Este documento apresenta uma coleção de poemas, citações e excertos que refletem sobre a história e cultura de Portugal, com ênfase no período após a Revolução dos Cravos de 1974. Alguns trechos celebram a liberdade e democracia conquistadas, enquanto outros criticam o passado autoritário e exploratório do país. A coleção transmite a esperança e as lutas do povo português por meio da literatura e da arte.
2. Um povo imbecilizado e
resignado, humilde e
macambúzio, fatalista e
sonâmbulo, burro de carga, besta
de nora, aguentando
pauladas, sacos de
vergonhas, feixes de
misérias, sem uma rebelião, um
mostrar de dentes, a energia dum
coice, pois que nem já com as
orelhas é capaz de sacudir as
moscas;
Um povo em catalepsia
ambulante, não se lembrando
nem donde vem, nem onde
está, nem para onde vai; um
povo, enfim, que eu
adoro, porque sofre e é bom, e
guarda ainda na noite da sua
inconsciência como que um
lampejo misterioso da alma
nacional, reflexo de astro em
silêncio escuro de lagoa morta.
4. “Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, proprietário,
doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que
está cheia de negativas. (…)
Donde vimos? Para onde vamos? – Podemos apenas responder:
- Vimos donde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.”
As Farpas – Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão
5. A um Poeta
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São
canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
(Antero de Quental)
6. “No seu pavor, eles largam as armas, que
caem todas no solo; tal era a força que tinha
a voz da deusa! Os inimigos de Ulisses
voltam as costas, fogem para a cidade, já não
tendo senão um desejo, o de fugir.
Entretanto, o nobre Ulisses, modelo de
resistência, toma impulso com um um grito
terrível, lança-se como a águia de voo
altaneiro.” Odisseia - Homero
7. “O seu nome é Revolução: revolução não quer
dizer guerra, mas sim paz: não quer dizer
licença, mas sim ordem, ordem verdadeira pela
verdadeira liberdade. Longe de apelar para a
insurreição, pretende preveni-la, torná-la
impossível: só os seus inimigos, desesperando-
a, a podem obrigar a lançar mãos das armas. Em
si, é um verbo de paz, porque é o verbo humano
por excelência.”
Antero de Quental
8. “Fugiu do cemitério aos companheiros:
Anda agora purgando seus pecados
Glosando aos cagaçais pelos outeiros.” -
Bocage
9. Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
10. “Mas eu que já esperava altas
mudanças,
Melhor tempo aguardei; e na algibeira
Meti a petição e as esperanças.”
Nicolau Tolentino
11. “Aprende a nadar, companheiro
aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
Maré alta
Maré alta
Maré alta”
Sérgio Godinho
12. Canta camarada canta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta
Eu hei-de morrer de um tiro
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta
Tenho sina de morrer
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha
Viva a malta e trema a terra
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
(Fernando Lopes Graça)
13. Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre
14. "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados
sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos
acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir
comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma.
Quem não quiser sair, fica aqui!“
15. “É estranho na Europa qu a liberdade venha com
os militares. É a primeira vez. Mas deve dizer-se
que Portugal não era um país europeu. Nas
condições em que estava Portugal, o golpe de
Estado trouxe a liberdade.”
Corrado Incerti – Enviado especial de L’Europeo, a
26/04/1974
16. Eu vi Abril por fora e Abril por
dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem
chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que
perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão
verde)
Abril de Abril despido (Abril que
dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
Manuel Alegre
17. Se por vinte annos, nesta furna scura,
Deixei dormir a minha maldição,
- Hoje, velha e cançada de amargura,
Minh’alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de colera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte annos de silencio e de tortura,
Vinte annos de agonia e solidão…
Maldita sejas pelo Ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!
Olavo Bilac
18. “Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.”
Ary dos Santos
19. “Presto as minhas homenagens às Forças Armadas, que restituíram ao país a voz
e a alegria, num acto histórico que jamais poderemos esquecer. Compete agora
ao povo, aos trabalhadores, organizar a democracia.”
Mário Soares, 28/04/1947
20. “Este dia é um canteiro
com flores todo o ano
e veleiros lá ao largo
navegando a todo o pano.
E assim se lembra outro dia febril
que em tempos mudou a história
numa madrugada de Abril,
quando os meninos de hoje
ainda não tinham nascido
e a nossa liberdade
era um fruto prometido,
tantas vezes proibido,
que tinha o sabor secreto
da esperança e do afecto
e dos amigos todos juntos
debaixo do mesmo tecto.”
José Jorge Letria
21. "Terra Pátria serás nossa,
Mais este sol que te cobre,
Serás nossa,
Mãe pobre de gente pobre.
O vento da nossa fúria
Queime as searas roubadas;
E na noite dos ladrões
Haja frio, morte e espadas.
Terra Pátria serás nossa
Mais os vinhedos e os milhos,
Serás nossa,
Mãe que não esquece os filhos.
Com morte, espadas e frio,
Se a vida te não remir,
Faremos da nossa carne
As searas do porvir.
E se a loucura da sorte
assim nos quizer perder,
Abre os teus braços de morte
E deixa-nos aquecer.“
Carlos Oliveira
22. Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisa em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser reoubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
José Carlos Ary dos Santos
23. “D'ahi a mola occulta, a força ingenita,
A causa porque tu, no ardor da guerra,
Revolves sem cessar o céu, a terra,
A alma e o coração,
E fazes e desfazes, sem descanço,
Systemas, religiões, philosophias;
Depões a Deuses, reis e tiranias,
Em nome da Rasão!...”
Manuel de Arriaga
24. “A Águia procura
o vértice,
o instante,
onde o dia é
vertigem
e o sol se despenha.”
José Alberto Oliveira
25. "Homem, se homem queres ser
E não uma sombra triste,
Olha para tudo o que existe
Com olhos de bem ver.
Nada,
Nada receies saber.
Ao que não amas, resiste.
Mesmo vencido, persiste
E acabarás,
E acabarás por vencer.
Quere,
Quere e poderás poder.
Vai por onde decidiste.
A liberdade consiste
No que a razão
No que a razão
No que a razão te impuser.“
Armindo Rodrigues
26. “Fala o canhão. Estala o riso da metralha
Os clarins muito ao longe tocam a reunir.
O Deus da guerra ri nos campos de batalha
E tu, ó Pátria minha, ergues-te a sorrir!
Vestes alva cota bordada e rosicleres
Desfraldas a bandeira rubra dos combates,
Levas no heróico seio a alma das mulheres
E ergue-se contigo a alma de teus vates!
Levanta-se do túmulo a voz dos
teus heróis,
Cintila em tua fronte o brilho
desses sóis,
Até o próprio mar t’incita a
combater!
Nun’Álvares arranca a espada de
glória
E diz-te em voz serena: “Em busca
da vitória
Meu belo Portugal, combate até
morrer!”
Florbela Espanca
27. “Só há liberdade a sério quando houver
a paz o pão
habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo
produzir.”
Sérgio Godinho
28. “Os Cavaleiros tende em muita estima,
Pois com seu sangue intrépido e fervente
Estendem não sòmente a Lei de cima,
Mas inda vosso Império preminente.
Pois aqueles que a tão remoto clima
Vos vão servir, com passo diligente,
Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
E (o que é mais) os trabalhos excessivos.”
Os Lusíadas – Luis Vaz de Camões
29. Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um
crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.
Bernardo Soares – Livro do Desassossego
30. “Como sabe, é a festa popular, é a
Alegria, é o ambiente de
confraternização entre o Povo e as
Forças Armadas, como só se
presenciou, em 1910, depois da
proclamação da República.
É, pois, a saída de uma longa noite
e o começo de uma nova vida, com
todos os problemas daí
resultantes. Temos, agora, de
reconstruir urgentemente o País.”
Mário Soares, in Flama, 1974
31. Porque os outros se mascaram mas tu
não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos
caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se
vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos
abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
32. Ao lado do homem vou crescendo
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.
Alexandre O’Neill
33. “Venham mais cinco,
duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto,
se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta,
dá-lhe um apito e põe-no a andar
De espada à cinta,
já crê que é rei d’aquém e além-mar
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d’ embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda, havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d’ embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam, bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra, quem trepa
No coqueiro é o rei.”
34.
35. Uma gaivota voava, voava,
Asas de vento,
Coração de mar.
Como ela, somos livres,
Somos livres de voar.
Uma papoila crescia, crescia,
Grito vermelho
Num campo qualquer.
Como ela somos livres,
Somos livres de crescer.
Uma criança dizia, dizia
“quando for grande
Não vou combater”.
Como ela, somos livres,
Somos livres de dizer.
Somos um povo que cerra
fileiras,
Parte à conquista
Do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
Não voltaremos atrás.
36. “Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
Sophia de Mello Breyner Andresen
37. “MATILDE
Mas eles ainda não foram julgados! Que espécie
de Deus é o vosso que condena antes de ouvir?
Que gente sois, senhores, que Reino é este em
que tive a triste sorte de nascer?
Sr. Marechal: quanto vale, para vós, a vida dum
homem?
BERESFORD
De que homem, minha senhora?
De qualquer homem.
MATILDE
BERESFORD
Depende do seu peso, da sua influência, das
vantagens ou dos inconvenientes que, para
mim, resultem da sua morte.
E nada mais?
MATILDE
BERESFORD
Não há mais nada a considerar, minha senhora.”
Luís de Stau Monteiro, Felizmente Há Luar!
38.
39. “Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que
semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que
resiste
há sempre alguém que diz
não.”
Manuel Alegre
40. “A terra é feita de céu
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.”
Fernando Pessoa
41.
42.
43.
44. “Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se
agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.”
António Gedeão
45.
46. E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis
purgar
ao ponto de não serdes o que deveis
ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de
linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.
Jorge de Sena