre a questão
palestiniana, prende-se com o sistema implementado pelas democracias liberais,
tal como a representatividade. Nesta perspectiva, a causa palestiniana tem vindo a
ser terreno eleito, embora naturalmente pouco gratificante, das agendas políticas
partidárias das esquerdas europeias, através de grupos ou associações com um
pé nos parlamentos e outro nos dispositivos humanitários institucionais ou não. No
contexto português, curiosamente, o grupo parlamentar de amizade Portugal -
Palestina é o único grupo que tem no seu seio membros de todas as cores políticas
presentes no Parlamento1 0. Não sendo um terreno para ganhos eleitorais concretos
é relativamente fácil manter laços para divulgação, informação e até para realizar
acções conjuntas com estes grupos. Como é de esperar, cada grupo partidário tem
tendência para veicular as ideias dos seus homólogos palestinianos. Assim, a
grande diferença ideológica reside essencialmente, do ponto de vista anarquista,
em trabalhar com as decisões da sociedade civil palestiniana e dos comités de
resistência popular, contra a opressão e a ocupação. Contudo, em traços gerais,
tudo gira em torno de uma palavra: auto-determinação.
Se num dicionário a palavra auto-determinação, aplicada ao campo
político, significa a livre escolha de um estatuto político e de um desenvolvimento
1 0- Comunicação de Bruno Dias, Presidente do Grupo Parlamentar de amizade Portugal – Palestina, a
28 de Maio de 201 5, na Assembleia da República num encontro com a Delegação do Parlamento
Palestino.
5
social, económico e cultural, nesta máquina neoliberal, a auto-determinação
concebe-se dentro da noção de Estado, portanto enquanto auto-determinação
nacional, envolvendo um povo e um território. Todos os processos de auto-
determinação vão ao encontro de noções fixadas por entidades e organismos que
apenas concebem os direitos das pessoas dentro dos limites constrangedores e
limitadores dessas noções. Assim, não existem mecanismos que contemplem as
legítimas reivindicações de uma população a, simplesmente, viver a sua vida nas
suas terras, sem se submeterem a uma forma de organização política de acordo
com o que essas mesmas entidades reconhecem como adequada.
Mas, para que haja auto-determinação dos povos, terá de haver “povo”,
algo que ligue as pessoas entre si, as pessoas que constituem esse grupo, essa
comunidade, esse povo. Muito sucintamente, no caso europeu, os povos
agruparam-se dentro de limites territoriais que mais tarde se definiram como
Estados. No caso de Israel, o ser judeu é algo que, ao nomear-se como tal,
definiu-se na opressão e subverteu os princípios falseados do racismo e, em
particular, do anti-semitismo, contudo é importante realçar que o ser judeu
transcende o judaísmo enquanto religião. Enquanto o ser palestino é definido em
relação à realização do ser judeu na Palestina, portanto inseriu-se também na
categoria de povo oprimido. Por um lado, a comunidade judaica, através do
movimento sionista1 1 e as suas ramificações, acabou por estabelecer o seu
território na Palestina, com base num colonialismo moderno, na ocupação e,
continua as suas práticas expansionistas. No caso palestiniano, o povo formulou-
se como um todo no quadro de resistências à contínua opressão e repressão
exercida pela soberania israelita sobre um território que habitavam e habitam.
O dispositivo1 2 imperialista, implantado no Médio Oriente e em particular
1 1 - O movimento sionista é composto por várias correntes e apresenta diferentes definições. Por
exemplo, para Noam Chomsky, na entrevista intitulada “Israel in global context”, datada de Junho 1 997,
o “sionismo significava uma oposição a um estado Judeu. O movimento sionista só se revelou
oficialmente a favor de um estado Judeu por volta de 1 942. (…) Durante muito tempo, o movimento
sionista opôs-se à criação de um estado Judeu, porque tal estado seria discriminatório e racista.».
Consultável em linha: http://www.chomsky.info/interviews/1 9970609.htm
1 2- Idem nota 9.
6
na Palestina/Israel, tem vindo a ser reformulado pela ideologia política sionista1 3.
Esta ideologia praticada pelos sucessivos governos de Israel tem características
nacionalistas e proteccionistas muito vincadas. Se por um lado, as esquerdas
viram a criação de Israel como a possível concretização de um grande projecto
revolucionário, algo com cariz quase utópico, mas também algo que pudesse
envolver a noção de refugiado1 4, como uma condição inovadora questionando a
noção de estado-nação, a partir dos anos 80, este sonho foi perdendo consistência
com as evidências da violência das práticas dos governos sionistas. Ainda assim,
uma estranha mistura de esperança, entre realismo e ilusão, apesar de
enquadrada no sistema definido pelas democracias ocidentais, permanece, como
quando Alain Badiou escreve em 2006 que a fundação de Israel «foi um contra-
acontecimento, parte de um contra-acontecimento maior: o colonialismo, a
conquista brutal por parte de gente vinda da Europa de uma nova terra onde vivia
já outro povo. Israel é uma mistura extraordinária de revolução e reacção, de
emancipação e de opressão. O estado sionista tem de se tornar o que continha em
si de justo e de novo. Tem de se tornar o menos racial, o menos religioso e o
menos nacionalista dos Estados. O mais universal de todos eles.»1 5. Por outro lado,
verificamos que as circunstâncias históricas da criação do Estado de Israel
formularam-se com base no estado de excepção1 6 que persiste até hoje. Ao
formular um estado de ameaça contínua, que necessita de um exército permanente
ao serviço da defesa, que funciona num vazio legal, legitimando acções ilegais,
1 3- Tendo em conta que a palavra sionismo envolve várias definições e percepções sensíveis, é preciso
especificar que a utilizamos neste texto como a prática de uma ideologia política expansionista e
opressora. Não estamos a invalidar uma aspiração histórica, nem o legítimo desejo de segurança que o
sionismo representou e representa para um grupo de pessoas de confissão e/ou de cultura judaica,
mesmo se esta aspiração e desejo apenas se enquadram na noção que contestamos no geral de
estado-nação. O sionismo formulou-se principalmente na Europa Oriental no contexto dos progromes
(Rússia 1 881 -1 882), do anti-semitismo, das opressões e repressões. Teve vários teóricos e
pensadores como: Léon Pinsker (Rússia, 1 821 -1 891 ) teórico da soberania nacional judia; Aaron David
Gordon (Rússia, 1 856-1 922), profeta inspirado por um regresso à natureza e ao trabalho agrícola;
Theodor Herzl (Austro-Hungria, 1 860-1 904) fundador do sionismo político; Bernard Lazare (França,
1 863-1 903) a favor de um sionismo anarquista e internacionalista; Martin Buber (Áustria, 1 878-1 965) a
favor de um estado único, ético e pacífico; Ber Borochov (Rússia, 1 881 -1 91 7) teórico do sionismo
marxista e Yossef Haïm Brenner (Rússia, 1 881 -1 921 ) por uma identidade judia secular liberta da tutela
religiosa.
1 4- Sobre a noção de refugiado, Hannah Arendt e Giorgio Agamben, trouxeram-nos uma pequena luz,
em que a condição de refugiado funcionaria como um paradigma de uma nova consciência histórica que
envolveria o declínio do estado-nação e potenciaria a formação de uma comunidade política ainda por
vir.
1 5- Alain Badiou, “The question of democracy”, Lacanian Ink, nº28, Outono de 2006, p.59.
1 6- Segundo Agamben (201 0) o estado de excepção viu os seus mecanismos e dispositivos criados a
partir da primeira guerra mundial para servirem como modelo de governo. O estado de excepção
constitui um vazio de direito, em que os decretos surgem como força de lei, baseando-se, por exemplo,
na ameaça constante e nas respectivas politicas securitárias.
7
validando a impunidade mundial e alimentando o capitalismo e o mercantilismo1 7,
o Estado de Israel exerce a sua soberania1 8 - com variantes legais de acordo com
o estatuto atribuído às origens de cada indivíduo- sobre toda a população na
região. Embora a prática de um colonialismo tardio, que se revela como a forma
mais elaborada do necropoder1 9, tenha consequências sociais desastrosas,
também abre uma possibilidade inesperada em termos anarquistas nos Territórios
Ocupados20 como podemos verificar com o trabalho desenvolvido pelos comités
de resistência popular em conjunto com outros grupos e colectivos como os
Anarquistas contra o Muro (AAtW)21 .
3. Colocar mais umas peças
Temos frequentemente uma percepção ideológica preconcebida, ou
generalizada de três assuntos prementes para o pensar anarquista relativamente à
Palestina: o uso da bandeira; a questão do nacionalismo; a questão da criação de
um estado Palestiniano. São três assuntos que resistem ao pensamento anarquista
por serem incompatíveis, contudo, num contexto de opressão contínua merecem
alguma atenção.
Ainda que múltiplas insurreições, ou uma revolução social, sejam o ideal
para derrubar o sistema que nos oprime, não podemos esquecer a realidade social
e política que nos rodeia. Quer na revolução, quer na construção colectiva, o
anarquismo surge como um meio, não um fim. Fornece-nos instrumentos e
ferramentas para construir colectivamente formas de organização social em que o
ser humano ocupa o espaço todo com a liberdade individual e colectiva, com a
solidariedade baseada no princípio de apoio-múto e com princípios decisórios
horizontais para todos os aspectos das nossas vidas. Se neste momento
precisamos de anarquistas para todas as insurreições, para as revoluções ainda
1 7- Retomamos aqui a palavra mercantilismo como sendo “uma determinada organização da produção
e dos circuitos comerciais segundo o princípio de que, em primeiro lugar, o Estado deve enriquecer pela
acumulação monetária, em segundo, deve reforçar-se pelo aumento da população, em terceiro, deve
estar e manter-se num estado de concorrência permanente com as potências estrangeiras.” (Foucault,
201 0, 29)
1 8- Aqui a palavra soberania, intimamente ligada à noção de estado-nação (um conceito em que não
nos revemos ideologicamente), remete para a definição de Mbembe, partindo de Foucault, i.e., como
sendo a expressão do poder e da capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Ver
Achille Mbembe, «Nécropolitique”, Raisons politiques, 2006/1 , p. 29-60. DOI: 1 0.391 7/rai.021 .0029.
1 9- Ver Achille Mbembe (op.cit, p.43).
20- Os chamados Territórios Ocupados remetem para a Cisjordânia, dentro do limite da linha verde – ou
a fronteira antes da guerra dos seis dia em 1 967 – e para a zona dos Golãs território Sírio igualmente
ocupado por Israel desde 1 967.
21 - Ler “Israeli anarchism: Statist dilemmas and the dynamics of joint struggle” de Uri Gordon em
Dysophia nº3, Junho 201 2, pp.30-46, consultável em linha: https://dysophia. files.wordpress.com
/201 2/05/dysophia3web.pdf
8
por vir, simultaneamente, também precisamos dessa construção colectiva.
Enquanto as vozes populares dos povos submetidos aos Estados gritam
por uma “democracia real”, as vozes palestinianas gritam pela água, gritam pelas
suas casas e terras. Gritam contra a ocupação, contra o Apartheid, contra o muro,
contra as detenções administrativas. Enquanto milhares de pessoas invadem as
praças dos seus países, a fragmentação territorial e as barreiras que impedem a
movimentação de pessoas e bens na Cisjordânia, levam a uma extrema
organização e coordenação de cada comité de resistência popular em cada aldeia,
campo de refugiado, vila ou cidade na luta por coisas muito simples e básicas,
como o direito a viver.
É importante esclarecer que o uso da bandeira palestiniana durante as
manifestações é muito mais um acto de resistência e irreverência, obviamente
reprimido, do que a expressão de um nacionalismo visto e concebido segundo o
nosso ser “ocidental”. Quanto à questão do nacionalismo palestiniano, resume-se
muito mais a uma identidade camponesa desapossada que, além de nunca ter tido
a oportunidade de se pronunciar sobre o seu próprio destino, separou-se
rapidamente da pura retórica nacionalista árabe e das elites locais para formar a
sua identidade palestiniana na luta contra o sionismo22.
Sem aprofundar as distinções teóricas elaboradas pelo anarquismo sobre
as noções de estado-nação-pátria. Podemos ver duas grandes tendências
anarquistas na abordagem ao nacionalismo. Para Proudhon e Bakunine, há que
negar qualquer pertença nacional, como algo que aliena e manipula, e procurar
uma pertença universal sem fronteiras. Para Kropotkine, o nacionalismo faz parte
de um processo histórico para alcançar uma organização social ideal. Portanto,
neste sentido, o nacionalismo seria um passo necessário para a auto-determinação
e, depois, o internacionalismo. Mas para Kropotkine o processo de auto-
determinação nacional não tem necessariamente que se inscrever num território
definido e delimitado. Anarquistas como Bernard Lazare e Hillel Solotaroff,
partindo do pensamento de Kropotkine, criaram uma ruptura com todos os
princípios anarquistas ao introduzir a condição de uma comunidade judia, como um
grupo homogéneo nacional pelas circunstâncias históricas comuns, principalmente
quando mais tarde apoiaram a necessidade de um território para acolher essa
comunidade: a Palestina.
A questão em torno da criação de um estado palestiniano prende-se
essencialmente com os discursos e princípios definidos pelas democracias
ocidentais. Se inicialmente, houve o desejo das elites árabes, em negociações
íntimas com os britânicos, para a criação de um grande estado árabe, a ideia de
um território/estado palestiniano formulou-se no seio das manobras da
22- A palavra sionismo remete aqui para o sionismo político de carácter expansionista (ver nota 1 3). Ler
o artigo de Maciel Santos, “Palestinianos desde quando? Um livro sobre os nacionalismos da
Palestina”, Folhas Soltas nº3, Outubro 201 3, pp.1 1 -1 6.
9
SDN/ONU23, i.e., uma entidade externa que dita as regras internacionais,
principalmente com o aquiescer de alguns Estados que assinaram e “aderiram”
aos seus princípios, cartas, declarações e que procuram auto-legitimar as suas
decisões internacionalmente acrescentando sentido à própria noção de estado-
nação e validando a ingerência. Vemos que segundo o sistema actual, a única
entidade que garante os direitos colectivos e individuais de um povo vivendo em
determinado território é a submissão de uma população ao poder de um Estado.
Ainda que o Estado, para ser reconhecido como tal deva apresentar as seguintes
características gerais: 1 ) ter um território; 2) ter uma população permanente nesse
território; 3) ter uma forma de organização politica; 4) manter laços diplomáticos
com outros países. Curiosamente, estas características nem sempre contemplam
os limites do território, nem o número de habitantes ou a deslocação em massa de
populações e ainda menos indicam que a organização política terá de se
enquadrar no paradigma democrático ocidental.
O que é certo é que outra forma de organização social é possível, basta
construí-la colectivamente. Contudo, não havendo ainda esta construção e sendo o
paradigma ocidental de democracia amplamente implementado, se as aspirações
do povo palestiniano estão direccionadas para formarem um Estado, será uma
aspiração legítima, dadas as circunstâncias da opressão, ocupação e segregação,
mas também as circunstâncias políticas, exactamente como as aspirações do
movimento de libertação nacional sionista, ou outros movimentos de libertação,
seguiram esse caminho. Na verdade, o movimento sionista tinha todos os
instrumentos práticos e teóricos para seguir uma senda totalmente diferente, como
a experiência dos kitubtzim deixou entrever. Contudo, não aconteceu,
possivelmente por causa de interesses que ultrapassam a nossa compreensão e
pelas circunstâncias históricas da 2ª Guerra Mundial. Um profundo nacionalismo
de direita e extrema-direita apoderou-se da sociedade israelita e os resultados
encontram-se facilmente através da expressão das forças políticas predominantes
no governo. Neste contexto, a verdade é que uma aspiração do povo palestiniano
por um Estado surge como aquela que vai garantir os direitos do povo palestiniano,
mesmo que se submetendo a outro opressor.
Surgem-nos imensas questões para as quais não temos respostas
definitivas a longo prazo. Apesar disto tudo parecer incompatível com os princípios
anarquistas, os grupos anarquistas em Palestina/Israel continuam a desenvolver
um trabalho importantíssimo com os comités populares locais. Assim, na luta
contra a opressão, quer seja local, quer na distância, como construir um
compromisso refugiado por natureza e ideologia, mas empenhado no trabalho
fundamental desenvolvido com as comunidades locais com base na solidariedade?
23- A Sociedade das Nações/Liga das Nações surgiu depois da 1 ª Guerra Mundial (1 91 9) e foi
substituída pela ONU – Organização das Nações Unidas – depois da 2ª Guerra Mundial, em 1 945.
Gisandra Oliveira
1 0
Anarquistas contra o Muro (AATW) é um colectivo que luta
contra todas as formas de segregação, apartheid, detenção social e
política, desviando-se especialmente dos valores democráticos,
respeitando os direitos das minorias e da auto-determinação dos povos.
O colectivo dos Anarquistas contra o Muro está particularmente
envolvido na luta contra a construção do muro e da barreira de
separação que o governo israelita iniciou em 2003. É para denunciar a
mentira da mensagem securitária israelita que o colectivo se juntou no
terreno à luta levada a cabo pelos diversos comités locais das aldeias
afectadas pela existência do muro.
A luta contra a construção e a existência do muro estende-se a
numerosas aldeias, directa ou indirectamente envolvidas apesar das
represálias, da repressão e da violência do exército israelita contra a
população palestiniana.
A presença do colectivo no terreno favorece a criação de verdadeiros
laços entre dois povos divididos pelas políticas dos Estados. Incentiva
cada aldeia a envolver-se na luta global sobre todo o traçado do muro.
Permite um ponto de vista crítico e alternativo à opinião pública israelita
frequentemente alinhada pela política do seu governo.
Os riscos sofridos pelo colectivo são grandes e custosos. Um custo que
cada membro está disposto a pagar: ferimentos irreversíveis, anos de
detenção ou expulsão do território, assim como um custo económico.
AnarquistascontraoMuro
1 1
Tradução GAP
Fonte: René Berthier (2008, p.1 1 8). La Palestine au
pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire.
Este texto também foi publicado no Le Monde
Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007.
Se o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana chegam a um acordo
de “paz”, não será o resultado de um desejo de “segurança” por parte
de Israel, nem de independência por parte palestiniana. Mais do que
outra coisa qualquer, será uma parte da configuração dos interesses
dos poderes internacionais já que tudo o resto é alheio ao seu modo de
pensar. Os Acordos de Genebra, iniciados por políticos e homens de
negócios, se forem assinados como pretendido (o que são duas coisas
bem diferentes), serão a expressão desses interesses, como será
qualquer outro acordo político que possamos imaginar. A fórmula mais
apropriada para descrever o tratamento dos habitantes e cidadãos, que
não estão incluídos na categoria de “judeus de pleno direito”pelo Estado
de Israel é o APARTHEID: uma lei de separação chauvinista, que
confisca a terra dos camponeses, restringe o movimento dos
trabalhadores e até obstruí a capacidade dos capitalistas palestinianos
em desenvolver a sua economia, enquanto, simultaneamente, tenta
obter a cooperação dos lideres palestinianos.
Algumas pessoas que se consideram activistas pela paz perguntaram-
se seriamente, além das respostas oficiais da esquerda, quais as
razões para a política comum de todos os governos israelitas –
esquerda como direita – relativamente aos palestinianos?
Consideramos que não é simplesmente a conquista de um povo pelo
outro, ao estilo dos impérios antigos, nem a expressão de uma crença
bíblica na terra de Israel, nem emerge dos grupos de pressão dos
lideres colonos, apesar disto tudo desempenhar um papel certeiro.
A lei do apartheid deve ser vista como algo que serve vários poderosos
interesses. Primeiro, serve a economia Israelita – ou seja os capitalistas
israelitas - ao fornecer uma força laboral barata principalmente utilizada
pelas pequenas e médias empresas de manufactura e construção.
Os “Israelitas Árabes”, submetidos à lei militar de 1 948 a 1 966,
desempenharam esse papel e até os habitantes das regiões ocupadas
em 1 967. Apenas recentemente, como se fosse o resultado da Intifada
el-Aqsa e a importação massiva de trabalhadores imigrantes, o acesso
DOIS ESTADOS PARA DUAS NAÇÕES
­ SÃO DEMASIADOS ESTADOS!
1 2
Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista
livre a essa força trabalhadora foi interrompido. As grandes empresas
israelitas tiraram proveito da ocupação de 1 967, principalmente, porque
lhes abriu um grande mercado de consumidores sem competição. O
aparelho militar, extremamente poderoso em Israel, e o seu pessoal
privilegiado sempre gozaram das suas carreiras no governo e na
indústria depois de acabar o serviço militar e têm um grande interesse
em prolongar o apartheid (e o conflito) para assegurar as suas posições
e os seus direitos. É do interesse dos Estados Unidos de América,
ajudados pelos serviços prestados pelo Estado de Israel na região e no
mundo inteiro desde os anos 1 950, que Israel permaneça em estado de
ameaça permanente para que continue de precisar do seu apoio.
Um lembrete: as negociações sérias sobre a criação de um Estado
Palestiniano apenas começaram há 1 5 anos, por volta do final da
primeira Intifada. Quase nenhum dos dirigentes sionistas de esquerda e
da esquerda radical até agora (que parecem ter sucedido em
reescrever a sua história de um modo quase Orweliano) imaginaram tal
acordo. Até no início do período de Oslo, ainda falavam de autonomia.
A OLP e a esquerda anti-sionista falaram da criação de um Estado
secular para todos os cidadãos. De facto, a Autoridade Palestiniana não
existia de todo, até Israel ajudou a instalar a OLP nesse papel. O
acordo de paz a favor de dois estados para duas nações apenas entrou
na agenda quando, a seguir à Primeira Intifada e com as mudanças na
economia mundial, começou a servir os interesses dos capitalistas
Israelitas e norte-americanos.
O que significa tal paz? Se continuarmos a descrição da situação na
extensão de Israel enquanto apartheid e se a comparamos ao que
existia na África do Sul, podemos ver que esta PAZ significa a
submissão da Intifada a uma liderança clientelista palestiniana que
serviria Israel. Uma PAZ assim, frequentemente chamada
“normalização”, relaciona-se com os processos ocorrendo pelo mundo
inteiro com o rótulo de globalização e a iniciativas de cooperação
comercial regional desenhadas para culminar numa “zona de comercio
livre para todos os países do Mediterrâneo”. Pelo mundo inteiro,
acordos semelhantes conduziram à destruição das economias locais
para proveito das multinacionais, à violação dos direitos humanos
básicos, à deterioração do estatuto e condições das mulheres e
crianças, à violência social e à destruição do ambiente.
Será que este acordo e paz trarão o fim da violência? Não acreditamos
1 3
que sim: as dificuldades económicas e o fosso social vão aumentar, o
problema dos refugiados vai continuar sem solução e a legitimidade do
apoio económico dado ao grande número de desempregados da Faixa
de Gaza e outras partes da Cisjordânia (como aconteceu parcialmente
depois dos Acordos de Oslo e de novo recentemente). Neste caso,
terão de contar com o “seu” estado – um mini-estado dependente - que
muito provavelmente não estará à altura da tarefa.
Os estados agem dentro de um sistema de interesses e as pessoas
comuns como nós não estão incluídas na lista das suas prioridades. Se
queremos trazer qualquer mudança para algo melhor, diminuir os fossos
e parar a matança mútua, temos de não nos comportar como
marionetas obedientes dos lideres políticos, financiados pelos europeus
e pelos americanos, que apenas recorrem ao ambíguo protesto
democrático. Temos de agir para eliminar as partições nacionais e
acima de tudo resistir às forças militares que causam matanças mútuas
e contínuas.
Não precisamos de promover um programa político, quer seja o dos
acordos de Genebra ou de qualquer outra alternativa. Pelo contrário,
devemos colocar na agenda as nossas exigências para um modo de
vida e de igualdade totalmente diferente para todos os habitantes da
região. Mesmo se agimos de forma independente (local), temos de nos
lembrar sempre que, enquanto houver Estados e enquanto o sistema
capitalista continuar de existir, qualquer melhoria que consigamos
alcançar será sempre parcial e sob ameaça permanente. Portanto,
temos de encarar a nossa luta como parte de uma luta levada a cabo
pelo mundo inteiro contra o capitalismo mundial e apelar a uma
mudança revolucionária baseada na abolição da opressão de classes e
da exploração e procurar a construção de uma nova sociedade – uma
sociedade sem classes anarco-comunista. Uma sociedade em que não
haverá coerção de Estado, onde a violência organizada será abolida, o
chauvinismo inexistente e onde todos os outros males da era capitalista
serão eliminados.
1 4
Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista
ESTE FOLHETO FOI DISTRIBUÍDO POR ISRAELITAS TRAIDORES NACIONAIS
ANARQUISTAS
haifa_anarchists@yahoo.com
NEM GOVERNANTES NEM GOVERNADOS
Fonte: "We are all anarchists against the wall" [http://olympiarafahmural.org/wp-
content/uploads/201 0/03/anarwall-Booklet_EN.pdf]
Há cerca de quatro anos, alguns e algumas militantes israelitas juntaram-se para
formar um grupo de acção política para se opor à chamada “ barreira de
separação” (o muro) do Estado de Israel. As acções, que marcaram o início deste
grupo e que continuam até hoje, baseiam-se na não violência e na propaganda
pelo acto. Deixam os pequenos discursos e a institucionalização aos outros.
O grupo formou-se no acampamento de Masha onde, com militantes internacionais
e palestinianos, se montou um protesto no traçado do muro na aldeia de Masha.
Enquanto se resistia à construção, cortou-se e destruiu-se partes da cerca de
arame farpado.
Durante uma acção semelhante, em Dezembro 2003, um militante israelita foi
baleado nas duas pernas pelas IDF (Forças de Defesa Israelita) com balas
verdadeiras a queima-roupa. Até então, dada a mediatização do ocorrido, o grupo
que mudava de nome a cada acção, fixou o seu nome no que fora escolhido para
aquele dia: Anarquistas Contra o Muro. (AAtW – Anarchists Against the Wall)
Em Israel, como alhures, a palavra anarquista é frequentemente utilizada de forma
negativa. Em Israel, o seu sinónimo mais próximo é provavelmente “satanista”.
Mas este amálgama serve dois objectivos: por um lado, liberta o grupo de se
preocupar com a sua imagem, algo que muitas vezes paralisa a acção política e,
por outro lado, revela a determinação do grupo em fixar os seus alvos e acções.
Esta autonomia reforça o grupo, porque oferece aos membros activos e potenciais
a possibilidade de agir em função das suas convicções, sem estarem forçados a
tomar uma posição pragmática num debate em que os termos são ditados de
antemão pelos outros.
O início de uma luta comum
A final de 2003, início de 2004, comités populares foram criados em várias aldeias
palestinianas sujeitas a perderem grande parte das suas terras por causa do muro.
Estes comités, destinados a resistir contra o muro, manifestavam-se quase todos
os dias. A experiência do acampamento de Masha permitiu convidar israelitas a
participarem nestas manifestações. Assim começou a parceria entre os AAtW e os
comités populares de várias aldeias.
Os AAtW entraram num período de actividades intensas. Havia manifestações em
várias aldeias quase todos os dias e, com um grupo de uma dezena de israelitas,
os AAtW conseguiram marcar presença nas manifestações para as quais foram
convidados.
Claro que cada manifestação também tem o seu número de israelitas não
Na origem
Excerto de Kobi Snitz, militante dos
Anarquistas contra o Muro
1 5
convidados, tal como o exército, ou a polícia das fronteiras. A presença de
militantes israelitas nestas manifestações reduz substancialmente a violência do
exército, que admite não disparar sobre as massas, quando suspeita da presença
de israelitas numa manifestação.
Apesar disto, mesmo com níveis de violência reduzidos, mesmo com a presença
de israelitas, nove palestinianos foram mortos durante manifestações contra o
muro. Muitos outros foram feridos, ou detidos, e muitos passaram meses em
prisão.
As realidades
Uma verdadeira resistência israelita contra o muro é difícil devido ao extremo
racismo da sociedade israelita. Uma oposição ao muro é incompreensível ou
entendida como um incentivo às mortes de Israelitas. Assim os AAtW são sempre
marginalizados e sujeitos a perseguições legais, assim como a ataques violentos
durante manifestações.
Até hoje, os membros dos AAtW foram detidos inúmeras vezes; houve 63
acusações e uma militante ficou detida vários meses. A actividade habitual dos
AAtW envolve um contacto constante com a excelente advogada do grupo, Gaby
Lasky, mas também um conhecimento íntimo com enfermeiros e enfermeiras de
um grande centro de urgências médicas de Telavive.
A pressão do perigo de riscos físicos é difícil de gerir por um grupo de militantes
relativamente aberto à chegada de outras pessoas e à presença de simpatizantes
nas acções e manifestações. Os AAtW colocam-se frequentemente a questão de
como podem ser mais prudentes sem abandonar os parceiros palestinianos. Por
outro lado, não há certezas de que seja possível tomar precauções eficazes que
possam reduzir os riscos durante as manifestações. (...)
As dificuldades de uma luta comum
Outro aspecto original do trabalho dos AAtW reside na luta travada em conjunto
com os palestinianos. Não é fácil, pois não se pode esperar que aceitem e confiem
imediatamente nos israelitas. Além dos riscos da presença de espiões, ou de
provocadores, a cooperação com os israelitas envolve um grau de “normalização”
que se traduz em ajustar-se às condições da ocupação.
Os militantes israelitas carregam influências culturais que podem não ser bem
aceites em certas partes da sociedade palestiniana. Assim, apesar de não haver
uma plataforma formalizada, os AAtW insistem sobre alguns princípios no trabalho
comum.
O primeiro princípio é que, apesar de ser uma luta conjunta, como os palestinianos
são sempre os mais afectados pelas decisões, são eles que tomam as decisões
importantes. Os israelitas têm a responsabilidade particular de respeitar a
autodeterminação palestiniana, e esta estende-se ao respeito dos costumes
sociais e a não se envolver em questões de política interna palestiniana.
Uma questão mais delicada reside na normalização versus os benefícios dos laços
1 6
sociais. Há diferentes modelos culturais e seria autoritário querer mudá-los. O
único princípio é de respeitar os pedidos dos comités populares.
Os detalhes acima podem deixar a impressão de que as dificuldades da luta
conjunta são mais importantes do que são na realidade. Pois na verdade, a luta
comum enfrenta uma única e principal dificuldade que tem a forma do Estado de
Israel. (…)
1. A rentabilidade de um projeto colonial
O contributo de Hever beneficia muito do modo como considera a
geografia política da ocupação. Usa a expressão “Territórios Palestinianos
Ocupados” (TPO) para designar o agregado da Cisjordânia e da Faixa de Gaza
mas acrescenta imediatamente que a expressão induz em erro. Diferenciar Israel
dos territórios associa o estatuto de “ocupação” a uma situação transitória (o que
A economia política da
ocupação israelita
Maciel Santos
Shir Hever é um economista israelita para quem os anos 1 990 foram “uma década de
transformação”. Desiludido com as limitações da “economia dominante” que lhe ensinavam
na Universidade de Telavive e com o processo de Oslo, extinto de vez com a entrada de
Sharon na esplanada das Mesquitas, resolveu estudar criticamente a “economia da
ocupação”. Como depressa percebeu, adoptar como objeto de pesquisa “os aspetos
económicos das relações entre as autoridades israelitas e os palestinianos ocupados”
constituía um “nicho de mercado académico”. Não só havia poucos estudos que lhe
pudessem servir de referência como o conceito de “exploração” em “economia” traça
rapidamente um cordão sanitário à volta de quem o utiliza, especialmente na universidade
israelita. Em 201 0, Hever publicou o resultado dos seus cinco anos de investigação1 . A
primeira parte do livro sintetiza os dados disponíveis da “economia da ocupação” e a
segunda discute as interpretações avançadas pelos estudos críticos, marginais como se viu.
Os seis primeiros capítulos da primeira parte representam sem dúvida a secção mais
original e importante do seu trabalho.
1- Hever, Shir, The Political EconomyofIsrael’s Occupation – Repression beyond Exploitation, 2010, Pluto Press.
Tradução GAP
Fonte: René Berthier (2008, pp. 1 1 9-1 23). La Palestine au pied du mur. Paris:
Éditions du Monde Libertaire. Este texto também foi publicado no Le Monde
Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007.
1 7
está longe do que pensa sobre o assunto o governo de Israel)2. Além disso, oculta
o facto de a realidade política ser só uma: a área militarmente controlada pelo
Estado de Israel inclui, sem qualquer solução de continuidade, o que está dentro
das fronteiras de 1 948 e todos os territórios ocupados, de 1 956 em diante. Existe
“um só governo, um só exército dominante e uma só população registada” .
Acontece é que esta população está dividida entre vários estatutos políticos e
jurídicos, pelo menos seis: 1 ) os cidadãos plenos, 2) os judeus de ascendência
árabe (os “Mizrahim”), 3) os palestinianos com cidadania de Israel, 4) os beduínos,
5) os palestinianos da Cisjordânia e 6) os palestinianos de Gaza. Há até mais que
seis estatutos porque recentemente os árabes com estatuto de “residência
israelita” (habitando principalmente em Jerusalém Oriental) foram diferenciados
dos outros, domiciliados em áreas fora do Muro em construção.
Um só poder dominante sobre populações com estatutos políticos
diferenciados é uma ocupação de tipo colonial3. Foi nessas situações que, como se
sabe, se desenvolveu o quadro jurídico do “indigenato”, oposto à “cidadania”. Mas
é preciso ver mais de perto o colonialismo moderno. Nos últimos 1 50 anos, as
ocupações coloniais estiveram associadas à exportação de capitais e portanto às
expectativas de encontrar nesses territórios taxas de lucro superiores às da
origem. O principal factor para que isso aconteça é a força de trabalho “colonial”
ter custos menores para a sua reprodução, o que aumenta a taxa de mais-valia4.
No entanto, taxas de mais-valia superiores à média nem sempre dão taxas de lucro
superiores à média. No caso das ocupações coloniais, há até uma contradição
permanente entre ambas: para explorar a força de trabalho barato é preciso
estender o Estado dominante para as regiões dominadas, o que obriga a aumentar
as despesas improdutivas (duplicação dos aparelhos político-militar, judiciário,
hospitalar, escolar, etc.). A ocupação colonial faz assim aumentar a parte do capital
público que produz abaixo da taxa média de lucro (ou até sem lucro). A taxa média
de lucro resultante combina portanto os super-lucros que o capital privado faz nas
regiões de salários baixos com os lucros (baixos ou nulos) dos capitais públicos,
sem os quais não há investimentos privados. Dito de outra forma, há uma diferença
grande entre os lucros antes e depois de impostos a não ser que se encontre
alguém para pagar as despesas “improdutivas” do Estado colonial.
2- A ocupação dos territórios no seguimento da guerra de 1 967 foi ilegalizada pela comunidade
internacional através da resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU. O governo de Israel nunca
admitiu ter a intenção de anexar os territórios, mas o seu discurso oficial vem acumulando cada vez
mais contradições a esse respeito.
3- Hever usa poucas vezes essa designação.
4- A taxa de mais-valia (mv’) é a relação entre o trabalho pago e não pago. Define-se como mv’ = mv / v,
sendo mv = mais-valia (o tempo de trabalho não pago) e v = capital variável (o trabalho pago, isto é, o
valor adiantado pelo salário). Difere da taxa de lucro (r), que se define como: r = mv / v + c, sendo mv e v
definidos como na taxa de mais-valia e c = capital constante (bens de capital não incluídos nos custos
da força de trabalho).
1 8
Os grupos de interesse com atividade nas colónias esforçavam-se por
conseguir que os restantes capitais metropolitanos contribuíssem para esses
encargos. Mas como isso ocasionava conflitos sérios entre diferentes estratos da
burguesia, os estados coloniais encontraram um expediente. Tratava-se do
chamado “imposto indígena”: ao cobrar impostos sobre os camponeses, as
administrações coloniais faziam-lhes pagar a sua própria ocupação. É das
sociedades camponesas que saem os trabalhadores baratos mas, uma vez que
estas sociedades se reproduzem fora do circuito do capital, podiam pagar
impostos sem que se corresse o risco de haver aumentos de salários5. O imposto
sobre os camponeses diminuía deste modo a carga fiscal sobre os lucros e a taxa
geral de lucro aumentava.
1.1 Fatores “atrativos” nos TPO
A “economia da ocupação” israelita encaixa no modelo colonial uma vez que inclui:
a) níveis salariais diferenciados por critérios políticos
Já não resta quase nada da sociedade camponesa da Palestina (as
deportações e as ocupações de terras acabaram praticamente com ela), mas os
diferentes estatutos políticos da população são suficientes para dar ao conjunto
Israel /TPO uma configuração colonial. Por exemplo, o salário médio de um
trabalhador palestiniano corresponde a 57,7% do salário médio de um cidadão
judeu israelita. Mas nem sequer existe um salário médio palestiniano, porque a
ocupação vai criando estratos sobre estratos: os trabalhadores da Cisjordânia
recebem 51 % do salário médio diário pago aos palestinianos a trabalhar em Israel
(fronteiras de 1 948) e os de Gaza apenas 46%.
b) custos de reprodução da força de trabalho não pagos pelo capital local
A força de trabalho palestiniana tem custos muito baixos. Como é isso
possível se praticamente desapareceu a sociedade camponesa no conjunto
Israel/Palestina? Através da ajuda internacional que desde 1 948 tem poupado
despesas ao estado e aos capitais de Israel. A ajuda internacional (que inclui a
agência da ONU – UNRWA e as muitas ONG’s que canalizam as doações
públicas e privadas) satisfaz boa parte das necessidades alimentares, sanitárias,
educativas, etc. da população palestiniana. As transferências (exclusivamente de
ajuda “humanitária” porque Israel não permite outro tipo de cooperação)
aumentam significativamente depois das crises militares, como aconteceu no
seguimento das operações israelitas de 1 948, 1 967, 1 989, 2000. Nesses anos, a
5- Isto não quer dizer os trabalhadores assalariados não paguem impostos. No entanto, assumido o custo
da força de trabalho em qualquer mercado, a economia clássica mostra, desde Ricardo, como todos os
impostos adicionais sobre os salários acabam por ser, direta ou indiretamente, pagos pelo capital.
1 9
ajuda internacional pode chegar a percentagens muito elevadas do PIB dos
territórios ocupados. Para se fazer uma ordem de grandeza, vale a pena
transcrever a seguinte tabela de Hever, que mostra como a destruição de
equipamentos, levada a cabo pela invasão israelita dos TPO em 2001 -02, foi
imediatamente seguida por grandes aumentos da ajuda internacional:
Quadro 1 - Dependência palestiniana da ajuda internacional
Fonte: Hever, 201 0: 31
Mesmo considerando que a diminuição do “PIB palestino” depois das
destruições israelitas faz aumentar as percentagens da ajuda, estes dados
permitem deduzir que os salários pagos em Israel aos trabalhadores palestinianos
representam muito pouco do rendimento palestiniano. Se nos anos acima todo o
rendimento palestiniano viesse apenas da soma destes salários e da ajuda
internacional, a parte dos salários pagos pelo capital israelita representaria apenas
1 2% do que seria preciso para manter uma classe trabalhadora palestiniana.
A tabela acima permite também deduzir que o estado de Israel beneficia
de uma dupla impunidade nas destruições que provoca nas infra-estruturas
palestinas: para além de não ser processado pelos doadores (UE, ONU, EUA,
Japão, Estados Árabes, ONGs), os governos sionistas sabem que os montantes
da ajuda nunca deixarão de lhes poupar despesas que de outro modo teriam de
suportar, sob pena de a força de trabalho palestiniana não se poder reproduzir.
Para os capitais israelitas, há ainda mais a tirar da ajuda internacional aos
palestinianos. O controlo que os outros estados coloniais exerciam sobre as
respectivas economias camponesas – obrigando-as a comprar bens das firmas
metropolitanas – também está presente. Nas antigas colónias, os mercados locais
estavam protegidos por pautas aduaneiras que favoreciam as exportações da
metrópole; no caso dos TPO, a ajuda internacional também transita
obrigatoriamente por Israel e é em Israel que geralmente se converte em bens.
Pautas aduaneiras proibitivas garantem que as compras não se façam nos países
vizinhos. Para além de mais receita fiscal, isto abre um mercado suplementar às
20
empresas israelitas, que são assim pagas por terceiros para satisfazer a procura
palestiniana.
c) transferências de capitais metropolitanos para suportar os custos do
estado colonial
No entanto, e ao contrário do que dizem muitos meios de comunicação
(em Israel e nos países ocidentais), os TPO não são a região do mundo que recebe
mais ajuda internacional. Essa posição é geralmente ocupada pelo estado de
Israel, que recebe transferências:
- dos Estados Unidos (principalmente para fins militares)
- das comunidades judaicas do mundo inteiro
- da Alemanha, a título de compensações pelo Holocausto
Só dos Estados Unidos, Hever calcula que, entre 1 973 e 2008 (excluindo
portanto tudo o que foi recebido nos 26 anos entre a independência e 1 973), Israel
recebeu cerca de 200 biliões de dólares americanos6. As transferências alemãs,
embora não sigam diretamente para o governo israelita, podem ser estimadas
numa média anual de 732 milhões de dólares; isto é, só elas são superiores à
média anual da ajuda recebida pelos TPO nos anos “normais” (antes da 2ª
Intifada). As doações das comunidades judaicas não são fáceis de estimar, o que
não quer dizer que sejam pequenas. Tudo somado, não admira que o estado de
Israel seja habitualmente o maior recipiente da ajuda externa mundial, ultimamente
ultrapassado apenas pelo Iraque.
1.2. Os custos nos TPO e a rentabilidade
Considerados isoladamente, estes três pontos (salários desiguais, baixos
custos salariais e transferências externas) seriam fatores para haver taxas de
mais-valia e de lucro mais altas nos TPO que nas economias “metropolitanas” da
Europa ou dos EUA. No entanto, é preciso considerar os encargos do aparelho
político (as tais “despesas improdutivas” para o capital) que nos territórios
coloniais atuam sobre a taxa de lucro em sentido contrário. Hever diz que estas
despesas se podem dividir em duas rubricas: subsídios aos colonatos israelitas (os
colonatos fazem ocupação privada, mas cada colono custa ao estado de Israel 2
vezes mais que os outros cidadãos) e os custos militares/policiais diretamente a
cargo do Estado. Para o período 1 970-2008, calcula o acumulado (com juros) da
primeira rubrica em de cerca de 1 04 biliões de NIS7 e o da segunda, em cerca de
31 6 biliões de NIS (respetivamente, 23,9 e 75,5 biliões de dólares). Simplificando,
avalia-se o custo anual da ocupação em 26,3 biliões de NIS (cerca de 6,84 biliões
de dólares). Esta soma é verdadeiramente abissal e permite imediatamente
6- Hever acrescenta aos montantes transferidos a taxa média de juro. Hever, 201 0: 33.
7- New Israeli Shekel, a moeda (única) do agregado Israel/TPO.
21
concluir que sem as transferências do exterior, a ocupação nunca poderia ter
avançado tanto. Mais: não pode seguramente continuar na mesma escala. É que a
ser assim (isto é, se o número de colonos continuasse a crescer à taxa de anual de
7,1 %), o orçamento israelita de 2038 teria de gastar metade das suas receitas para
suportar a ocupação. Como diz Hever, isso nunca se viu em nenhuma potência
colonial.
O volume destas despesas improdutivas encaixa mal no modelo colonial:
os lucros coloniais nos TPO custam demasiado. Afinal, a resistência palestiniana
está longe de ser simbólica e pesa cada vez mais, a ponto de tornar a exploração
irracional. Sendo assim, que diabo de ocupação colonial é esta que parece saída
do mundo pré-capitalista?
Os fatores que tornam esta ocupação atípica são os seguintes:
a) a escala da exploração é baixa
Para calcular a taxa de exploração, tem de se começar por apurar a massa
da mais-valia apropriada. O governo e os capitais privados de Israel beneficiam de
uma mais-valia palestiniana através de dois agregados: os impostos (diretos e
indiretos) e a a exploração de uma força de trabalho barata. Para o período 1 970-
2008, Hever calcula que o acumulado destes agregados seja de 39,64 biliões de
NIS, o que dá uma média anual de 1 ,01 bilião de NIS. Outros autores apresentam
estimativas superiores: para o mesmo período, um acumulado de 58,9 biliões de
NIS, o que elevaria a média anual para 1 ,84 biliões de NIS. É preciso lembrar que
o agregado da mais-valia obtida com os palestinianos inclui receitas muito
variadas: impostos pagos pelos palestinianos e pelas ONG, salários retidos,
quotizações sindicais (os palestinianos que trabalham em Israel descontam para a
central sindical Histadrut, embora dali não recebam qualquer proteção), para a
segurança social, etc.
O divisor da taxa de exploração são os custos salariais. Quantos são os
trabalhadores palestinianos e que massa salarial implicam? Segundo vários
institutos de pesquisa, o total de trabalhadores palestinianos em Israel era, em
2005, de 60.000. Apenas metade deles tinham “residência israelita”, o que
significa que a outra metade vinha dos TPO. Com base nos diferentes salários
médios diários associados aos vários estatutos da população palestiniana e
assumindo um tempo de trabalho anual “europeu”8 , pode-se tentar uma estimativa
da taxa de mais-valia obtida com esta força de trabalho:
8- Se for assumido que cada assalariado palestiniano trabalha um total anual de 2.1 81 horas (tal como os
franceses de 1 981 , isto é, 273 dias de 8 horas), está-se a subestimar o efeito dos horários mais longos
em contextos não europeus; em contrapartida, está-se a sobrestimar o total de dias trabalhados – a
quantas interdições de trabalhar em Israel não estão sujeitos os trabalhadores dos TPO em cada ano?
22
Quadro 2 - Exploração anual nos TPO: massa e taxas de mais-valia obtidas com
assalariados palestinianos (média anual do período 1970-2008)
Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS
Com os números de Hever, numa jornada de 8 horas cada assalariado
palestiniano trabalha em média 3,1 horas para o capital e 4,9 para si próprio; com
os de Bichler-Nitzan, a divisão da jornada faz-se com partes sensivelmente iguais
(respetivamente 4,3 e 3,7 horas). Comparativamente com outras situações
coloniais, estas taxas de mais-valia são baixas e não devem pesar muito na
acumulação de capital em Israel. As companhias israelitas mais rentáveis têm
coeficientes de capital elevado. Em 2006, 46% das exportações israelitas (não
contando com a lapidação de diamantes) eram faturadas pelas firmas“high-tech” -
do ramo farmacêutico, como a Teva Pharmaceutical Industries (capitalização de
51 ,5 biliões de USD), a Israeli Chemicals (capitalização de 1 4,3 bilões de USD) ou
as que produzem equipamentos militares. Estas companhias não podem ser as
que mais palestinianos empregam proporcionalmente: a força de trabalho
palestiniano é pouco qualificada, o que a torna menos compatível com ramos
industriais de composição técnica alta.
Mais de 28,3% dos palestinianos na faixa etária 20-24 anos tem apenas 9
anos de escolaridade; a percentagem de pouco qualificados aumenta com a idade
e chega a 80% na faixa 55-64 (ainda activos). Por exemplo, na área de Jerusalém
os palestinianos representam apenas 31 % da população mas 50% da força de
trabalho com salários mais baixos (a outra metade são emigrantes judeus
recentes). É certamente na agricultura, na construção civil e no setor dos serviços
que se pode encontrar a maior percentagem do emprego palestiniano. Em Israel,
diz Hever, associa-se frequentemente os conceitos de “trabalho manual” ,
“trabalho sujo” e “árabe”. Outro indicador do relativo desinteresse pela mais-valia
palestiniana é o diferencial nas taxas de desemprego (quase 20% mais entre os
9- A massa salarial assume que metade dos trabalhadores ganha pela taxa diária paga em Israel e a
outra metade pela taxa mais baixa dos TPO, a dos trabalhadores de Gaza. Este pressuposto maximiza
o cálculo da taxa de mais-valia (é pouco plausível pensar que metade da força de trabalho palestiniana
ganhe pela tabela de Gaza porque as restrições à entrada destes trabalhadores são agora quase totais
e já não investimentos israelitas na Faixa.)
23
palestinianos que entre os judeus)1 0.
É também verdade que, devido à pressão sobre os desempregados para
aceitarem reduções salariais ou para trabalharem gratuitamente em programas
comunitários (políticas que o governos israelitas inspirados no Wisconsin Program
americano têm vindo a aplicar), a tendência é para o aumento da taxa de
exploração em todo a área Israel-TPO. No entanto, trata-se do crescimento da taxa
média de mais-valia e não do diferencial positivo da taxa de mais-valia
empregando palestinianos.
Em resumo, sem produções rendeiras (de que beneficiavam muitas
produções coloniais tropicais) e em face da deriva israelita para produções de alto
valor acrescentado parece não haver vantagens decisivas em explorar a força de
trabalho palestiniana1 1 .
b) os custos totais são muito altos, logo a taxa média de lucro é muito baixa
Isto porque, como se viu, os custos para ter acesso a esta força de
trabalho barata são desmesurados, e apesar dos aumentos de produtividade
também terem chegado às despesas “improdutivas” da guerra. Atualmente, os
orçamentos militares de quase todos os estados representam percentagens
menores do PIB que nas décadas da chamada “Guerra Fria”. Com dizem os
entendidos, há agora “melhores” armas, não mais armas. Está também em curso a
tendência para privatizar parte destas rubricas. Em Israel, uma boa parte da
“segurança” é feita por empresas privadas (até os check points que infernizam o
quotidiano dos habitantes dos TPO estão a ser privatizados!) Mas é claro que
nada disto impede os custos da ocupação dos TPO de serem os mais altos do
mundo, seja qual for o critério de medida e seja quem for que vista a farda. Há
empresas de segurança a operar por todo o lado, dos restaurantes aos parques de
estacionamento e com elas os encargos de capital de todas as firmas disparam.
Face a estes números astronómicos, o valor do capital produtivo parece
quase irrelevante. Hever não informa sobre os ativos de capital das firmas
israelitas mas fazendo a suposição absurda de que elas trabalham sem capital
constante (equipamentos, matérias primas, bens intermediários), as taxas de lucro
seriam aproximadamente assim:
1 0- É verdade que no diferencial de desemprego também entram fatores ideológicos, como a
discriminação dos árabes e o que resta dos dogmas sionistas. No entanto, a abertura da economia
israelita ao investimento estrangeiro, menos sensível a estes preconceitos, torna este indicador do
desemprego significativo.
1 1 - Isso pode em parte explicar uma “anomalia” israelita que Hever assinala: o comportamento
aparentemente inesperado dos trabalhadores israelitas. Em vez de apoiarem a segregação total como
faziam os seus homólogos sul-africanos relativamente aos trabalhadores negros - o que neste caso
significaria serem favoráveis à solução dos dois estados e ao fim do espaço comum Israel-TPO - a
classe trabalhadora israelita vota nos partidos nacionalistas, favoráveis ao projeto colonial integrado.
24
Quadro 3 - Taxa média de lucro (capital constante excluído) nos TPO - média anual
do período 1970-2008
Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS
Estas taxas de lucro não são evidentemente as que figuram nos balanços
das firmas israelitas (se o fossem, a bolsa de Telavive não sairia tão cedo do
vermelho). Representam apenas - com um largo erro por excesso que resulta da
omissão de todos os ativos fixos e circulantes com excepção dos salários e dos
“custos de segurança” - o que o capital mundial lucra quando se empregam
palestinianos no complexo Israel-TPO. É claro que para as companhias israelitas
onde há vantagem em empregar trabalhadores não qualificados, os 60.000
palestinianos com salários asiáticos são uma benesse, independentemente de os
super-lucros serem raros nas firmas agrícolas ou da construção. Mas que para isso
aconteça, os contribuintes americanos (fora os outros) têm que desembolsar a
fundo perdido 5,6 biliões de dólares por ano. Alguma coisa aqui não bate certo.
Então fazem-se investimentos de alto risco numa economia de guerra para obter
retornos que, tudo somado, ficam abaixo do que se consegue com qualquer
miserável título de divida pública? Uma conclusão destas remete imediatamente
para o significado desta estranha economia colonial e portanto para a 2ª parte do
estudo de Hever.
2- Quem lucra com a economia politica da ocupação israelita?
Hever refere várias vezes a desproporção entre a dimensão da área Israel-
TPO (29.000 km2, mais ou menos o tamanho da Bélgica) e a sua importância
mundial. Basta considerar os 200 biliões de dólares da “ajuda” americana dos
últimos 36 anos para se pensar imediatamente numa geopolítica mais ampla e na
impossibilidade de esse dinheiro ter chegado para ajudar a explorar 60.000 árabes
pouco escolarizados.
Também não é nenhuma revelação a relação que existe entre o
investimento norte-americano no “porta-aviões” israelita e o controlo da área
produtora de petróleo do Médio Oriente - pouco mais de 2,2 milhões de km2 onde
se concentram 57% das reservas mundiais de petróleo e 40% das reservas de
25
gás.1 2 Já se sabe alguma coisa sobre a influência das multinacionais do petróleo
na condução da política externa americana, tanto a pública como a subterrânea1 3.
Não é preciso ir buscar, como Hever faz citando o estudo de Bichler-
Nitzan, uma hipotética correlação entre guerras no Médio Oriente e lucros das
companhias de petróleo1 4. Se for considerado o acumulado dos lucros das
supermajors1 5 (e apenas o diferencial relativamente ao que seriam os lucros destas
companhias se tivessem de comprar o Arabian Light a um cartel de produtores
num mercado concorrencial), então os biliões gastos para manter um pequeno
“Estado cão de pastor” a desequilibrar a política regional representam verdadeiras
economias de capital. Aqui sim, há super-lucros e possibilidades de rendas mais
ou menos permanentes.
Mas o que é bom para Exxon-Mobil ou para a Chevron/Texaco não é
certamente bom para os cidadãos israelitas. Porque razão se obstinam eles em
validar governos que levam Israel a cumprir este triste papel na ordem mundial,
cujos reflexos na política interna israelita são cortes nos programas sociais e o
consequente agravamento das desigualdades? Só um exemplo: Israel ocupa
atualmente o 50º lugar num conjunto de 53 países quanto ao grau de igualdade de
oportunidades escolares.
Hever vai mais longe. A economia de guerra está a minar o próprio projeto
sionista, que assentava numa solidariedade “étnica”, agora totalmente estilhaçada
pelo consumismo (alimentado pelas transferências externas) e pelas diferenças de
classe. Os tempos não estão para virtudes cívicas: a taxa de recrutamento militar
está a baixar desde a década de 1 980 (apesar do recrutamento ser obrigatório, os
esquemas para as isenções proliferam) e parece que menos de metade dos
cidadãos israelitas (49%) acaba por se alistar. Isto para não falar na abstenção
eleitoral (record nas eleições de 2009) e nos escândalos governamentais de
corrupção, crónicos na última década.
Mas o mais importante é que a prosperidade da economia israelita assenta
na base muito frágil da dependência externa. É verdade que a “ajuda internacional”
a Israel parece uma mina sem fundo (entre 1 970-2008 o acumulado de todos os
custos militares da ocupação representou apenas 55% das transferências
americanas). É verdade também que toda a “ajuda”, e muito particularmente a que
se destina aos palestinianos, reforça as reservas de divisas do banco central de
1 2- Chevalier, M., Les grandes batailles de l’énergie, 2004, Paris, Gallimard, p. 327.
1 3- Entre muitos, Baer, Robert, Or noir et Maison Blanche, 2003, Paris, Gallimard; , Laurent, Eric, La
guerre des Bush, 2003, Paris, Plon; Scott, Peter Dale, American Deep State, 201 4, Maryland, Rowman
&Littlefield.
1 4- Até porque a conclusão principal desse estudo – a da correlação entre guerras/ lucros – se baseia
nos retornos bolsistas e não nos diferenciais da taxa de lucro real das empresas. Bichler, S.; Nitzan, J,
Cheap Wars, “Economy of Occupation”, vol. 1 0, 2007, Jerusalem: Alternative Information Center.
1 5- Expressão usada para designar as sete maiores companhias petrolíferas.
26
Israel e o saldo da balança de pagamentos. Mas se a prosperidade vem cada vez
mais de fora, o que aconteceria em resultado de uma campanha de boicotes,
sanções e desinvestimento? Hever diz que em 2003, sob o efeito de um hipotético
cenário de ruptura das exportações, o banco de Israel teria reservas em divisas
para pagar 208 dias de importações; em 2006, esse número já estava em 1 60
dias. A combinação de uma dependência externa e de um igualmente crescente
isolamento internacional (decisões do Tribunal Penal Internacional e da ONU sobre
o muro, extensão da campanha de boicotes, desinvestimento de algumas
companhias internacionais, queda de 25% do turismo entre 1 995-99) aproximam a
trajetoria israelita da sul-africana durante o processo de extinção do apartheid.
Face a isto, que saídas há? A solução dos dois estados ou a do estado
democrático, pluri-comunitário? Hever argumenta que, no caso da solução dos
dois estados, só a compensação a pagar aos colonos entretanto instalados na
Cisjordânia (tomando como base o que se pagou aos que foram evacuados da
faixa de Gaza) chegaria às dezenas de biliões de dólares. Isto sem falar nas
compensações a pagar aos palestinianos. Estas últimas parecem um pouco
ficcionadas (note-se que, dada a atual correlação de forças, indemnizações desta
ordem nunca estiveram na mesa das negociações). Em todo o caso é inegável que
o estado de Israel não tem condições (nem intenções!) para pagar nada disso -
salvo se contasse com o reforço da “ajuda” americana nesse sentido. Mas
continuaria ela a vir, caso Israel perdesse a sua utilidade para os interesses
geopolíticos americanos? Inversamente, pode-se perguntar (o que Hever não faz)
se estes interesses não seriam melhor defendidos por um estado integrado e
“normalizado” que desmontasse a bomba de relógio deste conflito secular. Afinal,
foi essa política seguida pelo grande capital na África do Sul, ao acabar com o
fantasma do apartheid.
Aqui, tal como na discussão de rebuscadas explicações sociológicas para
explicar a ocupação israelita, o trabalho de Hever é menos convincente. Contudo,
o seu contributo para demonstrar que a “economia da ocupação” está a prazo
compensa as confusões teóricas da 2ª parte.
27
Maciel Santos
O muro construído pelo governo israelita sobre as terras da
Cisjordânia tem várias funções. Para alguns, estamos na presença de
um escudo de protecção civil contra qualquer possível infiltração
terrorista, para outros, o muro é apenas uma franquia com a finalidade
de estender novas construções em territórios confiscados e, para uns
quantos outros, trata-se de uma membrana selectiva de mão-de-obra
barata.
Sob a égide das políticas de segurança nacional escondem-se
muitas outras estratégias que são do domínio da economia política. Com
efeito, uma simples abordagem à evolução do recurso à mão-de-obra
palestiniana em território israelita permite fazer o levantamento do
dinamismo de uma estratégia de guerra de que o muro é uma das armas
principais, uma estratégia reduzida em termos de emprego, de salário e
de produto nacional.
Quando Israel se apoderou dos territórios palestinianos da Faixa
de Gaza e da Cisjordânia, a economia palestiniana baseava-se
principalmente nos rendimentos de seu sector primário. De 1 967 até aos
acordos de Oslo (1 993), Israel conduziu uma política económica de
sentido único nos territórios ocupados, com leis proteccionistas
impedindo o desenvolvimento industrial palestiniano e submetendo a
mão-de-obra palestiniana aos mercados israelitas. É assim que a força
de trabalho, oriunda dos territórios ocupados e obrando nas indústrias
israelitas, se tornou a principal força económica que constitui o produto
nacional bruto palestiniano. No final deste período, 1 1 5 000
trabalhadores palestinianos, representando um terço da força de
produção dos territórios ocupados, trabalhavam em solo israelita, os
seus salários alimentando milhares de cidadãos dependentes da
economia israelita.
Guy Davidi e Alexandre Goetschmann
Um muro de segurança civil
ou de
dominação económica
28
29
Com a entrada da economia
israelita nos mercados mundiais deu-se
uma inflação dos produtos de consumo
básico nos territórios ocupados.
Consequentemente, muitos agricultores
palestinianos abandonaram o cultivo das
suas terras para entrar no sector
secundário israelita em pleno
crescimento, para poderem ir ao
encontro do súbito aumento dos preços e
do perigo iminente de empobrecimento.
O abandono das explorações agrícolas e
a estagnação dos métodos de
desenvolvimento, que lhes podiam estar
associados, são as consequências das
sanções emitidas pelo governo israelita
sobre os produtos agrícolas importados
dos territórios ocupados; pelas subvenções
do Estado ao lobby agrícola israelita; pelo
absoluto controlo israelita na gestão dos
recursos de água assim como a regulação
desigual do seu preço. Nestas condições,
a agricultura palestiniana não podia
competir com o seu vizinho, nem munir o
seu povo de rendimentos decentes.
Durante os 26 primeiros anos da
ocupação, a mão-de-obra palestiniana à
procura de um trabalho rentável foi
principalmente empregue nos sectores
30
industriais e no desenvolvimento de Israel. O aumento dos salários da
mão-de-obra palestiniana ultrapassando os da Jordânia, ou do Egipto,
assim como problemas relativos à segurança nacional fizeram com que
os territórios ocupados perdessem progressivamente interesse para
verdadeiros investimentos.
A indústria têxtil israelita encontrou um parceiro mais vantajoso na
Jordânia do que nos territórios ocupados, enquanto simultaneamente, o
abandono das terras agrícolas pela mão-de-obra palestiniana favorecia o
sequestro dos subsequentes terrenos para a construção de novos
colonatos.
Apesar da lei emitida em 1 970 pelo governo israelita, visando a
igualdade dos trabalhadores e respeitando, de acordo com a lei
internacional, os direitos sociais dos trabalhadores palestinianos, esses
mesmos direitos foram espezinhados pelos promotores do trabalho sob o
olhar indiferente da opinião pública israelita. Durante muitos anos, a mão-
de-obra palestiniana pagou do seu salário os impostos e as taxas dos
cidadãos israelitas. Um capital que enchia as caixas pensionistas ou
outros seguros sociais ou de saúde de Israel. A primeira Intifada de 1 987
apoiou-se nesta lesão generalizada dos direitos sociais da mão-de-obra
palestiniana, mais do que em verdadeiras reivindicações nacionais.
Segundo testemunhos dos campos de refugiados da Cisjordânia e de
Gaza, uma grande parte dos revoltados de 1 987 tinham trabalhado em
Israel.
No início dos anos 90, a mão-de-obra dos territórios ocupados
representava 7% da força laboral de Israel. Paradoxalmente, a economia
do país tornava-se dependente desta mão-de-obra acessível, barata e
indefesa, ocupando os sectores industriais, que foram abandonados
pelos cidadãos israelitas, devido às condições de trabalho muito
violentas. Em 1 993, o governo de Rabin decidiu abrir as portas aos
emigrantes de ultramar para substituir a mão-de-obra palestiniana, esta
decisão dependia do projecto de separação dos dois povos em conflito,
oferecendo assim a Israel a legitimidade de impor um recolher obrigatório
nos territórios ocupados. No limiar da segunda Intifada (2000), 1 1 0 000
trabalhadores palestinianos trabalhavam em Israel, representando um
quarto da força laboral produtora dos territórios ocupados. No
seguimento do fecho total dos territórios, a taxa de desemprego dos
territórios ocupados foi multiplicada por dez. Entre 1 999 e 2002, o
número de trabalhadores palestinianos em Israel diminuiu de 1 1 3 000 a
30 000. Com o início da construção do muro e a inacessibilidade às
zonas industriais israelitas, situadas ao longo da linha verde, um dos
únicos rendimentos dos palestinianos passou a ser o trabalho nas
colónias. Os salários diminuíram de 75% e as garantias de
pagamento tornaram-se aleatórias. Durante o primeiro semestre de
2007, 68 000 palestinianos trabalhavam nas colónias representando
um décimo da força laboral dos territórios ocupados, o resto
permanece, desde 2000, ainda à espera da implementação de um
ambiente favorável ao trabalho.
A política económica israelita desenvolvida nos territórios
ocupados flutua entre a manutenção de uma situação humanitária
“respeitável” e a exploração da força de trabalho barata seleccionada
nos diversos postos de controlo situados ao longo do muro. Apenas o
trabalhador palestiniano com um cadastro criminal virgem pode,
eventualmente, ter acesso ao mundo do trabalho em território
israelita. O acesso ao mundo do trabalho aparece portanto como
uma arma de repressão judicial cujo muro serve de tribunal.
31
Tradução GAP
Fonte: Berthier (2008, pp.1 24-1 26). La Palestine au pied
du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire.
Folhas Soltas do GAP nº 5

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Folhas Soltas do GAP nº 5

Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)
 Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués) Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)
Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)educacionsinescuela
 
Antes de discutir a política migratória brasileira
Antes de discutir a política migratória brasileiraAntes de discutir a política migratória brasileira
Antes de discutir a política migratória brasileiraAndré Siciliano
 
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismo
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismoO militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismo
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismoGRAZIA TANTA
 
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdf
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdfCHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdf
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdfGernciadeProduodeMat
 
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3Seminario de Bioetica
 
Resolução do III Congresso do PSOL.
Resolução do III Congresso do PSOL.Resolução do III Congresso do PSOL.
Resolução do III Congresso do PSOL.psolcambui
 
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europa
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europaO apelo dos movimentos gregos e a situação política na europa
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europaGRAZIA TANTA
 
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacional
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacionalAntropólogo denuncia atuação do indigenismo internacional
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacionalGuy Valerio
 
Inconfidência 227‏
Inconfidência 227‏Inconfidência 227‏
Inconfidência 227‏Lucio Borges
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1Reflexoes sobre o futuro da palestina 1
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1GAP
 
Juventude e rebelioes s 2013 31dez
Juventude e rebelioes s 2013 31dezJuventude e rebelioes s 2013 31dez
Juventude e rebelioes s 2013 31dezElisio Estanque
 
PACTA 9ª Edição
PACTA 9ª EdiçãoPACTA 9ª Edição
PACTA 9ª EdiçãoSofia Ramos
 
Pensar à esquerda, sem vacas sagradas
Pensar à esquerda, sem vacas sagradasPensar à esquerda, sem vacas sagradas
Pensar à esquerda, sem vacas sagradasGRAZIA TANTA
 
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1GRAZIA TANTA
 
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticas
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticasApontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticas
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticasUniversidade Federal do Paraná
 
Análise de conjuntura sintese
Análise de conjuntura sinteseAnálise de conjuntura sintese
Análise de conjuntura sinteseBernadetecebs .
 
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdadeA uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdadeGRAZIA TANTA
 
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneo
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneoNotas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneo
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneoMaria Amélia Ferracciú Pagotto
 
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representados
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não RepresentadosGuia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representados
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representadoscsm-minionu2013
 

Semelhante a Folhas Soltas do GAP nº 5 (20)

Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)
 Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués) Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)
Brasil, turquia... rumo ao convivialismo? (portugués)
 
Antes de discutir a política migratória brasileira
Antes de discutir a política migratória brasileiraAntes de discutir a política migratória brasileira
Antes de discutir a política migratória brasileira
 
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismo
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismoO militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismo
O militarismo, instrumento político e ideológico do conservadorismo
 
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdf
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdfCHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdf
CHSA 3ª SÉRIE- 3º BIM Aluno.pdf
 
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3
A Ideologia Inumana E TotalitáRia Do Pndh3
 
Resolução do III Congresso do PSOL.
Resolução do III Congresso do PSOL.Resolução do III Congresso do PSOL.
Resolução do III Congresso do PSOL.
 
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europa
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europaO apelo dos movimentos gregos e a situação política na europa
O apelo dos movimentos gregos e a situação política na europa
 
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacional
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacionalAntropólogo denuncia atuação do indigenismo internacional
Antropólogo denuncia atuação do indigenismo internacional
 
Inconfidência 227‏
Inconfidência 227‏Inconfidência 227‏
Inconfidência 227‏
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1Reflexoes sobre o futuro da palestina 1
Reflexoes sobre o futuro da palestina 1
 
Juventude e rebelioes s 2013 31dez
Juventude e rebelioes s 2013 31dezJuventude e rebelioes s 2013 31dez
Juventude e rebelioes s 2013 31dez
 
PACTA 9ª Edição
PACTA 9ª EdiçãoPACTA 9ª Edição
PACTA 9ª Edição
 
Pensar à esquerda, sem vacas sagradas
Pensar à esquerda, sem vacas sagradasPensar à esquerda, sem vacas sagradas
Pensar à esquerda, sem vacas sagradas
 
A escola e o direito do homem
A escola e o direito do homemA escola e o direito do homem
A escola e o direito do homem
 
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
 
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticas
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticasApontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticas
Apontamentos em Ciberpolítica: A internet e suas possibilidades democráticas
 
Análise de conjuntura sintese
Análise de conjuntura sinteseAnálise de conjuntura sintese
Análise de conjuntura sintese
 
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdadeA uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade
 
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneo
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneoNotas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneo
Notas criticas sobre_justica_estado_e_direito_no_mundo_contemporaneo
 
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representados
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não RepresentadosGuia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representados
Guia UNPO - Organização das Nações e Povos Não Representados
 

Mais de GAP

Flyer milton a4
Flyer milton a4Flyer milton a4
Flyer milton a4GAP
 
Puma leaflet-bw-pt
Puma leaflet-bw-ptPuma leaflet-bw-pt
Puma leaflet-bw-ptGAP
 
Folhas Soltas do GAP nº7
Folhas Soltas do GAP nº7Folhas Soltas do GAP nº7
Folhas Soltas do GAP nº7GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº10
Folhas Soltas do GAP nº10Folhas Soltas do GAP nº10
Folhas Soltas do GAP nº10GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº9
Folhas Soltas do GAP nº9Folhas Soltas do GAP nº9
Folhas Soltas do GAP nº9GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº 8
Folhas Soltas do GAP nº 8Folhas Soltas do GAP nº 8
Folhas Soltas do GAP nº 8GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº 6
Folhas Soltas do GAP nº 6Folhas Soltas do GAP nº 6
Folhas Soltas do GAP nº 6GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº4
Folhas Soltas do GAP nº4Folhas Soltas do GAP nº4
Folhas Soltas do GAP nº4GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº3
Folhas Soltas do GAP nº3Folhas Soltas do GAP nº3
Folhas Soltas do GAP nº3GAP
 
Folhas Soltas do GAP nº2
Folhas Soltas do GAP nº2Folhas Soltas do GAP nº2
Folhas Soltas do GAP nº2GAP
 
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017Gaza 10 years_later_-_11_july_2017
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017GAP
 
Folhas soltas-7-haiku
Folhas soltas-7-haikuFolhas soltas-7-haiku
Folhas soltas-7-haikuGAP
 
Carta ao chef avillez
Carta ao chef avillezCarta ao chef avillez
Carta ao chef avillezGAP
 
Folhas soltas do gap nº1
Folhas soltas do gap  nº1Folhas soltas do gap  nº1
Folhas soltas do gap nº1GAP
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3Reflexoes sobre o futuro da palestina 3
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3GAP
 
Resolucao 273 11 maio 1949
Resolucao 273 11 maio 1949Resolucao 273 11 maio 1949
Resolucao 273 11 maio 1949GAP
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2Reflexoes sobre o futuro da palestina 2
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2GAP
 
Declaration d independance de l etat de palestine
Declaration d independance de l etat de palestineDeclaration d independance de l etat de palestine
Declaration d independance de l etat de palestineGAP
 
Bd sdossier
Bd sdossierBd sdossier
Bd sdossierGAP
 
Tribuna Pública
Tribuna PúblicaTribuna Pública
Tribuna PúblicaGAP
 

Mais de GAP (20)

Flyer milton a4
Flyer milton a4Flyer milton a4
Flyer milton a4
 
Puma leaflet-bw-pt
Puma leaflet-bw-ptPuma leaflet-bw-pt
Puma leaflet-bw-pt
 
Folhas Soltas do GAP nº7
Folhas Soltas do GAP nº7Folhas Soltas do GAP nº7
Folhas Soltas do GAP nº7
 
Folhas Soltas do GAP nº10
Folhas Soltas do GAP nº10Folhas Soltas do GAP nº10
Folhas Soltas do GAP nº10
 
Folhas Soltas do GAP nº9
Folhas Soltas do GAP nº9Folhas Soltas do GAP nº9
Folhas Soltas do GAP nº9
 
Folhas Soltas do GAP nº 8
Folhas Soltas do GAP nº 8Folhas Soltas do GAP nº 8
Folhas Soltas do GAP nº 8
 
Folhas Soltas do GAP nº 6
Folhas Soltas do GAP nº 6Folhas Soltas do GAP nº 6
Folhas Soltas do GAP nº 6
 
Folhas Soltas do GAP nº4
Folhas Soltas do GAP nº4Folhas Soltas do GAP nº4
Folhas Soltas do GAP nº4
 
Folhas Soltas do GAP nº3
Folhas Soltas do GAP nº3Folhas Soltas do GAP nº3
Folhas Soltas do GAP nº3
 
Folhas Soltas do GAP nº2
Folhas Soltas do GAP nº2Folhas Soltas do GAP nº2
Folhas Soltas do GAP nº2
 
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017Gaza 10 years_later_-_11_july_2017
Gaza 10 years_later_-_11_july_2017
 
Folhas soltas-7-haiku
Folhas soltas-7-haikuFolhas soltas-7-haiku
Folhas soltas-7-haiku
 
Carta ao chef avillez
Carta ao chef avillezCarta ao chef avillez
Carta ao chef avillez
 
Folhas soltas do gap nº1
Folhas soltas do gap  nº1Folhas soltas do gap  nº1
Folhas soltas do gap nº1
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3Reflexoes sobre o futuro da palestina 3
Reflexoes sobre o futuro da palestina 3
 
Resolucao 273 11 maio 1949
Resolucao 273 11 maio 1949Resolucao 273 11 maio 1949
Resolucao 273 11 maio 1949
 
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2Reflexoes sobre o futuro da palestina 2
Reflexoes sobre o futuro da palestina 2
 
Declaration d independance de l etat de palestine
Declaration d independance de l etat de palestineDeclaration d independance de l etat de palestine
Declaration d independance de l etat de palestine
 
Bd sdossier
Bd sdossierBd sdossier
Bd sdossier
 
Tribuna Pública
Tribuna PúblicaTribuna Pública
Tribuna Pública
 

Folhas Soltas do GAP nº 5

  • 1.
  • 2. Colocar algumas peças sobre a questão palestiniana Gisandra Oliveira 3 Anarquistas contra o Muro (AATW) Fonte: René Berthier 1 1 Dois estados para duas nações - são demasiados estados! Anarchist Communist Initiative 1 2 Na origem Kobi Snitz 1 5 A economia política da ocupação israelita Maciel Santos 1 7 Um muro de segurança civil ou de dominação económica Guy Davidi e Alexandre Goetschmann 28 Folhas Soltas no quadro das Jornadas Libertárias do Porto - 201 5 (9 de Outubro no Gato Vadio: video-conversa com Ashley Bohrer, membro dos Anarquistas contra o Muro). A questão Palestiniana, embora justa, é uma causa perdida com um ingrato sabor amargo. Se uma bandeira, o nacionalismo, a criação de mais um estado são assuntos incompatíveis com o pensar anarquista, como é que a solidariedade internacional se constrói na distância? Como é que se luta contra a opressão, repressão e expulsão do povo palestiniano? Como é que os Anarquistas contra o Muro (AAtW) lidam com incompatibilidades ideológicas? Onde nos situamos nesta luta?
  • 3. 1. Procurar estabelecer laços no panorama actual Com alguma apreensão, mas sem emitirmos pios mobilizadores de uma legítima preocupação, nem estilhaços de acções directas, vemos a Europa consolidar, com algum secretismo (expondo agora de forma evidente os seus procedimentos anti-democráticos), o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) ou a PTCI (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Trata-se de um acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos da América que está a ser arquitectado, desde Julho 201 3, entre a Comissão Europeia e o Governo norte-americano com a participação de corporações multinacionais. Esta parceria entre a União Europeia e os EUA, além de favorecer o poder dos interesses corporativistas; ameaçar os direitos das trabalhadoras e o direito ambiental; também ameaça invalidar as recentes medidas tomadas na UE1 ; e limitar, impedir e até criminalizar qualquer expressão política e mobilização solidária na luta pela liberdade dos povos. Entre estas, as possíveis acções da sociedade civil de se poderem exprimir através do Boicote, Desinvestimento e Sanções2 em solidariedade com o povo palestiniano. Apesar das políticas europeias reforçarem o policiamento e a criação de dispositivos de protecção nas fronteiras3, numa lógica em que a condição de Colocar algumas peças sobre a questão Palestiniana Gisandra Oliveira Porto, 201 5 Uma inteligência partilhada da situação não pode nascer de um texto só, mas de um debate internacional. E para que o debate aconteça é preciso colocar algumas peças. (Aos nossos amigos, 201 5,1 4) 1 - Linhas Directrizes, publicadas no Jornal Oficial da UE (201 3/C 205/05), relativas à “elegibilidade das entidades israelitas, estabelecidas em territórios ocupados por Israel desde 1 967 (...)”. Consultável em linha: http://www.eeas.europa.eu/delegations/israel/documents/related-links/201 3071 9_guidelines _on_ eligibility_of_israeli_entities_en.pdf 2- BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) é um movimento, iniciado pela sociedade civil palestiniana em 2005, que tem vindo a ser uma fonte de preocupação crescente para o actual governo de Israel e tem levado Israel e os EUA a tomarem as respectivas contra-medidas políticas e legais. O Apelo do movimento BDS encontra-se consultável em linha: http://www.bdsmovement.net/call 3- Estes dispositivos constituem barreiras que podemos percepcionar como um prolongamento do muro de separação, cuja construção foi iniciada em 2003 pelo governo de Israel, já que constitui um impedimento ao movimento de pessoas e bens dentro desses limites, mas não entre Israel e o resto do mundo. 3
  • 4. refugiado perdeu definitivamente o seu rosto humano, sabemos que a nossa pertença ao mundo não acaba numa linha imaginária às portas do Mediterrâneo, desde o mar do Norte, passando pelo Golfo de Biscaia, pelas Colunas de Hércules e as Ilhas Gregas. Não podemos esquecer que as políticas securitárias decididas pela União Europeia revestem várias formas e manifestam-se de várias maneiras, contudo todas elas procuram propagar a ideia de uma “ameaça comum”, validando as próximas “manobras” da NATO. Esta “operação musculada” chama- se “Trident Juncture 201 5”4. As três pontas deste “tridente”querem reforçar o estado de excepção paulatina e ardilosamente implementado nos Estados Europeus. Uma das propostas, que vai decorrer em Lisboa no fórum industrial (1 9 e 20 de Outubro 201 5)5, propõe o aumento do orçamento e dos investimentos militares alegando a necessidade da “defesa” através de operações com “efeitos dissuasores”, que verá, a 5 de Novembro de 201 5, a realização de um “evento marítimo pesado”6. Espanha, Itália e Portugal constituem o “tridente” que promove a ficção da “ameaça comum” a que a NATO chama “potenciais inimigos”. Mesmo se as lutas que nos são mais próximas levam-nos a uma postura de territorialização e priorização das urgências, deixando-nos contaminar natural e necessariamente pelas agendas partidárias, pelo ritmo político institucional ou pelo que os media trazem à custa do voyeurismo social, não nos podemos pensar em termos anarquistas7 separadas das grandes movimentações políticas europeias, mas também não nos podemos alhear das lutas mundiais como o movimento Zapatista, ou as lutas de Kobane/Rojava e muito menos da questão Palestina/Israel8 por vários motivos. Sobre esta última, podemos de imediato destacar três razões. Primeiro, porque forçámos a entrada das suas Histórias nos anais da história do Ocidente e do Mundo. Segundo, porque a nossa humanidade enforma os laços solidários diante da opressão, repressão, segregação e destruição actuais como passadas. E finalmente, porque tudo contra o que lutamos no geral- uma ordem social encostada a um sistema de dispositivos9 4- Notícia consultável em linha: http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-acolhe-em-201 5-exercicio- da-nato-que-paises-do-leste-reivindicavam-1 668596 5- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/industryforumNotícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/industryforum 6- Notícia consultável em linha: http://www.act.nato.int/trident-juncture-1 5 7- Aqui o termo remete para 4 princípios gerais e básicos: autonomia, autogestão, internacionalismo e acção directa. 8- O termo Palestina/Israel remete para o território do tempo do mandato britânico (1 920-1 948), posto que a situação actual se definiu dentro dos limites desse território, cujo futuro político prescindiu da consulta da população sendo atribuído aos Britânicos como uma das esferas de influência na região nos acordos Sykes-Picot em 1 91 6. 9- A palavra dispositivo remete para o pensamento de Foucault, retomado por Agamben (2007, 31 ) como sendo “tudo aquilo que de uma forma ou de outra tem a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, moldar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos”. 4
  • 5. manobrados e regidos pelo capitalismo e o Estado - encontra-se em jogo quotidianamente na Palestina/Israel. Mesmo na distância geográfica que nos separa do Médio Oriente, podemos encontrar múltiplas razões para uma actuação mais regular e sistemática contra a máquina capitalista, os instrumentos dos Estados e as engrenagens securitárias. 2. Quando as palavras estão contaminadas Trazer a questão Palestiniana para a cena anarquista no Ocidente revela certas reticências e apresenta algumas dificuldades. As reticências formulam-se principalmente em torno da linguagem, enquanto as dificuldades envolvem percepções políticas e noções ideológicas. Em torno da linguagem, a questão Palestiniana está contaminada por dispositivos regidos pelo paradigma ocidental que insistem em querer tratar do assunto. É uma máquina oleada pelo direito internacional, envolvendo a Convenção de Genebra, o Tribunal Penal Internacional e a ONU, que só funciona e se aplica no quadro da noção de Estado. Uma máquina composta por Estados que votam e vetam alegremente num tabuleiro geopolítico em que só há lugar para os interesses de alguns. Uma engrenagem selectiva que legitimou o seu direito universal à ingerência internacional através de recortes fronteiriços, pressões e sanções económicas e de intervenções militares. De um modo geral, uma das dificuldades do anarquismo, sobre a questão palestiniana, prende-se com o sistema implementado pelas democracias liberais, tal como a representatividade. Nesta perspectiva, a causa palestiniana tem vindo a ser terreno eleito, embora naturalmente pouco gratificante, das agendas políticas partidárias das esquerdas europeias, através de grupos ou associações com um pé nos parlamentos e outro nos dispositivos humanitários institucionais ou não. No contexto português, curiosamente, o grupo parlamentar de amizade Portugal - Palestina é o único grupo que tem no seu seio membros de todas as cores políticas presentes no Parlamento1 0. Não sendo um terreno para ganhos eleitorais concretos é relativamente fácil manter laços para divulgação, informação e até para realizar acções conjuntas com estes grupos. Como é de esperar, cada grupo partidário tem tendência para veicular as ideias dos seus homólogos palestinianos. Assim, a grande diferença ideológica reside essencialmente, do ponto de vista anarquista, em trabalhar com as decisões da sociedade civil palestiniana e dos comités de resistência popular, contra a opressão e a ocupação. Contudo, em traços gerais, tudo gira em torno de uma palavra: auto-determinação. Se num dicionário a palavra auto-determinação, aplicada ao campo político, significa a livre escolha de um estatuto político e de um desenvolvimento 1 0- Comunicação de Bruno Dias, Presidente do Grupo Parlamentar de amizade Portugal – Palestina, a 28 de Maio de 201 5, na Assembleia da República num encontro com a Delegação do Parlamento Palestino. 5
  • 6. social, económico e cultural, nesta máquina neoliberal, a auto-determinação concebe-se dentro da noção de Estado, portanto enquanto auto-determinação nacional, envolvendo um povo e um território. Todos os processos de auto- determinação vão ao encontro de noções fixadas por entidades e organismos que apenas concebem os direitos das pessoas dentro dos limites constrangedores e limitadores dessas noções. Assim, não existem mecanismos que contemplem as legítimas reivindicações de uma população a, simplesmente, viver a sua vida nas suas terras, sem se submeterem a uma forma de organização política de acordo com o que essas mesmas entidades reconhecem como adequada. Mas, para que haja auto-determinação dos povos, terá de haver “povo”, algo que ligue as pessoas entre si, as pessoas que constituem esse grupo, essa comunidade, esse povo. Muito sucintamente, no caso europeu, os povos agruparam-se dentro de limites territoriais que mais tarde se definiram como Estados. No caso de Israel, o ser judeu é algo que, ao nomear-se como tal, definiu-se na opressão e subverteu os princípios falseados do racismo e, em particular, do anti-semitismo, contudo é importante realçar que o ser judeu transcende o judaísmo enquanto religião. Enquanto o ser palestino é definido em relação à realização do ser judeu na Palestina, portanto inseriu-se também na categoria de povo oprimido. Por um lado, a comunidade judaica, através do movimento sionista1 1 e as suas ramificações, acabou por estabelecer o seu território na Palestina, com base num colonialismo moderno, na ocupação e, continua as suas práticas expansionistas. No caso palestiniano, o povo formulou- se como um todo no quadro de resistências à contínua opressão e repressão exercida pela soberania israelita sobre um território que habitavam e habitam. O dispositivo1 2 imperialista, implantado no Médio Oriente e em particular 1 1 - O movimento sionista é composto por várias correntes e apresenta diferentes definições. Por exemplo, para Noam Chomsky, na entrevista intitulada “Israel in global context”, datada de Junho 1 997, o “sionismo significava uma oposição a um estado Judeu. O movimento sionista só se revelou oficialmente a favor de um estado Judeu por volta de 1 942. (…) Durante muito tempo, o movimento sionista opôs-se à criação de um estado Judeu, porque tal estado seria discriminatório e racista.». Consultável em linha: http://www.chomsky.info/interviews/1 9970609.htm 1 2- Idem nota 9. 6
  • 7. na Palestina/Israel, tem vindo a ser reformulado pela ideologia política sionista1 3. Esta ideologia praticada pelos sucessivos governos de Israel tem características nacionalistas e proteccionistas muito vincadas. Se por um lado, as esquerdas viram a criação de Israel como a possível concretização de um grande projecto revolucionário, algo com cariz quase utópico, mas também algo que pudesse envolver a noção de refugiado1 4, como uma condição inovadora questionando a noção de estado-nação, a partir dos anos 80, este sonho foi perdendo consistência com as evidências da violência das práticas dos governos sionistas. Ainda assim, uma estranha mistura de esperança, entre realismo e ilusão, apesar de enquadrada no sistema definido pelas democracias ocidentais, permanece, como quando Alain Badiou escreve em 2006 que a fundação de Israel «foi um contra- acontecimento, parte de um contra-acontecimento maior: o colonialismo, a conquista brutal por parte de gente vinda da Europa de uma nova terra onde vivia já outro povo. Israel é uma mistura extraordinária de revolução e reacção, de emancipação e de opressão. O estado sionista tem de se tornar o que continha em si de justo e de novo. Tem de se tornar o menos racial, o menos religioso e o menos nacionalista dos Estados. O mais universal de todos eles.»1 5. Por outro lado, verificamos que as circunstâncias históricas da criação do Estado de Israel formularam-se com base no estado de excepção1 6 que persiste até hoje. Ao formular um estado de ameaça contínua, que necessita de um exército permanente ao serviço da defesa, que funciona num vazio legal, legitimando acções ilegais, 1 3- Tendo em conta que a palavra sionismo envolve várias definições e percepções sensíveis, é preciso especificar que a utilizamos neste texto como a prática de uma ideologia política expansionista e opressora. Não estamos a invalidar uma aspiração histórica, nem o legítimo desejo de segurança que o sionismo representou e representa para um grupo de pessoas de confissão e/ou de cultura judaica, mesmo se esta aspiração e desejo apenas se enquadram na noção que contestamos no geral de estado-nação. O sionismo formulou-se principalmente na Europa Oriental no contexto dos progromes (Rússia 1 881 -1 882), do anti-semitismo, das opressões e repressões. Teve vários teóricos e pensadores como: Léon Pinsker (Rússia, 1 821 -1 891 ) teórico da soberania nacional judia; Aaron David Gordon (Rússia, 1 856-1 922), profeta inspirado por um regresso à natureza e ao trabalho agrícola; Theodor Herzl (Austro-Hungria, 1 860-1 904) fundador do sionismo político; Bernard Lazare (França, 1 863-1 903) a favor de um sionismo anarquista e internacionalista; Martin Buber (Áustria, 1 878-1 965) a favor de um estado único, ético e pacífico; Ber Borochov (Rússia, 1 881 -1 91 7) teórico do sionismo marxista e Yossef Haïm Brenner (Rússia, 1 881 -1 921 ) por uma identidade judia secular liberta da tutela religiosa. 1 4- Sobre a noção de refugiado, Hannah Arendt e Giorgio Agamben, trouxeram-nos uma pequena luz, em que a condição de refugiado funcionaria como um paradigma de uma nova consciência histórica que envolveria o declínio do estado-nação e potenciaria a formação de uma comunidade política ainda por vir. 1 5- Alain Badiou, “The question of democracy”, Lacanian Ink, nº28, Outono de 2006, p.59. 1 6- Segundo Agamben (201 0) o estado de excepção viu os seus mecanismos e dispositivos criados a partir da primeira guerra mundial para servirem como modelo de governo. O estado de excepção constitui um vazio de direito, em que os decretos surgem como força de lei, baseando-se, por exemplo, na ameaça constante e nas respectivas politicas securitárias. 7
  • 8. validando a impunidade mundial e alimentando o capitalismo e o mercantilismo1 7, o Estado de Israel exerce a sua soberania1 8 - com variantes legais de acordo com o estatuto atribuído às origens de cada indivíduo- sobre toda a população na região. Embora a prática de um colonialismo tardio, que se revela como a forma mais elaborada do necropoder1 9, tenha consequências sociais desastrosas, também abre uma possibilidade inesperada em termos anarquistas nos Territórios Ocupados20 como podemos verificar com o trabalho desenvolvido pelos comités de resistência popular em conjunto com outros grupos e colectivos como os Anarquistas contra o Muro (AAtW)21 . 3. Colocar mais umas peças Temos frequentemente uma percepção ideológica preconcebida, ou generalizada de três assuntos prementes para o pensar anarquista relativamente à Palestina: o uso da bandeira; a questão do nacionalismo; a questão da criação de um estado Palestiniano. São três assuntos que resistem ao pensamento anarquista por serem incompatíveis, contudo, num contexto de opressão contínua merecem alguma atenção. Ainda que múltiplas insurreições, ou uma revolução social, sejam o ideal para derrubar o sistema que nos oprime, não podemos esquecer a realidade social e política que nos rodeia. Quer na revolução, quer na construção colectiva, o anarquismo surge como um meio, não um fim. Fornece-nos instrumentos e ferramentas para construir colectivamente formas de organização social em que o ser humano ocupa o espaço todo com a liberdade individual e colectiva, com a solidariedade baseada no princípio de apoio-múto e com princípios decisórios horizontais para todos os aspectos das nossas vidas. Se neste momento precisamos de anarquistas para todas as insurreições, para as revoluções ainda 1 7- Retomamos aqui a palavra mercantilismo como sendo “uma determinada organização da produção e dos circuitos comerciais segundo o princípio de que, em primeiro lugar, o Estado deve enriquecer pela acumulação monetária, em segundo, deve reforçar-se pelo aumento da população, em terceiro, deve estar e manter-se num estado de concorrência permanente com as potências estrangeiras.” (Foucault, 201 0, 29) 1 8- Aqui a palavra soberania, intimamente ligada à noção de estado-nação (um conceito em que não nos revemos ideologicamente), remete para a definição de Mbembe, partindo de Foucault, i.e., como sendo a expressão do poder e da capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Ver Achille Mbembe, «Nécropolitique”, Raisons politiques, 2006/1 , p. 29-60. DOI: 1 0.391 7/rai.021 .0029. 1 9- Ver Achille Mbembe (op.cit, p.43). 20- Os chamados Territórios Ocupados remetem para a Cisjordânia, dentro do limite da linha verde – ou a fronteira antes da guerra dos seis dia em 1 967 – e para a zona dos Golãs território Sírio igualmente ocupado por Israel desde 1 967. 21 - Ler “Israeli anarchism: Statist dilemmas and the dynamics of joint struggle” de Uri Gordon em Dysophia nº3, Junho 201 2, pp.30-46, consultável em linha: https://dysophia. files.wordpress.com /201 2/05/dysophia3web.pdf 8
  • 9. por vir, simultaneamente, também precisamos dessa construção colectiva. Enquanto as vozes populares dos povos submetidos aos Estados gritam por uma “democracia real”, as vozes palestinianas gritam pela água, gritam pelas suas casas e terras. Gritam contra a ocupação, contra o Apartheid, contra o muro, contra as detenções administrativas. Enquanto milhares de pessoas invadem as praças dos seus países, a fragmentação territorial e as barreiras que impedem a movimentação de pessoas e bens na Cisjordânia, levam a uma extrema organização e coordenação de cada comité de resistência popular em cada aldeia, campo de refugiado, vila ou cidade na luta por coisas muito simples e básicas, como o direito a viver. É importante esclarecer que o uso da bandeira palestiniana durante as manifestações é muito mais um acto de resistência e irreverência, obviamente reprimido, do que a expressão de um nacionalismo visto e concebido segundo o nosso ser “ocidental”. Quanto à questão do nacionalismo palestiniano, resume-se muito mais a uma identidade camponesa desapossada que, além de nunca ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre o seu próprio destino, separou-se rapidamente da pura retórica nacionalista árabe e das elites locais para formar a sua identidade palestiniana na luta contra o sionismo22. Sem aprofundar as distinções teóricas elaboradas pelo anarquismo sobre as noções de estado-nação-pátria. Podemos ver duas grandes tendências anarquistas na abordagem ao nacionalismo. Para Proudhon e Bakunine, há que negar qualquer pertença nacional, como algo que aliena e manipula, e procurar uma pertença universal sem fronteiras. Para Kropotkine, o nacionalismo faz parte de um processo histórico para alcançar uma organização social ideal. Portanto, neste sentido, o nacionalismo seria um passo necessário para a auto-determinação e, depois, o internacionalismo. Mas para Kropotkine o processo de auto- determinação nacional não tem necessariamente que se inscrever num território definido e delimitado. Anarquistas como Bernard Lazare e Hillel Solotaroff, partindo do pensamento de Kropotkine, criaram uma ruptura com todos os princípios anarquistas ao introduzir a condição de uma comunidade judia, como um grupo homogéneo nacional pelas circunstâncias históricas comuns, principalmente quando mais tarde apoiaram a necessidade de um território para acolher essa comunidade: a Palestina. A questão em torno da criação de um estado palestiniano prende-se essencialmente com os discursos e princípios definidos pelas democracias ocidentais. Se inicialmente, houve o desejo das elites árabes, em negociações íntimas com os britânicos, para a criação de um grande estado árabe, a ideia de um território/estado palestiniano formulou-se no seio das manobras da 22- A palavra sionismo remete aqui para o sionismo político de carácter expansionista (ver nota 1 3). Ler o artigo de Maciel Santos, “Palestinianos desde quando? Um livro sobre os nacionalismos da Palestina”, Folhas Soltas nº3, Outubro 201 3, pp.1 1 -1 6. 9
  • 10. SDN/ONU23, i.e., uma entidade externa que dita as regras internacionais, principalmente com o aquiescer de alguns Estados que assinaram e “aderiram” aos seus princípios, cartas, declarações e que procuram auto-legitimar as suas decisões internacionalmente acrescentando sentido à própria noção de estado- nação e validando a ingerência. Vemos que segundo o sistema actual, a única entidade que garante os direitos colectivos e individuais de um povo vivendo em determinado território é a submissão de uma população ao poder de um Estado. Ainda que o Estado, para ser reconhecido como tal deva apresentar as seguintes características gerais: 1 ) ter um território; 2) ter uma população permanente nesse território; 3) ter uma forma de organização politica; 4) manter laços diplomáticos com outros países. Curiosamente, estas características nem sempre contemplam os limites do território, nem o número de habitantes ou a deslocação em massa de populações e ainda menos indicam que a organização política terá de se enquadrar no paradigma democrático ocidental. O que é certo é que outra forma de organização social é possível, basta construí-la colectivamente. Contudo, não havendo ainda esta construção e sendo o paradigma ocidental de democracia amplamente implementado, se as aspirações do povo palestiniano estão direccionadas para formarem um Estado, será uma aspiração legítima, dadas as circunstâncias da opressão, ocupação e segregação, mas também as circunstâncias políticas, exactamente como as aspirações do movimento de libertação nacional sionista, ou outros movimentos de libertação, seguiram esse caminho. Na verdade, o movimento sionista tinha todos os instrumentos práticos e teóricos para seguir uma senda totalmente diferente, como a experiência dos kitubtzim deixou entrever. Contudo, não aconteceu, possivelmente por causa de interesses que ultrapassam a nossa compreensão e pelas circunstâncias históricas da 2ª Guerra Mundial. Um profundo nacionalismo de direita e extrema-direita apoderou-se da sociedade israelita e os resultados encontram-se facilmente através da expressão das forças políticas predominantes no governo. Neste contexto, a verdade é que uma aspiração do povo palestiniano por um Estado surge como aquela que vai garantir os direitos do povo palestiniano, mesmo que se submetendo a outro opressor. Surgem-nos imensas questões para as quais não temos respostas definitivas a longo prazo. Apesar disto tudo parecer incompatível com os princípios anarquistas, os grupos anarquistas em Palestina/Israel continuam a desenvolver um trabalho importantíssimo com os comités populares locais. Assim, na luta contra a opressão, quer seja local, quer na distância, como construir um compromisso refugiado por natureza e ideologia, mas empenhado no trabalho fundamental desenvolvido com as comunidades locais com base na solidariedade? 23- A Sociedade das Nações/Liga das Nações surgiu depois da 1 ª Guerra Mundial (1 91 9) e foi substituída pela ONU – Organização das Nações Unidas – depois da 2ª Guerra Mundial, em 1 945. Gisandra Oliveira 1 0
  • 11. Anarquistas contra o Muro (AATW) é um colectivo que luta contra todas as formas de segregação, apartheid, detenção social e política, desviando-se especialmente dos valores democráticos, respeitando os direitos das minorias e da auto-determinação dos povos. O colectivo dos Anarquistas contra o Muro está particularmente envolvido na luta contra a construção do muro e da barreira de separação que o governo israelita iniciou em 2003. É para denunciar a mentira da mensagem securitária israelita que o colectivo se juntou no terreno à luta levada a cabo pelos diversos comités locais das aldeias afectadas pela existência do muro. A luta contra a construção e a existência do muro estende-se a numerosas aldeias, directa ou indirectamente envolvidas apesar das represálias, da repressão e da violência do exército israelita contra a população palestiniana. A presença do colectivo no terreno favorece a criação de verdadeiros laços entre dois povos divididos pelas políticas dos Estados. Incentiva cada aldeia a envolver-se na luta global sobre todo o traçado do muro. Permite um ponto de vista crítico e alternativo à opinião pública israelita frequentemente alinhada pela política do seu governo. Os riscos sofridos pelo colectivo são grandes e custosos. Um custo que cada membro está disposto a pagar: ferimentos irreversíveis, anos de detenção ou expulsão do território, assim como um custo económico. AnarquistascontraoMuro 1 1 Tradução GAP Fonte: René Berthier (2008, p.1 1 8). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire. Este texto também foi publicado no Le Monde Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007.
  • 12. Se o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana chegam a um acordo de “paz”, não será o resultado de um desejo de “segurança” por parte de Israel, nem de independência por parte palestiniana. Mais do que outra coisa qualquer, será uma parte da configuração dos interesses dos poderes internacionais já que tudo o resto é alheio ao seu modo de pensar. Os Acordos de Genebra, iniciados por políticos e homens de negócios, se forem assinados como pretendido (o que são duas coisas bem diferentes), serão a expressão desses interesses, como será qualquer outro acordo político que possamos imaginar. A fórmula mais apropriada para descrever o tratamento dos habitantes e cidadãos, que não estão incluídos na categoria de “judeus de pleno direito”pelo Estado de Israel é o APARTHEID: uma lei de separação chauvinista, que confisca a terra dos camponeses, restringe o movimento dos trabalhadores e até obstruí a capacidade dos capitalistas palestinianos em desenvolver a sua economia, enquanto, simultaneamente, tenta obter a cooperação dos lideres palestinianos. Algumas pessoas que se consideram activistas pela paz perguntaram- se seriamente, além das respostas oficiais da esquerda, quais as razões para a política comum de todos os governos israelitas – esquerda como direita – relativamente aos palestinianos? Consideramos que não é simplesmente a conquista de um povo pelo outro, ao estilo dos impérios antigos, nem a expressão de uma crença bíblica na terra de Israel, nem emerge dos grupos de pressão dos lideres colonos, apesar disto tudo desempenhar um papel certeiro. A lei do apartheid deve ser vista como algo que serve vários poderosos interesses. Primeiro, serve a economia Israelita – ou seja os capitalistas israelitas - ao fornecer uma força laboral barata principalmente utilizada pelas pequenas e médias empresas de manufactura e construção. Os “Israelitas Árabes”, submetidos à lei militar de 1 948 a 1 966, desempenharam esse papel e até os habitantes das regiões ocupadas em 1 967. Apenas recentemente, como se fosse o resultado da Intifada el-Aqsa e a importação massiva de trabalhadores imigrantes, o acesso DOIS ESTADOS PARA DUAS NAÇÕES ­ SÃO DEMASIADOS ESTADOS! 1 2 Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista
  • 13. livre a essa força trabalhadora foi interrompido. As grandes empresas israelitas tiraram proveito da ocupação de 1 967, principalmente, porque lhes abriu um grande mercado de consumidores sem competição. O aparelho militar, extremamente poderoso em Israel, e o seu pessoal privilegiado sempre gozaram das suas carreiras no governo e na indústria depois de acabar o serviço militar e têm um grande interesse em prolongar o apartheid (e o conflito) para assegurar as suas posições e os seus direitos. É do interesse dos Estados Unidos de América, ajudados pelos serviços prestados pelo Estado de Israel na região e no mundo inteiro desde os anos 1 950, que Israel permaneça em estado de ameaça permanente para que continue de precisar do seu apoio. Um lembrete: as negociações sérias sobre a criação de um Estado Palestiniano apenas começaram há 1 5 anos, por volta do final da primeira Intifada. Quase nenhum dos dirigentes sionistas de esquerda e da esquerda radical até agora (que parecem ter sucedido em reescrever a sua história de um modo quase Orweliano) imaginaram tal acordo. Até no início do período de Oslo, ainda falavam de autonomia. A OLP e a esquerda anti-sionista falaram da criação de um Estado secular para todos os cidadãos. De facto, a Autoridade Palestiniana não existia de todo, até Israel ajudou a instalar a OLP nesse papel. O acordo de paz a favor de dois estados para duas nações apenas entrou na agenda quando, a seguir à Primeira Intifada e com as mudanças na economia mundial, começou a servir os interesses dos capitalistas Israelitas e norte-americanos. O que significa tal paz? Se continuarmos a descrição da situação na extensão de Israel enquanto apartheid e se a comparamos ao que existia na África do Sul, podemos ver que esta PAZ significa a submissão da Intifada a uma liderança clientelista palestiniana que serviria Israel. Uma PAZ assim, frequentemente chamada “normalização”, relaciona-se com os processos ocorrendo pelo mundo inteiro com o rótulo de globalização e a iniciativas de cooperação comercial regional desenhadas para culminar numa “zona de comercio livre para todos os países do Mediterrâneo”. Pelo mundo inteiro, acordos semelhantes conduziram à destruição das economias locais para proveito das multinacionais, à violação dos direitos humanos básicos, à deterioração do estatuto e condições das mulheres e crianças, à violência social e à destruição do ambiente. Será que este acordo e paz trarão o fim da violência? Não acreditamos 1 3
  • 14. que sim: as dificuldades económicas e o fosso social vão aumentar, o problema dos refugiados vai continuar sem solução e a legitimidade do apoio económico dado ao grande número de desempregados da Faixa de Gaza e outras partes da Cisjordânia (como aconteceu parcialmente depois dos Acordos de Oslo e de novo recentemente). Neste caso, terão de contar com o “seu” estado – um mini-estado dependente - que muito provavelmente não estará à altura da tarefa. Os estados agem dentro de um sistema de interesses e as pessoas comuns como nós não estão incluídas na lista das suas prioridades. Se queremos trazer qualquer mudança para algo melhor, diminuir os fossos e parar a matança mútua, temos de não nos comportar como marionetas obedientes dos lideres políticos, financiados pelos europeus e pelos americanos, que apenas recorrem ao ambíguo protesto democrático. Temos de agir para eliminar as partições nacionais e acima de tudo resistir às forças militares que causam matanças mútuas e contínuas. Não precisamos de promover um programa político, quer seja o dos acordos de Genebra ou de qualquer outra alternativa. Pelo contrário, devemos colocar na agenda as nossas exigências para um modo de vida e de igualdade totalmente diferente para todos os habitantes da região. Mesmo se agimos de forma independente (local), temos de nos lembrar sempre que, enquanto houver Estados e enquanto o sistema capitalista continuar de existir, qualquer melhoria que consigamos alcançar será sempre parcial e sob ameaça permanente. Portanto, temos de encarar a nossa luta como parte de uma luta levada a cabo pelo mundo inteiro contra o capitalismo mundial e apelar a uma mudança revolucionária baseada na abolição da opressão de classes e da exploração e procurar a construção de uma nova sociedade – uma sociedade sem classes anarco-comunista. Uma sociedade em que não haverá coerção de Estado, onde a violência organizada será abolida, o chauvinismo inexistente e onde todos os outros males da era capitalista serão eliminados. 1 4 Anarchist Communist Initiative / Iniciativa Anarquista Comunista ESTE FOLHETO FOI DISTRIBUÍDO POR ISRAELITAS TRAIDORES NACIONAIS ANARQUISTAS haifa_anarchists@yahoo.com NEM GOVERNANTES NEM GOVERNADOS Fonte: "We are all anarchists against the wall" [http://olympiarafahmural.org/wp- content/uploads/201 0/03/anarwall-Booklet_EN.pdf]
  • 15. Há cerca de quatro anos, alguns e algumas militantes israelitas juntaram-se para formar um grupo de acção política para se opor à chamada “ barreira de separação” (o muro) do Estado de Israel. As acções, que marcaram o início deste grupo e que continuam até hoje, baseiam-se na não violência e na propaganda pelo acto. Deixam os pequenos discursos e a institucionalização aos outros. O grupo formou-se no acampamento de Masha onde, com militantes internacionais e palestinianos, se montou um protesto no traçado do muro na aldeia de Masha. Enquanto se resistia à construção, cortou-se e destruiu-se partes da cerca de arame farpado. Durante uma acção semelhante, em Dezembro 2003, um militante israelita foi baleado nas duas pernas pelas IDF (Forças de Defesa Israelita) com balas verdadeiras a queima-roupa. Até então, dada a mediatização do ocorrido, o grupo que mudava de nome a cada acção, fixou o seu nome no que fora escolhido para aquele dia: Anarquistas Contra o Muro. (AAtW – Anarchists Against the Wall) Em Israel, como alhures, a palavra anarquista é frequentemente utilizada de forma negativa. Em Israel, o seu sinónimo mais próximo é provavelmente “satanista”. Mas este amálgama serve dois objectivos: por um lado, liberta o grupo de se preocupar com a sua imagem, algo que muitas vezes paralisa a acção política e, por outro lado, revela a determinação do grupo em fixar os seus alvos e acções. Esta autonomia reforça o grupo, porque oferece aos membros activos e potenciais a possibilidade de agir em função das suas convicções, sem estarem forçados a tomar uma posição pragmática num debate em que os termos são ditados de antemão pelos outros. O início de uma luta comum A final de 2003, início de 2004, comités populares foram criados em várias aldeias palestinianas sujeitas a perderem grande parte das suas terras por causa do muro. Estes comités, destinados a resistir contra o muro, manifestavam-se quase todos os dias. A experiência do acampamento de Masha permitiu convidar israelitas a participarem nestas manifestações. Assim começou a parceria entre os AAtW e os comités populares de várias aldeias. Os AAtW entraram num período de actividades intensas. Havia manifestações em várias aldeias quase todos os dias e, com um grupo de uma dezena de israelitas, os AAtW conseguiram marcar presença nas manifestações para as quais foram convidados. Claro que cada manifestação também tem o seu número de israelitas não Na origem Excerto de Kobi Snitz, militante dos Anarquistas contra o Muro 1 5
  • 16. convidados, tal como o exército, ou a polícia das fronteiras. A presença de militantes israelitas nestas manifestações reduz substancialmente a violência do exército, que admite não disparar sobre as massas, quando suspeita da presença de israelitas numa manifestação. Apesar disto, mesmo com níveis de violência reduzidos, mesmo com a presença de israelitas, nove palestinianos foram mortos durante manifestações contra o muro. Muitos outros foram feridos, ou detidos, e muitos passaram meses em prisão. As realidades Uma verdadeira resistência israelita contra o muro é difícil devido ao extremo racismo da sociedade israelita. Uma oposição ao muro é incompreensível ou entendida como um incentivo às mortes de Israelitas. Assim os AAtW são sempre marginalizados e sujeitos a perseguições legais, assim como a ataques violentos durante manifestações. Até hoje, os membros dos AAtW foram detidos inúmeras vezes; houve 63 acusações e uma militante ficou detida vários meses. A actividade habitual dos AAtW envolve um contacto constante com a excelente advogada do grupo, Gaby Lasky, mas também um conhecimento íntimo com enfermeiros e enfermeiras de um grande centro de urgências médicas de Telavive. A pressão do perigo de riscos físicos é difícil de gerir por um grupo de militantes relativamente aberto à chegada de outras pessoas e à presença de simpatizantes nas acções e manifestações. Os AAtW colocam-se frequentemente a questão de como podem ser mais prudentes sem abandonar os parceiros palestinianos. Por outro lado, não há certezas de que seja possível tomar precauções eficazes que possam reduzir os riscos durante as manifestações. (...) As dificuldades de uma luta comum Outro aspecto original do trabalho dos AAtW reside na luta travada em conjunto com os palestinianos. Não é fácil, pois não se pode esperar que aceitem e confiem imediatamente nos israelitas. Além dos riscos da presença de espiões, ou de provocadores, a cooperação com os israelitas envolve um grau de “normalização” que se traduz em ajustar-se às condições da ocupação. Os militantes israelitas carregam influências culturais que podem não ser bem aceites em certas partes da sociedade palestiniana. Assim, apesar de não haver uma plataforma formalizada, os AAtW insistem sobre alguns princípios no trabalho comum. O primeiro princípio é que, apesar de ser uma luta conjunta, como os palestinianos são sempre os mais afectados pelas decisões, são eles que tomam as decisões importantes. Os israelitas têm a responsabilidade particular de respeitar a autodeterminação palestiniana, e esta estende-se ao respeito dos costumes sociais e a não se envolver em questões de política interna palestiniana. Uma questão mais delicada reside na normalização versus os benefícios dos laços 1 6
  • 17. sociais. Há diferentes modelos culturais e seria autoritário querer mudá-los. O único princípio é de respeitar os pedidos dos comités populares. Os detalhes acima podem deixar a impressão de que as dificuldades da luta conjunta são mais importantes do que são na realidade. Pois na verdade, a luta comum enfrenta uma única e principal dificuldade que tem a forma do Estado de Israel. (…) 1. A rentabilidade de um projeto colonial O contributo de Hever beneficia muito do modo como considera a geografia política da ocupação. Usa a expressão “Territórios Palestinianos Ocupados” (TPO) para designar o agregado da Cisjordânia e da Faixa de Gaza mas acrescenta imediatamente que a expressão induz em erro. Diferenciar Israel dos territórios associa o estatuto de “ocupação” a uma situação transitória (o que A economia política da ocupação israelita Maciel Santos Shir Hever é um economista israelita para quem os anos 1 990 foram “uma década de transformação”. Desiludido com as limitações da “economia dominante” que lhe ensinavam na Universidade de Telavive e com o processo de Oslo, extinto de vez com a entrada de Sharon na esplanada das Mesquitas, resolveu estudar criticamente a “economia da ocupação”. Como depressa percebeu, adoptar como objeto de pesquisa “os aspetos económicos das relações entre as autoridades israelitas e os palestinianos ocupados” constituía um “nicho de mercado académico”. Não só havia poucos estudos que lhe pudessem servir de referência como o conceito de “exploração” em “economia” traça rapidamente um cordão sanitário à volta de quem o utiliza, especialmente na universidade israelita. Em 201 0, Hever publicou o resultado dos seus cinco anos de investigação1 . A primeira parte do livro sintetiza os dados disponíveis da “economia da ocupação” e a segunda discute as interpretações avançadas pelos estudos críticos, marginais como se viu. Os seis primeiros capítulos da primeira parte representam sem dúvida a secção mais original e importante do seu trabalho. 1- Hever, Shir, The Political EconomyofIsrael’s Occupation – Repression beyond Exploitation, 2010, Pluto Press. Tradução GAP Fonte: René Berthier (2008, pp. 1 1 9-1 23). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire. Este texto também foi publicado no Le Monde Libertaire, nº1 469, de 1 5 a 21 de Março de 2007. 1 7
  • 18. está longe do que pensa sobre o assunto o governo de Israel)2. Além disso, oculta o facto de a realidade política ser só uma: a área militarmente controlada pelo Estado de Israel inclui, sem qualquer solução de continuidade, o que está dentro das fronteiras de 1 948 e todos os territórios ocupados, de 1 956 em diante. Existe “um só governo, um só exército dominante e uma só população registada” . Acontece é que esta população está dividida entre vários estatutos políticos e jurídicos, pelo menos seis: 1 ) os cidadãos plenos, 2) os judeus de ascendência árabe (os “Mizrahim”), 3) os palestinianos com cidadania de Israel, 4) os beduínos, 5) os palestinianos da Cisjordânia e 6) os palestinianos de Gaza. Há até mais que seis estatutos porque recentemente os árabes com estatuto de “residência israelita” (habitando principalmente em Jerusalém Oriental) foram diferenciados dos outros, domiciliados em áreas fora do Muro em construção. Um só poder dominante sobre populações com estatutos políticos diferenciados é uma ocupação de tipo colonial3. Foi nessas situações que, como se sabe, se desenvolveu o quadro jurídico do “indigenato”, oposto à “cidadania”. Mas é preciso ver mais de perto o colonialismo moderno. Nos últimos 1 50 anos, as ocupações coloniais estiveram associadas à exportação de capitais e portanto às expectativas de encontrar nesses territórios taxas de lucro superiores às da origem. O principal factor para que isso aconteça é a força de trabalho “colonial” ter custos menores para a sua reprodução, o que aumenta a taxa de mais-valia4. No entanto, taxas de mais-valia superiores à média nem sempre dão taxas de lucro superiores à média. No caso das ocupações coloniais, há até uma contradição permanente entre ambas: para explorar a força de trabalho barato é preciso estender o Estado dominante para as regiões dominadas, o que obriga a aumentar as despesas improdutivas (duplicação dos aparelhos político-militar, judiciário, hospitalar, escolar, etc.). A ocupação colonial faz assim aumentar a parte do capital público que produz abaixo da taxa média de lucro (ou até sem lucro). A taxa média de lucro resultante combina portanto os super-lucros que o capital privado faz nas regiões de salários baixos com os lucros (baixos ou nulos) dos capitais públicos, sem os quais não há investimentos privados. Dito de outra forma, há uma diferença grande entre os lucros antes e depois de impostos a não ser que se encontre alguém para pagar as despesas “improdutivas” do Estado colonial. 2- A ocupação dos territórios no seguimento da guerra de 1 967 foi ilegalizada pela comunidade internacional através da resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU. O governo de Israel nunca admitiu ter a intenção de anexar os territórios, mas o seu discurso oficial vem acumulando cada vez mais contradições a esse respeito. 3- Hever usa poucas vezes essa designação. 4- A taxa de mais-valia (mv’) é a relação entre o trabalho pago e não pago. Define-se como mv’ = mv / v, sendo mv = mais-valia (o tempo de trabalho não pago) e v = capital variável (o trabalho pago, isto é, o valor adiantado pelo salário). Difere da taxa de lucro (r), que se define como: r = mv / v + c, sendo mv e v definidos como na taxa de mais-valia e c = capital constante (bens de capital não incluídos nos custos da força de trabalho). 1 8
  • 19. Os grupos de interesse com atividade nas colónias esforçavam-se por conseguir que os restantes capitais metropolitanos contribuíssem para esses encargos. Mas como isso ocasionava conflitos sérios entre diferentes estratos da burguesia, os estados coloniais encontraram um expediente. Tratava-se do chamado “imposto indígena”: ao cobrar impostos sobre os camponeses, as administrações coloniais faziam-lhes pagar a sua própria ocupação. É das sociedades camponesas que saem os trabalhadores baratos mas, uma vez que estas sociedades se reproduzem fora do circuito do capital, podiam pagar impostos sem que se corresse o risco de haver aumentos de salários5. O imposto sobre os camponeses diminuía deste modo a carga fiscal sobre os lucros e a taxa geral de lucro aumentava. 1.1 Fatores “atrativos” nos TPO A “economia da ocupação” israelita encaixa no modelo colonial uma vez que inclui: a) níveis salariais diferenciados por critérios políticos Já não resta quase nada da sociedade camponesa da Palestina (as deportações e as ocupações de terras acabaram praticamente com ela), mas os diferentes estatutos políticos da população são suficientes para dar ao conjunto Israel /TPO uma configuração colonial. Por exemplo, o salário médio de um trabalhador palestiniano corresponde a 57,7% do salário médio de um cidadão judeu israelita. Mas nem sequer existe um salário médio palestiniano, porque a ocupação vai criando estratos sobre estratos: os trabalhadores da Cisjordânia recebem 51 % do salário médio diário pago aos palestinianos a trabalhar em Israel (fronteiras de 1 948) e os de Gaza apenas 46%. b) custos de reprodução da força de trabalho não pagos pelo capital local A força de trabalho palestiniana tem custos muito baixos. Como é isso possível se praticamente desapareceu a sociedade camponesa no conjunto Israel/Palestina? Através da ajuda internacional que desde 1 948 tem poupado despesas ao estado e aos capitais de Israel. A ajuda internacional (que inclui a agência da ONU – UNRWA e as muitas ONG’s que canalizam as doações públicas e privadas) satisfaz boa parte das necessidades alimentares, sanitárias, educativas, etc. da população palestiniana. As transferências (exclusivamente de ajuda “humanitária” porque Israel não permite outro tipo de cooperação) aumentam significativamente depois das crises militares, como aconteceu no seguimento das operações israelitas de 1 948, 1 967, 1 989, 2000. Nesses anos, a 5- Isto não quer dizer os trabalhadores assalariados não paguem impostos. No entanto, assumido o custo da força de trabalho em qualquer mercado, a economia clássica mostra, desde Ricardo, como todos os impostos adicionais sobre os salários acabam por ser, direta ou indiretamente, pagos pelo capital. 1 9
  • 20. ajuda internacional pode chegar a percentagens muito elevadas do PIB dos territórios ocupados. Para se fazer uma ordem de grandeza, vale a pena transcrever a seguinte tabela de Hever, que mostra como a destruição de equipamentos, levada a cabo pela invasão israelita dos TPO em 2001 -02, foi imediatamente seguida por grandes aumentos da ajuda internacional: Quadro 1 - Dependência palestiniana da ajuda internacional Fonte: Hever, 201 0: 31 Mesmo considerando que a diminuição do “PIB palestino” depois das destruições israelitas faz aumentar as percentagens da ajuda, estes dados permitem deduzir que os salários pagos em Israel aos trabalhadores palestinianos representam muito pouco do rendimento palestiniano. Se nos anos acima todo o rendimento palestiniano viesse apenas da soma destes salários e da ajuda internacional, a parte dos salários pagos pelo capital israelita representaria apenas 1 2% do que seria preciso para manter uma classe trabalhadora palestiniana. A tabela acima permite também deduzir que o estado de Israel beneficia de uma dupla impunidade nas destruições que provoca nas infra-estruturas palestinas: para além de não ser processado pelos doadores (UE, ONU, EUA, Japão, Estados Árabes, ONGs), os governos sionistas sabem que os montantes da ajuda nunca deixarão de lhes poupar despesas que de outro modo teriam de suportar, sob pena de a força de trabalho palestiniana não se poder reproduzir. Para os capitais israelitas, há ainda mais a tirar da ajuda internacional aos palestinianos. O controlo que os outros estados coloniais exerciam sobre as respectivas economias camponesas – obrigando-as a comprar bens das firmas metropolitanas – também está presente. Nas antigas colónias, os mercados locais estavam protegidos por pautas aduaneiras que favoreciam as exportações da metrópole; no caso dos TPO, a ajuda internacional também transita obrigatoriamente por Israel e é em Israel que geralmente se converte em bens. Pautas aduaneiras proibitivas garantem que as compras não se façam nos países vizinhos. Para além de mais receita fiscal, isto abre um mercado suplementar às 20
  • 21. empresas israelitas, que são assim pagas por terceiros para satisfazer a procura palestiniana. c) transferências de capitais metropolitanos para suportar os custos do estado colonial No entanto, e ao contrário do que dizem muitos meios de comunicação (em Israel e nos países ocidentais), os TPO não são a região do mundo que recebe mais ajuda internacional. Essa posição é geralmente ocupada pelo estado de Israel, que recebe transferências: - dos Estados Unidos (principalmente para fins militares) - das comunidades judaicas do mundo inteiro - da Alemanha, a título de compensações pelo Holocausto Só dos Estados Unidos, Hever calcula que, entre 1 973 e 2008 (excluindo portanto tudo o que foi recebido nos 26 anos entre a independência e 1 973), Israel recebeu cerca de 200 biliões de dólares americanos6. As transferências alemãs, embora não sigam diretamente para o governo israelita, podem ser estimadas numa média anual de 732 milhões de dólares; isto é, só elas são superiores à média anual da ajuda recebida pelos TPO nos anos “normais” (antes da 2ª Intifada). As doações das comunidades judaicas não são fáceis de estimar, o que não quer dizer que sejam pequenas. Tudo somado, não admira que o estado de Israel seja habitualmente o maior recipiente da ajuda externa mundial, ultimamente ultrapassado apenas pelo Iraque. 1.2. Os custos nos TPO e a rentabilidade Considerados isoladamente, estes três pontos (salários desiguais, baixos custos salariais e transferências externas) seriam fatores para haver taxas de mais-valia e de lucro mais altas nos TPO que nas economias “metropolitanas” da Europa ou dos EUA. No entanto, é preciso considerar os encargos do aparelho político (as tais “despesas improdutivas” para o capital) que nos territórios coloniais atuam sobre a taxa de lucro em sentido contrário. Hever diz que estas despesas se podem dividir em duas rubricas: subsídios aos colonatos israelitas (os colonatos fazem ocupação privada, mas cada colono custa ao estado de Israel 2 vezes mais que os outros cidadãos) e os custos militares/policiais diretamente a cargo do Estado. Para o período 1 970-2008, calcula o acumulado (com juros) da primeira rubrica em de cerca de 1 04 biliões de NIS7 e o da segunda, em cerca de 31 6 biliões de NIS (respetivamente, 23,9 e 75,5 biliões de dólares). Simplificando, avalia-se o custo anual da ocupação em 26,3 biliões de NIS (cerca de 6,84 biliões de dólares). Esta soma é verdadeiramente abissal e permite imediatamente 6- Hever acrescenta aos montantes transferidos a taxa média de juro. Hever, 201 0: 33. 7- New Israeli Shekel, a moeda (única) do agregado Israel/TPO. 21
  • 22. concluir que sem as transferências do exterior, a ocupação nunca poderia ter avançado tanto. Mais: não pode seguramente continuar na mesma escala. É que a ser assim (isto é, se o número de colonos continuasse a crescer à taxa de anual de 7,1 %), o orçamento israelita de 2038 teria de gastar metade das suas receitas para suportar a ocupação. Como diz Hever, isso nunca se viu em nenhuma potência colonial. O volume destas despesas improdutivas encaixa mal no modelo colonial: os lucros coloniais nos TPO custam demasiado. Afinal, a resistência palestiniana está longe de ser simbólica e pesa cada vez mais, a ponto de tornar a exploração irracional. Sendo assim, que diabo de ocupação colonial é esta que parece saída do mundo pré-capitalista? Os fatores que tornam esta ocupação atípica são os seguintes: a) a escala da exploração é baixa Para calcular a taxa de exploração, tem de se começar por apurar a massa da mais-valia apropriada. O governo e os capitais privados de Israel beneficiam de uma mais-valia palestiniana através de dois agregados: os impostos (diretos e indiretos) e a a exploração de uma força de trabalho barata. Para o período 1 970- 2008, Hever calcula que o acumulado destes agregados seja de 39,64 biliões de NIS, o que dá uma média anual de 1 ,01 bilião de NIS. Outros autores apresentam estimativas superiores: para o mesmo período, um acumulado de 58,9 biliões de NIS, o que elevaria a média anual para 1 ,84 biliões de NIS. É preciso lembrar que o agregado da mais-valia obtida com os palestinianos inclui receitas muito variadas: impostos pagos pelos palestinianos e pelas ONG, salários retidos, quotizações sindicais (os palestinianos que trabalham em Israel descontam para a central sindical Histadrut, embora dali não recebam qualquer proteção), para a segurança social, etc. O divisor da taxa de exploração são os custos salariais. Quantos são os trabalhadores palestinianos e que massa salarial implicam? Segundo vários institutos de pesquisa, o total de trabalhadores palestinianos em Israel era, em 2005, de 60.000. Apenas metade deles tinham “residência israelita”, o que significa que a outra metade vinha dos TPO. Com base nos diferentes salários médios diários associados aos vários estatutos da população palestiniana e assumindo um tempo de trabalho anual “europeu”8 , pode-se tentar uma estimativa da taxa de mais-valia obtida com esta força de trabalho: 8- Se for assumido que cada assalariado palestiniano trabalha um total anual de 2.1 81 horas (tal como os franceses de 1 981 , isto é, 273 dias de 8 horas), está-se a subestimar o efeito dos horários mais longos em contextos não europeus; em contrapartida, está-se a sobrestimar o total de dias trabalhados – a quantas interdições de trabalhar em Israel não estão sujeitos os trabalhadores dos TPO em cada ano? 22
  • 23. Quadro 2 - Exploração anual nos TPO: massa e taxas de mais-valia obtidas com assalariados palestinianos (média anual do período 1970-2008) Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS Com os números de Hever, numa jornada de 8 horas cada assalariado palestiniano trabalha em média 3,1 horas para o capital e 4,9 para si próprio; com os de Bichler-Nitzan, a divisão da jornada faz-se com partes sensivelmente iguais (respetivamente 4,3 e 3,7 horas). Comparativamente com outras situações coloniais, estas taxas de mais-valia são baixas e não devem pesar muito na acumulação de capital em Israel. As companhias israelitas mais rentáveis têm coeficientes de capital elevado. Em 2006, 46% das exportações israelitas (não contando com a lapidação de diamantes) eram faturadas pelas firmas“high-tech” - do ramo farmacêutico, como a Teva Pharmaceutical Industries (capitalização de 51 ,5 biliões de USD), a Israeli Chemicals (capitalização de 1 4,3 bilões de USD) ou as que produzem equipamentos militares. Estas companhias não podem ser as que mais palestinianos empregam proporcionalmente: a força de trabalho palestiniano é pouco qualificada, o que a torna menos compatível com ramos industriais de composição técnica alta. Mais de 28,3% dos palestinianos na faixa etária 20-24 anos tem apenas 9 anos de escolaridade; a percentagem de pouco qualificados aumenta com a idade e chega a 80% na faixa 55-64 (ainda activos). Por exemplo, na área de Jerusalém os palestinianos representam apenas 31 % da população mas 50% da força de trabalho com salários mais baixos (a outra metade são emigrantes judeus recentes). É certamente na agricultura, na construção civil e no setor dos serviços que se pode encontrar a maior percentagem do emprego palestiniano. Em Israel, diz Hever, associa-se frequentemente os conceitos de “trabalho manual” , “trabalho sujo” e “árabe”. Outro indicador do relativo desinteresse pela mais-valia palestiniana é o diferencial nas taxas de desemprego (quase 20% mais entre os 9- A massa salarial assume que metade dos trabalhadores ganha pela taxa diária paga em Israel e a outra metade pela taxa mais baixa dos TPO, a dos trabalhadores de Gaza. Este pressuposto maximiza o cálculo da taxa de mais-valia (é pouco plausível pensar que metade da força de trabalho palestiniana ganhe pela tabela de Gaza porque as restrições à entrada destes trabalhadores são agora quase totais e já não investimentos israelitas na Faixa.) 23
  • 24. palestinianos que entre os judeus)1 0. É também verdade que, devido à pressão sobre os desempregados para aceitarem reduções salariais ou para trabalharem gratuitamente em programas comunitários (políticas que o governos israelitas inspirados no Wisconsin Program americano têm vindo a aplicar), a tendência é para o aumento da taxa de exploração em todo a área Israel-TPO. No entanto, trata-se do crescimento da taxa média de mais-valia e não do diferencial positivo da taxa de mais-valia empregando palestinianos. Em resumo, sem produções rendeiras (de que beneficiavam muitas produções coloniais tropicais) e em face da deriva israelita para produções de alto valor acrescentado parece não haver vantagens decisivas em explorar a força de trabalho palestiniana1 1 . b) os custos totais são muito altos, logo a taxa média de lucro é muito baixa Isto porque, como se viu, os custos para ter acesso a esta força de trabalho barata são desmesurados, e apesar dos aumentos de produtividade também terem chegado às despesas “improdutivas” da guerra. Atualmente, os orçamentos militares de quase todos os estados representam percentagens menores do PIB que nas décadas da chamada “Guerra Fria”. Com dizem os entendidos, há agora “melhores” armas, não mais armas. Está também em curso a tendência para privatizar parte destas rubricas. Em Israel, uma boa parte da “segurança” é feita por empresas privadas (até os check points que infernizam o quotidiano dos habitantes dos TPO estão a ser privatizados!) Mas é claro que nada disto impede os custos da ocupação dos TPO de serem os mais altos do mundo, seja qual for o critério de medida e seja quem for que vista a farda. Há empresas de segurança a operar por todo o lado, dos restaurantes aos parques de estacionamento e com elas os encargos de capital de todas as firmas disparam. Face a estes números astronómicos, o valor do capital produtivo parece quase irrelevante. Hever não informa sobre os ativos de capital das firmas israelitas mas fazendo a suposição absurda de que elas trabalham sem capital constante (equipamentos, matérias primas, bens intermediários), as taxas de lucro seriam aproximadamente assim: 1 0- É verdade que no diferencial de desemprego também entram fatores ideológicos, como a discriminação dos árabes e o que resta dos dogmas sionistas. No entanto, a abertura da economia israelita ao investimento estrangeiro, menos sensível a estes preconceitos, torna este indicador do desemprego significativo. 1 1 - Isso pode em parte explicar uma “anomalia” israelita que Hever assinala: o comportamento aparentemente inesperado dos trabalhadores israelitas. Em vez de apoiarem a segregação total como faziam os seus homólogos sul-africanos relativamente aos trabalhadores negros - o que neste caso significaria serem favoráveis à solução dos dois estados e ao fim do espaço comum Israel-TPO - a classe trabalhadora israelita vota nos partidos nacionalistas, favoráveis ao projeto colonial integrado. 24
  • 25. Quadro 3 - Taxa média de lucro (capital constante excluído) nos TPO - média anual do período 1970-2008 Hever, 201 0: 61 -62;68. Valores em dólares constantes de 2008 convertidos em NIS Estas taxas de lucro não são evidentemente as que figuram nos balanços das firmas israelitas (se o fossem, a bolsa de Telavive não sairia tão cedo do vermelho). Representam apenas - com um largo erro por excesso que resulta da omissão de todos os ativos fixos e circulantes com excepção dos salários e dos “custos de segurança” - o que o capital mundial lucra quando se empregam palestinianos no complexo Israel-TPO. É claro que para as companhias israelitas onde há vantagem em empregar trabalhadores não qualificados, os 60.000 palestinianos com salários asiáticos são uma benesse, independentemente de os super-lucros serem raros nas firmas agrícolas ou da construção. Mas que para isso aconteça, os contribuintes americanos (fora os outros) têm que desembolsar a fundo perdido 5,6 biliões de dólares por ano. Alguma coisa aqui não bate certo. Então fazem-se investimentos de alto risco numa economia de guerra para obter retornos que, tudo somado, ficam abaixo do que se consegue com qualquer miserável título de divida pública? Uma conclusão destas remete imediatamente para o significado desta estranha economia colonial e portanto para a 2ª parte do estudo de Hever. 2- Quem lucra com a economia politica da ocupação israelita? Hever refere várias vezes a desproporção entre a dimensão da área Israel- TPO (29.000 km2, mais ou menos o tamanho da Bélgica) e a sua importância mundial. Basta considerar os 200 biliões de dólares da “ajuda” americana dos últimos 36 anos para se pensar imediatamente numa geopolítica mais ampla e na impossibilidade de esse dinheiro ter chegado para ajudar a explorar 60.000 árabes pouco escolarizados. Também não é nenhuma revelação a relação que existe entre o investimento norte-americano no “porta-aviões” israelita e o controlo da área produtora de petróleo do Médio Oriente - pouco mais de 2,2 milhões de km2 onde se concentram 57% das reservas mundiais de petróleo e 40% das reservas de 25
  • 26. gás.1 2 Já se sabe alguma coisa sobre a influência das multinacionais do petróleo na condução da política externa americana, tanto a pública como a subterrânea1 3. Não é preciso ir buscar, como Hever faz citando o estudo de Bichler- Nitzan, uma hipotética correlação entre guerras no Médio Oriente e lucros das companhias de petróleo1 4. Se for considerado o acumulado dos lucros das supermajors1 5 (e apenas o diferencial relativamente ao que seriam os lucros destas companhias se tivessem de comprar o Arabian Light a um cartel de produtores num mercado concorrencial), então os biliões gastos para manter um pequeno “Estado cão de pastor” a desequilibrar a política regional representam verdadeiras economias de capital. Aqui sim, há super-lucros e possibilidades de rendas mais ou menos permanentes. Mas o que é bom para Exxon-Mobil ou para a Chevron/Texaco não é certamente bom para os cidadãos israelitas. Porque razão se obstinam eles em validar governos que levam Israel a cumprir este triste papel na ordem mundial, cujos reflexos na política interna israelita são cortes nos programas sociais e o consequente agravamento das desigualdades? Só um exemplo: Israel ocupa atualmente o 50º lugar num conjunto de 53 países quanto ao grau de igualdade de oportunidades escolares. Hever vai mais longe. A economia de guerra está a minar o próprio projeto sionista, que assentava numa solidariedade “étnica”, agora totalmente estilhaçada pelo consumismo (alimentado pelas transferências externas) e pelas diferenças de classe. Os tempos não estão para virtudes cívicas: a taxa de recrutamento militar está a baixar desde a década de 1 980 (apesar do recrutamento ser obrigatório, os esquemas para as isenções proliferam) e parece que menos de metade dos cidadãos israelitas (49%) acaba por se alistar. Isto para não falar na abstenção eleitoral (record nas eleições de 2009) e nos escândalos governamentais de corrupção, crónicos na última década. Mas o mais importante é que a prosperidade da economia israelita assenta na base muito frágil da dependência externa. É verdade que a “ajuda internacional” a Israel parece uma mina sem fundo (entre 1 970-2008 o acumulado de todos os custos militares da ocupação representou apenas 55% das transferências americanas). É verdade também que toda a “ajuda”, e muito particularmente a que se destina aos palestinianos, reforça as reservas de divisas do banco central de 1 2- Chevalier, M., Les grandes batailles de l’énergie, 2004, Paris, Gallimard, p. 327. 1 3- Entre muitos, Baer, Robert, Or noir et Maison Blanche, 2003, Paris, Gallimard; , Laurent, Eric, La guerre des Bush, 2003, Paris, Plon; Scott, Peter Dale, American Deep State, 201 4, Maryland, Rowman &Littlefield. 1 4- Até porque a conclusão principal desse estudo – a da correlação entre guerras/ lucros – se baseia nos retornos bolsistas e não nos diferenciais da taxa de lucro real das empresas. Bichler, S.; Nitzan, J, Cheap Wars, “Economy of Occupation”, vol. 1 0, 2007, Jerusalem: Alternative Information Center. 1 5- Expressão usada para designar as sete maiores companhias petrolíferas. 26
  • 27. Israel e o saldo da balança de pagamentos. Mas se a prosperidade vem cada vez mais de fora, o que aconteceria em resultado de uma campanha de boicotes, sanções e desinvestimento? Hever diz que em 2003, sob o efeito de um hipotético cenário de ruptura das exportações, o banco de Israel teria reservas em divisas para pagar 208 dias de importações; em 2006, esse número já estava em 1 60 dias. A combinação de uma dependência externa e de um igualmente crescente isolamento internacional (decisões do Tribunal Penal Internacional e da ONU sobre o muro, extensão da campanha de boicotes, desinvestimento de algumas companhias internacionais, queda de 25% do turismo entre 1 995-99) aproximam a trajetoria israelita da sul-africana durante o processo de extinção do apartheid. Face a isto, que saídas há? A solução dos dois estados ou a do estado democrático, pluri-comunitário? Hever argumenta que, no caso da solução dos dois estados, só a compensação a pagar aos colonos entretanto instalados na Cisjordânia (tomando como base o que se pagou aos que foram evacuados da faixa de Gaza) chegaria às dezenas de biliões de dólares. Isto sem falar nas compensações a pagar aos palestinianos. Estas últimas parecem um pouco ficcionadas (note-se que, dada a atual correlação de forças, indemnizações desta ordem nunca estiveram na mesa das negociações). Em todo o caso é inegável que o estado de Israel não tem condições (nem intenções!) para pagar nada disso - salvo se contasse com o reforço da “ajuda” americana nesse sentido. Mas continuaria ela a vir, caso Israel perdesse a sua utilidade para os interesses geopolíticos americanos? Inversamente, pode-se perguntar (o que Hever não faz) se estes interesses não seriam melhor defendidos por um estado integrado e “normalizado” que desmontasse a bomba de relógio deste conflito secular. Afinal, foi essa política seguida pelo grande capital na África do Sul, ao acabar com o fantasma do apartheid. Aqui, tal como na discussão de rebuscadas explicações sociológicas para explicar a ocupação israelita, o trabalho de Hever é menos convincente. Contudo, o seu contributo para demonstrar que a “economia da ocupação” está a prazo compensa as confusões teóricas da 2ª parte. 27 Maciel Santos
  • 28. O muro construído pelo governo israelita sobre as terras da Cisjordânia tem várias funções. Para alguns, estamos na presença de um escudo de protecção civil contra qualquer possível infiltração terrorista, para outros, o muro é apenas uma franquia com a finalidade de estender novas construções em territórios confiscados e, para uns quantos outros, trata-se de uma membrana selectiva de mão-de-obra barata. Sob a égide das políticas de segurança nacional escondem-se muitas outras estratégias que são do domínio da economia política. Com efeito, uma simples abordagem à evolução do recurso à mão-de-obra palestiniana em território israelita permite fazer o levantamento do dinamismo de uma estratégia de guerra de que o muro é uma das armas principais, uma estratégia reduzida em termos de emprego, de salário e de produto nacional. Quando Israel se apoderou dos territórios palestinianos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, a economia palestiniana baseava-se principalmente nos rendimentos de seu sector primário. De 1 967 até aos acordos de Oslo (1 993), Israel conduziu uma política económica de sentido único nos territórios ocupados, com leis proteccionistas impedindo o desenvolvimento industrial palestiniano e submetendo a mão-de-obra palestiniana aos mercados israelitas. É assim que a força de trabalho, oriunda dos territórios ocupados e obrando nas indústrias israelitas, se tornou a principal força económica que constitui o produto nacional bruto palestiniano. No final deste período, 1 1 5 000 trabalhadores palestinianos, representando um terço da força de produção dos territórios ocupados, trabalhavam em solo israelita, os seus salários alimentando milhares de cidadãos dependentes da economia israelita. Guy Davidi e Alexandre Goetschmann Um muro de segurança civil ou de dominação económica 28
  • 29. 29 Com a entrada da economia israelita nos mercados mundiais deu-se uma inflação dos produtos de consumo básico nos territórios ocupados. Consequentemente, muitos agricultores palestinianos abandonaram o cultivo das suas terras para entrar no sector secundário israelita em pleno crescimento, para poderem ir ao encontro do súbito aumento dos preços e do perigo iminente de empobrecimento. O abandono das explorações agrícolas e a estagnação dos métodos de desenvolvimento, que lhes podiam estar associados, são as consequências das sanções emitidas pelo governo israelita sobre os produtos agrícolas importados dos territórios ocupados; pelas subvenções do Estado ao lobby agrícola israelita; pelo absoluto controlo israelita na gestão dos recursos de água assim como a regulação desigual do seu preço. Nestas condições, a agricultura palestiniana não podia competir com o seu vizinho, nem munir o seu povo de rendimentos decentes. Durante os 26 primeiros anos da ocupação, a mão-de-obra palestiniana à procura de um trabalho rentável foi principalmente empregue nos sectores
  • 30. 30 industriais e no desenvolvimento de Israel. O aumento dos salários da mão-de-obra palestiniana ultrapassando os da Jordânia, ou do Egipto, assim como problemas relativos à segurança nacional fizeram com que os territórios ocupados perdessem progressivamente interesse para verdadeiros investimentos. A indústria têxtil israelita encontrou um parceiro mais vantajoso na Jordânia do que nos territórios ocupados, enquanto simultaneamente, o abandono das terras agrícolas pela mão-de-obra palestiniana favorecia o sequestro dos subsequentes terrenos para a construção de novos colonatos. Apesar da lei emitida em 1 970 pelo governo israelita, visando a igualdade dos trabalhadores e respeitando, de acordo com a lei internacional, os direitos sociais dos trabalhadores palestinianos, esses mesmos direitos foram espezinhados pelos promotores do trabalho sob o olhar indiferente da opinião pública israelita. Durante muitos anos, a mão- de-obra palestiniana pagou do seu salário os impostos e as taxas dos cidadãos israelitas. Um capital que enchia as caixas pensionistas ou outros seguros sociais ou de saúde de Israel. A primeira Intifada de 1 987 apoiou-se nesta lesão generalizada dos direitos sociais da mão-de-obra palestiniana, mais do que em verdadeiras reivindicações nacionais. Segundo testemunhos dos campos de refugiados da Cisjordânia e de Gaza, uma grande parte dos revoltados de 1 987 tinham trabalhado em Israel. No início dos anos 90, a mão-de-obra dos territórios ocupados representava 7% da força laboral de Israel. Paradoxalmente, a economia do país tornava-se dependente desta mão-de-obra acessível, barata e indefesa, ocupando os sectores industriais, que foram abandonados pelos cidadãos israelitas, devido às condições de trabalho muito violentas. Em 1 993, o governo de Rabin decidiu abrir as portas aos emigrantes de ultramar para substituir a mão-de-obra palestiniana, esta decisão dependia do projecto de separação dos dois povos em conflito, oferecendo assim a Israel a legitimidade de impor um recolher obrigatório nos territórios ocupados. No limiar da segunda Intifada (2000), 1 1 0 000 trabalhadores palestinianos trabalhavam em Israel, representando um quarto da força laboral produtora dos territórios ocupados. No seguimento do fecho total dos territórios, a taxa de desemprego dos territórios ocupados foi multiplicada por dez. Entre 1 999 e 2002, o número de trabalhadores palestinianos em Israel diminuiu de 1 1 3 000 a 30 000. Com o início da construção do muro e a inacessibilidade às
  • 31. zonas industriais israelitas, situadas ao longo da linha verde, um dos únicos rendimentos dos palestinianos passou a ser o trabalho nas colónias. Os salários diminuíram de 75% e as garantias de pagamento tornaram-se aleatórias. Durante o primeiro semestre de 2007, 68 000 palestinianos trabalhavam nas colónias representando um décimo da força laboral dos territórios ocupados, o resto permanece, desde 2000, ainda à espera da implementação de um ambiente favorável ao trabalho. A política económica israelita desenvolvida nos territórios ocupados flutua entre a manutenção de uma situação humanitária “respeitável” e a exploração da força de trabalho barata seleccionada nos diversos postos de controlo situados ao longo do muro. Apenas o trabalhador palestiniano com um cadastro criminal virgem pode, eventualmente, ter acesso ao mundo do trabalho em território israelita. O acesso ao mundo do trabalho aparece portanto como uma arma de repressão judicial cujo muro serve de tribunal. 31 Tradução GAP Fonte: Berthier (2008, pp.1 24-1 26). La Palestine au pied du mur. Paris: Éditions du Monde Libertaire.