2. De Castelo 8 Figueiredo,
uma visão histórica da "aberturaH
Sebastião C. l/elasco e Cruz
Hoje - maio de 1984 - as notícias sobre as mobilizações
populares em favor da realização de eleições diretas, e a incerteza
que circunda a fórmula institucional que presidirá a sucessão do
general Figueiredo, avivam o interesse que desperta o processo de
abertura políticano Brasil. e projetam uma nova luz sobre esse
fenômeno. Na verdade, extinguido o· Ato Institucional n° 5 -
instrumento jurídico que mantinha um estado de exceção perma-
nente -, obtida a anistia que possibilitou a plena reintegração à
vida política dos indivíduos de quem foram tirados os direitos
cívicos, os proscritos. os exilados. os milhares de brasileiros
afetados em distintas formas pela repressão, e finalmente realiza-
das as eleições para os governos estaduais, que deram aos partidos
de oposição, acesso ao Poder Executivo nas unidades mais impor-
tantes da federação, o Brasil parecia transitar com êxito, de um
governo militar para alguma forma aceitável de democracia politi-
ca. Entretanto, pelo fato de ser um processo de transformação
gradual, proposto e conduzido pela elite militar do regime) uma
abertura de acordo com" as condições brasileiras excluía, pouco
menos que 'por definição! Uma idéia de alternância. Hoje, em pleno
debate sucessório, esta é a premissa básica que se coloca sobre a
mesa.
A abertura é um fenômeno do fim da década passada e
começo da atual. Ao mesmo tempo, inscreve-se em urna história
mais longa, como desdobramento do projeto de liberalizaçâo, sem
dúvida limitado, concebido nos momentos de maior rigidez do
regime e posto em prática durante o governo de Geisel. O presente
artigo é dedicado ao estudo desta etapa prévia.
Nos primeiros anos da." 970-80, sob a presidência do
general Ernilio Garrastazú/ Médici., o autoritarisrno parecia ter
vencido. no Brasil, os de"sàfi.º.~_mffÍssérios e garantido por longo
tempo sua estabilidade. Instalado em. outubro de 1969. como
solução intermediãria para a crise militar mais grave pela qual o
37
3. diminuído pelos sucessivos expurgas c quase aplastado petas, H-;;S',
. ~.. t I bl .
rrições que impunham a CenSLH'ê e COuQ Q peso ca maquina PUl,-iJC1-
tári~ do governe. 0 Movimento Democrático Brasileiro (ivlDn)~
sobreviveu às propostas de aurodissolução que brotavam inrermi-
tenternenre em seu próprio meio e. sob impulsos de seus setores
mais avançados. pouco a pouco foi definindo uma fisionornia
própri 11 e ganhando alguma credibilidade y
"Reitero que todo brasileiro tem direito a Iazer oposição 40
governe, considero indispensável, para o bom funcionarnento do
regime. a existência de opositores. Por isto mesmo não serei hostil
com os que de mim discordem. Em meu governo não haverá
coação por motivos puramente POHtiCO!L'! Assini falou I~1tdic1 ao
',:Hrigir sua mensagem à Nação, em princípios de, 197Ct Antes havia
!li. ~ ..•• ~ • "I !
oito, ao assumir suas runçoes COmO pre sícerue. que- prorneua
deixar, ao término de seu mandato, "definitivamente instaurada a
democracia ern nosso país. q Sabemos que estas palavras perde-
- • -{ ,~. C·rarn-se no ar mas nao por lSSO cevemos menospreza-tas. orn
ef eito 1 eh3s agregam-s e como uma evidência a mais da tensão
interna que perrncia lodo o período e expressa-se na seguinte
di sjunrivs: bu scar uma ,. normalídade politica' i mediante uma or,.
dern constitucional fraturada em 1968, ou efetuar uma tentativa de
fundar, sobre princípios que não fossem 05 d~1,legitimidade liberal.
à arquitetura de um Estado novo.
Mantido O> marco de indefíniçâo para muitos uma coisa
" .~ -. • I d . . , l' I
pareceu certa: a srtuaçao vigente. em que a . orcem mstuuctonat
- ..•• ~ Á - ' >I 11* ,. :t , •..
superpoe-se a .Ofvem constitucrona . num conVIVW precano (~
embaraçoso, constituía urna situaçâc menos que satisfatória. Por
um lado: contaminava o proc-esso político com um grau pouco
tranqúiliz ador de imprevisiollldade: por outro, deixava pendente
uma série de problemas, dentre eles, o da succssáo era o mais
angusuante , corno o indicava claramente a lembrança dos aconte-
cimentos de agosto =--outubro de 1969i uma crisedeflagrada pcla
enfermidade ç impedimento de Costa (~;Silva. Assim. nào é de
estranhar o fato de que logo &e fizeram sentir I nos meios do
governo, vozes que advertiam sobre a necessidade de dar-s e um
~ratamento adequado :à questão político-mstitucional. Nesse scuri-
do manlfe$~ara.m-se 1 ao longo dos anos de 197 r e 1972. Milton
Campos i Herb ert Levy ~Petrônic PoneHa, fagaJhàcs Pinto I entre
;)ULrO$que, em alguma medida, fiZNam coro com os parlameruare s
.10 }"IDP q'll'" nào CA cansavam d.'"" insistir ""'-'t' me srn a t,..,.I.,~. : •.)., .'"", ...t.c~"'. ,:2'I~ :-,f'-' ""..,J~. r~~II. ""-' ,t •• lu. ,.:}'~'l. ~.'f"" ~~.!,,-:--.,... l_l...->lc..".
4. 'J"" . , , . ibui - d ~ 1 .)ç tato, junto com () terna (ia u.str: U!ÇiiO' a renca. c ~ld()
'.~,'-',P I"','m e l'r o P lan f) d :0> ate 1'("':';"" ~..•,'" j ~J' (~,'." tu''I () 'i C ?1'-) do" '",-;;.e i' I't ad l-H: d("" •.-.-" . -' •. .~ .it'.· 0.+- a~ ,_ ·~:f""·.->:) l:oL-l •. u e."l."";· •.. '.: f:J J '*:"~'w-:,;~ :_,' ,
, I r.1••.•'] - < , '1 .-, . ,censo ce i~';/~, , ::. que siao U [,1 • 11H) <1C O po IH I co apresent,a- se como
un: dos pontes pcrrnanenres do remário do debate político (..~Ué
ocorre no per iodo de .Mt:dici, Ativado pelos estímulos que recebe
do~ setores "Ji:t:~ef'~~LS" dei vida nacional: da 19reja. da grande
, j , di .,. j intelectual d b. "'. r, "~. . '' .1 ~ ..••• ~... ,. . '-"t'" • :"". ~'"'... .•.. ..,.. . f t. .~ - f •
JLI1pre.l.S•.1, uc .rucrc.ano .....,~,....rruc Cl,.:llla.S-. e sse . -e .d;C .requer .-1.
atenção. (hl';' políticos e termina P';)T alcançar os círculos milhares:
emi971, ao assumir o comando da Escola Superior de Guerra. o
general Rodrizo Octávio Jordào Ramos cronuncia-se em favor da- .
.,' - , ., , ]' b - 1 " id••.., . . . , . .....,. .~..•..•I' ...••••.. ~ •..., ~ ~ .~. ~",' r ~.';.- .. r '.: ~ ".l ."" ,~. ~: . - ,
norma izaçao inst ..tucion ..• te 5..1" L1CL esse pl o oierna u ccnsu era"
"'::; d '.,', 1·' P '. ..'.... . ,.• '. de 1o"'""'t ."~, . _.. des)-c.ü 3. ~s."o,a .. orem, sn d parur cue .... ·L~ dO ••.ornpas so ' as
deliberações prévias B sucessão de Médici e às especulaçócs por
elas suscitadas, ganha maior intensidade de discussão em torne das
medidas necessárias para a plena conf igur açào do "rnodeio poliri-
co: que passa ;ã ser assumido pouco menos que ostensivamente
pela cúpula do aparelho governamental.
/ essa época pertence o comentário que transcrevemos .3
seguir, pelo que tem 'de ilustrativo sobre aquela atmosfera: "No
seio do governo continua em estudo o terna da dcscompressão,
ainda que sem perspectiva de ser aplicado de imediato, Recente-
mente. um trnbalho do professor Mancel Ferreirare x-secretário do
Ministério da Jusnça, tentou penetrar no segredo da esfinge:
deveria ""-'1< ser rcvoeado ·...radusl 011 totalrnente't r TI'ldo leva•...' ~c: l H ••..J., ....; ,1 ••.. ( 'J:!If~. .'" ~ . l«. . Q .' . ".' a ."." ••.••., "•"' ,.f .l. ~., .. ' ". L4
a crer que persiste no governo uma orientação antigraduaiista e
que prevalece o pensamento de que quando O AI5 for objeto de
revisão. esta adorará a forma de urna decisão que abolirá todo seu
texto. e nâo apenas uma de suas panes, O bornentendedor poderá
dedurir que o A.IS permanecerá em ~'Jgor até 1974, no mínimo" (o
grifo é nosso}. Com a perspectiva remoera) que ti história dá, o
que nessa análise súbress~il não é tatuo a exaudào do exame,
como o eis simulado otimismo de seu prognóstico: "Até 19":4
conviveremos com o Ato", E essa não era uma opinião .solaca:
urna pesquisa realizada nessa oportunidade- comprova nitidamente
8 expectativa generalizada de que as mudanças liberalizantes ,:j-
riam com o novo governe,' sendo maior o otimismo entre os
.~_.....".,--
;J "T" d'1 j," , ..,. I.!''; '1i I";'.'.'; , ' R~"> "r t~ ..,.; L' : ••• 'J;' I "~i~ '1•.~ "- ,~._,.-~;.-.1~ '. •.•... . . l., . ~";'.,., I...~ r .;:)~f ••.•• ,,- 1. _ ~:. ~.' .". : ~
~,'·~,·.dcrlr'l'C JLõ~ r~""'''l:. e T';;'"J.Í,,,s.l "r; r-. l'·/'·"l"'.'" ,{", ç,)" .•.." ", h"'-'·'r' Poliu..a:, ". •••• , w • ..' ••• I I;',. ' ';. - . ~ > ' • " " > t j .~. ~.I 10.10 L........ 1_.1-1....$ • ~ ••• .: '- w ' • ." l _I) t .••.;: •
...;].lC(qM';('t~', ~ cs: iIT~:~~,'. J. s ' Rj,.:, d,,~Jnnc.r c. ]1 TU< J ' ; Çl'-;" ':-..)t::J·~ de pé de p3g:na:
5. jornalistas, que. nisto dif'ere nc.íavam-se da ótica, um pouco mais
sombria, sustentada pelos "poEticólogos" e/ou sociólogos.
3m junho de 1973, Médid anuncia o nome do general Erne s-
to Geiscl como futuro presidente do país, pondo fim, oficialmente,
ao processo sucessório assim encerrado, ao que parece o menos
rraurnáricc dos quatro acontecidos no regime até este momento,
Nesta condiçàc, mas já designado, na fantasia, do caráter de
candidato da Aliança Renovadora Nacinal (AREN A), Geisel rnan-
tem-se em silêncio, deixando livre o espaço para que se especulas-
se à vontade sobre os rumos que irnprirnir ia a seu governo. Dois
temas apresentavam-se naquele momento, como objetos de per-
manente preocupação nos comentários: a continuidade da política
econômica e as perspectivas de mudanças institucicnais. Somente
a partir de janeiro, depois de aprovada sua designação pelo Con-
gresso, Geisel dá a conhecer os nomes dos principais integrantes
de sua equipe e inicia contatos com figuras representativas da vida
nacional. exteriorizando suas intenções c procurando estabelecer
uma base de apoio para seu governo.
Durante dois meses, informações sobre o conteúdo dessas
gestões fiitrararn-se e, apesar de parcas, o resultado do exaustivo
exame, às vezes bizantino, a que eram submetidas na impresa e na
intimidade dos círculos dirigentes, parecia alentador: até que enfim
havia chegado o momento da distensâo. As sim, quando Geísel, ao
pronunciar um longo discurso prograrnático na inauguração de sua ";
primeira reunião de gabinete. refere-se à problemática do regime c !
apela à "imaginação política criadora" para que fossem superados;'
09 instrumentos legais de exceção vigentes, suas palavras soam/
como a comprovação esperada de um juizo untes formulado. /
Esse discurso, de 19 de março de 1974. é surnarnerue signifi-
cativo, pois em um só parágrafo sintetiza os elementos centrais do
dispositivo estratégico que caracterizará toda a atuação do gover-
no Geisei no terreno político. Com deito, ali está afirmada clara-
mente a norma de máxima prudência, o gradualismo que distingue
seu projeto: inclina-se a ver os instrumentos legais de exceção
"não tanto em exercício permanente, ou freqüente, mas sim como
potencial de ação repressiva ou de contenção mais enérgica)'. Ao
contrário do que se chegou a imaginar t o A.15 e rodo o elenco de
legislação de exceção que o acompanhou. não serão pura e sim-
plesrnente suprimidos. Perderiam sua vigência na prática, cairiam
'pouco a pouco em desuso, mas continuariam presentes como
42
6. reserva de poder ilimitado que poderia ser ativado, sem que-disso
derivassem traumas maiores, sempre q~.leas circunstâncias o acon-
selhassern. A diferenca com a tentativa de Castelo de assegurar a
normalidade política mediante o estabelecimento de uma nova
Constituição, não poderia ser mais patente. Com Geisel, as regras
formais, as disposições escritas, perdem muito de seu prestígio;
durante sua gestão. todo o privilégio é concedido às normas
efetivamente operativas no movimento político dos atores, que
devem aprender a movimentar-se num campo onde prevalece ú
tácito, o subentendido, o implícito em cada mensagem. De Outro
lado, contrariamente ao que se fez no passado, agora não se
estipulam metas, não se estabelece qualquer compromisso. Geísel
nada promete: a normalidade instítucional é uma aspiração do
governo, que espera vê-Ia realizada no futuro. Isso é tudo. Não se
definem prazos.
Definidos sim ficam os limites da situação desejada: os
intrumentos legais de exceção subsistem como recursos virtuais
"até que sejam superados pela imaginação política criadora, capaz
de instituir, quando oportuno for, salvaguardas positivas dentro do
contexto instirucíonal": Dito de outro modo. portanto, não se trata
exatamente de abolir esses instrumentos. Chegada a. oportunidade.
deverào trocar de forma. cedendo seu lugar, no próprio texto da
Constituição, ~ mecanismos capazes de cumprir. com igualou
maior eficácia, funções idênticas. Não se pensa num retorno ao
estado anterior das coisas, não são dados sinais de que exista
perspectiva de uma anistia, ou eleições diretas, ou alternância no
poder, ou qualquer outro fato que tenha como meta a democracia'j
A normalização pretendida é de "ordem revolucionária". Mais j
que um programa de transição, o que se vislumbra nas palavras de I
Geisel, é um projeto de instirucionalização do regime autorlrárío. !
que prevê disposições liberalizantes , mas só à medida que sirvam
para esse propósito. )
Mudança de forma. Eis a intenção declarada. Porém não é
incondicional: o aperfeiçoamento "não depende apenas da venta-
de do Poder Executivo Federal, mas sim exige, em grande medida,
uma colaboração mais sincera e efetiva por parte dos demais
poderes da Nação" (... ) ··c dependerá necessariamente de que o
espírito de oposição de minorias que mal se movem ou estio(1
desencaminhadas (... ) acabe por esgotar-se frente ao repúdio ge-
ral ". A liberalização não é apresentada como uma iniciativa unila ..'t
reral do poder; ao contrário, é proposta como uma ação transitiva;'
I
43
--
7. que implica e deve comprometer, necessariamente, os demais
poderes do Estado e as principais forças do campo oposítor, e cujo
êxito, e também cuia própria continuidade, dependem da derrota
definitiva "do espírito de oposição de minorias que mal se movem
ou andam desencaminhadas.", quer dizer. que sejam isolados
aqueles que insistem em questionar as autoridades constituídas.
Se acrescentamos a referência aos "revolucionários since-
ros, porém radicais" - deixada. para depois =» temos assim todos
os elementos da chamada estratégia de dístensão: uma proposta da
líberalização gradual e limitada. cujo tempo e direção o próprio
governo encarregar ..se-Ia de fixar.
Excluindo aqueles que se recusaram a admitir a novidade
desta postura e se encontraram, posteriormente, surpreendidos
pela marcha dos acontecimentos, a partir de então discutiu-se
muito sobre a razão de ser deste passo: a decisão de tornar mais
aberto, em alguma medida, O regime. Não devia perder-se de vista,
entretanto, o contexto mais geral em que esta decisão era tomada.
Na verdade, segundo tudo indicava, não podia ser mais favorável.
O front interno do regime saía de uma sucessão que não havia
provocado debates I e a polarização de tendências dentro das
Forças Armadas. que em períodos anteriores havia conduzido a
crises agudas e ameaçadoras, aparentemente havia retrocedido,
vencída pela afirmação dos princípios ínstitucionais de hierarquia e
autoridade (por paradoxal que possa parecer, o momento em que a
mílítarização do Estado chega ao seu ponto culminante, é o mesmo
em que maior esforço se faz para despolítizar o Exército).
No que conceme à oposição oficial - o MDB -.., havia
sofrido nas últimas eleições parlamentares uma derrota tão grave
que muitos chegaram a duvidar de sua capacidade para sobreviver
ao rigoroso cerco criado pelo regime (ocasião na qual circula, mais
uma vez no partido, a tese da autodissolução). Por outro lado, essa
oposição passará por uma visível mudança em seu discurso e estilo
de ação: se antes de 1968rebelava-se contra o regime, fazia pouco
de suas proibições, intensificava o radicalismo de sua propría
linguagem, nos anos de Médici destaca-se por sua moderação, por
uma sensibilidade depurada para a percepção do estado de ânimo .
mutante dos militares, pela procura de caminhos a percorrer nas ..
brechas que apresentam as estruturas e práticas do próprio síste- .
ma. DepQj.?_d.e_anular-o.-atO-,feflexo-AA rejeição, o _a~~o.rittlr.tsmo ;
3cab.~~"pºr,Jnoldar_uma._~-P-Q~içãºà s~~prQPIt~1.inagem..Cau teloso
ern matéria de riscos, projetando para um futuro distante os
44
8. objetivos mais ambiciosos. limitando-se à defesa dos direitos
humanos. à reivindicação de liberdades formais e à normalização
institucional, o 1vfDB chega a ganhar alguns pontos, 'mas nem de
longe pede ser visto como uma ameaça à estabilidade da ordem
política estabelecida.
E quanto à oposição não institucíohal, naquele momento as
organizações de esquerda que haviam optado pela luta armada já
haviam sido venci das ou estavam desarticuladas em sua quase
totalidade; seus militantes - os que conseguiram sobreviver -
vegetavam nos cárceres do regime, ou no exílio, ou expiavam no
pais a triste condição de exilados internos. A esquerda tradicional
- o Partido Comunista Brasileiro (PCB) -, após algumas perdas
importantes, estava sob controle e tampouco representava um
risco mais sério,
Entretanto; o elemento fundamental deste contexto era a
ausência, no cenário político, dos setores populares. Em dez anos,
o capitalismo expandiu-se no Brasil em ritmo acelerado, e o fez
cortando a fundo o tecido social, de forma "selvagem": O caráter
brutal das transformações vividas nesse período foi solidamente
estabelecido por uma considerável quantidade de estudos e análí-
ses. É muito provável que no lapso dos últimos cinco anos -
1969fl974 -- hajam multiplicado, no campo e na cidade. os conflí-
tos de caráter social, e que apenas o rigor da censura da imprensa
pôde impedir que seu conhecimento tivesse ampla difusão. No
entanto, a eventual ocorrência de tais lutas não era suficiente para
alterar aquele quadro: indefesos frente à repressão policial e
militar, impedidos de expressar-se, os movimentos moleculares
que então ocorreram terminaram por encontrar-se fechados em si :
mesmos e. qualquer que tenha sido sua sorte, boa ou ruim, foram .
incapazes de propagar ..se e, muito menos. de articular-se.
Existia sim, como foco de tensão, a Igreja, assim como
outras instituições da chamada sociedade civil - a OAB l princi-
palmente ~, e nos primeiros meses de 1974 efetuaram-se esforços
para neutralizá-ia. Por outro lado, no plano econômico, as dííícul- .
dades esboçadas no ano anterior começaram a intensificar-se,
porém sua natureza e significado foram sistematicamente rninirni-
zados (somente em fins de 1915 foi reconhecida a gravidade da
situação e tentou-se a adoção de medidas mais apropriadas para
corrigi-Ia) .
Por que a decisão de liberalizar? Em vista dos termos do
debate político dos anos de Médici e em vista das condições que
9. acabamos de assinalar, caberia perguntar ao contrário: por que não
liberalizar?
Atribuiu-se ao general Golbery do Couro e Silva ~ afirmação
de. que a distensão chegou um pouco tarde, que o momento ideal
para iniciá-Ia houvesse sido os dois anos mais proeminentes do
período de Médici, Tendo ernvista as complexidades de sua trama:
sempre' é ingrato, em história, pensar em termos de se... O certo foi
que, nas condições que prevaleciam em meados da década passa-
da, logo a estratégia de distensão aplicada pelo governo de Geisel
começou a tropeçar em obstáculos imprevistos e resistências cru-
zadas que, por fim, acabariam por redefinír seu conceito, amplian-
do substancialmente o alcance das modificações programadas.
Antes de mais nada, cabe mencionar o impacto ensurdecedor
dos resultados eleitorais de novembro de 1974. Conjugando uma
repressão desenfreada e doses maciças de propaganda, o regime
conseguiu sufocar qualquer manifestação de descontentamento e
impor a imagem oficial de um país harmonioso, que avançava a
largos passos pelo caminho da prosperidade. Ao fazê-Io. entretan-
to, foLvít~~ª ...9.e seu próprio êxito. Ao não receber da sociedade
. respg~t~l~~issoiiãnte·s-·qUe··õbrigaranf a modificar as coisas, o
regime deHClou~se'na"ver'são"meritIrosa' cp'e'difuIÍClla'e acabou por
ê.~redi'iar=,J):ela.-"Ninguém, nem sequer os .emedcblstas , tem por
que alimentar receios exagerados: a ARENA vencerá 8S eleições
parlamentares de 15 de novembro por urna tranqüila margem de
votos" ,3 Esta convicção. enfática, com a qual começa um texto a
respeito da campanha eleitoral, publicado por um periódico de
ampla circulação, estabelece o postulado básico sobre o qual
repousava o cálculo de governo,
Seguro da vitória, Geísel apostou fortemente nessas eleições,
que deveriam desempenhar um papel crucíal na realização efetiva
de seu projeto: confirmado nas urnas o apoio popular à .;·obra da
Revolução", o ano seguinte seria dedicado à tarefa de institucíona-
lízar O regime I quer dizer. fazer as esperadas reformas. Porém.
para que assim ocorresse, estas eleições não podiam ser como as
outras (as de 1970 e' 1972), socavadas em sua legitimidade pela
onipotência da censura e pela violência das medidas de intírnação
adotadas com o fim de assegurar os resultados, antecipadamente.
Era necessário que a oposição se comprometesse sem retlcências
_._--
lI' "Eleições: a Oposição na hora de f~a.r", Revista Veia. 16.10,i4
10. na disputa e, em vista das garantias oferecidas, aceitasse de bom
grado as evidências de SUé! futura. derrota. "Os dirigentes da
AHENA dispõem-se a estabelecer contato com c coroando do
IvlDB 'Para discutir a marca da campanha eleitoral, por entender
que, para o processe de transformação do regime, a campanha será
muito mais importante que 0$ resultados eleitorais. ,o raciocínio é
sirnoles: a ARENA será como nos comícios anteriores, a vencedo-~ .
te. Mesmo que perdesse duas. ou três posições no Senado e outras
dez na Câmara dos Deputados (o que constítuiria uma surpresa),
tal fato não modificaria seu domínio formal, nem a impotência
formal e.real da oposição. Daí a tese de que a campanha terá valor
por si mesma, favorecendo a consclíãação das condições necessá-
rias para o desenvolvimento do processo de reconciliação do
regime com as normas democráticas."?
Entrezanto..o esforço de persuasão naõ podia restringir-se a
círculos oposítores: também era preciso conquistar o votante, esse
votante que nas eleições anteriores S,,! havia mantido à distãncla
das montagens cuidadosamente preparadas e que havia sancionado
seu protesto impotente ou o realismo de seu desinteresse mediante'
o voto nulo ou em branco.
• o Por ambas razões, os controles exercidos sobre os meios de
comunicação social relaxaram, a propaganda eleitoral por rádio e :i
TV ganhou em conteúdo e vivacidade, e viu-se agora reforçada !
pela publicidade oficial, que incentivou permanentemente o povo a !
participar da votação. "Em filmes de propaganda intensamente
divulgados pela T'VI o governo reafirmou ao povo, nos últimos
meses, que todos somos responsáveis pela solução dos problemas
da educação. saúde. transporte, trânsito, abastecimento: de todos
0$ problemas, em suma, que afetam dia apqs dia a 'lida brasileira e
o futuro do país. O objetivo dessas propagandas - explícito na
mensagem final - era a valorização cio voto como instrume nto de
particípaçãonas .decísões.q it-~~ye_rn:omºJ.q4.~::~9?~~}E.~ürõ-C.... ) A
mensagem é clara - clara e inequívoca -:- e não faz mais do que
repetir e cnfatizar a convocatória lançada já tantas vezes pelas
principais autoridades nos últimos meses: convocatóría à inteligên-
cia e à vontade de todos os homens socialmente idôneos, para que
,.:."Um acorde para o bem dl! nação.", Revista Visão, 5.8,l97~
47
----
-
11. se empenhem na construção de um país mais forte (..... ) etc ..
etc. 1'5
Em princípio de novembro, a ínquietude dos círculos oficiais
contrasta com o crescente otimismo dos quadros opositores. No
entanto, uns e outros são tomados de surpresa quando os jornais
passam a gritar nas primeiras páginas, com manchetes em grandes
letras r; textos em negríto , os resultados preliminares da contenda.
Sujeitos a confirmação, davam a vitória 80 MDB~ nas eleições
majoritárias, nos 16 Estados. No cômputo geral. a oposição obti-
nha 16 dos 22 senadores e 160 dos 364 deputados. o que significava
um aumento substancial de sua representação no Congresso, onde
até então contava com apenas 7 dos 66 senadores e 87 dos 3J O
deputados.'
Vencido o clima de perplexidade que estes resultados gera ..
ram, foi substituído pela preocupação. E agora? O que vai ocorrer?
Assimilaria o regime uma derrota tão contundente? Em início de
dezembro, e a julgar pela versão de "fontes bem informadas" I a
resposta era positiva: para os "dirigentes mais responsáveis" da
ARENA. assim como para o governo, a clara vitória do MDB
refletia "uma manifestação popular dos desejos nacionais, qúe
favorece a colaboração não apenas para evitar que à crise financei-
ra se superponha uma crise política, mas sim para que arnbas as
crises fossem resolvidas pacificamente". 01 A cúpula moderada
do MDB coincidiu em atribuir este mesmo significado aos resulta-
dos: •~A oposição rejeita o negativismo e proclama-se confiante e
com disposição construtiva. Assim o afirma seu líder no Senado,
Amaral Peixoto. É visível o desejo de entendimento. A perplexida-
de cede lugar à confiança. sobretudo pela comprovação de que a
vitória do MDB foi produzida em acentuada convergência com o
governo". ~Até o final do ano, todos pareciam dispostos a encarní-
nhar-se a uma saída onde prevaleceriam o compromisso e a colabo-
ração.
Dois meses depois. em início de fevereiro, a atmosfera já é
diferente. Debilitada pela divulgação em grande escala dos infor-
"I "Campanha política: o rnelbor resultado de 1974". Revista Vi5&0 i.S. 11.197~
:(! "Eleições: uma ciranda de boa vontade.", Revista Veja. 30.10.1974
'" "0 Brasil depois das eleições", Revista Visão, 2.12.197-4
,r. Idem
48
~==~~------~~~~~~--------------
12. mes oficiais sobre o desrnanrelamenro de uma vasta rede do
Partido Comunista Brasileiro! c da existência de elementos proba-
tórios de um compromisso entre muitos dos candidatos recém-
eleitos do ~tDB com a tal organização! a oposição parlamentar
vive rnomem os de aguda rensão. acossada pelos rumores de uma
iminente anulação dos direitos políticos. Durante algumas semanas
2 ansiedade persiste, apesar de diminuir à medida que o governo
emite sinais tranqíiilízadores. Em março, Geisel põe ponto final
aos últimos temeres, ao comemorar a excelência do desempenho
eleitoral do MDB e anunciar a reabertura rias sessões parlamenta-
res, em um discurso que, provavelmente, tenha sido o mais liberal
dos seus como presidente. ~.
Entretanto, os problemas continuavam. A Constituição vi-
gente previa a realização de eleições diretas para governadores em
1978; face à segura vitória da oposição nos principais Estados!
corno se realizariam os comícios? Seria continuado o projeto de
distensão? Com mais de um terço da bancada da Câmara de
Deputados. o MDB dispunha do poder de veto na votação de
assuntos constitucionais. Estaria o governo disposto 'a abandonar
em maior medida seu papel de "árbítro exclusivo da oportunidade
de. cada avanço na evolução do regime li (palavras de Geisel) e a
negociar o conteúdo e o ritmo do processo, quando esta oposição,
fone na arena parlamentária. possuía bases tão frágeis nas rela-
çõcs de poder que predominavam no conjunto da sociedade;
O segundo impacto que o governo Geisel sofreu no encarni-
nharnento de seu projeto político foi causado pela articulada
reação da extrema direita militar. em dos aspectos centrai s da
estratégia de distensâo, assinalado insistentemente nessa época
pelos analistas políticos do momento, era o reforço da autoridade
central da presidência da República e o conseguinte enquadrame n-
to dos organismos de repressão política. que , no período anterior
haviam conquistado um grau de autonomia incompatível com os
anunciados propósitos de normalização institucional, J2 no!' úui-
mas meses de Médicí, quando tornou-se patente a intenção de
efetuar mudanças neste sentido, estes organismos mobilizaram-se
em. defesa de suas prerrogativas e modificaram de maneira signifi-
. '1' , . D' M. d .9--'"cativa o estuo ce suas praticas. esta época ,- rins .e ~ ,.:> -
d desaoareci _." .. 'atam os esaperecimcntos, as se ssoes de mrcrrogator:o em .oca.s
"sigilosos c, por fim, toda lima série de ações paralelas sonega
das aos registros c da memória da burocracia policial-militar.
Iniciadas em fins de 1973, estas acôes intcnslf icaram-se ao iongo. ~
.:1')
-
13. Ie 1974 c foram relativamente suspensas só em fins do ano
.eguinte. Por seu efeito foram dizimados dezenas de militantes e
nernbros de quadros dirigentes da oposição clandestina, que desa-
iareceram, subitamente, sem deixar rastro.'
Desde os primeiros momentos. portanto, a extrema direita
nilitar enfrentou o governo Gcisel, apresentando ..lhe a I 'crise dos
Iesaparecidos ' It e o desgastou gravemente tendo em vista a inca-
racidade deste governo de solucioná-la, Durante todo o ano de
1974 foram assumidos compromissos de solucionar casos de desa-
aaríções. e nenhum deles foi levado até suas últimas conseqüen-
cias.
A raiz da vitória do ~1DB nas eleições de 15de novembro. as
.ensões provocadas pela "linha dura! ~intensificam-se. Agora tra-
.a-se apenas de ação repressiva autônoma. O tom dos pronuncia-
nentos, das ordens de serviço, dos comunicados torna-se mais
sgressivo e as ameaças apenas dissimulam-se. Com o apoio de
comandos - principalmente em São Paulo, área do Segundo
Exército -, a repressão, voltada agora contra o PCB. prossegue
sua mórbida batida, desconhecendo limites ou normas. Os prisio-
neiros multiplicam-se. Novos nomes são acrescidos às listas de
desaparecidos.
Em 25 de outubro de 1975 morre, por conseqüência das
torturas sofridas no Centro de Operações de Defesa Interior
(CODl)~ em São Paulo, o jornalista Vladirnir Herzog. Por várias
razões, esta morte comove a opinião pública de forma especial: a
vítima não era um militante clandestino, mas sim um cidadão de
vida comum, profissional de prestígio, que havia comparecido
voluntariamente à intirnaçâo do organismo policial; morte este que
Ocorreu no cárcere, sob custódia da autoridade cointerveniente,
responsável pela segurança física da vítima. A versão de suicídio
apresentada pelo CODI era manifestamente falsa. Por estas e
outras razões, a morte do jornalista dramatizou em grau extremo c
clima de arbitrariedade e a insegurança reinante para todos. Um8.
semana depois, com participação do cardeal de São Paulo, rnonse-
nhor Paulo Evaristo Arns, foi oficiado um serviço religioso em
memória de Herzcg. Pela primeira vez em muitos anos assistia-se
no Brasil a uma manifestação pública deste caráter .
•'1, Sobre essa nova "rnetcdolcgia' c os resultados alcançados através dela. ver
Bcrrrardo Kucinskí: Abertura, 11 hlstérta de uma cr íse , São Paulo, Editora Brasf
Debates. Lida .. 1982. págs. 42 c se'guintes.
5()
14. Em 16 de janeiro de 1S'76.outro detento morreu sob tortura
no mesmo local. Foi o obreiro rnetalúrgico Mancel Fiel Filho.
Novamente foi dada como causa da morto! o suicídio. Desta vez.
entretanto, as conseqüências foram outras: em rápida ação, Geisel
destitui o comandante do II Exército e o substitui por um oficial de.
sua inteira confiança. Por algum tempo, o principal foco de opcsi-
çào dentro do Exército estava desarticulado.
A terceira fonte de pressão exercída sobre o governo de
Geisel em seus primeiros anos, consis riu na .campanha de antíesta-
tízação, Desencadeada pelo discurso pronunciado por Eugênio.
Gudín ao receber o título de Homem de Visão 1974, é impulsionada
durante os -anos seguintes pelos principais jornais e por revistas
financeiras mais importantes do país, mobilizando lideres e entida-
des empresariais que publicam seus temores acerca do avanço
desordenado da intervenção estatal na economia e formulam pro-
postas no sentido de que seja contida. Alguém qualifica esta
campanha de "rebelião empresarial". O fenômeno sacudiu o po-
der em suas bases sociais mais sólidas. Não vamos seguir esta
campanha em toda sua evolução. nem formularemos hipóteses
com a pretensão de explicá-Ia. Para os fins deste artigo basta dizer
que. ou localizada, ou dírlgida contra certas dimensões da inter-
venção estatal, e não obstante permanecendo quase sempre muda
quanto à natureza autoritária do regime, a oposição empresarial
.que se manifesta em dita campanha debilitava o poder por uma
razão básica: porque a mera manifestação pública de um ressenti-
mento que não podia ser pura e simplesmente reprimido - nem
sequer ignorado - chocava contra - e neste sentido refutava - a
afirmação por parte do Estado autoritário. de que este era o
promotor de um interesse nacional substancial, cujo segredo a
ninguém mais seria dado decifrar.
Estuário receptor das três linhas de tensão apontadas, 1977
foi um ano clave no processo de transformação do regime. Iniciado
em meio aenormes expectativas acerca. das reformas políticas que
deveriam preceder as eleições diretas para os governos dos Esta-
dos e preparar o caminho até estas, por realizarem ..se em nevem-
bro do ano seguinte, todo o mês de janeiro foi dominado pelas
notícias e especulações em torno da missão Portella, presidente do
Senado e encarregado de promover, Junto com os líderes cposito-
res, um compromisso sobre determinados pontos que o governo
considerava negociáveis. Essa conjuntura sofreu uma brusca infle-
xão no início do mês seguinte quando! em resposta a declarações
<: I
15. ) ministro da Indústria c Comércio. Severo Gomes, vários desta-
idos empresários reclamaram por intermédio da imprensa o reter-
J ao estado de direito c defenderam a volta dos militares aos
uartéis. :A. partir desse episódio, que culminou com a demissão do
.tado ministro, erni tiram-se numerosos sinais de que a ·int~!.l-s.ão.de
uscar uma saída negociada para o estancamento polfficõ, se
lgurn dia havia de produzir-se; por enquanto seria abandonada.
Io dia 3 de Ievereíro, o governo anula o mandato do vereador
orto-alegrense Glênio Perez; menos de duas semanas depois, no
ia 15~ é anulado o mandato de outro vereador porto-alegrense ,
.1arcos Klassman. No dia seguinte, o comandante do III Batalhão
le Infantaria, com base em Campinas I proíbe a realização de um
lebate com quatro bispos progressistas dessa cidade. No dia 18de
evereiro o presidente da ARcNA~ Francelino Pereira, difunde
ima nota oficial do Partido sobre a anulação do mandato de
Zlassma.rt, onde os políticos do 11DB são acusados de "agentes do
iomunismo ". A 22 de fevereiro: H A ARENA já não assegura que
is reformas políticas serão dernocratizantes. Para o governo, nada
.ern por que ser mudado. A reforma consistiria numa simples
acornodaçâo, destinadaa manter a imagem vigente." .,0 Em 4 de
março: "Durante o período pós-revolucionário, raro Ioi o momen-
to em que houvesse tanta confusão e desinforrnaçâo. Faltam
indicações sobre tudo, salvo a certeza de que o governo imporá
para o próximo ano, eleições indiretas para governadores."."
Menos de um mês depois confirmar-se-ia o acerto desta
afirmação. Tomando como pretexto a negativa do ~1DB de apro-
var, sem emendas, um projeto de reforma do Poder Judiciário,
matéria que exigia uma maioria de dois terços, em primeiro de ab~iI
Geísel decreta o recesso temporário do Congresso e. depois de
reunir-se nos dias seguintes com seus assessores mais próximos,
em 14 desse mês promulga um conjunto de disposições que modifi-
cam o regime políuco vige-nte, em várias de suas esferas. Compos-
to por :4 emendas de artigos, da Con stituiçáo de 1969 e de três
artigos novos, além de seis Decretos-lei, o "pacote de abril" -
COmo chegou a ser conhecido este novo ucasse - completava as
seguintes medidas principais: eleições indiretas para governado-
. ' -t ~, • -- • # •
.. n.r~nlst~s Ia remem reforma casuísuca '", O Estado de S. Paulo: 22,02. ~9n"
';""?o:ítícos nada sabcrn. dcsorientaçâo é total" O Estado de S. Paulc .
4.3.1977" )
16. res, com ampliação cio Colégio Eleitoral; eleição de um terço do
Senado por via indireta e instituição de sublegendas, em número de
três, na eleição direta dos restantes ~extensão às eleições estaduais
e federais, da legislação que restringia a propaganda eleitoral por
rádio e TV; modificação do quórurn necessário para a aprovação
de reformas constitucionais pelo Congresso: que de dois terços
passa a ser maioria simples; modificação do colégio eleitoral que
designa o presidente da Repúblicas e ampliação de cinco para seis
anos. do mandato presidencial.
A intensidade da reação provocada por este ato de força. que
por sua brutalidade rivalizava com as medidas mais duras impostas
até então pelo regime, e que tão frontalmente chocava com os tão
proclamados projetos de distensão e normalização insrírucional. a
intensidade dessa reação, dizíamos, tomou a todos de surpresa. O
"pacote" foi tornado público em 14 de abril. Cinco dias depois, o
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil COAB)
aprovava por unanimidade uma nota de repúdio pelo que conside-
rava uma crescente desfiguração do estado de direito e reclamava
que se derrogasse o AIS e, por outro lado. uma ampla reforma
constitucional, que devia ser executada por uma Assembléia Cons-
tituinte, eleita especialmente para esse fim. Ao mesmo tempo,
estudantes do centro de ensino jurídico mais tradicional do país -
a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco -. saíam às ruas
seriamente vestidos de terno e gravata, e efetuavam o enterro
solene da Constituição; com a garantia, política e física, de um
catedrático. igualmente ultrajado em sua consciência jurídica, pela
prepotêncía do regime. No início do mês seguinte o movimento
estudantil, que desde 1975 vinha se organizando graças ao trabalho
paulatino cumprido dentro dos estabelecimentos de ensino, ga-
nhou as manchetes dos principais [ornais do país ao sair em
passeata pela rua) em protesto contra a repressão policial em São
Paulo, e ao realizar uma gigantesca concentração no Rio de Janei-
ro, com o mesmo propósito, muito embora o pesado aparato
mobilizado para obstrui-Ia.
Foi o despertar da "sociedade civil" - como se dizia na
época -, registrado em detalhe por alguns dos principais órgãos da
grande imprensa, que o aplaudiam e alentavam em suas páginas
editoriais. Esta é a cronologia dos principais fatos. Junho: estudan-
tes da Universidade de Brasília declaram-se em greve contra as
sanções aplicadas a companheiros: em Belo Horizonte, dissolve-se
o III Encontro Nacional de Estudantes, que sugeria reconstruir a
17. União Nacional de Estudantes (UNE), e são Ieitas centenas de
prisões; a presidente do Movimento Feminino pela Anistia rompe
o cerco policíal do Congresso e entrega a Rosalyn Cartcr, então em
visita ao país, um documento preparado por familiares de presos,
desaparecidos e exilados; o 11DB lança a tese da Assembléia
Constituinte num simpósio reunido em Porto Alegre; a comunida-
de acadêmica reage contra a tentativa do sovemo de impedir a
realização da 29.a Reunião da Sociedade Brasileira para o Progres-
so da Ciência, tentativa consumada mediante a negação dos fundos
necessários. Julho; reunida na Pontiífcia Universidade de São
Paulo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência aprova!
na sessão final. uma moção favorável à anistia ampla e irrestríta:
em São Paulo, um encontro entre presidentes da> setoriais da
OAB, abre o debate com a demanda da plena vigência do habeas ..
corpus; publicando em forma íntegra as cartas de mães, a imprensa
abre amplo espaço às denúncias de torturas sofridas pelos mem-
bros de organizações de esquerda detidos no Rio e em São Paulo.
"0 governo isola-se da opinião nacional", proclama um editorial
de um importante órgão de imprensa." Agosto: comemoração do
se squecentenário da Proclamação da República, no Brasil, com a
leitura da Carta aos Brasíleíros, ato realizado ern local fechado,
continuado na rua, assistido por 7.000 pessoas vigiadas de perto
pela polícia. "Estarnos marchando rapidamente para o aperfeiçoa-
mento democrático. Daqui até o final deste governo deverá ter
terminado o regime de exceção!' Y (Agora são os empresários que
começam a pronunciar-se publicamente, nos termos do linguajar
político liberal). Em setembro e outubro o movimento sindical, que
vinha rear tículando-se lentamente nos anos anteriores e já esboça-
va o perfil de uma identidade nova, intervém em conjunto pela
primeira vez desde 1964 no cenário político, conduzindo uma
campanha pela "reconstítuiçâo salarial". Junto com' esta campa-
nha, projeta-se nacionalmente o nome de Luis Ignácio da Silva
(Lula), presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo
do Campo, principal promotor da iniciativa,
Num lapso de poucos meses, o panorama político dá. uma
súbita virada. No ano anterior. c governo havia anulado os manda-
:/~-O Estado de São Paulo. 6.;.197:
'1.-- ~~Javras de Ayrton Gírâo. presidente da A13R.4.Sc'A. r As sociaçãu Bras ileira J(.
Sociedades de Canital Aber'o) Gazeta fe~'~"""l"1 ":~" ';'"':'~II" , I l._..,;.,II. . __ .Q •• ,I.
54
18. tos de muitos parlamentares (Marcelo Gato, Nelson Fabiano,
Nadyr Rosseti, :-'Í••rnaury l"1üHcr e Lyzâncas Maciel), promulgando
a rei Falcão - que praticamente eliminava dos meios de comunica-
ção soe ia] a propaganda eleitoral- e disputando com relativo grau
de êxitos eleições de autoridades municipais. Até fins de 1976,
ainda repercutiam na memória as duas palavras de Geisel. que em
Um discurso pronunciado em agosto de 1975 repudiava os "liberaís
ingênuos, ou mal-intencionados' " supostamente preocupados com.
os rumos da distensão, quando a distensão verdadeiramente neces-
sária, O governo vem fazendo ao.dar caráter efetivo a medidas de
alcance social. Até fins desse ano a situação parecia estar sob
estrito controle e o governo parecia ter O monopólio da iniciativa
política. Seis ou sete meses depois, em julho/agosto, o governo
via-se submergido num profundo isolamento: suas proibições! até
então sempre acatadas, eram derrogadas na prática, e contra as
autoridades começava a erguer-se um amplo espectro de forças,
que iam desde a esquerda até o centro-direita, desde os peões do
ABC até a alta burguesia paulista, frente que tinha como denorni-
nador comum <i aspiração ao estado de direito e a defesa das
"liberdades democrátícas'·,
Tal imagem, no entanto, é o resultado de um exame íncorn-
pleto e superficial. Não conheceremos corretamente esta circuns-
tância, nem poderemos compreender seus desdobramentos, se nâo
integrarmos à análise um dado crucial: a questão da sucessão e a
crise por ela desencadeada,
Terreno transitado, os termos em que era planteado o proble-
ma sucessório não eram novos. Por um lado, estavam Geisel e o
círculo dos seus assessores mais íntimos, O HgrupO palaciano'f;
pelo outro, o ministro da Guerra, Sílvio Frota, candidato natural à
presfdência, por Ser a expressão mais alta do aparato militar.
Buscando conservar o controle do processo, Geísel desenvolve
uma política de duas frentes: oficialmente, desloca para o futuro a
discussão do problema, por condenar como prematura e inaceitá-
vel qualquer manifestação sobre candidatos. Ao mesmo tempo,
faz vista grossa à operação de marketlng empreendida pelos pala-
danos, que lançam publicamente o nome do general João Batista
de Fígueiredo, chefe do todo-poderoso Serviço Nacional de Infor-
mação (SNIl, trajado desde o início com roupagem liberal. Para
confundir mais as coisas. anarece a candidatura civil do ex-
ministro das Relações Exteri~res -e líder do movimento de 1964-,
Magalhães Pinto. Sentindo que o terreno movia-se sob seus pés,
19. instigado pelas manobras de seus adversários. Frota passa a PlÚ-
mover ..se mais abertamente como candidato, para o que intensifica
seus contatos e articula um impressionante bloco de apoio parla-
mentar.
EfUJU!O_s.,tp .!ie 1.277, do ponto de vista do grupo de GeiseI, o
quadro- apresentava-se esquernaticamente assim: por um lado, ~
grandes parcelas da opinião pública o hostilizavam, levantando a '
bandeira do retorno ao estado de direito e à convivência democrá-
tica. Tratava-se, neste caso, de uma convergência momentânea de
forças heterogêneas, onde o papel opositor hegernônico era exerci-
do pela grande burguesia liberal, cujos arroubos libertário s até
então não haviam passado pe Ia prova do enfrentarnento nas lutas
sociais. Por outro lado, a direita militar procurava lançar UITh1""
ofensiva mediante a candidatura Frota, produzindo um discurso
virulentamente anticornunista, que era dirigido de forma pouco
menos que exclusiva a seu próprio "público interno" . ../
Nesse contexto, Geisel retoma a iniciativa e, mediante uma
série de rápidas ações, consegue redefínir o quadro em seu favor.
Primeiro, numa operação iniciada em agosto, invade o campo da
oposição ao reatívar a "missão Pcrtella ", que agora passará por
cima do MDB e visará diretamente os "setores representativos da
sociedade" (juristas, clérigos, empresários, sindicalistas etc.) ao
anunciar para o ano seguinte a extinção do AIS, além do advento
das propaladas reformas. Depois; em outubro, com um golpe
preventivo, que supõe uma alta dose de malícia e cuidadoso
preparo, destitui o ministro da Guerra e, ao mesmo tempo, anula o
dispositivo da extrema direita militar, propondo para sucedê-lo, o
general Belfort Bethlem, um dos esteios da linha dura do Exército.
Em fins de 1977, desembaraçado da frente militar e com um
candidato desta apresentado como futuro presidente da abertura,
Geisel viu-se bastante forte para enfrentar as chuvas e os ventos
que deveria enfrentar antes do término do seu mandato.
A sorte está lançada. Nesse momento: a "abertura" I tal
como seria praticada em suas linhas gerais, nos primeiros anos do
,governo de Figueiredo, já estava decidida.
J O ano de 1978 foi de intensa atividade oposiiora. Depois da
/saida~ surgiram a dissidência do general Hugo Abreu, a inconfor-
; midade de setores da oficialidade média. do Exército, a Frente
! Nacional de Democratização (FND)~ e a candidatura do general
Euler Bentes Mcnteíro, que por alguns momentos quebraram ?.
imagem de coesão e unidade que a hierarquia das Forças Armadas
50
20. tanto ernpenhava-se em preservar. Em maio. foi a classe operária a
que imprimiu sua marca no rumo dos acontecimentos, com a greve
do ABC, que logo proliferaria: desdobrando-se num movimento
.mpetuoso que extendeu ..se a um sem-número de categorias. e que
só dois anos depois seria dominado. Finalmente, este figurante
incômodo, não convidado, entrava em cena e ocupava seu lugar.
"Braços cruzados, máquínarparadas ": com a greve do ABC e o
movimento que isto precipita, abre-se um espaço enorme no
campo das práticas e na imaginação políticas. Agora o possível
dilata-se, o novo começa a brotar. Logo, a política salarial e a Lei
de Greves - colunas mestras da ordem social imposta a partir de
1964 - caíram por terra e o próprio governo pareceu disposto a
assinar seu atestado de óbito. Os empresários devem preparar-se:
uma nova realidade pode pôr fim à tutela do governo nas relações
com os empregados. Procura-se uma nova políuca salarial que
inclua as negociações diretas." Nova realidaderquase simultanea-
mente faz-se a tentativa de dar-lhe urna expressão política adequa-
da .•porque poucos meses depois nasce a idéia de um Partido dos
Trabalhedores.
Ainda, 1978 foi o ano da luta pela anístía; da constituição, no
discurso público, da. figura do "preso político " (em contraposíção
ao "terrorista" e ao "preso de direito comum", fórmulas estigma-
tízantes que o poder insistia em afirmar); da ampla difusão de
informações sobre o mundo do exílio, seus grandes e pequenos
dramas, suas angústias e esperanças; do lento retorno dos impug-
nados, dos proscritos e dos exilados, os quais, ainda que ausentes,
voltavam. a ocupar as páginas do noticioso político. Foi também
um tempo de introspecção, de longas e fatigantes discussões sobre
diversas propostas partidárias.
Porém, 1978 não foi um ano especificamente opositor. Junto
a esse impulso que partia de baixo e de fora, e conjugado a este,
existiram a missão Portella e, principalmente. a marcha triunfal da
candidatura de Fígueiredo. Vale a pena grifar; já antes de ver a luz,
a "abertura" começou a produzir efeitos e. a render dividendos
polírícos consideráveis. Em nome da abertura fi quase totalidade
da grande imprensa adere ao candidato oficial. denunciando como
aventura golpista uma hipotética resistência militar. A promessa de
1~':Comuniçacâo verbal transmitida "elos ministros da Fazenda c.do Pianejamen-
-. "~Q s, 22 dos empresários })S.UliSl2.S mais represernativos. durante uma reunião de 7
horr.s ocorrida crn Brasilia. Diá-io do Comércio c da Icdústria, 28;30. ~O.19n.
21. abertura é o que aplaina o caminho aos segmentos do ernpresaria-
do, chamados liberais, que, evitando qualquer contato com Euler,
acodem a Pigueiredo na qualidade de futuro presidente. expõem-
lhe seus pontos de vista, formulam suas demandas e suas propos-
tas. Na verdade, o ensaio de abertura efetuado em 19i8 induzirá fi
dissolução da freme que havia chegado a esboçar-se no ano
anterior. Pegos de surpresa pelo movimento social emergente,
receosos de um aprofundarneato das divergências nas Forças
Armadas, inquietos frente à idéia de que o processo de mudança
pudesse escapar do controle e levar à "desordem ". ao ·'imponde-
rável" I os setores liberais que haviam fustigado o governo pouco
tempo antes aplaudem o processo de abertura, adívinbando nesta
uma saída possível e desejável para o estancamento político em
que se debatia o país.
Não é de surpreender que, neste contexto I tenham sido
aprovadas sem maior estardalhaço as reformas propostas por
Geisel. Divulgado em 19 de junho _. poucos dias depois de
suspensa a censura prévia que até então pesava sobre os semaná-
rios Movimento e O São Paulo, e sobre o diário Tribuna de
Imprensa -. o anteprojeto suprimia os instrumentos mais nitida-
mente díscrimínatóríos da legislação vigente, sem alterar. entretan-
to, a face autoritária do regime. Na verdade, por um lado punha
fim às anulações de mandatos baseadas no AIS: às suspensões de
direitos políticos, baseadas no mesmo instrumento; ao direito do
presidente de fechar o Parlamento: a outras faculdades autoritá-
rias, como a de remover juizes ou de transladar compulsoriamente
funcionários públicos ~às penas de morte, confinarnento e prisão
perpétua, e restabelecia o hábeas-corpus para delitos políticos.
Porém, por outro lado, marinha vigente a LeÍ de Segurança Nacio ..
nal, que em outubro seria modificada, para prolongar sua vigência
e tornar menos difícil, politicamente, sua aplicação; conservou a
validade de dezenas de Atos Institucionais e complementares ..
apenas retiradas daqueles suas disposições I 'contrárias à Ccnsti-
tuiçãc' ~; não revogou o "pacote de abril", nem a Lei Falcão, e
inclusive criou uma nO'/8 figura. a do "Estado de Emergência":
Este instrumento faculta o presidente a adotar, sem aprova-
ção do Congresso, as seguintes medidas: suspensão de todas as
garantias individuais e todas as liberdades públicas; intervenção
nos sindicatos; suspensão das imunidades parlamentares: atribui-
ções às Forças Armadas de todos os poderes de polícia; e preces-
,.;~
.. '...,
22. samentc pelos tribunais militares de todos os que fossem detidos
durante a vigência de dito Estado.
Em março de 1974! Geisel havia proclamado sua aspiração de
ver os instrumentos legais de exceção "superados pela Imaginação
política criadora, capaz de instituir. quando for oportuno, salva-
guardas eficazes: dentro do contexto constitucional". O momento
chegaria e, em fins de 1978, aí estão o Estado de Emergência e a
Lei de Segurança Nacional modificada, para demonstrar que não
era críativídade política o que faltava.
As reformas políticas serão votadas em novembro. poucos
dias antes das eleições parlamentares. Em março do ano seguinte,
ao transmitir o mandato ao general Fígueiredo, Geísel podia olhar
para trás com consciência de haver percorrido um longo trajeto.
Muito faltaria percorrer ainda, porém. isto já é outra história.
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