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¡I f JORGE ZAHAR EDITOR
M arco M o rei
O Perío d o d as Reg ên cias
(1831- 1840)
Jo r g e Z a h a r Ed it o r
Rio de Jan eiro
Co pyrig ht © 2 0 0 3 , Marc o Morel
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Jorge Z ahar E ditor Ltda.
rúa México 31 sobreloja
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Morel, Marco, 1960-
M84p O período das Regências, (1831-1840) /Marco Morel.
— Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed-, 2003
il.; - (D escobrindo o Brasil)
Inclui bibliografia
ISBN 85-7110-746-7
1. Brasil —História —Regências, 1831-1840.1. Título.
II. Série.
CD D 981.042
03-1839 CD U 94(81)'* 1831/1840"
Sumário
Introdução 7
A queda do primeiro imperador 10
O “carro da revolução” 20
A sociedade multifacetada 31
Rebelar e revelar 51
Autocrítica de um revolucionário 66
C ronologia 70
R eferência s e fontes 73
S ugestões de leitura 75
S obre o a utor 78
I lustra ções (entre p .40-41)
Créditos das ilustrações
1. L ito g ra fia d e F .A. Se rra n o , s/ d.
2. F o lh a d e ro s to d o p rim e iro n ú m e ro d e O Repúblico, p u b li­
c a d o e m 2 . 1 0 . 1 8 3 0 .
3 . A liberdadeguiando opovo. Ó le o s/ tela de E ug én e D e la c ro ix ,
18 3 0 .
4 . E s ta m p a a trib u id a a R a fa el M en d e s de C a rva lh o , 18 4 0 .
L ito g ra fia d e F red eric o G u ilh e rm e B rig g s.
5 . C a ric a tu ra d e M a n o e l A ra ú jo P o rto A le g re , 18 3 7 . L ito g ra fia
d e V íc to r L arée.
6 . C a ric a tu ra d e M a n o e l A ra ú jo P o rto A le g re , 18 3 6 .
7 . E sta m p a a n ó n im a d e 18 3 9 . L ito g ra fia d e F red eric o G u i­
lh e rm e B rig g s.
8 . Negra ao violão, padre dançando. A q u a re la , g u a c h e e tin ta
fe rro g rá fic a , a n ó n im o , c . 18 2 9 .
9 . Rua Direita, Rio de Janeiro. G ra vu ra de R u g en d a s, s/ d.
L ito g ra fía de E n g e lm a n n .
Introdução
O período das Regencias (1831-1840) foi considerado
como “o mais interessante, dramático e instrutivo da
Historia do B rasil” por João Manuel Pereira da Silva,
um de seus primeiros historiadores. E ntretanto, não é
exagero afirmar tratar-se também de um dos momen­
tos históricos menos conhecidos, talvez justamente
pela complexidade e variedade de sinais que nos trans­
mite. Além de parecerem labirinto, as Regencias en-
contram-se enquadradas em determinadas abordagens
que dificultam ainda mais a compreensão.
Em primeiro lugar, o período em questão foi tacha­
do de caótico, desordenado, anárquico, turbulento e
outros adjetivos conexos. Este era o discurso de parte
dos grupos dirigentes da época, envolvidos nos emba­
tes de construção do Estado nacional brasileiro e bus­
cando formas de legitimar o exercício de poder e de
coerção. Tal postura fixou-se na pena dos historiadores
monarquistas do século X I X , perpetuou-se em ramos
da historiografia e ainda hoje pode ser lida e ouvida
com certa freqüência.
MARCO MOREL
Num campo oposto, optou-se por enfocar as rebe­
liões do período (que não foram poucas) como forma
de trazer à tona aspectos de conflito, resistencia e
opressão da sociedade brasileira. Essa perspectiva, em­
bora mais promissora, ainda deixa alguns problemas.
Um deles é o risco do anacronismo, quando a preocu­
pação em denunciar situações do presente pode levar
os que escrevem ou contam história a “adequá-la” às
questões imediatas do tempo atual, prejudicando assim
a compreensão mais ampla e específica daquelas lutas.
A soma de variáveis e paradoxos pode desanimar
pesquisadores, sobretudo os que se apegam à fórmula
explicativa prévia, bem assentada e imune a dissonân­
cias, em geral visando a uma narrativa onde tudo se
encaixa às mil maravilhas... Sem esquecer o risco de
simplificação didática que encobre qualquer matéria:
uma explicação mais cômoda e esquemática (ainda que
repleta de boas intenções) tende a cristalizar temas que
poderiam ser problematizados e renovados; estimula a
“decoreba” de nomes, datas e episódios esvaziados de
sentido; enfim, espanta qualquer curiosidade. Q uem
ainda lembra os nomes dos sete regentes provisórios,
trinos e unos?
Vistas como espécie de parênteses ou hiato entre os
reinados de dois Pedros (um interregno!), as Regências
não raro são varridas para baixo do tapete, ficando
apenas uma ponta à mostra.
• 8 •
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
Apesar de tantos fatores, o interesse pelo período
regencial vem crescendo, sobretudo em teses e pesqui­
sas académicas que ainda não tiveram repercussão jun­
to a um público mais ampio e que este trabalho pro­
cura, em parte, incorporar.
Meu enfoque sobre as Regências tende a concordar
com a avaliação daquele antigo historiador, mas apon­
tando para caminhos diversos. Penso que o período
regencial pode ser visto como um grande laboratorio
de formulações e de práticas políticas e sociais, como
ocorreu em poucos momentos na historia do Brasil.
Nele foram colocados em discussão (ou pelo menos
trazidos à tona): monarquia constitucional, absolutis­
mo, republicanismo, separatismo, federalismo, libera­
lismos em várias vertentes, democracia, militarismo,
catolicismo, islamismo, messianismo, xenofobia, afir­
mação de nacionalidade, diferentes fórmulas de orga­
nização de E stado (centralização, descentralização, po­
sições intermediárias), conflitos étnicos multifaceta-
dos, expressões de identidades regionais antagônicas,
formas de associação até então inexistentes, vigorosas
retóricas impressas ou faladas, táticas de lutas as mais
ousadas... A lista seria interminável.
Essa movimentação envolveu setores ampliados,
desde escravos, índios, grupos urbanos, rurais, intelec-
(liais, camadas pobres, nobres, grandes e pequenos
proprietários, cujos comportamentos políticos podiam
não corresponder de maneira simétrica ao que se espera
MARCO MOREL
das respectivas posições na hierarquia da sociedade. O
período regencial representou momento de explosão
da palavra pública em suas múltiplas (e nem sempre
tranquilizadoras) possibilidades, momento de plurali­
dade que, se não foi puramente “desordeiro”, também
não significou somente expressão de posições monolí­
ticas e definidas.
A importância do período regencial coloca-se por­
que, dilacerante, ele foi momento-chave para a cons­
trução da nação brasileira, quando, ao custo de muitas
vidas e despesas, garantiu-se a independência e o cami­
nho de uma ordem nacional, com determinadas carac­
terísticas. A estrutura política — que se pretendia
consolidar como E stado nacional — abalava-se pela
ausência de poder centralizado na figura do monarca e
pela emergência de atores históricos variados com suas
demandas sociais. O Brasil recém-independente pare­
cia prestes a se despedaçar, mas acabou tomando um
rumo. O período regencial foi, portanto, tempo de
esperanças, inseguranças e exaltações, tempo de rebel­
dia e de repressão, gerando definições, cujos traços
essenciais permanecem na sociedade.
A queda do primeiro imperador
Nos idos de 1827 chega às mãos de d. Pedro I uma carta
do escritor e político suíço-francês Benjamin Constant
■ 1 0 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
(um dos criadores do moderno liberalismo) com algu­
mas sugestões, ou conselhos, sobre o destino pessoal do
monarca luso-brasileiro diante de encruzilhada: a crise
dinástica portuguesa e a situação brasileira, que vislum­
brava momentos preocupantes.
Como se sabe, d. João V I faleceu sem esclarecer sua
sucessão e, legalmente, d. Pedro torna-se ao mesmo
tempo imperador do Brasil e herdeiro do trono de
Portugal. D. Pedro, então, assume por algum tempo as
duas coroas (ou seja, reunificando Brasil e Portugal sob
uma mesma direção, pouco mais de três anos após a
independência) e outorga uma Constituição para o
reino de Portugal nos moldes da Carta liberal e também
outorgada do Brasil. Em seguida, renuncia ao trono
lusitano em nome de sua filha, Maria da G lória. Tal
medida é contestada pelos setores tradicionalistas e
identificados com o ainda vivo Antigo Regime portu­
guês: o irmão de d. Pedro, d. Miguel, arroga para si o
trono, sendo então considerado usurpador por d. Pe­
dro e seus partidários.
No Brasil, a monarquia recém-confirmada após a
independência enfrenta e cria hostilidade diante das
repúblicas vizinhas, da qual a G uerra Cisplatina, en­
volvendo Brasil e Argentina numa disputa pelo terri­
tório do atual Uruguai, é a parte mais aguda. Ao
mesmo tempo, em 1826 aAssembléia G eral Legislativa
do Império do Brasil (Câmara dos D eputados) e o
Senado começam a funcionar pela primeira vez, pro-
11
MARCO MOREL
piciando, assim, canais de expressão e. participação
política, que se estendem pela imprensa. O poder
Legislativo torna-se interlocutor de peso para o mo­
narca, que concentra os poderes E xecutivo e Mode­
rador. Começa, pois, a despontar uma tensão, que se
agravaria.
Na carta manuscrita em francés, em cuidadosa cali­
grafia, B enjamín Constant dizia sem meias palavras: d.
Pedro deveria abdicar ao trono do Brasil, em nome do
príncipe herdeiro, e deixar uma Regencia sábia e mo­
derada governando durante sua menoridade. Dessa
forma — continuava — estariam garantidos a ordem,
a monarquia e o sta tus quo, enquanto d. Pedro, que
seria sempre visto como representante da tirania no
Brasil (devido à comparação com as repúblicas ameri­
canas), passaria a ser saudado como paladino das liber­
dades na E uropa.
As crises cruzavam-se na sociedade brasileira. No
campo político, acentuava-se a queda de braço entre o
Legislativo (deputados) e o poder do imperador, apro­
fundada com a segunda legislatura de 1830, quando
medidas governamentais eram duramente criticadas.
Pesava também a interferência de d. Pedro I na situação
ibérica, valendo-lhe o estigma de “português”, sem
falar das levas de soldados e civis portugueses que,
fugidos de d. Miguel, desembarcavam no Brasil e
eram acolhidos pelo monarca e mantidos pelos cofres
públicos.
■ 1 2 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
O campo econômico não era mais fácil. A inflação
aumentava, a carestía atingia amplos setores. O gover­
no monárquico brasileiro estava cerceado em uma de
suas principais fontes de renda, os impostos sobre os
produtos importados. A renovação em 1827 do Trata­
do de Aliança e Amizade com a Inglaterra (nos mesmos
termos de 1810) mantinha tarifa preferencial de 15%,
isto é, mais baixa, para os produtos ingleses. Inconfor­
mados com a desigualdade de tratamento, os demais
países, que tinham que pagar taxas de 24% , pressiona­
ram. E acabaram obtendo vantajosa nivelação por
baixo, com a tarifa preferencial estendida a todos em
1828 — o que resultava em menos arrecadação para os
cofres brasileiros. A Câmara dos D eputados barrava
aumentos de impostos internos. A emissão de dinheiro
(e a circulação impressionante de moedas falsas de
cobre), além de aumentar a inflação, atingia de perto
o bolso das camadas menos privilegiadas. Acirrava-se a
tensão entre comerciantes (a maioria portugueses) e
boa parte da população, acentuando as cores do anti-
lusitanismo, inclusive nos meios populares. Haviaforte
temor, referendado por tantos indícios, de reunificação
entre Brasil e Portugal, isto é, da recolonizaçao.
O utra fonte de recursos foi a dívida externa, inau­
gurada em 1824 com empréstimos ingleses que se
repetiam rapidamente, cujo pagamento só fazia agravar
as condições financeiras do país recém-independente.
A pressão inglesa pelo fim do tráfico de escravos gerava
1 3
MARCO MOREL
descontentamentos entre grandes proprietários e tra­
ficantes, deixando o governo espremido entre duas
forças.
Além de tudo, o Brasil saíra derrotado da guerra
continental, perdendo a província Cisplatina de seu
território e agravando o panorama: gastos bélicos, des­
gaste político e moral. E as repressões internas —
mortes, prisões e exílios de adversários — acumulavam
rancores.
Em setembro de 1830 um episódio que poderia ser
banal tornou-se centro das atenções na capital brasilei­
ra, exacerbando ânimos. Nada de muito grandioso,
para quem olha mais de século e meio depois, mas há
eventos que se tornam descartáveis ou esquecidos após
terem monopolizado atenções e parecido importantes,
pelo menos para quem os vivenciou. Marinheiros do
navio militar francês L a C aroline, ancorado na Praia
G rande (atual Niterói), desceram em terra para caçar
e adentraram nos terrenos do fazendeiro Manuel Fran­
ça, apelidado de Cavalão. Este, que não gostava de
intrusos em sua propriedade e fazendo jus ao apelido,
juntou seus escravos e botou os franceses para correr
debaixo de bastonadas. Os ofendidos não deixaram por
menos, retornaram em bando armado, amarraram o
proprietário brasileiro num tronco e chicotearam-no,
acrescentando insultos como “brasileiro de merda” e
“mulato tem que abaixar a cabeça para os franceses”,
entre outras afirmações do gênero.
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
O fazendeiro participava de círculos influentes e era
irmão do deputado Sousa França (futuro ministro da
Justiça). A agressão tornou-se escândalo, ocupando os
jornais, as conversas de rúa e das casas, beirando o
incidente diplomático, mobilizando ministros brasilei­
ros e os representantes franceses. Num contexto de
afirmação da nacionalidade, que sempre sucede as
proclamações de independencia, as ofensas foram con­
sideradas dirigidas ao povo brasileiro como um todo.
Jornais de oposição como A urora F luminense, A stréa e
N ova L uz B ra z ileira tomavam o caso em mãos, exigiam»
indenização e retratação pública das autoridades fran­
cesas. A França passou a ser vista como exemplo de
brutalidade, de dominação colonial (a tomada deAlger
acabara de ocorrer), de política carcomida do Velho
Mundo... Até mesmo Evaristo da Veiga parafraseou
versos de sua autoria no H iño da I ndependencia , reafir­
mando a identidade americana do Brasil e repudiando
as instituições européias.
No auge dessa polêmica chegam outros navios fran­
ceses aos portos brasileiros, arvorando não mais o
estandarte branco com a flor-de-lis (símbolo da mo­
narquia restaurada) e sim a bandeira azul, branca e
vermelha da Revolução Francesa. O que ocorrera, per-
l>untavam-se as pessoas perplexas aglomerando-se no
t ais? Uma insurreição que começara em Paris em fins
tle julho de 1830, (conhecida como Três Jornadas de
lullu)), com direito a barricadas e conflitos armados,
■ 1 5 •
MARCO MOREL
destronara o rei Carlos X , identificado ao despotismo
e às permanências do absolutismo. O último dos Bour-
bons era varrido de cena, reacendendo a flama de 1789-
Em rápida manobra política, tirando o poder das
“ruas”, foi coroado o duque Luís Felipe de O rléans,
chamado de “rei cidadão”.
A mudança de referências no Brasil foi instantánea.
A França passou a ser designada pela mesma oposição
liberal como pátria das Luzes, da civilização, e exemplo
de liberdade para o mundo. A assimilação Carlos X
Pedro I foi imediata. Nas cidades brasileiras ocorreram
festejos pela queda do monarca... francês, com alusões
pouco sutis ao imperador do Brasil. A oposição subia
de tom.
Aliás, uma comparação com a imprensa francesa nos
meses que antecederam as Três Jornadas de Julho (jor­
nais como o moderado L e N a tiona l e o neojacobino L a
T ribune des D épa rtements) deixa evidente que esta era
mais prudente e contida do que viria a ser a imprensa
oposicionista brasileira antes da saída de d. Pedro I.
Constatação que põe em xeque análises, repetidas, de
que o liberalismo da França seria mais “avançado” que
o do Brasil, de que as idéias e fatos franceses teriam
“influenciado” os rumos políticos do Brasil, como o
próprio fim do Primeiro Reinado. Porém, o que se
percebe é que a linguagem e as proposições da imprensa
brasileira nesse momento foram mais contundentes e
arrojadas, inclusive no que se referia à soberania do
1 6
O PERÍODO DAS REGÊIÍCIAS
monarca e ao direito de resistencia dos povos. O u seja,
os “influenciados” acabam escolhendo, por seus pró­
prios critérios e interesses, que tipo de “influência”
valorizar.
Havia outros exemplos usados pelos protagonistas,
dentro do quadro ibero-americano, tal como a compa­
ração de Pedro I ao despotismo de Fernando V I I , na
E spanha. E mesmo a deposição e morte de Simon
Bolívar, naqueles dias, serviriam para comparações
sugestivas: Bolívar era visto pelos liberais brasileiros
como Libertador que se tornaia déspota e traidor,
enquanto os partidários do governo imperial brasileiro
elogiariam a saga bolivariana por suas tentativas de
1centralizar e unificar... as Américas. Assim, além da
máscara de Carlos X , d. Pedro I foi também associado
de maneira negativa a Bolívar e Fernando V I I , no
contexto que resultaria em seu afastamento definitivo
do Brasil.
O imperador reúne o Conselho de E stado para
avaliar o quadro. E ntre os pareceres de dez conselhei­
ros, sete temiam ameaças da ordem e mesmo uma
revolução no Brasil, seis atribuíram o enfraquecimento
do prestígio do monarca à imprensa de oposição e
cinco jogavam a responsabilidade pelo clima político
nas Três Jornadas parisienses. Seis dos conselheiros
propuseram o adiamento da próxima sessão legislativa,
cm tentativa de serenar os ânimos, e apenas o ministro
da G uerra, general Tomás Joaquim Pereira Valente,
■ 1 7 ■
MARCO MOREL
conde do Rio Pardo, defendeu o fechamento da Cá­
mara dos D eputados pelo imperador, sem previsão
para reabertura.
O campo estava minado. As conspirações se acen­
tuaram. Tensões, insatisfações e ressentimentos aflora­
vam. Boa parte dos políticos brasileiros que emergia
naqueles anos começou a conspirar contra d. Pedro I,
que, por sua vez, isolava-se num círculo palaciano
estreito e conservador, identificado ao campo político
chamado de “português”. E ntre os dias 11 e 14 de
março de 1831 eclodiram no Rio de Janeiro violentos
conflitos de rua envolvendo portugueses e brasileiros,
episódio conhecido como Noite das G arrafadas, do
qual foi estopim, entre outros, Antonio Borges da
Fonseca, redator de O R epúblico. Em Salvador, a cidade
foi tomada por embates do mesmo gênero, e até mais
violentos: as cenas dos Mata Marotos, quando comer­
ciantes portugueses foram linchados nas ruas e muitas
casas saqueadas, em 13 de abril (a notícia da abdicação
ainda não chegara à Bahia), evento no qual se envolveu
Cipriano Barata, redator do periódico S entinela da
L iberda de que passara quase todo Primeiro Reinado
como preso político.
D. Pedro I ainda tenta salvar a situação e convoca a
19 de março, pressionado pelas manifestações, um
novo ministério, no qual predominam políticos brasi­
leiros da nova geração. Mas, sentindo-se acuado, a 5 de
■ 1 8 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
abril o monarca monta outro gabinete ministerial,
integrado por cinco marqueses e um visconde, à ma­
neira do Antigo Regime.
O campo minado era o Campo de Santana, no Rio
de Janeiro, sede das principais unidades militares, onde
começou um ajuntamento de tropas e de civis. Nicolau
Vergueiro, senador, dirigente maçom, abandonou as
reuniões secretas e foi um dos que ganhou as ruas da
cidade imperial, que se enchiam de gente ávida de
cidadania, gente da “boa sociedade”, mas muitos anô­
nimos também. O general Francisco de Lima e Silva,
principal nome do esquema militar do imperador,
aderiu à manifestação com seus subordinados e aliados.
“Tropa” e “povo”, segundo as palavras da época, julga-
ram-se soberanos e empurraram o governante supremo
contra a parede. E mbora não fosse de todo imprevista,
a situação precipitou-se. Isolado no palácio, d. Pedro I
busca a fórmula da abdicação em nome do príncipe
herdeiro, prevendo em seu lugar uma Regência que
deveria ser, retomando as palavras de Constant, sábia
e moderada em defesa da ordem, da monarquia e da
dinastia. O calendário marcava 7 de abril de 1831. O
Campo de Santana foi rebatizado de Campo da Honra,
enquanto o agora ex-imperador desvencilhava-se da
encruzilhada e zarpava com parte de sua família de
volta à E uropa. Começava uma inusitada — e impre­
visível — fase da história do Brasil.
MARCO MOREL
O "carro da revolução"
Fechar o abismo da revolução e parar o carro revolu­
cionário. Essas duas frases de Bernardo Pereira de
Vasconcelos, um dos políticos mais influentes durante
as Regencias, sintetizam uma preocupação que se re­
petia em discursos e clamores.
Não foi à toa que “revolução” se constituiu em
palavra-chave de uma era, à qual pertence o período
regencial brasileiro. Q uando se falava em revolução em
meados do século X I X , não se tratava apenas de jogo de
palavras com intuito de iludir ou reprimir, nem de uma
espécie de premonição do marxismo, e, por outro lado,
já não se sustentava mais o tradicional registro astro­
nômico empregado para a palavra, de retorno a um
ponto antigo. Esse termo, polissêmico, não se limitaria
à Revolução Francesa (ainda que incluindo-se nela o
período napoleónico até 1815) e nem estaria restrito
ao binômio revolucionários e contra-revolucionários,
sobretudo no século X I X , durante o qual as heranças e
releituras da Revolução Francesa foram múltiplas e
complexas.
A revolução não era apenas quartelada ou transfor­
mação violenta e ilegal (embora esse sentido fosse
utilizado), mas aparecia como inevitável divisor de
águas na cena pública, como se tivesse vida e movimen­
tos próprios. O “carro da revolução”, nesse sentido,
associava-se à idéia de progresso e relacionava-se, de
2 0
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
maneira conflituosa e complementar, com a perspecti­
va de evolução. O que fazer com a revolução? Havia
basicamente três respostas: negar (os absolutistas ou
ultramonarquistas), completar e encerrar (vertente
conservadora do liberalismo) e continuar (vertente
revolucionária do liberalismo). Impossível era ignorá-
la. E stavam em jogo o rumo da sociedade e suas
transformações.
Nessa linha situava-se o debate em torno dessa
palavra com a saída de d. Pedro I do trono. Não se
limitava a uma discussão semântica.
Inspirados pelas “idéias do século”, os moderados
brasileiros viviam um paradoxo: pretendiam justificar
c encerrar a revolução sem jamais terem participado de
uma. Em outras palavras: aspiravam ao fim de um
processo revolucionário que jamais deveria existir, ape­
sar dos esboços de uma memória de ruptura revolucio­
nária que eles tentaram criar para o Brasil em alguns
momentos, como 1831. Até o 7 de abril, o jornal
A urora F lum inense, redigido por Evaristo da Veiga, se
abstinha de pregar uma revolução. Mas, com a desti­
tuição do imperador, em suas páginas começou a se
entrever a revolução, não sem surpresa, aliás. A com­
paração com o exemplo francês (as Três Jornadas de
Julho de 1830) era o mote: “
A nossa revolução gloriosa
cm nada teve que invejar os três dias de Paris. Os atos
ilc desinteresse e de generosidade, tão admirados na
liança, foram reproduzidos aqui, e se encontrarão até
cutre as pessoas da mais infeliz posição social.”
■ 2 1 ■
MARCO MOREL
Interessante assinalar que uma revolução glorificada
e celebrada pertence ao passado. Graças a sua caracte­
rística nacional, o movimento tinha, para alívio do
redator, encoberto os conflitos sociais. E não é por
acaso a comparação com a revolução parisiense do ano
anterior: servia para acentuar o caráter nacional, os
interesses mais amplos e soberanos da nação, mas
deixava entrever a presença das camadas pobres na cena
pública.
A revolução, ainda que inesperada, estava feita. E ra
preciso encerrá-la o mais rápido possível. E para isso
nada melhor que celebrar, pois as celebrações se repor­
tam ao passado... A idéia de conclusão, de ponto final
do processo revolucionário, transparece na insistência
destas linhas de Evaristo da Veiga, vinte e dois dias após
a abdicação de d. Pedro I: “
A nossa revolução foi
começada e concluída com tanta glória, e querem agora
lançar-lhe nódoa?”
Q ualificando a abdicação do imperador de revolu­
ção, os moderados ensaiavam não enganar, mas aplicar
engenhosa operação política com duas dimensões: le­
gitimar a construção de uma nação nos feitios de seus
interesses e frear a possível corrida do processo revolu­
cionário.
Uma quinzena antes do afastamento de d. Pedro I
do poder, Borges da Fonseca, liberal exaltado, escrevia
com todas as letras: quando o governo é opressor e
injusto, a resistência à opressão é direito natural. A idéia
■ 2 2 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
de revolução toma, nesse caso, significado de mudança
política violenta praticada como direito natural pelo
“povo” e tendo como causa a opressão dos governos
despóticos. Mas uma questão concreta colocava-se:
havia uma revolução em curso no Brasil?
A posição de Borges da Fonseca no inicio das Re­
gencias era clara em meio às suas exclamações no jornal
O R epúblico: “Porem com que G loria, Brazileiros, fize­
mos a nossa Revolução? Como com tanta facilidade
nos rejeneramos?... Mas, Considadáos, indamuito nos
resta, resta a conclusão da grande obra incetada. Creio
qe d’alguma sorte ei merecido o vosso conceito; é
tempo de moderassão.”
Relendo tal texto, de curiosa escrita ortofónica,
destacamos três aspectos. Primeiro, a revolução aparece
como regeneração, tema bastante tradicional, seja me­
táfora (a cura de um corpo doente), seja um movimen­
to para restaurar antigos direitos usurpados. Ao mesmo
tempo, as proposições de Borges da Fonseca não são
monolíticas, mas híbridas, pois ele enuncia também a
perspectiva eminentemente moderna de que a revolu­
ção não acabou. Ao contrário, ela seria um processo
por começar, convicção que balizaria nos anos seguin­
tes a atividade desse personagem, envolvido em rebe­
liões. E o apelo à moderação parece traduzir mais as
alianças daquele momento de 1831 do que exatamente
uma definição de princípios. Assim* oj discursos dos
• 2 3 ■
MARCO MOREL
exaltados (e suas práticas) constituem-se num hibridis­
mo entre referências tradicionais e modernas.
Cipriano Barata, que não participou diretamente da
composição política que desaguou no 7 de abril, iria
mais longe e criticaria, no S entinela da L iberdade, os
que estavam “empenhados em fazer revolução segundo
a Lei — o que é absurdo — e deixaram tudo quase no
mesmo estado”. Para Cipriano, portanto, não havia
revolução alguma. E esta não era apenas uma questão
de vocabulário.
E m pólo contrário, o jornal O C aramuru, porta-voz
dos restauradores, definiu sua linha: defesa da Consti­
tuição sem reformas; recusa da idéia de revolução (mais
precisamente quanto à abdicação) e fidelidade ao im­
perador — sem explicar se se tratava de Pedro I já
deposto ou de Pedro I I ainda não entronizado.
Compreender a abdicação de d. Pedro I como mera
substituição de governante controlada “pelas elites”
seria empobrecer a dimensão desse período e de suas
conseqüências, bem como a diversidade de atores his­
tóricos que emergiam e se envolviam, buscando inter­
vir. A saída do monarca representou enfraquecimento
do poder centralizador exercido com peso de séculos,
possibilitando explosão da palavra pública como nunca
ocorrera no território (que se pretendia) brasileiro.
Já no dia 7 de abril diversos setores da sociedade
sentiam essa espécie de vertigem, comportas abertas e
possibilidades amplas. E varisto, Borges da Fonseca, as
• 2 4 ■
O PÍRÍODO DAS REGÊNCIAS
lideranças políticas unanimemente pediam calma, pois
todos estavam imersos no mesmo caldeirão e perce­
biam que o estopim aceso iria longe.
R egência T rina Provisória. Para evitar o vazio de poder,
reuniram-se no Rio de Janeiro os deputados e senado­
res que ali se encontravam (era recesso legislativo) com
os ministros nomeados dois dias antes por d. Pedro I.
Do encontro saiu uma Regência Trina Provisória, com­
posta pelo general Francisco de Lima e Silva (chefe
militar, representava “a tropa”), o senador Nicolau
Vergueiro (atuante na sedição contra d. Pedro, encar­
nava “o povo”) e José Joaquim Carneiro de Campos
(marquês de Caravelas, tradicional membro da Corte
do Primeiro Reinado). O triunvirato expressava impro­
visada tentativa de arranjo político e_governou_pouco
mais de 60 dias. Foi preciso dar um pequeno drible na
Constituição, que previa composição diferente para a
Regência em caso de ausência do monarca e menori-
dade do herdeiro.
Esse governo provisório tomou algumas medidas.
D ecretou anistia para todos os presos, condenados ou
sentenciados por crimes políticos até aquela data. Ine­
gável a generosidade do gesto, mas hoje podemos supor
que a intenção talvez fosse esvaziar as prisões... para
poder ocupá-las de novo. Pois, no final do ano, haveria
cerca de 500 presos, a maioria por motivos políticos,
somente na capital do Império. Foram proibidos ajun-
■ 2 5 ■
MARCO MOREL
tamentos ptiblicos na capital (o medo do vulcão). E
aprovou-se lei que determinava atribuições e limites ao
poder dos regentes, com nítida supremacia do Legisla­
tivo: cabia a este aprovar (ou reprovar) os ministros.
Q uanto aos chefes do E xecutivo, exerceriam um poder
Moderador esvaziado de suas principais atribuições:
nada de declarar guerra ou estado de sítio, nem de
nomear conselheiros ou dissolver a Assembléia. Até
mesmo a distribuição de títulos de nobreza e condeco­
rações foi suspensa, para desespero dos cortesãos (e
aspirantes). A monarquia aparentava fraqueza.
Pode-se caracterizar a prisão de Cipriano Barata em
Salvador por “desordens”, em 28 de abril, e sua trans­
ferência para o Rio de Janeiro como o primeiro fato
político importante ocorrido no Brasil após a abdica­
ção de d. Pedro I, com repercussão na imprensa, nos
grupos envolvidos em debates políticos nas principais
cidades (incluindo as camadas pobres), entre os diri­
gentes da Corte e até no meio dos agentes diplomáticos
estrangeiros, que relataram a seus países a detenção.
Tal encarceramento soava como primeiro sinal da
divisão das forças que haviam se unido no combate ao
ex-imperador e apontava para divergências que se am­
pliariam.
Acompanhando as mudanças no epicentro do Im­
pério, pelas províncias ocorreram abalos em diferentes
graus. Na Bahia, tensão e violência social eram grandes,
levando à renúncia do presidente da província, Luís
■ 2 6 ■
O PERÍODO DAS REGENCIAS
Paulo de Araújo Bastos, e do comandante das Armas,
brigadeiro João Crisóstomo G alado. Também no Pará
o presidente da província, barão de Itapicurumirim,
chegou a ser destituído por um motim, encabeçado
pelo cônego Batista Campos, mas conseguiu voltar ao
cargo. Nessas duas províncias era forte a presença dos
exaltados, com influência entre as camadas pobres da
população. A exclusão dos exaltados do poder central
e a hegemonia que seria imposta pelos moderados (em
nome do combate simultâneo ao antigo “absolutismo”
e à “soberania popular”) acarretariam outros conflitos.
R egência T rina P erma nente. Após um período de reu­
niões regulares, os deputados e senadores elegeram, a
17 de junho, a Regência Trina Permanente, composta
pelo mesmo general Lima e Silva e pelos deputados José
da Costa Carvalho (marquês de Monte Alegre) e José
Bráulio Muniz. Na verdade, durante o período das
Regências Trinas, que duraria quatro anos e cinco
gabinetes ministeriais, a figura principal entre os regen­
tes foi Francisco de Lima e Silva. Coloca-se, desse
modo, a existência de uma militarização do poder
político no período monárquico, efetivada também
pela presença de um Comandante das Armas em cada
província, nomeado pela administração central e com
poder de intervenção sobre as autoridades locais — viés
ainda pouco explorado pelos estudos históricos. Fran­
cisco de Lima e Silva (pai do futuro duque de Caxias)
■ 2 7 ■
MARCO MOREL
era o principal membro de influente família de chefes
militares: ficara marcado por ter pessoalmente ordena­
do o fuzilamento de frei Caneca e de diversos envolvi­
dos na Confederação do E quador, através de comissões
militares sumarias.
Mas o ano de 1831 ainda não acabara e seria intenso:
marcava o ímpeto inicial. No plano dos embates insti-
tucionais_e parlamentares, o clima político de liberdade
levou a Câmara dos D eputados a aprovar uma série de
reformas na Constituição que, se implementadas, se­
riam as mais ousadas de todo o período monárquico,
no âmbito das mudanças políticas. Os principais pon­
tos previam que:
• o Império se tornaria uma monarquia federativa
• o poder Moderador seria extinto
• o senadores seriam eletivos e temporários
• as eleições parlamentares seriam bienais
• o Conselho de Estado seria extinto
O federalismo, como se sabe, aparecia como contra­
ponto a uma organização centralizadora que, herdada
do E stado português, permanecia e se rearticulava após
a independência. O poder Moderador (chave-mestra
da ordem política, segundo a Constituição, e da opres­
são, segundo os exaltados), exercido pelo monarca,
funcionava, na prática, como extensão do Executivo.
O Senado vitalício e os conselheiros, por sua vez, eram
uma dás bases políticas do exercício do poder imperial.
E o Senado brecou essas reformas, gerando impasse.
- 2 8
o p e r ío d o d a s r e g e n c i a s
O personagem que se destacaria no poder E xecutivo
durante as Regências Trinas foi o ministro da Justiça,
padre D iogo Feijó, que assumiu a pasta com superpo-
deres, equivalentes aos de um primeiro-ministro. D e­
pois seria eleito o primeiro regente uno em 1835
(derrotando Holanda Cavalcanti de Albuquerque),
num processo de eleição direta, em que todos os elei­
tores aptos escolheram o governante máximo da nação
para uma gestão de quatro anos — semelhança formal
que lévou alguns historiadores a qualificarem as Regên­
cias de experiência republicana. Feijó, em sua persona­
lidade e atuação, encarnava uma espécie de jansenismo
tardio, levando o governo brasileiro a confrontos com
a Santa Sé, por questões como o celibato clerical (Feijó
era contra, mas ao que parece obedecia-o), o poder
temporal da Igreja e a relação desta com a Coroa, já
que ambas integraram o Estado brasileiro durante todo
o período monárquico. O grupo do regente tentou
separar a Igreja do Vaticano.
E ntre as principais transformações do período no
qual Feijó foi o principal dirigente do país tivemos a
criação da G uarda Nacional, uma “milícia cidadã”
voltada para o fortalecimento dos proprietários e se­
nhores locais e do poder central. Os motins e sedições
espalhavam-se em proporção crescente por todo o país,
em grande parte integrados por soldados das forças
regulares, nas quais o governo não confiava màis para
reprimir as contestações.
■ 2 9 ■
MARCO MOREL
O Código de Processo Criminal, aprovado em
1832, instituiu algumas mudanças que, teoricamente,
tinham caráter democrático, como o papel dos juizes
de paz que, escolhidos pelo eleitorado, possuíam con­
siderável poder de jurisdição. Instituiu também o ha -
b ea s-corpus e o júri popular, além de alterar a organiza­
ção jurídica do país.
A primeira reforma na Constituição de 1824 reali­
zou-se dez anos depois de sua promulgação através do
Ato Adicional, que atendia a algumas demandas des-
centralizadoras, como a criação de assembléias legisla­
tivas com maior grau de autonomia e deliberação,
contemplando, assim, poderes regionais. E ntretanto,
avançou pouco no plano da reforma tributária: a cen­
tralização dos recursos permaneceu nas mãos do gover­
no imperial graças à Lei de Responsabilidade Fiscal, de
1832, que classificava as rendas em provinciais e gerais,
cabendo à administração central a partilha dos recur­
sos. Dessa maneira, como assinalou a historiadora
Maria de Lourdes Viana Lyra, os possíveis avanços
descentralizadores contidos no Ato Adicional ficavam
esvaziados, na medida em que continuavam faltando
às províncias os necessários recursos.
Imprensado por crises políticas, disputas entre os
grupos dirigentes e rebeliões que se alastravam, o padre
Feijó renuncia à Regência, sendo sucedido em 1837
pelo pernambucano (e partidário do centralismo) Pe-
■ 3 0 •
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
dro de Araújo Lima, futuro marquês de O liijda. Co­
meça o chamado Regresso: a mão-de-ferro do E stado
centralizador e autoritário vai retendo o controle da
situação abalada, o poder político dos grandes proprie­
tários de terras e escravos se acentua. Os aspectos
considerados mais democráticos ou descentralizadores
do Código de Processo Criminal e do Ato Adicional
seriam reinterpretados (eufemismo para sua anulação)
por leis mais conservadoras.
Com a morte do ex-imperador Pedro I como duque
de Bragança em Portugal, em 1834, os restauradores
perderam sua principal bandeira. Ao mesmo tempo, o
temor do “abismo da revolução” conduzia a uma apro­
ximação destes com os moderados, isolando os exalta­
dos. Um dos primeiros gestos do regente Araújo Lima
foi beijar a mão do jovem Pedro II, restaurando assim
o secular beija-mão, que andava fora de moda. As
comendas honoríficas foram restabelecidas. O Regres­
so resultaria na restauração plena (e antecipada) da
autoridade monárquica constitucional em 1840: o car­
ro da revolução freava.
A sociedade multifacetada
Como compreender a sociedade, alguns de seus agen­
tes históricos e suas formas de participação política de
um período tão curto e intenso como as Regências?
• 3 1 ■
MARCO MOREL
F acetas política s. Do ponto de vista das tendencias e
agrupamentos, é sabido que não havia (inclusive na
E uropa ocidental) entre 1830 e 1840 partidos políticos
no sentido que-se tornou corrente em fins do século
X I X : o tipo ideal de partido-máquina, organizado a
partir de determinados critérios que tomaram corpo
sobretudo no século X X , não existia no período histó­
rico tratado aqui. Ao mesmo tempo, a partidarizaçã©
possuía carga pejorativa, sobretudo num momento de
afirmação da modernidade e da unidade nacional: os
partidários eram associados às facções, ou seja, eram
inimigos da pátria. A ação de formar um partido era
vista como divisionista, ataque à integridade da ordem
nacional — ainda mais num momento de consolida­
ção da independência.
E ntretanto, tais características não precisam condu­
zir a uma visão negativista, como se não houvesse
qualquer forma de organização política. O que se
denominava partido político, na primeira metade do
século X I X diferencia-se da compreensão atual: era mais
do que “tomar um partido” e constituía-se em formas
de agrupamento em torno de um líder, ou através de
palavras de ordem e da imprensa, em determinados
espaços associativos ou de sociabilidade e a partir de
interesses ou motivações específicas, além de se delimi­
tarem por lealdades ou afinidades (intelectuais, econô­
micas, culturais etc.) entre seus participantes. Tais gru-
O PERÍODO DAS REGENCIAS
pos eram identificados por rótulos ou nomeações,
pejorativos ou não.
Nessa perspectiva, as lógicas que estruturam as divi­
sões políticas fundamentais se expressam na tripartição
de soberanias corrente em princípios do século X I X : a
soberania do rei, a soberania do povo e a soberania da
nação. Não se trata de uma visão estanque e rígida entre
três realidades distintas, mas da compreensão do con­
ceito de soberania além do “poder de decisão”, ou seja,
como relações de poder, onde as decisões são resultado
de uma tensão entre o governo e as forças políticas e
sociais. No período regencial brasileiro emergiram três
partidos, cuja gestação já vinha ocorrendo: E xaltado,
Moderado e Restaurador, com fronteiras políticas de­
marcadas, embora mutáveis. Surgem, então, as primei­
ras associações públicas de caráter explicitamente polí­
tico no Brasil, como se verá a seguir.
E ntre os exaltados havia proprietários rurais (não em
maioria), profissionais liberais, militares, padres, fun­
cionários públicos, médicos... Os lugares de formação
escolar não parecem também ser muito distintos dos
demais liberais brasileiros da época. Identificavam-se
através de jornais espalhados em diversas províncias,
como a S entinela da L iberdade, de Cipriano Barata,
N ova L uz B rasileira, de E zequiel Correa dos Santos, O
R epúblico, de Borges da Fonseca e dezenas de outros
títulos. Agrupavam-se em associações mais ou menos
restritas, como as Sociedades Federais, a G rande Loja
3 3
MARCO MOREL
Brasileira e outras. Esses exaltados não participaram do
poder central — pelo menos no momento em que cada
um identificava-se com tal tendência. Seu ideário —
de valorização da soberania popular — foi apropriado
e incorporado por camadas pobres da população, tanto
no meio urbano (motins dos anos 1831-1833 em
várias capitais brasileiras) como no meio rural (Caba-
nagem no Pará, entre outras).
Os líderes exaltados faziam apelo à participação das
camadas pobres da população na vida pública e acena­
vam contra a opressão econômica, social e étnica.
Valorizavam também o federalismo e a descentraliza­
ção administrativa, englobando assim algumas oligar­
quias regionais. Fizeram uso de luta armada e identifi-
cavam-se por determinadas palavras de ordem veicula­
das pela imprensa, como “Fora os corcundas” (os dés­
potas e seus aliados), “
Alerta!”, valorização da “G ente
de cor” (mulatos, caboclos e negros livres), “Federação
já”, “Morte aos Marotos” (ou “Portugueses malva­
dos”), “
Aristrocratas patifes”, “Liberdade dos povos”,
entre outras expressões. Apresentaram boa dose de
, divergência entre seus integrantes e condenavam a
escravidão em diferentes graus, variando a forma e o
ritmo com que propunham sua extinção, em geral de
forma gradual.
Os exaltados, por fim, nem sempre assumiam essa
denominação, sendo também chamados por outros
apelidos, como jurujubas e farroupilhas.
3 4
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
E quilíbrio, ponderação e razão pareciam compor o
lema dos moderados, vistos como expressão política
dos interesses econômicos dos plantadores de café ou
de comerciantes brasileiros das províncias do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. É verdade que as
forças políticas que predominavam nessas três provín­
cias (mas não apenas nelas) identificavam-se aos mo­
derados, sobretudo durante as Regências, constituindo
um núcleo de poder geograficamente situado em torno
da Corte. E ram defensores de um E stado forte e cen­
tralizador e, deste modo, tiveram ramificações por
todas as províncias, onde seus apelidos variavam, sendo
o de chimangos um dos mais espalhados pelos adver­
sários.
Um aspecto peculiar na noção de moderação: ela é
freqüentemente apresentada (pelos protagonistas)
como mais um comportamento do que uma posição
política demarcada. Moderação seria assim uma espé­
cie de visão de mundo que permitiria posicionar-se
sobre qualquer assunto, um critério para distinguir o
que é sábio e civilizado, em harmonia com os costumes
e o bom senso. Como se não estivessem em jogo ganhos
políticos bem precisos. A moderação, enfim, era apre­
sentada como sinônimo de razão. E uma vez que o
liberalismo pode ser explicado como expressão da “so­
berania da razão”, ele só poderia ser... moderado. O u­
tras palavras-chave associam-se à moderação: ju ste m i-
lieu (justo equilíbrio), liberdade limitada, monarquia
MARCO MOREL
constitucional, soberania nacional, além da recusa do
absolutismo e do despotismo e ambigüidade diante da
idéia de revolução.
Foram os moderados que deram o tom do poder
político durante as Regencias. Agruparam-se em torno
da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência
Nacional, que espalhou-se pelas províncias, chegando
a mais de 90 instituições. E xpressavam-se em jornais
como A urora F luminense, A stréa, O S ete de A bril, O
C ensor B ra sileiro e dezenas de outros. E ntre seus inte­
grantes havia ferrenhos defensores do tráfico de escra­
vos, como Bernardo Pereira de Vasconcelos. Nesse
período não fizeram uso da luta armada, nem costu­
mavam apelar para as camadas pobres da população se
incorporarem ao jogo político, ainda que fosse sob a
bandeira da moderação.
Os restauradores compunham uma tendência cons­
titucional com forte matiz antiliberal (embora sem
negar totalmente o liberalismo) no Brasil das décadas
de 1820 e 1830, colocando em destaque a soberania
monárquica diante das noções de soberania nacional
ou popular. O restauracionismo demandava fortaleci­
mento de um Estado centralizador nos moldes da
modernidade absolutista ou, então, apontava para o
reforço do poder de antigos corpos sociais, como se­
nhores locais, oligarquias, clero e suas clientelas. Ou
seja, convocavam e incorporavam as camadas pobres
nas lutas políticas. Faziam apelo à luta armada, como
3G
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
na Cabanada, em Pernambuco e Alagoas, na revolta de
Pinto Madeira, no Ceará, e nos motins cariocas de
1832-1833.
Restauração aparecia como negação da inde­
pendência brasileira em 1822, quando no Rio de Ja­
neiro se aludia à feliz revoluçã o de 1640, ou seja, ao
patriotismo português. Após 1831 o restauracionismo
passa a ser associado ao retorno de d. Pedro I ao trono,
embora nem sempre essa posição fosse explícita. E tal
proposta articulava-se à recuperação da monarquia em
sua plenitude (enfraquecida durante as Regências) em
1840.
Alguns termos do vocabulário político eram associa­
dos a esse grupo, como corcundas (por metáfora, os
que se curvavam ao despotismo em geral), ou os ape­
lidos aplicados aos portugueses identificados ao “abso­
lutismo”: marotos, pés-de-chumbo, caveiras e papele­
tas. Ficou conhecido um personagem fictício, criado
por Cipriano B arata, chamado Marcos Mandinga,
médico inventor de uma máquina de endireitar “cor­
cundas”.
Havia um traço distintivo do restauracionismo no
Brasil, ao longo de diferentes conjunturas: a valoriza­
ção da supremacia monárquica e da aproximação com
o tradicionalismo português. Essas permanências do
Antigo Regime (incluindo o absolutismo ilustrado)
ainda não foram devidamente dimensionadas no Brasil
pós-independência. O chamado Antigo Regime era
MARCO MOREL
ainda memoria viva e palpável no cotidiano de ampios
setores da população, compunha identidades, determi­
nava as formas de relação do alto à base da'hierarquia
da sociedade, tanto urbana quanto rural. E oportuno
relembrar que um dos nomes mais conhecidos desses
restauradores era caramurus. Agrupavam-se na Socie­
dade Conservadora, posteriormente transformada em
Sociedade Militar, e tinham jornais como O C aramuru,
D iá rio do R io de J a neiro e C arijó, entre outros. Desta-
cavam-se entre os integrantes dessa tendencia os irmãos
Andrada (José Bonifácio, Antonio Carlos e Martim
Francisco).
Esses partidos não tinham conteúdo nítido de “clas­
se” (na perspectiva marxista), mas seria restrito, por
outro lado, considerá-los unicamente elitistas. A pre­
sença das camadas pobres nas lutas políticas era resul­
tado de um jogo de mútuas tentativas de manipulação
e apropriação: constantemente a atividade política es­
capava ao controle dos grupos privilegiados. Todos
pertenciam à mesma sociedade, dividida, injusta e
desigual, com atritos e pontos de contato, confrontos
, e negociações.
Como foi visto, as atividades da imprensa, das asso­
ciações, dos parlamentos, das mobilizações nas ruas,
nos pampas, florestas e sertões, das lutas armadas e das
alianças, compunham o mosaico das formas de parti­
cipação política, que se incrementaram durante o pe­
ríodo regencial.
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
A cidade do Rio de Janeiro costuma ter espaço
privilegiado nas narrativas sobre as Regencias. Descon­
tadas possíveis visões centralizadoras que se reprodu­
zem entre historiadores, é possível explicar essa prepon­
derancia pela própria ordem nacional que se estrutu­
rava. Cada província possuía uma capital e distritos.
Estes se dividiam em cidades (os centros mais impor­
tantes) e vilas. Cidades e vilas subdividiam-se interna­
mente em cantões e paróquias (também chamadas
freguesias), que compunham a base das unidades ad­
ministrativas, inclusive eleitorais. No topo dessa hie­
rarquia estava a cidade imperial.
O Rio de Janeiro tinha a honra de ser sede da Corte,
mas esse privilégio significava também limitações.
Com suas trepidações e conflitos, a cidade entrelaçava-
se à Corte, topo da hierarquia do poder. Além do mais,
era porto comercial, centro importante do comércio de
mercadorias e tráfico de escravos. O Rio de Janeiro era,
assim, uma cidade imperial nos trópicos em pleno
século X I X e, portanto, palco de decisões e disputas que
diziam respeito ao território nacional como um todo.
F acetas étnicas. Questões importantes do período re­
gencial ainda estão por ser mais bem conhecidas. As
populações indígenas, por exemplo, ocupavam consi­
deráveis parcelas do Brasil, apesar da pouca visibilidade
em registros históricos. Concentravam-se em grupos
numerosos na região amazônica, no Mato Grosso e no
■ 3 9 ■
MARCO MOREL
Sul do país (no entorno das antigas Missões), mas
existiam em todas as provincias, inclusive no Rio de
Janeiro. Na maior parte das províncias brasileiras ocor­
reram combates envolvendo índios, quase sempre por
questões de terras, e as mortes eram freqüentes de
ambos os lados.
Para citar exemplos envolvendo contingentes indí­
genas nas proximidades da Corte, vemos que nos pri­
meiros tempos da Regência foi revogada a guerra ofen­
siva (decretada em 1808 por d. João V I ) contra os
Botocudos da região do rio Doce (E spírito Santo e
Minas Gerais) e contra os “bugres” de São Paulo. Cabe
perguntar: por que tal gesto de abolir a guerra ofensiva
tantos anos depois?
O decreto regencial, de 27 de outubro de 1831,
eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroa
e também a escravidão — mas mantinha a militariza-
ção de áreas indígenas, principal ponto das Cartas
Régias. Assim, pelo menos juridicamente, o Estado
brasileiro se eximia da responsabilidade de guerrear
contra os índios e também proibia a condição servil
destes, embora os mantivesse sob tutela oficial e militar.
Mas, se não havia guerra oficialmente decretada, au­
mentava a violência das frentes de expansão e autori­
dades locais sobre as terras dos índios, sem que fossem
devidamente coibidas. A mesma lei regencial afirmava
que os índios em estado de servidão seriam “desonera­
dos” dela e, ainda, estendia aos índios do Brasil a
1. 0 ex- im p erad o r Ped ro I,
en velh ecid o ap ó s a ab d icação :
co n t rast e co m a im ag em vig o ro sa
h ab it u alm e n t e d iv u lg ad a.
2. Jo r n a l O Republico, exp ressão
d o s lib erais Exalt ad o s.
3. A s Três Jo rn ad as d e Ju lh o d e Paris em 18 30 fo ram est o p im p ara
,a saíd a d e d. Ped ro I d o pod er.
V l i .
tt .tu.
auuK
v. M r-iffv, & HtW-v-,, ü i
4 e 5. A s d isp u t as p o lít icas e o clim a d e co n fro n t o d u ran t e as
Reg ên cias eram t em as fre q ü en t es n as sát iras d as ca ricat u ras.
A b aixo , a p rim eira caricat u r a im p ressa n o Brasil, em 18 37.
r ■i r t & ú t i w r t - nvAtdfr'?
6. O p ad re Feijó ab an d o n a a Reg en cia e d eixa um rast ro . A n t es
de ser eleit o o p rim eiro reg en t e u n o , em 1 8 3 5, D io g o Feijó fo i
m in ist ro da Ju st iça.
7. Bern ard o Pereira d e Vasco n celo s, líd er M o d erad o asso ciad o
ao d esp o t ism o n ap o leó n ico , é acu sad o d e e n t e rrar as lib erd ad es
co n q u ist ad as co m a ab d icação d e d . Ped ro i, em 7 d e ab ril d e 1831.
8 . O ce lib at o clerical f o í u m d o s t em as em d eb at e d u ran t e as Reg ên cias,
cau san d o at rit o s co m o V at ican o .
9 . A cid ad e im p erial d o Rio d e Jan e iro , cen t ro d e u m a so cie d ad e escravist a
e m u lt if ace t ad a. Os in t eresses e asp ect o s d iverso s d a so cied ad e b rasileira
fo ram a p rin cip al cau sa d o clim a in st ável d u ran t e as Reg en cias.
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
condição jurídica dos órfãos, que deveriam ser ampa­
rados pelo E stado até que aprendessem ofícios.
Em rápidas pinceladas, a Regência traçou sua posi­
ção: o decreto apontava para o aprendizado de ofícios
como forma de integração dos índios à sociedade na­
cional. O ra, a preocupação em abolir a escravidão
(ainda que apenas formalmente) e ao mesmo tempo
constituir mão-de-obra livre especializada atendia a
que interesses? Para quem o terreno estaria sendo pre­
parado?
Não tardou para que fosse apresentado^à Regência
um plano para organização da Companhia Brasileira
do Rio Doce, definida como “uma Sociedade pela
união de Capitalistas Brazileiros e Inglezes” (a grafia de
ambos era com “z”), cujo objetivo era estabelecer a
navegação entre o Rio de Janeiro e a foz do rio Doce e
em todo o curso deste, além de promover agricultura,
colonização nas terras das margens fluviais, mineração,
extração de sal à beira-mar, abrir caminhos terrestres
etc. O responsável pelo projeto chamava-se João Diogo
Sterz Stockexchange (o sobrenome comporta curiosa
associação de palavras). E, para evitar reações protecio­
nistas em defesa do mercado interno, apareciam incor­
porados como sócios da empreitada os nomes mais
expressivos da política brasileira, a fina flor dos dirigen­
tes das Regências e dos liberais moderados: Evaristo da
Veiga, Hermeto Carneiro Leão, Chichorro da G ama,
Limpo de Abreu, Antonio Ferreira França, Miguel
MARCO MOREL
Calmon D u Pin e Almeida, Francisco G e Acaiaba
Montezuma, além do conde de Valença, do marqués
de Inhambupe e de outras figuras da monarquia. Re-
velava-se assim um grau de articulação entre os novos
dirigentes do Imperio e os donos do dinheiro.
Também os capitalistas ingleses se faziam presentes
através da mineração nos arredores de Caeté, Mariana,
O uro Preto e São João d’El Rey — áreas que, anos
antes, ainda eram em parte ocupadas pelos Botocudos.
A Brazilian Company (1832-1844) e a National Bra-
zilian M ining Association (1833-1851) funcionavam
nesses locais. Ainda que tardiamente (em relação ao
apogeu da extração), a mineração era feita nas áreas
onde a presença indígena até então a impedira ou
dificultara.
Assim, da mesma maneira que as pesquisas históri­
cas destacam a influência britânica na escravidão afri­
cana no Brasil, é importante também considerar como
os interesses ingleses afetaram a vida das populações
indígenas — deixando às autoridades ou aos proprie­
tários nacionais o ônus de “limparem o terreno” e nem
se dando ao trabalho, nesse caso, de elaborar grandes
argumentos humanitários para a exploração das terras
e da mão-de-obra indígena.
D urante as Regências cresceu ainda mais a presença
do capitalismo britânico no Brasil em diversas faces:
comercial, no consumo crescente de produtos manu­
faturados ingleses, como também através do controle
■ 4 2 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
do transporte das mercadorias (exportadas e importa­
das) em navios británicos; diplomática, na pressão
contra o tráfico de escravos. Mesmo que os emprésti­
mos externos tenham praticamente cessado no perío­
do, a presença de empresas e dos interesses britânicos
se manteve e continuou a fincar raízes.
Os anos 1830 e 1840 foram marcados por escravi-
zação e tráfico de indios, por exemplo em Minas
Gerais. Se no caso dos escravos africanos a passagem
para o trabalho livre, ainda que apenas teoricamente,
pudesse ter uma conotação humanitária, no caso dos
índios a passagem da vida tribal para a inserção no
mercado de trabalho representava uma violência mais
evidente, dadas as resistências que muitos opunham.
Nesses casos o interesse poderia ser de eliminá-los, já
que não se enquadravam como mão-de-obra. A popu­
lação indígena coloca-se como protagonista histórico
no século X I X brasileiro: através de rebeliões (como a
Cabanagem paraense) e guerras, integrada a atividades
e ofícios diversos nos meios urbano e rural, resistindo
com energia à tomada de suas terras ou integrando-se
à sociedade, sendo por ela marcada e deixando suas
marcas também. Sabe-se que atualmente a população
brasileira é constituída, segundo estudos de genética
das populações, de pelo menos um terço com origens
indígenas.
Os índios também eram enquadrados como inte­
grantes do “mundo natural” e, nessa condição, torna-
■ 4 3 ■
MARCO MOREL
ram-se objeto de pesquisas científicas em larga escala,
mas apenas por estrangeiros, os viajantes naturalistas.
Era a época do primeiro grande inventario do “mundo
natural” em escala planetária e, no Brasil das primeiras
décadas dos oitocentos, fervilharam esses repre­
sentantes do mundo científico e tecnológico ocidental.
Alheio a sedições, um jovem britânico encantou-se
com a natureza brasileira durante sua estada no Rio de
Janeiro entre abril e julho de 1832. A bordo do navio
B ea gle, o futuro naturalista Charles D arwin começava
a colher dados e fazer reflexões que o levariam à sua
teoria da evolução das espécies. Instalado numa cháca­
ra em Botafogo, quando não colhia insetos e observava
pássaros, passava horas contemplando a formação"de
nuvens para os lados do Corcovado e, à noite, deslum­
brava-se com os enxames de vaga-lumes enfeitando a
escuridão.
Numa viagem para os lados de Cabo Frio, D arwin
vivenciou rápido episódio que o impressionou. E stava
numa canoa conduzida por um negro escravo alto e
corpulento quando, numa tentativa de comunicar-se
com o cativo, começou a gesticular e falar com ênfase.
Foi o bastante para que o canoeiro se encolhesse apa­
vorado, supondo que seria espancado pelo viajante.
D arwin ficou chocado com a postura de submissão de
uma pessoa muito mais forte que ele e desabafou em
seu diário: “Esse homem havia sido treinado para
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
suportar uma degradação mais abjeta do que a escravi­
dão do animal mais indefeso.”
No período regencial ocorreu verdadeira africaniza-
ção do Brasil: calcula-se, por estimativa, que, dos cinco
milhões de africanos trazidos para cá ao longo de
quatro séculos, um milhão e meio entrou na primeira
metade do século X I X . -Verdade que uma das primeiras
leis da Regência, exatos sete mesès após a saída de d.
Pedro I, determinou a abolição do tráfico de escravos,
medida que visava a atender à pressão forte britânica,
e também correspondia à consciência de parte dos
dirigentes liberais brasileiros. E ntretanto, apesar dos
esforços da diplomacia inglesa e de parcela das lideran­
ças políticas brasileiras, o tráfico ainda continuaria por
duas décadas, mostrando o poder dos grandes proprie­
tários, traficantes e seus representantes.
Porém os ingleses, as elites políticas, os grandes
proprietários e comerciantes não eram os únicos agen­
tes históricos envolvidos na questão. Havia os próprios
escravos. Sua presença na vida pública se dava de
diversas maneiras, embora não fossem qualificadas, na
época, como políticas. De forma mais visível, aparece
em episódios como a Balaiada, no Maranhão e no
Piauí, e na Revolta dos Malês, por exemplo, como se
verá adiante.
Os cativos desenvolveram inúmeras formas de resis­
tência, individuais ou coletivas, como fugas, ataques,
roubos ou assassinatos contra senhores e feitores, sui-
MARCO MOREL
cídios, pequenos e grandes quilombos, envolvimento
em lutas políticas não deflagradas por escravos, entre
outras. Um exemplo: 25 cativos foram legalmente
condenados e mortos em praça pública no ano de 1838
por terem assassinado senhores ou feitores, sem contar
os que sofriam punições fora do alcance da legislação,
os que eram mortos durante perseguição e aqueles que
nunca foram alcançados.
Os quilombos proliferavam em todas as províncias
brasileiras ao longo do século X I X e, se fossem somados,
possivelmente dariam número de participantes tão
expressivo quanto o famoso Q uilombo dos Palmares.
E nem sempre a relação era de hostilidade: havia
quilombolas que vendiam com certa regularidade sua
produção para mercados vizinhos. Outros assaltavam
e saqueavam passantes ou propriedades. Pode-se dizer,
com o historiador Stuart Schwartz, que as múltiplas (e
aparentemente fragmentadas) resistências escravas
ocorridas na primeira metade dos oitocentos, ao custo
de muitas vidas e sofrimentos, ainda que debeladas,
constituíram forma de pressão e resultariam nas polí­
ticas emancipacionistas dos anos seguintes oü seja, não
foram em vão.
F acetas sociocultura is. Reduzir a sociedade brasileira dos
anos 1830 a um binômio composto de uma minoria
dominadora de senhores brancos diante de uma massa
de escravos é visão empobrecedora que se encontra
■ 4 G ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
superada — o que nao significa, evidentemente, negar
o peso decisivo do racismo e da escravidão como
relação social. Em estudo específico sobre a Bahia do
início do século X I X , a historiadora K átia Mattoso
propõe a divisão da hierarquia social em quatro grupos,
por critério econômico, de prestígio social e de poder.
No topo estavam altos funcionários da administração
monárquica (governador, ouvidores gerais, desembar­
gadores, secretários de estado e intendentes), oficiais de
patente elevada, alto clero regular, grandes negociantes
e grandes proprietários de terra, no ramo dos engenhos
e da pecuária.
O segundo grupo dessa classificação incluía funcio­
nários de nível médio (juizes de primeira instância,
procuradores, escrivães, tabeliães, diretores de órgãos
públicos etc.), oficiais militares de nível médio, mem­
bros do baixo clero, alguns proprietários rurais (sobre­
tudo os do setor de subsistência), lojistas, mestres-ar-
tesãos de ofícios considerados nobres (ourives, entalha-
dores, entre outros), profissionais liberais diplomados
(médicos e advogados que não provinham das famílias
mais ricas) e as pessoas que viviam de rendas. Essas
últimas representavam 21 % do total e majoritariamen-
te se mantinham do trabalho escravo.
Faziam parte do terceiro grupo funcionários públi­
cos e militares de baixo escalão, integrantes de profis­
sões liberais secundárias (barbeiros, pilotos de barco,
■ 4 7 ■
MARCO MOREL
sangradores etc.), artesãos, pescadores, marinheiros e
os que comerciavam alimentos nas ruas (com freqüên­
cia libertos). No último e quarto grupo vinham os
escravos (que compunham um terço da população),
mendigos e desocupados.
A complexidade da hierarquia social indicava estra­
tegias de sobrevivência de escravos e seus descendentes
que passavam pela negociação, convivencia e incorpo­
ração à sociedade, como as irmandades católicas de
negros, os escravos de ganho do meio urbano e o
aprendizado de oficios mais complexos. E ram diversi­
ficados os caminhos da alforria. Calcula-se que já em
princípios do século X I X um terço da população brasi­
leira era classificada como de “pardos livres”, quantida­
de que aumentaria progressivamente. Isto se refletiu
inclusive na imprensa, quando apareceram jornais que
discutiam abertamente a questão racial, como O C riou-
linb o, O H omem de cor ou O M ula to e B ra sileiro Pardo,
entre outros — todos, aliás, surgidos durante a Regên­
cia Trina Permanente.
Uns cinco meses depois da saída de d. Pedro I do
poder, surge pela imprensa um plano de reforma agrá­
ria, lançado por E zequiel Correia dos Santos no seu
jornal N ova L uz B razileira. Chamado de G rande Fa-
teusim Nacional, propunha a distribuição, pela Coroa,
de terras para todas as pessoas interessadas, com prefe­
rência para as camadas pobres da população, além da
■ 4 8 •
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
retirada das terras excessivas dos grandes proprietários,
qualificados na proposta de “malvados aristocratas li­
berais”. Tal proposição foi duramente combatida e não
chegou sequer a ser encaminhada como proposta no
Parlamento. Porém a discussão pública de temas como
racismo e redistribuição de terras no cerne de urna
sociedade escravista mostra como se ampliavam as
possibilidades de expressão durante o período aqui
tratado. Não se tratava exatamente de uma “democra­
cia coroada”, pois a liberdade não era concessão dos
governos, que nem sempre conseguiam seu controle,
mesmo usando diferentes formas de coerção.
Portanto, o ambiente cultural transformou-se com
a abdicação de d. Pedro I, representando ampliação e
diversificação na esfera pública cultural e literária. Veja-
se o caso do livreiro e editor francês Pierre Plancher:
não vacilou diante da queda de seu protetor e, mos­
trando maleabilidade, mudou o nome de seu negócio
para Tipografia Constitucional de Seignot-Plancher,
abandonando em boa hora o título de Tipografia Im­
perial que recebera. Passa então a acompanhar as ten­
dências do momento, transformando-as em linhas edi­
toriais. Publica uma série de obras relativas às novas
formas de sociabilidade, como C onstituiçã o do p ovo
m a çônico (1832) e os A nnaes m a çônicos flum inenses
(1832), e imprime também os E statutos da S ocieda de
d e E ducação L ibera l (1833).
■ 4 9 ■
MARCO MOREL
Apesar daialta de estudos sistemáticos^.é_inquestio-
nável que nessejriomento ocorre ampliação do-público
leitor e da quantidade de impressos (livros, jornais,
manifestos, relatórios, poemas etc.), bera G©ma-.se
acentuam a diversidade de debates-políticos e a disse-
minação da palavra rimada. Movimento que não será
estranho ao aparecimento do romantismo — a publi­
cação considerada pioneira desse estilo, a revista N ich-
teroy, foi lançada em Paris por um grupo de brasileiros
em 1836, marcados pelo clima das Regências. Desse
modo, existe ligação entre as transformações culturais
e políticas do período com o florescimento do roman­
tismo.
O utro livreiro e editor que se firmou nesse contexto
foi Francisco de Paula Brito, mulato (ou seja, classifi­
cado entre os pardos livres) e de origens pobres que
viria a ter papel destacado na esfera pública cultural da
cidade imperial, sempre envolvido em empreitadas
políticas, associativas e literárias. Seria ele, aliás, o
primeiro e principal incentivador da vida literária de
outro jovem pardo e pobre, Machado de Assis. Paula
,Brito sabia que a sociedade brasileira não era marcada
apenas por confrontos e crises. Em parceria com Fran­
cisco Manuel da Silva (autor da pomposa música do
Hino Nacional), Paula Brito compôs o lundu A M a r-
req uinba , cuja melodia sincopada e expressões de duplo
sentido faziam rir, dançar e divertir ao som da viola de
arame:
■ 5 0 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
Os olhos namoradores
D a engraçada iaiazinha
Logo me fazem lembrar
Sua doce marrequinha
laiá me deixe
Ver a marreca
Se não eu morro
Leva-me à breca.
Em outras palavras: mesmo durante o período re­
gencial, as pessoas não eram de mármore, nem de ferro!
Rebelar e revelar
Não por acaso, rebelar e revelar já foram uma só
palavra. As rebeliões são momentos nos quais determi­
nadas práticas, propostas e agentes históricos ganham
maior visibilidade, marcam os rumos dos aconteci­
mentos e imprimem presença nos registros históricos,
ainda que de forma fugaz ou explosiva.
A ênfase nas rebeliões apresenta limitações, além das
já indicadas na introdução deste livro. A maioria desses
episódios durante as Regências ainda não foi estudada
de maneira mais profunda, restando prisioneira seja da
visão conservadora que enxerga apenas “desordens”,
seja de um certo ufanismo pela “luta popular”, ou
• 5 1 ■
MARCO MOREL
ainda por uma historiografia comprometida com a
valorização da nação, que aplaina, oculta ou estigma­
tiza as contradições, na tentativa de compor imagem
unitária e harmoniosa da sociedade nacional.
Acrescente-se a esse conjunto de questões em torno
das rebeliões regenciais outros pontos: se, por um lado,
abrem portas para o conhecimento de realidades fora
do eixo central de poder do país, por outro correm o
risco de resvalar para um prisma regionalista, com suas
manipulações e “escolhas” ligadas à elaboração de me­
morias regionais. O estudo desses movimentos contes-
tatórios (embora ainda por se fazer a contento, e repleto
de possibilidades) pode deixar de lado o cotidiano e o
ritmo mais denso das relações humanas, que compõem
as vidas daquela e de todas as épocas. Todavia, não se
pode conhecer as Regencias sem levar em conta suas
rebeliões, que nos colocam no âmago de situações-li-
mite da sociedade.
A separação entre rebelar e revelar foi extrema no
campo da memoria histórica e da iconografia. Não nos
ficaram imagens da maioria dos rebeldes do período
, regencial, não só os anônimos ou pouco conhecidos,
mas até mesmo os líderes. Não sabemos como eram os
rostos do escravo Cosme Bento das Chagas ou do
vaqueiro Raimundo Gomes, que se destacaram na
B alaiada (Maranhão e Piauí) à frente de milhares de
homens em armas; dos irmãos Francisco e Antonio
Vinagre, da Cabanagem (Pará), que controlaram largas
■ 5 2 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
faixas territoriais e destituíram governos locais; das
dezenas de chefes de bandos armados que integraram
esses dois movimentos e tantos outros como a Caba-
nada (Pernambuco e Alagoas) e a Farroupilha (Rio
G rande do Sul e Santa Catarina); do médico Francisco
Sabino Vieira, da Sabinada; de Pacífico Licutan, M a­
noel Calafate e Elesbão do Carmo, do levante dos
Malês; do escravo, tropeiro e considerado “rei africano”
Ventura da Mina, da Revolta das Carrancas (Minas
G erais), entre muitos outros.
Como somos levados a visualizar, gravar em nossas
memórias, as rebeliões das Regências? É sugestivo notar
que o registro iconográfico desses episódios, com fre­
qüência, se circunscreve a dois tipos: autoridades e pai­
sagens. O rdem naturalizada. As figuras de autoridades
militares ou civis, encarregadas da repressão ou de res­
taurar o controle governamental, imprimem caracterís­
tica de memória e identidade com recorte social. Tais
rostos e bustos er^lanado s,o u encasacados parecem
relegar ao purgatório as faces desconhecidas dos rebela­
dos que eles capturaram ou eliminaram. As paisagens,
em geral plácidas, invocam as localidades onde se de­
senrolaram os acontecimentos: são como cenários sem
tensões, sem sociedade, onde a plasticidade ou beleza
estética das vistas, árvores, águas ou imóveis é permeada
com vultos humanos em harmonia com o panorama.
Em alguns casos, para ilustrar, acrescentam-se figu­
ras de época representando índios, escravos ou sertane-
■ 5 3 •
MARCO MOREL
jos, por exemplo, mesmo que não envolvidos nos
eventos, o que pode ser urna forma de esvaziar a
identidade dos agentes históricos, atribuindo-lhes ca­
ráter geral, indistinto ou anónimo.
Além disso, existem imagens postumas que recriam
algumas das rebeliões ou personagens, em outros con­
textos e com objetivos estéticos e políticos diversos:
pinturas, painéis, alegorias, esculturas ou até mesmo
textos que, na verdade, são monumentos permeados
por memoria regional ou nacional, ou por projetos
políticos externos à época dos movimentos, gerando
um conhecimento fortemente mediatizado em torno
destes.
Não é por acaso, também, que em meio ao espocar
de motins, sedições e revoltas o caráter brasileiro foi
bastante discutido durante o período regencial. Ou
seja, debatia-se se existiria uma propensão para docili­
dade e cordialidade do povo brasileiro. De maneira
mais precisa, buscava-se afirmar ou construir uma
identidade que desse conta de complexos desafios, tais
como formar um povo e uma nação portadores de
identidade própria e, ao mesmo tempo, garantir a
estabilidade da ordem social e direcionar o “carro da
revolução”.
O redator da N ova L uz B razileira, E zequiel Correia
dos Santos, acenava com “revoluções terríveis e inevi­
táveis, desde que a paciência de um Povo pacífico se
acaba antes que se acabe a ma fé dos Governos”. Isto
■ 5 4 ■
O PERIODO DAS REGÊNCIAS
é, mesmo para aqueles comprometidos com a perspec­
tiva de continuar uma revolução, colocava-se esse subs­
trato cultural, como se houvesse uma tradição de cos­
tumes que caracterizasse uma índole pacífica coletiva.
O todo-poderoso ministro da Justiça, D iogo Feijó,
diante dos primeiros motins que eclodiram na capital
da monarquia brasileira após a abdicação, diagnostica­
va: “Esses acontecimentos, aliás funestos em suas con­
seqüências, tiveram a vantagem de desenganar aos
poucos facciosos e anarquistas que ainda nos incomo­
dam, que o brasileiro não foi feito para a desordem,
que o seu natural é o da tranqüilidade.” A afirmação
do padre Feijó sobre tais aptidões naturais (tranqüili­
dade e ordem) é instigante. Mais do que desqualificar
as contestações em curso, exprime interpretação do que
seria uma identidade brasileira, que se traduziria numa
espécie de tradição histórica dos comportamentos co­
letivos: ausência de conflitos, de guerras, e aversão a
rupturas.
E screvendo do interior das prisões regenciais admi­
nistradas por Feijó, Cipriano Barata levaria adiante o
debate, indagando: “Q ue coisa seja D ocilidade Brasi­
leira?” E ele mesmo responderia com seu estilo mordaz:
Docilidade é a boa disposição do homem para se deixar
instruir. Gênio ou natureza dócil é aquele que abraça as
doutrinas e ensino que se lhe dá; porém, este termo
docilidade aplicado hoje aos Brasileiros tem outro senti-
■ 5 5 ■
MARCO MOREL
do: dócil quer dizer estólido, ou tolo; homem que se
contenta com tudo, que deixa ir as coisas por água abaixo
... ; em uma palavra, dócil deixa dizer Brasileiro ovelha
mansa, que trabalha como burro para pagar tributos
desnecessários em beneficio dos satélites do governo.
A discussão, travada entre Feijó e Barata vai além das
desavenças entre aliados que se tornaram adversários
com a chegada de um ao poder e do outro às masmor­
ras. E stava em jogo a definição de determinada identi­
dade brasileira, nesse período do pós-independência,
gerando questões em torno da interpretação do Brasil
nos primeiros anos de construção do E stado nacional.
Já esboçada durante a independência, a concepção
da “índole-pacífica-do-povo-brasileiro” foi afirmada
com mais ênfase durante as Regências, espraiou-se pelo
Segundo Reinado e se tornaria verdadeiro lugar-co­
mum durante a República. Mas o certo é que os
habitantes do território que se pretendia brasileiro não
foram todos “ovelhas mansas” durante o período re­
gencial.
Três revolta s escravas. Três revoltas escravas causaram
impacto: a das Carrancas (Minas G erais, 1833), dos
Malês (Bahia, 1835) e de Manuel Congo (Rio de
Janeiro, 1838). Não abalaram o escravismo, mas cau­
saram inegável pânico à população não-escrava e im­
primiram novos rumos à legislação repressiva, à pers-
■ 5 6 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
pectiva de imigração de estrangeiros e ao debate sobre
medidas para a gradual extinção do tráfico e do traba­
lho escravo.
A Revolta das Carrancas aconteceu justamente
quando ocorria “briga de brancos”: a Revolta da Fu­
maça, uma sedição civil-militar que destituiu o presi­
dente da província e prendeu várias autoridades pro­
vinciais partidárias do liberalismo moderado, inclusive
o vice-presidente, Bernardo Pereira de Vasconcelos.
D urante dois meses (março a maio) os revoltosos ocu­
param o poder na capital da província, O uro Preto. Os
sediciosos, acusados de restauradores, apontavam os
situacionistas como republicanos. Q uando a situação
estava sob controle com o envio de tropas do Rio de
Janeiro eclode um levante de dezenas de escravos da
fazenda de um deputado também ligado aos modera­
dos, em São Tomé das Letras: matam os familiares
(inclusive crianças) e empregados da família e passam
a atacar fazendas vizinhas. Esse levante, liderado pelo
escravo tropeiro Ventura Mina, acabou sufocado e
dezessete cativos terminaram condenados à morte e
executados, fora os que morreram em combate, como
o líder. Esses escravos rebelados teriam sido insuflados
por outro fazendeiro da região, acusado de restaurador,
mas de qualquer modo aproveitaram a brecha causada
pela forte dissensão existente entre os grupos dirigentes
da província mineira naquele momento.
■ 5 7 ■
MARCO MOREL
A Revolta dos Males, urna das mais conhecidas,
durou menos de 24 horas e é considerada como a mais
importante sublevação de escravos urbanos já ocorrida.
E ntre 24 e 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 cativos
de origem africana tomam de assalto Salvador. Perten­
ciam a varias etnias e vinham de locais diversos, mas o
levante foi articulado por escravos islamizados, que
sabiam 1er e escrever em árabe. Não saquearam residen­
cias nem atacaram famílias de proprietários e acabaram
derrotados após duros embates com as forças militares.
E ntre as motivações dos líderes e de parte dos rebela­
dos, havia o pano de fundo do jih a d (guerra santa), e
um dos cativos chegou a admitir, em depoimento
depois de preso, que visavam a eliminar todos os
brancos e pardos e manter escravos de outras etnias
como seus cativos. Cerca de 70 revoltosos morreram
em combates pelas ruas e praias da capital baiana e pelo
menos 500 foram punidos com açoites, degredos, pri­
sões ou morte.
Esses dois episódios, pois, situam a lei de junho de
1835, que previa pena de morte para os líderes de
insurreições escravas, caracterizando estas como o
ajuntamento de mais de 20 cativos que tentassem se
libertar pela força.
Apesar disso, no impulso inicial da expansão cafeeira
no Vale do Paraíba, 200 escravos de várias fazendas, sob
a liderança de Manuel Congo, rebelaram-se em 1838
em Pati do Alferes (Vassouras, província do Rio de
• 5 8 •
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
Janeiro). D urante cinco dias percorreram as florestas
da localidade, até que foram derrotados por tropas da
G uarda Nacional e do Exército comandadas por Luís
Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias.
C abanos, fa rroupilha s, balaios... O conjunto de inicia­
tivas em geral associadas aos restauradores abalou o
Brasil nos dois primeiros anos da Regência. Charles-
É douard Pontois, ministro plenipotenciário da França
na capital do Império brasileiro, escreveu em outubro
de 1831 ao ministro das Relações E xteriores de seu
país, conde Sebastiani, detalhada narrativa de 19 pági­
nas manuscritas sobre ampla conspiração em curso no
Brasil. Ele fora procurado por Francisco de Holanda
Cavalcanti Albuquerque (visconde de Albuquerque e
chefe de poderosas oligarquias), que propunha separar
as províncias do Norte, como se dizia, do restante do
Brasil. A França, na proposta, ficaria com uma parte
do território, estendendo a fronteira da G uiana Fran­
cesa até a margem esquerda do rio Amazonas. E o novo
Império, que se chamaria “do Amazonas” ou “do E qua­
dor”, iria da margem direita do mesmo rio passando
pelas províncias do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio G ran­
de do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. O gover­
no francês preferiu não participar da empreitada, mas
os brasileiros levaram-na adiante.
Desse modo, pode-se compreender a simultaneida-
de do começo da impressão do jornal O C ara muru no
■ 5 9 ■
MARCO MOREL
Rio de Janeiro, dos motins caramurus na capital do
Imperio em 1832, da Cabanada e da chamada revolta
de Pinto Madeira no Ceará: nesses dois últimos casos,
tivemos a presença ostensiva de caudilhos militares
ligados aos restauradores à frente da população amoti­
nada. Em primeiro lugar, verifica-se que o propalado
consenso entre as diferentes elites quanto à unidade
nacional possuía brechas e poderia ser repensado ainda
nos anos 1830 no Brasil. Em conseqüência, é possível
afirmar que o separatismo não era atributo exclusivo
dos liberais exaltados ou de tendências republicanas,
como em geral a historiografia aponta. O separatismo
partiu também de restauradores. E importante, aliás,
discernir separatismo, federalismo e republicanismo,
que não estavam necessariamente associados.
E ntretanto, seria equívoco limitar a compreensão da
Cabanada (1832-1835, Pernambuco e Alagoas) a uma
multidão de pobres fanatizados e manipulados. Se
manipulação havia, poderia ser de mão dupla -
— e
todos estavam imersos num mesmo universo de códi­
gos e relações sociais. A Cabanada foi movimento
basicamente rural inicialmente capitaneado por pes­
soas ligadas aos Caramurus e que pertenciam a insti­
tuições de contato estreito com as camadas pobres da
população: chefes militares e padres, além de certo
apoio de comerciantes lusos. As primeiras colunas
foram crescendo, englobando milhares de pessoas, ín­
dios e caboclos, trabalhadores pobres e também escra-
O PERÍODO DAS REGENCIAS
vos que, ao final, formaram a principal base do movi­
mento. As bandeiras, os discursos e os objetivos decla­
rados eram ultramontanos, católicos tradicionais, ar­
caicos, conservadores e absolutistas. Em seu messianis­
mo tinham como principal alvo a reintroduçao de d.
Pedro I no trono e pretendiam dizimar maçons, liberais
e republicanos. Os gestos e as práticas desses contin­
gentes revelavam, ao mesmo tempo, revolta contra a
miséria, ataques às propriedades, luta contra escravidão
e injustiças sociais. E stabeleciam-se em arraiais, mora­
vam em cabanas (daí o nome do movimento) e atua­
vam em forma de guerrilha, comandados por chefes de
bandos armados, na mesma região onde, dois séculos
antes, existiram os quilombos de Palmares.
Calcula-se que ao final de três anos de lutas na
Cabanada 15 mil pessoas morreram (a maioria cabanos
pobres) em combates, por prisão, execução e por epi­
demias que devastaram os dois lados do conflito.
Q uanto aos rebeldes cabanos, quando escapavam da
execução imediata ou da fome que também matava,
eram enviados às prisões ou alistamentos militares
forçados.
A Cabanagem (Pará, 1835-1836) envolveu, igual­
mente, camadas pobres da população: pequenos lavra­
dores, militares e grande quantidade de índios e cabo­
clos, além de escravos. Mas, apesar de certa semelhança
na composição social com o movimento anterior, os
discursos e as bandeiras das lideranças que se pronun­
61
MARCO MOREL
ciaram no meio urbano eram marcados por críticas à
centralização do governo imperial e pela defesa do
combate aos privilégios dos grupos locais. O u seja, a
liderança, nesse caso, era dos exaltados.
Em janeiro de 1835 milhares de rebeldes liderados
pelo ex-militar Félix Antonio Malcher, pelo redator de
jornais E duardo Angelim e pelo lavrador Francisco
Vinagre ocuparam Belém e mataram o presidente da
provincia e o comandante das Armas, cujos corpos
foram arrastados pelas ruas da cidade. D esafiando e
impondo derrotas ao governo das Regências, os caba­
nos ficaram no poder por mais de um ano. D eclara-
ram-se separados do Rio de Janeiro, mas acabaram
debelados, após cenas sangrentas de massacres. A Ca-
banagem foi vista por contemporáneos, como Cipria­
no Barata, como o despontar terrível e catastrófico da
tempestade da revolução, quando o povo, usando o
direito de resistência à tirania, destruía as autoridades
e as leis.
A presença dos exaltados também estampava-se na
Sabinada (Bahia, 1837). Desenhava-se uma linhagem
de conspirações, motins e sedições de caráter contes-
tatório na provincia desde fins do século X VI I I , durante
as guerras de independência e no inicio das Regências,
às vezes com os mesmos personagens. Federalismo,
liberalismo radical, republicanismo, conflitos de raça e
de nacionalidade mesclavam-se em diferentes contex­
tos. O movimento conhecido por Sabinada foi a última
■ 6 2 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
— e maior — expressão dessa série de lutas baianas.
D urante quatro meses, a partir de 7 de novembro, os
rebeldes tomaram conta de Salvador e proclamaram a
Bahia como E stado independente, com tendências
(nem sempre explicitadas) à República. A revolta era
integrada, inicialmente, por profissionais liberais e mi­
litares que protestavam contra a centralização do poder
imperial e reagiam contra a política regressista, acen­
tuada com a eleição de Araújo Lima para regente uno,
mas admitiam continuar integrando a unidade brasi­
leira. Libertaram os escravos nascidos no Brasil que
aderiram ao novo governo e exaltaram o exemplo
“americano” (com destaque para o modelo político dos
Estados Unidos).
Essa rebelião espalhou-se por amplos setores da
sociedade, inclusive entre os pobres urbanos, e a repres­
são foi desmedida, violenta: ao final, calculava-se em
cinco mil o número de mortos em combates (nos dois
lados) e por execuções. As prisões ficaram lotadas, em
condições desumanas, e a província viveu sob interven­
ção militar durante cinco anos. A Sabinada teve liga­
ções com outro movimento republicano no extremo
do continente, a Revolta Farroupilha ou República
Riograndense (1835-1845).
D urante dez anos o Sul do Brasil se insurgiu e a
República, embora não aparecesse como objetivo pré­
vio, foi proclamada no Rio G rande do Sul (e, mais
efêmera, em Santa Catarina, a República Juliana).
. 6 3
MARCO MOREL
Kstancieiros, caudilhos e liberais exaltados estiveram à
frente do movimento, que chegou a convocar urna
Assembléia Constituinte e elaborar leis próprias. A
Farroupilha, movimento rural com algumas ramifica­
ções urbanas, originou-se do protesto contra a injusta
carga tributária que o governo monárquico brasileiro
impunha aos produtores de charque e teve lances épi­
cos e românticos, incluindo a presença do revolucio­
nário italiano G iuseppe G aribaldi.
O caso mais evidente de transbordamento da ativi­
dade política dos grupos urbanos e letrados para as
camadas pobres da população, que se apropriaram dos
embates políticos e sociais, levando-os adiante, foi o da
B alaiada (Maranhão e Piauí, 1838-1842). Para se ter
uma idéia de sua extensão, calcula-se que 15 mil rebel­
des foram mortos durante o episodio, sem contar os
milhares de presos — cifra que equivale a Um genocidio
da população das duas províncias. “Q ueiram, senhores,
sangrar três homens em um só vaso, um branco, um
cabra e um caboclo, e depois nos queiram mostrar o
sangue dividido de um e de outro”, afirmava um dos
manifestos balaios, que assim criticava diretamente as
teorias raciais em voga que serviam como forma de
dominação social.
Toda a região ficou conflagrada e, apesar das tenta­
tivas, as alianças entre os rebelados foram precárias:
liberais exaltados como Lívio Castelo Branco, três mil
quilombolas chefiados por Cosme Bento, índios, ca-
■ 6 4 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
bocios, vaqueiros, lavradores, camponeses — embora
grande parte do contingente fosse de pequenos bandos
armados, sem maior organicidade. Os rebeldes chega­
ram a tomar a cidade de Caxias (a segunda maior do
Maranhão) e foi graças a sua retomada que o chefe das
tropas legalistas, o jovem coronel Luís Alves de Lima e
Silva, recebeu o título de barão, chegando mais tarde a
duque. Lima e Silva foi o responsável pela pacificação
política e pela repressão militar do episódio.
Nenhum momento da história do Brasil concentrou
tanta violência num tempo tão curto e em extensões
de terra tão largas quanto essa fase da monarquia.
Violência social e política. Grupos étnicos variados,
ligados pela comunidade da língua e da religião, mar­
cados pelas condições de regiões diversas, tendo pelas
riquezas da terra um grande entusiasmo, demonstran­
do aversão ao português, mas desprezando uns aos
outros — eis a obra de três séculos de colonização, na
síntese do historiador Capistrano de Abreu. Referia-se
às vésperas da independência e poderia perfeitamente
tratar do período regencial — quando tal diagnóstico
encontra sua melhor expressão e, também, começa a
perder sentido. A engrenagem nacional centralizadora,
modernizante e defensora da ordem social, urdida por
agentes históricos, incorpora e homogeneiza os multi-
facetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas
■ 6 5 •
MARCO MOREL
digerindo-os e assimilando os pedaços partidos, na
busca de uma nação próspera e desigual.
Autocrítica de um revolucionário
Antonio Borges da Fonseca lamentou ter defendido a
tranqüilidade, ordem e moderação nos idos de abril de
1831. Personagem central naqueles episodios, mergu­
lhara de ponta-cabeça na Noite das Garrafadas. Fora
também o idealizador da Sociedade Defensora da In­
dependência Nacional, da qual acabaria alijado. Ao
contrario de outros exaltados, Borges apoiara a aliança
com os moderados, antes e depois do afastamento de
d. Pedro I. Arrependera-se: não fora para isso que fizera
a revolução. D aí já se pode prever o futuro participante
da Revolta Praieira de 1848 e o ferrenho oposicionista
dos anos 1860.
Com o despontar do Regresso e a eleição de Araújo
Lima para Regente, em 1837, as últimas ilusões dissi-
param-se. Nessa época o jovem poeta Manoel Araújo
Porto Alegre ainda fizera uns versinhos que, musicados,
ecoavam pelas ruas imperiais: “Viva o amor! Fora o
Regresso!”
Borges da Fonseca mantinha viva a lembrança da
primeira proclamação da Regência Provisoria que ce­
lebrava “nossa tão necessária quanto gloriosa revolu­
ção”, mas ao mesmo tempo prometia “nobre conduta
■ 6 6
o per íodo das r egê ncias
e moderação”. Ele assinara embaixo. Mas seis anos
depois retratava-se publicamente da “promessa terrí­
vel”, quando se pretendia “dar o devido curso à revo­
lução”. A proclamação da Regencia afirmara que a
revolução de 7 de abril deveria “servir de modelo a
todos os povos do mundo”. Movimento que fora,
como se viu, inspirado nas Três Jornadas de Julho
parisienses. Borges da Fonseca rebatia, em tom de
desabafo:
São passados seis anos depois dessa promessa terrível, e
que é do desempenho a ela? O que se fez para aproveitar
a revolução? Míseros macacos somos nós que só.vivemos
para imitar os outros, para copiarmos a Europa, como se
a Europa nos aproveitasse. Assim mesmo os doutrinários
de Luís Felipe aproveitaram os três dias de julho para
reformar a Carta; para condenar os ministros traidores.
Os liberais doutrinários franceses formaram uma
escola política que defendia a manutenção da ordem
através de um liberalismo implementado por um Es­
tado forte e centralizador. Serviam de paradigma para
muitos dirigentes brasileiros, sobretudo os moderados.
Mas Borges da Fonseca apontava para a especificidade
de que, pelo menos na França, ocorrera uma revolução
anterior e que, mesmo em 1830, os ministros do
governo deposto foram presos. No Brasil, nem isso,
lastimava.
■ 6 7 ■
MARCO MOREL
Três anos após essa desenganada avaliação, a anteci­
pação da maioridade de Pedro II foi implementada sem
ter sido votada pelo Legislativo (mais um drible na
Constituição), no que ficou conhecido como G olpe da
Maioridade. Foi uma solução ansiada por grupos diri­
gentes que, assim, buscavam retomar a coesão perdida.
O início do segundo Reinado eqüivalia à restauração
da plenitude monárquica, cujo prestígio estivera aba­
lado durante os últimos nove anos.
A sagração e coroação de d. Pedro II foi espetáculo
impressionante na cidade imperial brasileira. Até os
diplomatas europeus — que em geral menosprezavam
as festas da Corte tropical — ficaram impressionados
com o aparato, luxo e resplendor daquele 18 de julho
de 1841. Carruagens, cortejos, coches, girándolas,
bandeiras, estandartes, arqueiros, todos vestidos com
requinte e ostentação num cerimonial grandioso e
simetricamente executado. Ao entrar na Capela Impe­
rial, a poucos metros do mar azul que resplandecia sob
um céu de anil, parecendo ter sido feito por encomen­
da, o jovem monarca foi seguido de perto por alguns
objetos de forte teor simbólico. Os gentis-homens,
orgulhosos, carregavam o manto de d. Pedro I, sua
espada e um exemplar da Constituição do Império em
sofisticada letra manuscrita.
O mesmo Manoel de Araújo Porto Alegre, futuro
barão de Santo Ângelo, fora contratado para fazer o
cenário e, na escada pela qua! passou o pequeno impe-
■ 68 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
rador, havia dois leões esculpidos — representando
força e poder.
Seguido de perto pela espada, pelo manto e pelas leis
outorgadas por seu pai, Pedro II ostentava seus próprios
símbolos: outra espada (enriquecida de brilhantes e
com seu nome gravado); cetro de ouro maciço de dois
metros e meio de altura, cravejado com dois brilhantes;
coroa também de ouro, ornada com pérolas e brilhan­
tes; manto de veludo verde salpicado de estrelas de
ouro, dragões e esferas. Não apenas os cortesãos exta-
siavam-se. Do lado de fora, ocupando as praças do Rio
de Janeiro, uma multidão aplaudia e delirava. Um
detalhe do cerimonial: o novo monarca teve suas mãos
lavadas e purificadas.
Ao mesmo tempo, a cerca de três mil quilómetros
dali, o coronel Luís Alves de Lima e Silva erguia a
espada do Império contra os rebeldes da Balaiada, em
sua maioria escravos, índios e pobres livres. Os cami­
nhos da nação ainda seriam árduos.
• 69 ■
Cronologia
18 2 2
12 o ut A c la m a ç ã o d e d . P e d ro im p e ra d o r d o B ra sil
18 2 3 F e c h a m e n to d a A s s e m b lé ia C o n s t it u in t e
18 2 4 E o u to rg a d a á C o n s titu iç ã o
18 2 5 N a s c im e n to d o p rín c ip e P e d ro , h e rd e iro d a C o ro a
b ra s ile ira
18 2 6 M o r t e d e d . J o ã o VI e m P o rtu g a l
C o m e ç a m a fu n c io n a r a A s s e m b lé ia G e ra l ( d e p u ­
ta d o s ) e o Se n a d o
18 3 0 T rês J o rn a d a s d e J u lh o e m P aris
18 3 1
12 a 14 m ar N o ite d a s G a rra fa d a s , n o R io d e J a n e iro
19 m ar O im p e ra d o r n o m e ia n o vo m in is té rio
5 a br O im p e ra d o r n o m e ia o m in is té rio d o s m a rq u ese s
7 abr A b d ic a ç ã o d e d . P e d ro I e e s c o lh a d a R e g ê n c ia
T rin a P ro vis ó ria
13 abr R e vo lta d o M a ta M a ro to s , e m S a lva d o r
5 jul D io g o F eijó é n o m e a d o m in is tro d a J u s tiç a
12 jul Se d iç ã o d o s e x a lta d o s n o R io d e J a n e iro
■ 7 0 ■
O PERÍODO DAS REGÊNCIAS
17jul Escolha da Regência Trina Permanente
Motins no Rio deJaneiro, Pernambuco e outras localidades
1832 M o t in s n o R e c ife
Tem início em Pernambuco e nas Alagoas a Caba-
nada, que durará até 1836
Câmara dos Deputados aprova reforma constitu­
cional
1833 C o n flit o s d e ru a n o R io d e J a n e iro c o n t ra a v o lt a
d e d . P e d ro I
José Bonifácio perde o cargo de tutor de d. Pedro II
Sedição federalista na Bahia
Revoltas da Fumaça e da Carranca, ambas em
Minas Gerais
1834
ago A t o A d ic io n a l à C o n s titu iç ã o
set M o rt e d e d . P e d ro I, e m P o rtu g a l
1835 Tem início no Pará a Cabanagem, movimento que
durará até 1836
F e ijó é e le ito R e g e n te U n o
T e m in íc io n o R io G ra n d e d o Su l a R e vo lta F a r­
ro u p ilh a , q u e d u ra rá a té 1 8 4 5
Revolta dos Malês, em Salvador
1837 F e ijó re n u n c ia à R e g ê n c ia e é s u b s titu íd o p o r P e d ro
d e A r a ú jo L im a
Início do “Regresso”
Tem início na Bahia a Sabinada, movimento que
durará até 1838
71
MARCO MOREL
18 3 8 Tem início no Maranhão e no Piauí a Balaiada, que
durará até 1842
Revolta de Manoel Congo, no Rio de Janeiro
18 3 9 República Juliana, em Santa Catarina
18 4 0 L e i d e I n te rp re ta ç ã o d o A t o A d ic io n a l
A n te c ip a ç ã o d a m a io rid a d e d e d . P e d ro II/ in ic io
do Segundo Reinado
18 4 1 Revisão do Código de Processo Criminal
18 4 2 Revoltas Liberais em Minas Gerais e São Paulo
18 4 8 Revolta Praieira, em Pernambuco
• 7 2 ■
Referências e fontes
p. 7: O livro de João Manuel Pereira da Silva (1817-
1894) é H istória do B ra z il dura nte a m enorida de d e
D . P edro I I (1831 a 1 8 40 ), Rio de Janeiro, B.L.
G arnier, 1878, 2a ed., p.VII.
p. 16-18: Para comparação entre a França e o Brasil ver
Marco Morel, “Le roi, le peuple et la nation: méta-
morphoses du libéralisme politique en France et au
Brésil (1830-1831)”, C ahiers du B résil C ontempo-
rain n.2 3 , Paris, EHESS, p. 59-75.
p. 31-39: As análises sobre os partidos foram retiradas
de Marco Morel, L a form a tion d e 1’espa ce p u b lic
m oderne à R io de J a neiro (1 8 2 0 -1 8 4 0 ): O pinión,
a cteurs et socia b ilités, tese de doutorado, Paris, U F R
d’Histoire, Université de Paris I, 1995, parte I.
p. 44: Charles D arwin, O Beagle na A mérica do Sul,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
p. 46: Stuart B. Schwartz, S egredos internos: E ngenhos e
escra vos na socieda de colonia l, São Paulo, Compa­
nhias das Letras, 1995, parte I V.
p. 47: K átia de Q. Mattoso, B a hia século XIX. U ma
p rovíncia no L mpério, Rio de Janeiro, Nova Frontei­
ra, 1992, cap.30.
p. 48: Sobre o G rande Fateusim Nacional, ver Marcello
Basile, E z eq uiel C orrêa dos S antos: Um ja cob ino na
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  • 1. ¡I f JORGE ZAHAR EDITOR
  • 2. M arco M o rei O Perío d o d as Reg ên cias (1831- 1840) Jo r g e Z a h a r Ed it o r Rio de Jan eiro
  • 3. Co pyrig ht © 2 0 0 3 , Marc o Morel Copyright © 2003 desea edição: Jorge Z ahar E ditor Ltda. rúa México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@ zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Composição eletrônica: TopTextos E dições G ráficas Ltda. Impressão: G eográfica E ditora Capa: Sérgio Campante Ilustração da capa: G uerrilh a s, de Rugendas V inheta da coleção: ilustração de D ebret CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Morel, Marco, 1960- M84p O período das Regências, (1831-1840) /Marco Morel. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed-, 2003 il.; - (D escobrindo o Brasil) Inclui bibliografia ISBN 85-7110-746-7 1. Brasil —História —Regências, 1831-1840.1. Título. II. Série. CD D 981.042 03-1839 CD U 94(81)'* 1831/1840"
  • 4. Sumário Introdução 7 A queda do primeiro imperador 10 O “carro da revolução” 20 A sociedade multifacetada 31 Rebelar e revelar 51 Autocrítica de um revolucionário 66 C ronologia 70 R eferência s e fontes 73 S ugestões de leitura 75 S obre o a utor 78 I lustra ções (entre p .40-41)
  • 5. Créditos das ilustrações 1. L ito g ra fia d e F .A. Se rra n o , s/ d. 2. F o lh a d e ro s to d o p rim e iro n ú m e ro d e O Repúblico, p u b li­ c a d o e m 2 . 1 0 . 1 8 3 0 . 3 . A liberdadeguiando opovo. Ó le o s/ tela de E ug én e D e la c ro ix , 18 3 0 . 4 . E s ta m p a a trib u id a a R a fa el M en d e s de C a rva lh o , 18 4 0 . L ito g ra fia d e F red eric o G u ilh e rm e B rig g s. 5 . C a ric a tu ra d e M a n o e l A ra ú jo P o rto A le g re , 18 3 7 . L ito g ra fia d e V íc to r L arée. 6 . C a ric a tu ra d e M a n o e l A ra ú jo P o rto A le g re , 18 3 6 . 7 . E sta m p a a n ó n im a d e 18 3 9 . L ito g ra fia d e F red eric o G u i­ lh e rm e B rig g s. 8 . Negra ao violão, padre dançando. A q u a re la , g u a c h e e tin ta fe rro g rá fic a , a n ó n im o , c . 18 2 9 . 9 . Rua Direita, Rio de Janeiro. G ra vu ra de R u g en d a s, s/ d. L ito g ra fía de E n g e lm a n n .
  • 6. Introdução O período das Regencias (1831-1840) foi considerado como “o mais interessante, dramático e instrutivo da Historia do B rasil” por João Manuel Pereira da Silva, um de seus primeiros historiadores. E ntretanto, não é exagero afirmar tratar-se também de um dos momen­ tos históricos menos conhecidos, talvez justamente pela complexidade e variedade de sinais que nos trans­ mite. Além de parecerem labirinto, as Regencias en- contram-se enquadradas em determinadas abordagens que dificultam ainda mais a compreensão. Em primeiro lugar, o período em questão foi tacha­ do de caótico, desordenado, anárquico, turbulento e outros adjetivos conexos. Este era o discurso de parte dos grupos dirigentes da época, envolvidos nos emba­ tes de construção do Estado nacional brasileiro e bus­ cando formas de legitimar o exercício de poder e de coerção. Tal postura fixou-se na pena dos historiadores monarquistas do século X I X , perpetuou-se em ramos da historiografia e ainda hoje pode ser lida e ouvida com certa freqüência.
  • 7. MARCO MOREL Num campo oposto, optou-se por enfocar as rebe­ liões do período (que não foram poucas) como forma de trazer à tona aspectos de conflito, resistencia e opressão da sociedade brasileira. Essa perspectiva, em­ bora mais promissora, ainda deixa alguns problemas. Um deles é o risco do anacronismo, quando a preocu­ pação em denunciar situações do presente pode levar os que escrevem ou contam história a “adequá-la” às questões imediatas do tempo atual, prejudicando assim a compreensão mais ampla e específica daquelas lutas. A soma de variáveis e paradoxos pode desanimar pesquisadores, sobretudo os que se apegam à fórmula explicativa prévia, bem assentada e imune a dissonân­ cias, em geral visando a uma narrativa onde tudo se encaixa às mil maravilhas... Sem esquecer o risco de simplificação didática que encobre qualquer matéria: uma explicação mais cômoda e esquemática (ainda que repleta de boas intenções) tende a cristalizar temas que poderiam ser problematizados e renovados; estimula a “decoreba” de nomes, datas e episódios esvaziados de sentido; enfim, espanta qualquer curiosidade. Q uem ainda lembra os nomes dos sete regentes provisórios, trinos e unos? Vistas como espécie de parênteses ou hiato entre os reinados de dois Pedros (um interregno!), as Regências não raro são varridas para baixo do tapete, ficando apenas uma ponta à mostra. • 8 •
  • 8. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS Apesar de tantos fatores, o interesse pelo período regencial vem crescendo, sobretudo em teses e pesqui­ sas académicas que ainda não tiveram repercussão jun­ to a um público mais ampio e que este trabalho pro­ cura, em parte, incorporar. Meu enfoque sobre as Regências tende a concordar com a avaliação daquele antigo historiador, mas apon­ tando para caminhos diversos. Penso que o período regencial pode ser visto como um grande laboratorio de formulações e de práticas políticas e sociais, como ocorreu em poucos momentos na historia do Brasil. Nele foram colocados em discussão (ou pelo menos trazidos à tona): monarquia constitucional, absolutis­ mo, republicanismo, separatismo, federalismo, libera­ lismos em várias vertentes, democracia, militarismo, catolicismo, islamismo, messianismo, xenofobia, afir­ mação de nacionalidade, diferentes fórmulas de orga­ nização de E stado (centralização, descentralização, po­ sições intermediárias), conflitos étnicos multifaceta- dos, expressões de identidades regionais antagônicas, formas de associação até então inexistentes, vigorosas retóricas impressas ou faladas, táticas de lutas as mais ousadas... A lista seria interminável. Essa movimentação envolveu setores ampliados, desde escravos, índios, grupos urbanos, rurais, intelec- (liais, camadas pobres, nobres, grandes e pequenos proprietários, cujos comportamentos políticos podiam não corresponder de maneira simétrica ao que se espera
  • 9. MARCO MOREL das respectivas posições na hierarquia da sociedade. O período regencial representou momento de explosão da palavra pública em suas múltiplas (e nem sempre tranquilizadoras) possibilidades, momento de plurali­ dade que, se não foi puramente “desordeiro”, também não significou somente expressão de posições monolí­ ticas e definidas. A importância do período regencial coloca-se por­ que, dilacerante, ele foi momento-chave para a cons­ trução da nação brasileira, quando, ao custo de muitas vidas e despesas, garantiu-se a independência e o cami­ nho de uma ordem nacional, com determinadas carac­ terísticas. A estrutura política — que se pretendia consolidar como E stado nacional — abalava-se pela ausência de poder centralizado na figura do monarca e pela emergência de atores históricos variados com suas demandas sociais. O Brasil recém-independente pare­ cia prestes a se despedaçar, mas acabou tomando um rumo. O período regencial foi, portanto, tempo de esperanças, inseguranças e exaltações, tempo de rebel­ dia e de repressão, gerando definições, cujos traços essenciais permanecem na sociedade. A queda do primeiro imperador Nos idos de 1827 chega às mãos de d. Pedro I uma carta do escritor e político suíço-francês Benjamin Constant ■ 1 0 ■
  • 10. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS (um dos criadores do moderno liberalismo) com algu­ mas sugestões, ou conselhos, sobre o destino pessoal do monarca luso-brasileiro diante de encruzilhada: a crise dinástica portuguesa e a situação brasileira, que vislum­ brava momentos preocupantes. Como se sabe, d. João V I faleceu sem esclarecer sua sucessão e, legalmente, d. Pedro torna-se ao mesmo tempo imperador do Brasil e herdeiro do trono de Portugal. D. Pedro, então, assume por algum tempo as duas coroas (ou seja, reunificando Brasil e Portugal sob uma mesma direção, pouco mais de três anos após a independência) e outorga uma Constituição para o reino de Portugal nos moldes da Carta liberal e também outorgada do Brasil. Em seguida, renuncia ao trono lusitano em nome de sua filha, Maria da G lória. Tal medida é contestada pelos setores tradicionalistas e identificados com o ainda vivo Antigo Regime portu­ guês: o irmão de d. Pedro, d. Miguel, arroga para si o trono, sendo então considerado usurpador por d. Pe­ dro e seus partidários. No Brasil, a monarquia recém-confirmada após a independência enfrenta e cria hostilidade diante das repúblicas vizinhas, da qual a G uerra Cisplatina, en­ volvendo Brasil e Argentina numa disputa pelo terri­ tório do atual Uruguai, é a parte mais aguda. Ao mesmo tempo, em 1826 aAssembléia G eral Legislativa do Império do Brasil (Câmara dos D eputados) e o Senado começam a funcionar pela primeira vez, pro- 11
  • 11. MARCO MOREL piciando, assim, canais de expressão e. participação política, que se estendem pela imprensa. O poder Legislativo torna-se interlocutor de peso para o mo­ narca, que concentra os poderes E xecutivo e Mode­ rador. Começa, pois, a despontar uma tensão, que se agravaria. Na carta manuscrita em francés, em cuidadosa cali­ grafia, B enjamín Constant dizia sem meias palavras: d. Pedro deveria abdicar ao trono do Brasil, em nome do príncipe herdeiro, e deixar uma Regencia sábia e mo­ derada governando durante sua menoridade. Dessa forma — continuava — estariam garantidos a ordem, a monarquia e o sta tus quo, enquanto d. Pedro, que seria sempre visto como representante da tirania no Brasil (devido à comparação com as repúblicas ameri­ canas), passaria a ser saudado como paladino das liber­ dades na E uropa. As crises cruzavam-se na sociedade brasileira. No campo político, acentuava-se a queda de braço entre o Legislativo (deputados) e o poder do imperador, apro­ fundada com a segunda legislatura de 1830, quando medidas governamentais eram duramente criticadas. Pesava também a interferência de d. Pedro I na situação ibérica, valendo-lhe o estigma de “português”, sem falar das levas de soldados e civis portugueses que, fugidos de d. Miguel, desembarcavam no Brasil e eram acolhidos pelo monarca e mantidos pelos cofres públicos. ■ 1 2 ■
  • 12. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS O campo econômico não era mais fácil. A inflação aumentava, a carestía atingia amplos setores. O gover­ no monárquico brasileiro estava cerceado em uma de suas principais fontes de renda, os impostos sobre os produtos importados. A renovação em 1827 do Trata­ do de Aliança e Amizade com a Inglaterra (nos mesmos termos de 1810) mantinha tarifa preferencial de 15%, isto é, mais baixa, para os produtos ingleses. Inconfor­ mados com a desigualdade de tratamento, os demais países, que tinham que pagar taxas de 24% , pressiona­ ram. E acabaram obtendo vantajosa nivelação por baixo, com a tarifa preferencial estendida a todos em 1828 — o que resultava em menos arrecadação para os cofres brasileiros. A Câmara dos D eputados barrava aumentos de impostos internos. A emissão de dinheiro (e a circulação impressionante de moedas falsas de cobre), além de aumentar a inflação, atingia de perto o bolso das camadas menos privilegiadas. Acirrava-se a tensão entre comerciantes (a maioria portugueses) e boa parte da população, acentuando as cores do anti- lusitanismo, inclusive nos meios populares. Haviaforte temor, referendado por tantos indícios, de reunificação entre Brasil e Portugal, isto é, da recolonizaçao. O utra fonte de recursos foi a dívida externa, inau­ gurada em 1824 com empréstimos ingleses que se repetiam rapidamente, cujo pagamento só fazia agravar as condições financeiras do país recém-independente. A pressão inglesa pelo fim do tráfico de escravos gerava 1 3
  • 13. MARCO MOREL descontentamentos entre grandes proprietários e tra­ ficantes, deixando o governo espremido entre duas forças. Além de tudo, o Brasil saíra derrotado da guerra continental, perdendo a província Cisplatina de seu território e agravando o panorama: gastos bélicos, des­ gaste político e moral. E as repressões internas — mortes, prisões e exílios de adversários — acumulavam rancores. Em setembro de 1830 um episódio que poderia ser banal tornou-se centro das atenções na capital brasilei­ ra, exacerbando ânimos. Nada de muito grandioso, para quem olha mais de século e meio depois, mas há eventos que se tornam descartáveis ou esquecidos após terem monopolizado atenções e parecido importantes, pelo menos para quem os vivenciou. Marinheiros do navio militar francês L a C aroline, ancorado na Praia G rande (atual Niterói), desceram em terra para caçar e adentraram nos terrenos do fazendeiro Manuel Fran­ ça, apelidado de Cavalão. Este, que não gostava de intrusos em sua propriedade e fazendo jus ao apelido, juntou seus escravos e botou os franceses para correr debaixo de bastonadas. Os ofendidos não deixaram por menos, retornaram em bando armado, amarraram o proprietário brasileiro num tronco e chicotearam-no, acrescentando insultos como “brasileiro de merda” e “mulato tem que abaixar a cabeça para os franceses”, entre outras afirmações do gênero.
  • 14. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS O fazendeiro participava de círculos influentes e era irmão do deputado Sousa França (futuro ministro da Justiça). A agressão tornou-se escândalo, ocupando os jornais, as conversas de rúa e das casas, beirando o incidente diplomático, mobilizando ministros brasilei­ ros e os representantes franceses. Num contexto de afirmação da nacionalidade, que sempre sucede as proclamações de independencia, as ofensas foram con­ sideradas dirigidas ao povo brasileiro como um todo. Jornais de oposição como A urora F luminense, A stréa e N ova L uz B ra z ileira tomavam o caso em mãos, exigiam» indenização e retratação pública das autoridades fran­ cesas. A França passou a ser vista como exemplo de brutalidade, de dominação colonial (a tomada deAlger acabara de ocorrer), de política carcomida do Velho Mundo... Até mesmo Evaristo da Veiga parafraseou versos de sua autoria no H iño da I ndependencia , reafir­ mando a identidade americana do Brasil e repudiando as instituições européias. No auge dessa polêmica chegam outros navios fran­ ceses aos portos brasileiros, arvorando não mais o estandarte branco com a flor-de-lis (símbolo da mo­ narquia restaurada) e sim a bandeira azul, branca e vermelha da Revolução Francesa. O que ocorrera, per- l>untavam-se as pessoas perplexas aglomerando-se no t ais? Uma insurreição que começara em Paris em fins tle julho de 1830, (conhecida como Três Jornadas de lullu)), com direito a barricadas e conflitos armados, ■ 1 5 •
  • 15. MARCO MOREL destronara o rei Carlos X , identificado ao despotismo e às permanências do absolutismo. O último dos Bour- bons era varrido de cena, reacendendo a flama de 1789- Em rápida manobra política, tirando o poder das “ruas”, foi coroado o duque Luís Felipe de O rléans, chamado de “rei cidadão”. A mudança de referências no Brasil foi instantánea. A França passou a ser designada pela mesma oposição liberal como pátria das Luzes, da civilização, e exemplo de liberdade para o mundo. A assimilação Carlos X Pedro I foi imediata. Nas cidades brasileiras ocorreram festejos pela queda do monarca... francês, com alusões pouco sutis ao imperador do Brasil. A oposição subia de tom. Aliás, uma comparação com a imprensa francesa nos meses que antecederam as Três Jornadas de Julho (jor­ nais como o moderado L e N a tiona l e o neojacobino L a T ribune des D épa rtements) deixa evidente que esta era mais prudente e contida do que viria a ser a imprensa oposicionista brasileira antes da saída de d. Pedro I. Constatação que põe em xeque análises, repetidas, de que o liberalismo da França seria mais “avançado” que o do Brasil, de que as idéias e fatos franceses teriam “influenciado” os rumos políticos do Brasil, como o próprio fim do Primeiro Reinado. Porém, o que se percebe é que a linguagem e as proposições da imprensa brasileira nesse momento foram mais contundentes e arrojadas, inclusive no que se referia à soberania do 1 6
  • 16. O PERÍODO DAS REGÊIÍCIAS monarca e ao direito de resistencia dos povos. O u seja, os “influenciados” acabam escolhendo, por seus pró­ prios critérios e interesses, que tipo de “influência” valorizar. Havia outros exemplos usados pelos protagonistas, dentro do quadro ibero-americano, tal como a compa­ ração de Pedro I ao despotismo de Fernando V I I , na E spanha. E mesmo a deposição e morte de Simon Bolívar, naqueles dias, serviriam para comparações sugestivas: Bolívar era visto pelos liberais brasileiros como Libertador que se tornaia déspota e traidor, enquanto os partidários do governo imperial brasileiro elogiariam a saga bolivariana por suas tentativas de 1centralizar e unificar... as Américas. Assim, além da máscara de Carlos X , d. Pedro I foi também associado de maneira negativa a Bolívar e Fernando V I I , no contexto que resultaria em seu afastamento definitivo do Brasil. O imperador reúne o Conselho de E stado para avaliar o quadro. E ntre os pareceres de dez conselhei­ ros, sete temiam ameaças da ordem e mesmo uma revolução no Brasil, seis atribuíram o enfraquecimento do prestígio do monarca à imprensa de oposição e cinco jogavam a responsabilidade pelo clima político nas Três Jornadas parisienses. Seis dos conselheiros propuseram o adiamento da próxima sessão legislativa, cm tentativa de serenar os ânimos, e apenas o ministro da G uerra, general Tomás Joaquim Pereira Valente, ■ 1 7 ■
  • 17. MARCO MOREL conde do Rio Pardo, defendeu o fechamento da Cá­ mara dos D eputados pelo imperador, sem previsão para reabertura. O campo estava minado. As conspirações se acen­ tuaram. Tensões, insatisfações e ressentimentos aflora­ vam. Boa parte dos políticos brasileiros que emergia naqueles anos começou a conspirar contra d. Pedro I, que, por sua vez, isolava-se num círculo palaciano estreito e conservador, identificado ao campo político chamado de “português”. E ntre os dias 11 e 14 de março de 1831 eclodiram no Rio de Janeiro violentos conflitos de rua envolvendo portugueses e brasileiros, episódio conhecido como Noite das G arrafadas, do qual foi estopim, entre outros, Antonio Borges da Fonseca, redator de O R epúblico. Em Salvador, a cidade foi tomada por embates do mesmo gênero, e até mais violentos: as cenas dos Mata Marotos, quando comer­ ciantes portugueses foram linchados nas ruas e muitas casas saqueadas, em 13 de abril (a notícia da abdicação ainda não chegara à Bahia), evento no qual se envolveu Cipriano Barata, redator do periódico S entinela da L iberda de que passara quase todo Primeiro Reinado como preso político. D. Pedro I ainda tenta salvar a situação e convoca a 19 de março, pressionado pelas manifestações, um novo ministério, no qual predominam políticos brasi­ leiros da nova geração. Mas, sentindo-se acuado, a 5 de ■ 1 8 ■
  • 18. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS abril o monarca monta outro gabinete ministerial, integrado por cinco marqueses e um visconde, à ma­ neira do Antigo Regime. O campo minado era o Campo de Santana, no Rio de Janeiro, sede das principais unidades militares, onde começou um ajuntamento de tropas e de civis. Nicolau Vergueiro, senador, dirigente maçom, abandonou as reuniões secretas e foi um dos que ganhou as ruas da cidade imperial, que se enchiam de gente ávida de cidadania, gente da “boa sociedade”, mas muitos anô­ nimos também. O general Francisco de Lima e Silva, principal nome do esquema militar do imperador, aderiu à manifestação com seus subordinados e aliados. “Tropa” e “povo”, segundo as palavras da época, julga- ram-se soberanos e empurraram o governante supremo contra a parede. E mbora não fosse de todo imprevista, a situação precipitou-se. Isolado no palácio, d. Pedro I busca a fórmula da abdicação em nome do príncipe herdeiro, prevendo em seu lugar uma Regência que deveria ser, retomando as palavras de Constant, sábia e moderada em defesa da ordem, da monarquia e da dinastia. O calendário marcava 7 de abril de 1831. O Campo de Santana foi rebatizado de Campo da Honra, enquanto o agora ex-imperador desvencilhava-se da encruzilhada e zarpava com parte de sua família de volta à E uropa. Começava uma inusitada — e impre­ visível — fase da história do Brasil.
  • 19. MARCO MOREL O "carro da revolução" Fechar o abismo da revolução e parar o carro revolu­ cionário. Essas duas frases de Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos políticos mais influentes durante as Regencias, sintetizam uma preocupação que se re­ petia em discursos e clamores. Não foi à toa que “revolução” se constituiu em palavra-chave de uma era, à qual pertence o período regencial brasileiro. Q uando se falava em revolução em meados do século X I X , não se tratava apenas de jogo de palavras com intuito de iludir ou reprimir, nem de uma espécie de premonição do marxismo, e, por outro lado, já não se sustentava mais o tradicional registro astro­ nômico empregado para a palavra, de retorno a um ponto antigo. Esse termo, polissêmico, não se limitaria à Revolução Francesa (ainda que incluindo-se nela o período napoleónico até 1815) e nem estaria restrito ao binômio revolucionários e contra-revolucionários, sobretudo no século X I X , durante o qual as heranças e releituras da Revolução Francesa foram múltiplas e complexas. A revolução não era apenas quartelada ou transfor­ mação violenta e ilegal (embora esse sentido fosse utilizado), mas aparecia como inevitável divisor de águas na cena pública, como se tivesse vida e movimen­ tos próprios. O “carro da revolução”, nesse sentido, associava-se à idéia de progresso e relacionava-se, de 2 0
  • 20. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS maneira conflituosa e complementar, com a perspecti­ va de evolução. O que fazer com a revolução? Havia basicamente três respostas: negar (os absolutistas ou ultramonarquistas), completar e encerrar (vertente conservadora do liberalismo) e continuar (vertente revolucionária do liberalismo). Impossível era ignorá- la. E stavam em jogo o rumo da sociedade e suas transformações. Nessa linha situava-se o debate em torno dessa palavra com a saída de d. Pedro I do trono. Não se limitava a uma discussão semântica. Inspirados pelas “idéias do século”, os moderados brasileiros viviam um paradoxo: pretendiam justificar c encerrar a revolução sem jamais terem participado de uma. Em outras palavras: aspiravam ao fim de um processo revolucionário que jamais deveria existir, ape­ sar dos esboços de uma memória de ruptura revolucio­ nária que eles tentaram criar para o Brasil em alguns momentos, como 1831. Até o 7 de abril, o jornal A urora F lum inense, redigido por Evaristo da Veiga, se abstinha de pregar uma revolução. Mas, com a desti­ tuição do imperador, em suas páginas começou a se entrever a revolução, não sem surpresa, aliás. A com­ paração com o exemplo francês (as Três Jornadas de Julho de 1830) era o mote: “ A nossa revolução gloriosa cm nada teve que invejar os três dias de Paris. Os atos ilc desinteresse e de generosidade, tão admirados na liança, foram reproduzidos aqui, e se encontrarão até cutre as pessoas da mais infeliz posição social.” ■ 2 1 ■
  • 21. MARCO MOREL Interessante assinalar que uma revolução glorificada e celebrada pertence ao passado. Graças a sua caracte­ rística nacional, o movimento tinha, para alívio do redator, encoberto os conflitos sociais. E não é por acaso a comparação com a revolução parisiense do ano anterior: servia para acentuar o caráter nacional, os interesses mais amplos e soberanos da nação, mas deixava entrever a presença das camadas pobres na cena pública. A revolução, ainda que inesperada, estava feita. E ra preciso encerrá-la o mais rápido possível. E para isso nada melhor que celebrar, pois as celebrações se repor­ tam ao passado... A idéia de conclusão, de ponto final do processo revolucionário, transparece na insistência destas linhas de Evaristo da Veiga, vinte e dois dias após a abdicação de d. Pedro I: “ A nossa revolução foi começada e concluída com tanta glória, e querem agora lançar-lhe nódoa?” Q ualificando a abdicação do imperador de revolu­ ção, os moderados ensaiavam não enganar, mas aplicar engenhosa operação política com duas dimensões: le­ gitimar a construção de uma nação nos feitios de seus interesses e frear a possível corrida do processo revolu­ cionário. Uma quinzena antes do afastamento de d. Pedro I do poder, Borges da Fonseca, liberal exaltado, escrevia com todas as letras: quando o governo é opressor e injusto, a resistência à opressão é direito natural. A idéia ■ 2 2 ■
  • 22. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS de revolução toma, nesse caso, significado de mudança política violenta praticada como direito natural pelo “povo” e tendo como causa a opressão dos governos despóticos. Mas uma questão concreta colocava-se: havia uma revolução em curso no Brasil? A posição de Borges da Fonseca no inicio das Re­ gencias era clara em meio às suas exclamações no jornal O R epúblico: “Porem com que G loria, Brazileiros, fize­ mos a nossa Revolução? Como com tanta facilidade nos rejeneramos?... Mas, Considadáos, indamuito nos resta, resta a conclusão da grande obra incetada. Creio qe d’alguma sorte ei merecido o vosso conceito; é tempo de moderassão.” Relendo tal texto, de curiosa escrita ortofónica, destacamos três aspectos. Primeiro, a revolução aparece como regeneração, tema bastante tradicional, seja me­ táfora (a cura de um corpo doente), seja um movimen­ to para restaurar antigos direitos usurpados. Ao mesmo tempo, as proposições de Borges da Fonseca não são monolíticas, mas híbridas, pois ele enuncia também a perspectiva eminentemente moderna de que a revolu­ ção não acabou. Ao contrário, ela seria um processo por começar, convicção que balizaria nos anos seguin­ tes a atividade desse personagem, envolvido em rebe­ liões. E o apelo à moderação parece traduzir mais as alianças daquele momento de 1831 do que exatamente uma definição de princípios. Assim* oj discursos dos • 2 3 ■
  • 23. MARCO MOREL exaltados (e suas práticas) constituem-se num hibridis­ mo entre referências tradicionais e modernas. Cipriano Barata, que não participou diretamente da composição política que desaguou no 7 de abril, iria mais longe e criticaria, no S entinela da L iberdade, os que estavam “empenhados em fazer revolução segundo a Lei — o que é absurdo — e deixaram tudo quase no mesmo estado”. Para Cipriano, portanto, não havia revolução alguma. E esta não era apenas uma questão de vocabulário. E m pólo contrário, o jornal O C aramuru, porta-voz dos restauradores, definiu sua linha: defesa da Consti­ tuição sem reformas; recusa da idéia de revolução (mais precisamente quanto à abdicação) e fidelidade ao im­ perador — sem explicar se se tratava de Pedro I já deposto ou de Pedro I I ainda não entronizado. Compreender a abdicação de d. Pedro I como mera substituição de governante controlada “pelas elites” seria empobrecer a dimensão desse período e de suas conseqüências, bem como a diversidade de atores his­ tóricos que emergiam e se envolviam, buscando inter­ vir. A saída do monarca representou enfraquecimento do poder centralizador exercido com peso de séculos, possibilitando explosão da palavra pública como nunca ocorrera no território (que se pretendia) brasileiro. Já no dia 7 de abril diversos setores da sociedade sentiam essa espécie de vertigem, comportas abertas e possibilidades amplas. E varisto, Borges da Fonseca, as • 2 4 ■
  • 24. O PÍRÍODO DAS REGÊNCIAS lideranças políticas unanimemente pediam calma, pois todos estavam imersos no mesmo caldeirão e perce­ biam que o estopim aceso iria longe. R egência T rina Provisória. Para evitar o vazio de poder, reuniram-se no Rio de Janeiro os deputados e senado­ res que ali se encontravam (era recesso legislativo) com os ministros nomeados dois dias antes por d. Pedro I. Do encontro saiu uma Regência Trina Provisória, com­ posta pelo general Francisco de Lima e Silva (chefe militar, representava “a tropa”), o senador Nicolau Vergueiro (atuante na sedição contra d. Pedro, encar­ nava “o povo”) e José Joaquim Carneiro de Campos (marquês de Caravelas, tradicional membro da Corte do Primeiro Reinado). O triunvirato expressava impro­ visada tentativa de arranjo político e_governou_pouco mais de 60 dias. Foi preciso dar um pequeno drible na Constituição, que previa composição diferente para a Regência em caso de ausência do monarca e menori- dade do herdeiro. Esse governo provisório tomou algumas medidas. D ecretou anistia para todos os presos, condenados ou sentenciados por crimes políticos até aquela data. Ine­ gável a generosidade do gesto, mas hoje podemos supor que a intenção talvez fosse esvaziar as prisões... para poder ocupá-las de novo. Pois, no final do ano, haveria cerca de 500 presos, a maioria por motivos políticos, somente na capital do Império. Foram proibidos ajun- ■ 2 5 ■
  • 25. MARCO MOREL tamentos ptiblicos na capital (o medo do vulcão). E aprovou-se lei que determinava atribuições e limites ao poder dos regentes, com nítida supremacia do Legisla­ tivo: cabia a este aprovar (ou reprovar) os ministros. Q uanto aos chefes do E xecutivo, exerceriam um poder Moderador esvaziado de suas principais atribuições: nada de declarar guerra ou estado de sítio, nem de nomear conselheiros ou dissolver a Assembléia. Até mesmo a distribuição de títulos de nobreza e condeco­ rações foi suspensa, para desespero dos cortesãos (e aspirantes). A monarquia aparentava fraqueza. Pode-se caracterizar a prisão de Cipriano Barata em Salvador por “desordens”, em 28 de abril, e sua trans­ ferência para o Rio de Janeiro como o primeiro fato político importante ocorrido no Brasil após a abdica­ ção de d. Pedro I, com repercussão na imprensa, nos grupos envolvidos em debates políticos nas principais cidades (incluindo as camadas pobres), entre os diri­ gentes da Corte e até no meio dos agentes diplomáticos estrangeiros, que relataram a seus países a detenção. Tal encarceramento soava como primeiro sinal da divisão das forças que haviam se unido no combate ao ex-imperador e apontava para divergências que se am­ pliariam. Acompanhando as mudanças no epicentro do Im­ pério, pelas províncias ocorreram abalos em diferentes graus. Na Bahia, tensão e violência social eram grandes, levando à renúncia do presidente da província, Luís ■ 2 6 ■
  • 26. O PERÍODO DAS REGENCIAS Paulo de Araújo Bastos, e do comandante das Armas, brigadeiro João Crisóstomo G alado. Também no Pará o presidente da província, barão de Itapicurumirim, chegou a ser destituído por um motim, encabeçado pelo cônego Batista Campos, mas conseguiu voltar ao cargo. Nessas duas províncias era forte a presença dos exaltados, com influência entre as camadas pobres da população. A exclusão dos exaltados do poder central e a hegemonia que seria imposta pelos moderados (em nome do combate simultâneo ao antigo “absolutismo” e à “soberania popular”) acarretariam outros conflitos. R egência T rina P erma nente. Após um período de reu­ niões regulares, os deputados e senadores elegeram, a 17 de junho, a Regência Trina Permanente, composta pelo mesmo general Lima e Silva e pelos deputados José da Costa Carvalho (marquês de Monte Alegre) e José Bráulio Muniz. Na verdade, durante o período das Regências Trinas, que duraria quatro anos e cinco gabinetes ministeriais, a figura principal entre os regen­ tes foi Francisco de Lima e Silva. Coloca-se, desse modo, a existência de uma militarização do poder político no período monárquico, efetivada também pela presença de um Comandante das Armas em cada província, nomeado pela administração central e com poder de intervenção sobre as autoridades locais — viés ainda pouco explorado pelos estudos históricos. Fran­ cisco de Lima e Silva (pai do futuro duque de Caxias) ■ 2 7 ■
  • 27. MARCO MOREL era o principal membro de influente família de chefes militares: ficara marcado por ter pessoalmente ordena­ do o fuzilamento de frei Caneca e de diversos envolvi­ dos na Confederação do E quador, através de comissões militares sumarias. Mas o ano de 1831 ainda não acabara e seria intenso: marcava o ímpeto inicial. No plano dos embates insti- tucionais_e parlamentares, o clima político de liberdade levou a Câmara dos D eputados a aprovar uma série de reformas na Constituição que, se implementadas, se­ riam as mais ousadas de todo o período monárquico, no âmbito das mudanças políticas. Os principais pon­ tos previam que: • o Império se tornaria uma monarquia federativa • o poder Moderador seria extinto • o senadores seriam eletivos e temporários • as eleições parlamentares seriam bienais • o Conselho de Estado seria extinto O federalismo, como se sabe, aparecia como contra­ ponto a uma organização centralizadora que, herdada do E stado português, permanecia e se rearticulava após a independência. O poder Moderador (chave-mestra da ordem política, segundo a Constituição, e da opres­ são, segundo os exaltados), exercido pelo monarca, funcionava, na prática, como extensão do Executivo. O Senado vitalício e os conselheiros, por sua vez, eram uma dás bases políticas do exercício do poder imperial. E o Senado brecou essas reformas, gerando impasse. - 2 8
  • 28. o p e r ío d o d a s r e g e n c i a s O personagem que se destacaria no poder E xecutivo durante as Regências Trinas foi o ministro da Justiça, padre D iogo Feijó, que assumiu a pasta com superpo- deres, equivalentes aos de um primeiro-ministro. D e­ pois seria eleito o primeiro regente uno em 1835 (derrotando Holanda Cavalcanti de Albuquerque), num processo de eleição direta, em que todos os elei­ tores aptos escolheram o governante máximo da nação para uma gestão de quatro anos — semelhança formal que lévou alguns historiadores a qualificarem as Regên­ cias de experiência republicana. Feijó, em sua persona­ lidade e atuação, encarnava uma espécie de jansenismo tardio, levando o governo brasileiro a confrontos com a Santa Sé, por questões como o celibato clerical (Feijó era contra, mas ao que parece obedecia-o), o poder temporal da Igreja e a relação desta com a Coroa, já que ambas integraram o Estado brasileiro durante todo o período monárquico. O grupo do regente tentou separar a Igreja do Vaticano. E ntre as principais transformações do período no qual Feijó foi o principal dirigente do país tivemos a criação da G uarda Nacional, uma “milícia cidadã” voltada para o fortalecimento dos proprietários e se­ nhores locais e do poder central. Os motins e sedições espalhavam-se em proporção crescente por todo o país, em grande parte integrados por soldados das forças regulares, nas quais o governo não confiava màis para reprimir as contestações. ■ 2 9 ■
  • 29. MARCO MOREL O Código de Processo Criminal, aprovado em 1832, instituiu algumas mudanças que, teoricamente, tinham caráter democrático, como o papel dos juizes de paz que, escolhidos pelo eleitorado, possuíam con­ siderável poder de jurisdição. Instituiu também o ha - b ea s-corpus e o júri popular, além de alterar a organiza­ ção jurídica do país. A primeira reforma na Constituição de 1824 reali­ zou-se dez anos depois de sua promulgação através do Ato Adicional, que atendia a algumas demandas des- centralizadoras, como a criação de assembléias legisla­ tivas com maior grau de autonomia e deliberação, contemplando, assim, poderes regionais. E ntretanto, avançou pouco no plano da reforma tributária: a cen­ tralização dos recursos permaneceu nas mãos do gover­ no imperial graças à Lei de Responsabilidade Fiscal, de 1832, que classificava as rendas em provinciais e gerais, cabendo à administração central a partilha dos recur­ sos. Dessa maneira, como assinalou a historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra, os possíveis avanços descentralizadores contidos no Ato Adicional ficavam esvaziados, na medida em que continuavam faltando às províncias os necessários recursos. Imprensado por crises políticas, disputas entre os grupos dirigentes e rebeliões que se alastravam, o padre Feijó renuncia à Regência, sendo sucedido em 1837 pelo pernambucano (e partidário do centralismo) Pe- ■ 3 0 •
  • 30. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS dro de Araújo Lima, futuro marquês de O liijda. Co­ meça o chamado Regresso: a mão-de-ferro do E stado centralizador e autoritário vai retendo o controle da situação abalada, o poder político dos grandes proprie­ tários de terras e escravos se acentua. Os aspectos considerados mais democráticos ou descentralizadores do Código de Processo Criminal e do Ato Adicional seriam reinterpretados (eufemismo para sua anulação) por leis mais conservadoras. Com a morte do ex-imperador Pedro I como duque de Bragança em Portugal, em 1834, os restauradores perderam sua principal bandeira. Ao mesmo tempo, o temor do “abismo da revolução” conduzia a uma apro­ ximação destes com os moderados, isolando os exalta­ dos. Um dos primeiros gestos do regente Araújo Lima foi beijar a mão do jovem Pedro II, restaurando assim o secular beija-mão, que andava fora de moda. As comendas honoríficas foram restabelecidas. O Regres­ so resultaria na restauração plena (e antecipada) da autoridade monárquica constitucional em 1840: o car­ ro da revolução freava. A sociedade multifacetada Como compreender a sociedade, alguns de seus agen­ tes históricos e suas formas de participação política de um período tão curto e intenso como as Regências? • 3 1 ■
  • 31. MARCO MOREL F acetas política s. Do ponto de vista das tendencias e agrupamentos, é sabido que não havia (inclusive na E uropa ocidental) entre 1830 e 1840 partidos políticos no sentido que-se tornou corrente em fins do século X I X : o tipo ideal de partido-máquina, organizado a partir de determinados critérios que tomaram corpo sobretudo no século X X , não existia no período histó­ rico tratado aqui. Ao mesmo tempo, a partidarizaçã© possuía carga pejorativa, sobretudo num momento de afirmação da modernidade e da unidade nacional: os partidários eram associados às facções, ou seja, eram inimigos da pátria. A ação de formar um partido era vista como divisionista, ataque à integridade da ordem nacional — ainda mais num momento de consolida­ ção da independência. E ntretanto, tais características não precisam condu­ zir a uma visão negativista, como se não houvesse qualquer forma de organização política. O que se denominava partido político, na primeira metade do século X I X diferencia-se da compreensão atual: era mais do que “tomar um partido” e constituía-se em formas de agrupamento em torno de um líder, ou através de palavras de ordem e da imprensa, em determinados espaços associativos ou de sociabilidade e a partir de interesses ou motivações específicas, além de se delimi­ tarem por lealdades ou afinidades (intelectuais, econô­ micas, culturais etc.) entre seus participantes. Tais gru-
  • 32. O PERÍODO DAS REGENCIAS pos eram identificados por rótulos ou nomeações, pejorativos ou não. Nessa perspectiva, as lógicas que estruturam as divi­ sões políticas fundamentais se expressam na tripartição de soberanias corrente em princípios do século X I X : a soberania do rei, a soberania do povo e a soberania da nação. Não se trata de uma visão estanque e rígida entre três realidades distintas, mas da compreensão do con­ ceito de soberania além do “poder de decisão”, ou seja, como relações de poder, onde as decisões são resultado de uma tensão entre o governo e as forças políticas e sociais. No período regencial brasileiro emergiram três partidos, cuja gestação já vinha ocorrendo: E xaltado, Moderado e Restaurador, com fronteiras políticas de­ marcadas, embora mutáveis. Surgem, então, as primei­ ras associações públicas de caráter explicitamente polí­ tico no Brasil, como se verá a seguir. E ntre os exaltados havia proprietários rurais (não em maioria), profissionais liberais, militares, padres, fun­ cionários públicos, médicos... Os lugares de formação escolar não parecem também ser muito distintos dos demais liberais brasileiros da época. Identificavam-se através de jornais espalhados em diversas províncias, como a S entinela da L iberdade, de Cipriano Barata, N ova L uz B rasileira, de E zequiel Correa dos Santos, O R epúblico, de Borges da Fonseca e dezenas de outros títulos. Agrupavam-se em associações mais ou menos restritas, como as Sociedades Federais, a G rande Loja 3 3
  • 33. MARCO MOREL Brasileira e outras. Esses exaltados não participaram do poder central — pelo menos no momento em que cada um identificava-se com tal tendência. Seu ideário — de valorização da soberania popular — foi apropriado e incorporado por camadas pobres da população, tanto no meio urbano (motins dos anos 1831-1833 em várias capitais brasileiras) como no meio rural (Caba- nagem no Pará, entre outras). Os líderes exaltados faziam apelo à participação das camadas pobres da população na vida pública e acena­ vam contra a opressão econômica, social e étnica. Valorizavam também o federalismo e a descentraliza­ ção administrativa, englobando assim algumas oligar­ quias regionais. Fizeram uso de luta armada e identifi- cavam-se por determinadas palavras de ordem veicula­ das pela imprensa, como “Fora os corcundas” (os dés­ potas e seus aliados), “ Alerta!”, valorização da “G ente de cor” (mulatos, caboclos e negros livres), “Federação já”, “Morte aos Marotos” (ou “Portugueses malva­ dos”), “ Aristrocratas patifes”, “Liberdade dos povos”, entre outras expressões. Apresentaram boa dose de , divergência entre seus integrantes e condenavam a escravidão em diferentes graus, variando a forma e o ritmo com que propunham sua extinção, em geral de forma gradual. Os exaltados, por fim, nem sempre assumiam essa denominação, sendo também chamados por outros apelidos, como jurujubas e farroupilhas. 3 4
  • 34. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS E quilíbrio, ponderação e razão pareciam compor o lema dos moderados, vistos como expressão política dos interesses econômicos dos plantadores de café ou de comerciantes brasileiros das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. É verdade que as forças políticas que predominavam nessas três provín­ cias (mas não apenas nelas) identificavam-se aos mo­ derados, sobretudo durante as Regências, constituindo um núcleo de poder geograficamente situado em torno da Corte. E ram defensores de um E stado forte e cen­ tralizador e, deste modo, tiveram ramificações por todas as províncias, onde seus apelidos variavam, sendo o de chimangos um dos mais espalhados pelos adver­ sários. Um aspecto peculiar na noção de moderação: ela é freqüentemente apresentada (pelos protagonistas) como mais um comportamento do que uma posição política demarcada. Moderação seria assim uma espé­ cie de visão de mundo que permitiria posicionar-se sobre qualquer assunto, um critério para distinguir o que é sábio e civilizado, em harmonia com os costumes e o bom senso. Como se não estivessem em jogo ganhos políticos bem precisos. A moderação, enfim, era apre­ sentada como sinônimo de razão. E uma vez que o liberalismo pode ser explicado como expressão da “so­ berania da razão”, ele só poderia ser... moderado. O u­ tras palavras-chave associam-se à moderação: ju ste m i- lieu (justo equilíbrio), liberdade limitada, monarquia
  • 35. MARCO MOREL constitucional, soberania nacional, além da recusa do absolutismo e do despotismo e ambigüidade diante da idéia de revolução. Foram os moderados que deram o tom do poder político durante as Regencias. Agruparam-se em torno da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, que espalhou-se pelas províncias, chegando a mais de 90 instituições. E xpressavam-se em jornais como A urora F luminense, A stréa, O S ete de A bril, O C ensor B ra sileiro e dezenas de outros. E ntre seus inte­ grantes havia ferrenhos defensores do tráfico de escra­ vos, como Bernardo Pereira de Vasconcelos. Nesse período não fizeram uso da luta armada, nem costu­ mavam apelar para as camadas pobres da população se incorporarem ao jogo político, ainda que fosse sob a bandeira da moderação. Os restauradores compunham uma tendência cons­ titucional com forte matiz antiliberal (embora sem negar totalmente o liberalismo) no Brasil das décadas de 1820 e 1830, colocando em destaque a soberania monárquica diante das noções de soberania nacional ou popular. O restauracionismo demandava fortaleci­ mento de um Estado centralizador nos moldes da modernidade absolutista ou, então, apontava para o reforço do poder de antigos corpos sociais, como se­ nhores locais, oligarquias, clero e suas clientelas. Ou seja, convocavam e incorporavam as camadas pobres nas lutas políticas. Faziam apelo à luta armada, como 3G
  • 36. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS na Cabanada, em Pernambuco e Alagoas, na revolta de Pinto Madeira, no Ceará, e nos motins cariocas de 1832-1833. Restauração aparecia como negação da inde­ pendência brasileira em 1822, quando no Rio de Ja­ neiro se aludia à feliz revoluçã o de 1640, ou seja, ao patriotismo português. Após 1831 o restauracionismo passa a ser associado ao retorno de d. Pedro I ao trono, embora nem sempre essa posição fosse explícita. E tal proposta articulava-se à recuperação da monarquia em sua plenitude (enfraquecida durante as Regências) em 1840. Alguns termos do vocabulário político eram associa­ dos a esse grupo, como corcundas (por metáfora, os que se curvavam ao despotismo em geral), ou os ape­ lidos aplicados aos portugueses identificados ao “abso­ lutismo”: marotos, pés-de-chumbo, caveiras e papele­ tas. Ficou conhecido um personagem fictício, criado por Cipriano B arata, chamado Marcos Mandinga, médico inventor de uma máquina de endireitar “cor­ cundas”. Havia um traço distintivo do restauracionismo no Brasil, ao longo de diferentes conjunturas: a valoriza­ ção da supremacia monárquica e da aproximação com o tradicionalismo português. Essas permanências do Antigo Regime (incluindo o absolutismo ilustrado) ainda não foram devidamente dimensionadas no Brasil pós-independência. O chamado Antigo Regime era
  • 37. MARCO MOREL ainda memoria viva e palpável no cotidiano de ampios setores da população, compunha identidades, determi­ nava as formas de relação do alto à base da'hierarquia da sociedade, tanto urbana quanto rural. E oportuno relembrar que um dos nomes mais conhecidos desses restauradores era caramurus. Agrupavam-se na Socie­ dade Conservadora, posteriormente transformada em Sociedade Militar, e tinham jornais como O C aramuru, D iá rio do R io de J a neiro e C arijó, entre outros. Desta- cavam-se entre os integrantes dessa tendencia os irmãos Andrada (José Bonifácio, Antonio Carlos e Martim Francisco). Esses partidos não tinham conteúdo nítido de “clas­ se” (na perspectiva marxista), mas seria restrito, por outro lado, considerá-los unicamente elitistas. A pre­ sença das camadas pobres nas lutas políticas era resul­ tado de um jogo de mútuas tentativas de manipulação e apropriação: constantemente a atividade política es­ capava ao controle dos grupos privilegiados. Todos pertenciam à mesma sociedade, dividida, injusta e desigual, com atritos e pontos de contato, confrontos , e negociações. Como foi visto, as atividades da imprensa, das asso­ ciações, dos parlamentos, das mobilizações nas ruas, nos pampas, florestas e sertões, das lutas armadas e das alianças, compunham o mosaico das formas de parti­ cipação política, que se incrementaram durante o pe­ ríodo regencial.
  • 38. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS A cidade do Rio de Janeiro costuma ter espaço privilegiado nas narrativas sobre as Regencias. Descon­ tadas possíveis visões centralizadoras que se reprodu­ zem entre historiadores, é possível explicar essa prepon­ derancia pela própria ordem nacional que se estrutu­ rava. Cada província possuía uma capital e distritos. Estes se dividiam em cidades (os centros mais impor­ tantes) e vilas. Cidades e vilas subdividiam-se interna­ mente em cantões e paróquias (também chamadas freguesias), que compunham a base das unidades ad­ ministrativas, inclusive eleitorais. No topo dessa hie­ rarquia estava a cidade imperial. O Rio de Janeiro tinha a honra de ser sede da Corte, mas esse privilégio significava também limitações. Com suas trepidações e conflitos, a cidade entrelaçava- se à Corte, topo da hierarquia do poder. Além do mais, era porto comercial, centro importante do comércio de mercadorias e tráfico de escravos. O Rio de Janeiro era, assim, uma cidade imperial nos trópicos em pleno século X I X e, portanto, palco de decisões e disputas que diziam respeito ao território nacional como um todo. F acetas étnicas. Questões importantes do período re­ gencial ainda estão por ser mais bem conhecidas. As populações indígenas, por exemplo, ocupavam consi­ deráveis parcelas do Brasil, apesar da pouca visibilidade em registros históricos. Concentravam-se em grupos numerosos na região amazônica, no Mato Grosso e no ■ 3 9 ■
  • 39. MARCO MOREL Sul do país (no entorno das antigas Missões), mas existiam em todas as provincias, inclusive no Rio de Janeiro. Na maior parte das províncias brasileiras ocor­ reram combates envolvendo índios, quase sempre por questões de terras, e as mortes eram freqüentes de ambos os lados. Para citar exemplos envolvendo contingentes indí­ genas nas proximidades da Corte, vemos que nos pri­ meiros tempos da Regência foi revogada a guerra ofen­ siva (decretada em 1808 por d. João V I ) contra os Botocudos da região do rio Doce (E spírito Santo e Minas Gerais) e contra os “bugres” de São Paulo. Cabe perguntar: por que tal gesto de abolir a guerra ofensiva tantos anos depois? O decreto regencial, de 27 de outubro de 1831, eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroa e também a escravidão — mas mantinha a militariza- ção de áreas indígenas, principal ponto das Cartas Régias. Assim, pelo menos juridicamente, o Estado brasileiro se eximia da responsabilidade de guerrear contra os índios e também proibia a condição servil destes, embora os mantivesse sob tutela oficial e militar. Mas, se não havia guerra oficialmente decretada, au­ mentava a violência das frentes de expansão e autori­ dades locais sobre as terras dos índios, sem que fossem devidamente coibidas. A mesma lei regencial afirmava que os índios em estado de servidão seriam “desonera­ dos” dela e, ainda, estendia aos índios do Brasil a
  • 40. 1. 0 ex- im p erad o r Ped ro I, en velh ecid o ap ó s a ab d icação : co n t rast e co m a im ag em vig o ro sa h ab it u alm e n t e d iv u lg ad a. 2. Jo r n a l O Republico, exp ressão d o s lib erais Exalt ad o s. 3. A s Três Jo rn ad as d e Ju lh o d e Paris em 18 30 fo ram est o p im p ara ,a saíd a d e d. Ped ro I d o pod er.
  • 41. V l i . tt .tu. auuK v. M r-iffv, & HtW-v-,, ü i 4 e 5. A s d isp u t as p o lít icas e o clim a d e co n fro n t o d u ran t e as Reg ên cias eram t em as fre q ü en t es n as sát iras d as ca ricat u ras. A b aixo , a p rim eira caricat u r a im p ressa n o Brasil, em 18 37. r ■i r t & ú t i w r t - nvAtdfr'?
  • 42. 6. O p ad re Feijó ab an d o n a a Reg en cia e d eixa um rast ro . A n t es de ser eleit o o p rim eiro reg en t e u n o , em 1 8 3 5, D io g o Feijó fo i m in ist ro da Ju st iça. 7. Bern ard o Pereira d e Vasco n celo s, líd er M o d erad o asso ciad o ao d esp o t ism o n ap o leó n ico , é acu sad o d e e n t e rrar as lib erd ad es co n q u ist ad as co m a ab d icação d e d . Ped ro i, em 7 d e ab ril d e 1831.
  • 43. 8 . O ce lib at o clerical f o í u m d o s t em as em d eb at e d u ran t e as Reg ên cias, cau san d o at rit o s co m o V at ican o . 9 . A cid ad e im p erial d o Rio d e Jan e iro , cen t ro d e u m a so cie d ad e escravist a e m u lt if ace t ad a. Os in t eresses e asp ect o s d iverso s d a so cied ad e b rasileira fo ram a p rin cip al cau sa d o clim a in st ável d u ran t e as Reg en cias.
  • 44. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS condição jurídica dos órfãos, que deveriam ser ampa­ rados pelo E stado até que aprendessem ofícios. Em rápidas pinceladas, a Regência traçou sua posi­ ção: o decreto apontava para o aprendizado de ofícios como forma de integração dos índios à sociedade na­ cional. O ra, a preocupação em abolir a escravidão (ainda que apenas formalmente) e ao mesmo tempo constituir mão-de-obra livre especializada atendia a que interesses? Para quem o terreno estaria sendo pre­ parado? Não tardou para que fosse apresentado^à Regência um plano para organização da Companhia Brasileira do Rio Doce, definida como “uma Sociedade pela união de Capitalistas Brazileiros e Inglezes” (a grafia de ambos era com “z”), cujo objetivo era estabelecer a navegação entre o Rio de Janeiro e a foz do rio Doce e em todo o curso deste, além de promover agricultura, colonização nas terras das margens fluviais, mineração, extração de sal à beira-mar, abrir caminhos terrestres etc. O responsável pelo projeto chamava-se João Diogo Sterz Stockexchange (o sobrenome comporta curiosa associação de palavras). E, para evitar reações protecio­ nistas em defesa do mercado interno, apareciam incor­ porados como sócios da empreitada os nomes mais expressivos da política brasileira, a fina flor dos dirigen­ tes das Regências e dos liberais moderados: Evaristo da Veiga, Hermeto Carneiro Leão, Chichorro da G ama, Limpo de Abreu, Antonio Ferreira França, Miguel
  • 45. MARCO MOREL Calmon D u Pin e Almeida, Francisco G e Acaiaba Montezuma, além do conde de Valença, do marqués de Inhambupe e de outras figuras da monarquia. Re- velava-se assim um grau de articulação entre os novos dirigentes do Imperio e os donos do dinheiro. Também os capitalistas ingleses se faziam presentes através da mineração nos arredores de Caeté, Mariana, O uro Preto e São João d’El Rey — áreas que, anos antes, ainda eram em parte ocupadas pelos Botocudos. A Brazilian Company (1832-1844) e a National Bra- zilian M ining Association (1833-1851) funcionavam nesses locais. Ainda que tardiamente (em relação ao apogeu da extração), a mineração era feita nas áreas onde a presença indígena até então a impedira ou dificultara. Assim, da mesma maneira que as pesquisas históri­ cas destacam a influência britânica na escravidão afri­ cana no Brasil, é importante também considerar como os interesses ingleses afetaram a vida das populações indígenas — deixando às autoridades ou aos proprie­ tários nacionais o ônus de “limparem o terreno” e nem se dando ao trabalho, nesse caso, de elaborar grandes argumentos humanitários para a exploração das terras e da mão-de-obra indígena. D urante as Regências cresceu ainda mais a presença do capitalismo britânico no Brasil em diversas faces: comercial, no consumo crescente de produtos manu­ faturados ingleses, como também através do controle ■ 4 2 ■
  • 46. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS do transporte das mercadorias (exportadas e importa­ das) em navios británicos; diplomática, na pressão contra o tráfico de escravos. Mesmo que os emprésti­ mos externos tenham praticamente cessado no perío­ do, a presença de empresas e dos interesses britânicos se manteve e continuou a fincar raízes. Os anos 1830 e 1840 foram marcados por escravi- zação e tráfico de indios, por exemplo em Minas Gerais. Se no caso dos escravos africanos a passagem para o trabalho livre, ainda que apenas teoricamente, pudesse ter uma conotação humanitária, no caso dos índios a passagem da vida tribal para a inserção no mercado de trabalho representava uma violência mais evidente, dadas as resistências que muitos opunham. Nesses casos o interesse poderia ser de eliminá-los, já que não se enquadravam como mão-de-obra. A popu­ lação indígena coloca-se como protagonista histórico no século X I X brasileiro: através de rebeliões (como a Cabanagem paraense) e guerras, integrada a atividades e ofícios diversos nos meios urbano e rural, resistindo com energia à tomada de suas terras ou integrando-se à sociedade, sendo por ela marcada e deixando suas marcas também. Sabe-se que atualmente a população brasileira é constituída, segundo estudos de genética das populações, de pelo menos um terço com origens indígenas. Os índios também eram enquadrados como inte­ grantes do “mundo natural” e, nessa condição, torna- ■ 4 3 ■
  • 47. MARCO MOREL ram-se objeto de pesquisas científicas em larga escala, mas apenas por estrangeiros, os viajantes naturalistas. Era a época do primeiro grande inventario do “mundo natural” em escala planetária e, no Brasil das primeiras décadas dos oitocentos, fervilharam esses repre­ sentantes do mundo científico e tecnológico ocidental. Alheio a sedições, um jovem britânico encantou-se com a natureza brasileira durante sua estada no Rio de Janeiro entre abril e julho de 1832. A bordo do navio B ea gle, o futuro naturalista Charles D arwin começava a colher dados e fazer reflexões que o levariam à sua teoria da evolução das espécies. Instalado numa cháca­ ra em Botafogo, quando não colhia insetos e observava pássaros, passava horas contemplando a formação"de nuvens para os lados do Corcovado e, à noite, deslum­ brava-se com os enxames de vaga-lumes enfeitando a escuridão. Numa viagem para os lados de Cabo Frio, D arwin vivenciou rápido episódio que o impressionou. E stava numa canoa conduzida por um negro escravo alto e corpulento quando, numa tentativa de comunicar-se com o cativo, começou a gesticular e falar com ênfase. Foi o bastante para que o canoeiro se encolhesse apa­ vorado, supondo que seria espancado pelo viajante. D arwin ficou chocado com a postura de submissão de uma pessoa muito mais forte que ele e desabafou em seu diário: “Esse homem havia sido treinado para
  • 48. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS suportar uma degradação mais abjeta do que a escravi­ dão do animal mais indefeso.” No período regencial ocorreu verdadeira africaniza- ção do Brasil: calcula-se, por estimativa, que, dos cinco milhões de africanos trazidos para cá ao longo de quatro séculos, um milhão e meio entrou na primeira metade do século X I X . -Verdade que uma das primeiras leis da Regência, exatos sete mesès após a saída de d. Pedro I, determinou a abolição do tráfico de escravos, medida que visava a atender à pressão forte britânica, e também correspondia à consciência de parte dos dirigentes liberais brasileiros. E ntretanto, apesar dos esforços da diplomacia inglesa e de parcela das lideran­ ças políticas brasileiras, o tráfico ainda continuaria por duas décadas, mostrando o poder dos grandes proprie­ tários, traficantes e seus representantes. Porém os ingleses, as elites políticas, os grandes proprietários e comerciantes não eram os únicos agen­ tes históricos envolvidos na questão. Havia os próprios escravos. Sua presença na vida pública se dava de diversas maneiras, embora não fossem qualificadas, na época, como políticas. De forma mais visível, aparece em episódios como a Balaiada, no Maranhão e no Piauí, e na Revolta dos Malês, por exemplo, como se verá adiante. Os cativos desenvolveram inúmeras formas de resis­ tência, individuais ou coletivas, como fugas, ataques, roubos ou assassinatos contra senhores e feitores, sui-
  • 49. MARCO MOREL cídios, pequenos e grandes quilombos, envolvimento em lutas políticas não deflagradas por escravos, entre outras. Um exemplo: 25 cativos foram legalmente condenados e mortos em praça pública no ano de 1838 por terem assassinado senhores ou feitores, sem contar os que sofriam punições fora do alcance da legislação, os que eram mortos durante perseguição e aqueles que nunca foram alcançados. Os quilombos proliferavam em todas as províncias brasileiras ao longo do século X I X e, se fossem somados, possivelmente dariam número de participantes tão expressivo quanto o famoso Q uilombo dos Palmares. E nem sempre a relação era de hostilidade: havia quilombolas que vendiam com certa regularidade sua produção para mercados vizinhos. Outros assaltavam e saqueavam passantes ou propriedades. Pode-se dizer, com o historiador Stuart Schwartz, que as múltiplas (e aparentemente fragmentadas) resistências escravas ocorridas na primeira metade dos oitocentos, ao custo de muitas vidas e sofrimentos, ainda que debeladas, constituíram forma de pressão e resultariam nas polí­ ticas emancipacionistas dos anos seguintes oü seja, não foram em vão. F acetas sociocultura is. Reduzir a sociedade brasileira dos anos 1830 a um binômio composto de uma minoria dominadora de senhores brancos diante de uma massa de escravos é visão empobrecedora que se encontra ■ 4 G ■
  • 50. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS superada — o que nao significa, evidentemente, negar o peso decisivo do racismo e da escravidão como relação social. Em estudo específico sobre a Bahia do início do século X I X , a historiadora K átia Mattoso propõe a divisão da hierarquia social em quatro grupos, por critério econômico, de prestígio social e de poder. No topo estavam altos funcionários da administração monárquica (governador, ouvidores gerais, desembar­ gadores, secretários de estado e intendentes), oficiais de patente elevada, alto clero regular, grandes negociantes e grandes proprietários de terra, no ramo dos engenhos e da pecuária. O segundo grupo dessa classificação incluía funcio­ nários de nível médio (juizes de primeira instância, procuradores, escrivães, tabeliães, diretores de órgãos públicos etc.), oficiais militares de nível médio, mem­ bros do baixo clero, alguns proprietários rurais (sobre­ tudo os do setor de subsistência), lojistas, mestres-ar- tesãos de ofícios considerados nobres (ourives, entalha- dores, entre outros), profissionais liberais diplomados (médicos e advogados que não provinham das famílias mais ricas) e as pessoas que viviam de rendas. Essas últimas representavam 21 % do total e majoritariamen- te se mantinham do trabalho escravo. Faziam parte do terceiro grupo funcionários públi­ cos e militares de baixo escalão, integrantes de profis­ sões liberais secundárias (barbeiros, pilotos de barco, ■ 4 7 ■
  • 51. MARCO MOREL sangradores etc.), artesãos, pescadores, marinheiros e os que comerciavam alimentos nas ruas (com freqüên­ cia libertos). No último e quarto grupo vinham os escravos (que compunham um terço da população), mendigos e desocupados. A complexidade da hierarquia social indicava estra­ tegias de sobrevivência de escravos e seus descendentes que passavam pela negociação, convivencia e incorpo­ ração à sociedade, como as irmandades católicas de negros, os escravos de ganho do meio urbano e o aprendizado de oficios mais complexos. E ram diversi­ ficados os caminhos da alforria. Calcula-se que já em princípios do século X I X um terço da população brasi­ leira era classificada como de “pardos livres”, quantida­ de que aumentaria progressivamente. Isto se refletiu inclusive na imprensa, quando apareceram jornais que discutiam abertamente a questão racial, como O C riou- linb o, O H omem de cor ou O M ula to e B ra sileiro Pardo, entre outros — todos, aliás, surgidos durante a Regên­ cia Trina Permanente. Uns cinco meses depois da saída de d. Pedro I do poder, surge pela imprensa um plano de reforma agrá­ ria, lançado por E zequiel Correia dos Santos no seu jornal N ova L uz B razileira. Chamado de G rande Fa- teusim Nacional, propunha a distribuição, pela Coroa, de terras para todas as pessoas interessadas, com prefe­ rência para as camadas pobres da população, além da ■ 4 8 •
  • 52. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS retirada das terras excessivas dos grandes proprietários, qualificados na proposta de “malvados aristocratas li­ berais”. Tal proposição foi duramente combatida e não chegou sequer a ser encaminhada como proposta no Parlamento. Porém a discussão pública de temas como racismo e redistribuição de terras no cerne de urna sociedade escravista mostra como se ampliavam as possibilidades de expressão durante o período aqui tratado. Não se tratava exatamente de uma “democra­ cia coroada”, pois a liberdade não era concessão dos governos, que nem sempre conseguiam seu controle, mesmo usando diferentes formas de coerção. Portanto, o ambiente cultural transformou-se com a abdicação de d. Pedro I, representando ampliação e diversificação na esfera pública cultural e literária. Veja- se o caso do livreiro e editor francês Pierre Plancher: não vacilou diante da queda de seu protetor e, mos­ trando maleabilidade, mudou o nome de seu negócio para Tipografia Constitucional de Seignot-Plancher, abandonando em boa hora o título de Tipografia Im­ perial que recebera. Passa então a acompanhar as ten­ dências do momento, transformando-as em linhas edi­ toriais. Publica uma série de obras relativas às novas formas de sociabilidade, como C onstituiçã o do p ovo m a çônico (1832) e os A nnaes m a çônicos flum inenses (1832), e imprime também os E statutos da S ocieda de d e E ducação L ibera l (1833). ■ 4 9 ■
  • 53. MARCO MOREL Apesar daialta de estudos sistemáticos^.é_inquestio- nável que nessejriomento ocorre ampliação do-público leitor e da quantidade de impressos (livros, jornais, manifestos, relatórios, poemas etc.), bera G©ma-.se acentuam a diversidade de debates-políticos e a disse- minação da palavra rimada. Movimento que não será estranho ao aparecimento do romantismo — a publi­ cação considerada pioneira desse estilo, a revista N ich- teroy, foi lançada em Paris por um grupo de brasileiros em 1836, marcados pelo clima das Regências. Desse modo, existe ligação entre as transformações culturais e políticas do período com o florescimento do roman­ tismo. O utro livreiro e editor que se firmou nesse contexto foi Francisco de Paula Brito, mulato (ou seja, classifi­ cado entre os pardos livres) e de origens pobres que viria a ter papel destacado na esfera pública cultural da cidade imperial, sempre envolvido em empreitadas políticas, associativas e literárias. Seria ele, aliás, o primeiro e principal incentivador da vida literária de outro jovem pardo e pobre, Machado de Assis. Paula ,Brito sabia que a sociedade brasileira não era marcada apenas por confrontos e crises. Em parceria com Fran­ cisco Manuel da Silva (autor da pomposa música do Hino Nacional), Paula Brito compôs o lundu A M a r- req uinba , cuja melodia sincopada e expressões de duplo sentido faziam rir, dançar e divertir ao som da viola de arame: ■ 5 0 ■
  • 54. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS Os olhos namoradores D a engraçada iaiazinha Logo me fazem lembrar Sua doce marrequinha laiá me deixe Ver a marreca Se não eu morro Leva-me à breca. Em outras palavras: mesmo durante o período re­ gencial, as pessoas não eram de mármore, nem de ferro! Rebelar e revelar Não por acaso, rebelar e revelar já foram uma só palavra. As rebeliões são momentos nos quais determi­ nadas práticas, propostas e agentes históricos ganham maior visibilidade, marcam os rumos dos aconteci­ mentos e imprimem presença nos registros históricos, ainda que de forma fugaz ou explosiva. A ênfase nas rebeliões apresenta limitações, além das já indicadas na introdução deste livro. A maioria desses episódios durante as Regências ainda não foi estudada de maneira mais profunda, restando prisioneira seja da visão conservadora que enxerga apenas “desordens”, seja de um certo ufanismo pela “luta popular”, ou • 5 1 ■
  • 55. MARCO MOREL ainda por uma historiografia comprometida com a valorização da nação, que aplaina, oculta ou estigma­ tiza as contradições, na tentativa de compor imagem unitária e harmoniosa da sociedade nacional. Acrescente-se a esse conjunto de questões em torno das rebeliões regenciais outros pontos: se, por um lado, abrem portas para o conhecimento de realidades fora do eixo central de poder do país, por outro correm o risco de resvalar para um prisma regionalista, com suas manipulações e “escolhas” ligadas à elaboração de me­ morias regionais. O estudo desses movimentos contes- tatórios (embora ainda por se fazer a contento, e repleto de possibilidades) pode deixar de lado o cotidiano e o ritmo mais denso das relações humanas, que compõem as vidas daquela e de todas as épocas. Todavia, não se pode conhecer as Regencias sem levar em conta suas rebeliões, que nos colocam no âmago de situações-li- mite da sociedade. A separação entre rebelar e revelar foi extrema no campo da memoria histórica e da iconografia. Não nos ficaram imagens da maioria dos rebeldes do período , regencial, não só os anônimos ou pouco conhecidos, mas até mesmo os líderes. Não sabemos como eram os rostos do escravo Cosme Bento das Chagas ou do vaqueiro Raimundo Gomes, que se destacaram na B alaiada (Maranhão e Piauí) à frente de milhares de homens em armas; dos irmãos Francisco e Antonio Vinagre, da Cabanagem (Pará), que controlaram largas ■ 5 2 ■
  • 56. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS faixas territoriais e destituíram governos locais; das dezenas de chefes de bandos armados que integraram esses dois movimentos e tantos outros como a Caba- nada (Pernambuco e Alagoas) e a Farroupilha (Rio G rande do Sul e Santa Catarina); do médico Francisco Sabino Vieira, da Sabinada; de Pacífico Licutan, M a­ noel Calafate e Elesbão do Carmo, do levante dos Malês; do escravo, tropeiro e considerado “rei africano” Ventura da Mina, da Revolta das Carrancas (Minas G erais), entre muitos outros. Como somos levados a visualizar, gravar em nossas memórias, as rebeliões das Regências? É sugestivo notar que o registro iconográfico desses episódios, com fre­ qüência, se circunscreve a dois tipos: autoridades e pai­ sagens. O rdem naturalizada. As figuras de autoridades militares ou civis, encarregadas da repressão ou de res­ taurar o controle governamental, imprimem caracterís­ tica de memória e identidade com recorte social. Tais rostos e bustos er^lanado s,o u encasacados parecem relegar ao purgatório as faces desconhecidas dos rebela­ dos que eles capturaram ou eliminaram. As paisagens, em geral plácidas, invocam as localidades onde se de­ senrolaram os acontecimentos: são como cenários sem tensões, sem sociedade, onde a plasticidade ou beleza estética das vistas, árvores, águas ou imóveis é permeada com vultos humanos em harmonia com o panorama. Em alguns casos, para ilustrar, acrescentam-se figu­ ras de época representando índios, escravos ou sertane- ■ 5 3 •
  • 57. MARCO MOREL jos, por exemplo, mesmo que não envolvidos nos eventos, o que pode ser urna forma de esvaziar a identidade dos agentes históricos, atribuindo-lhes ca­ ráter geral, indistinto ou anónimo. Além disso, existem imagens postumas que recriam algumas das rebeliões ou personagens, em outros con­ textos e com objetivos estéticos e políticos diversos: pinturas, painéis, alegorias, esculturas ou até mesmo textos que, na verdade, são monumentos permeados por memoria regional ou nacional, ou por projetos políticos externos à época dos movimentos, gerando um conhecimento fortemente mediatizado em torno destes. Não é por acaso, também, que em meio ao espocar de motins, sedições e revoltas o caráter brasileiro foi bastante discutido durante o período regencial. Ou seja, debatia-se se existiria uma propensão para docili­ dade e cordialidade do povo brasileiro. De maneira mais precisa, buscava-se afirmar ou construir uma identidade que desse conta de complexos desafios, tais como formar um povo e uma nação portadores de identidade própria e, ao mesmo tempo, garantir a estabilidade da ordem social e direcionar o “carro da revolução”. O redator da N ova L uz B razileira, E zequiel Correia dos Santos, acenava com “revoluções terríveis e inevi­ táveis, desde que a paciência de um Povo pacífico se acaba antes que se acabe a ma fé dos Governos”. Isto ■ 5 4 ■
  • 58. O PERIODO DAS REGÊNCIAS é, mesmo para aqueles comprometidos com a perspec­ tiva de continuar uma revolução, colocava-se esse subs­ trato cultural, como se houvesse uma tradição de cos­ tumes que caracterizasse uma índole pacífica coletiva. O todo-poderoso ministro da Justiça, D iogo Feijó, diante dos primeiros motins que eclodiram na capital da monarquia brasileira após a abdicação, diagnostica­ va: “Esses acontecimentos, aliás funestos em suas con­ seqüências, tiveram a vantagem de desenganar aos poucos facciosos e anarquistas que ainda nos incomo­ dam, que o brasileiro não foi feito para a desordem, que o seu natural é o da tranqüilidade.” A afirmação do padre Feijó sobre tais aptidões naturais (tranqüili­ dade e ordem) é instigante. Mais do que desqualificar as contestações em curso, exprime interpretação do que seria uma identidade brasileira, que se traduziria numa espécie de tradição histórica dos comportamentos co­ letivos: ausência de conflitos, de guerras, e aversão a rupturas. E screvendo do interior das prisões regenciais admi­ nistradas por Feijó, Cipriano Barata levaria adiante o debate, indagando: “Q ue coisa seja D ocilidade Brasi­ leira?” E ele mesmo responderia com seu estilo mordaz: Docilidade é a boa disposição do homem para se deixar instruir. Gênio ou natureza dócil é aquele que abraça as doutrinas e ensino que se lhe dá; porém, este termo docilidade aplicado hoje aos Brasileiros tem outro senti- ■ 5 5 ■
  • 59. MARCO MOREL do: dócil quer dizer estólido, ou tolo; homem que se contenta com tudo, que deixa ir as coisas por água abaixo ... ; em uma palavra, dócil deixa dizer Brasileiro ovelha mansa, que trabalha como burro para pagar tributos desnecessários em beneficio dos satélites do governo. A discussão, travada entre Feijó e Barata vai além das desavenças entre aliados que se tornaram adversários com a chegada de um ao poder e do outro às masmor­ ras. E stava em jogo a definição de determinada identi­ dade brasileira, nesse período do pós-independência, gerando questões em torno da interpretação do Brasil nos primeiros anos de construção do E stado nacional. Já esboçada durante a independência, a concepção da “índole-pacífica-do-povo-brasileiro” foi afirmada com mais ênfase durante as Regências, espraiou-se pelo Segundo Reinado e se tornaria verdadeiro lugar-co­ mum durante a República. Mas o certo é que os habitantes do território que se pretendia brasileiro não foram todos “ovelhas mansas” durante o período re­ gencial. Três revolta s escravas. Três revoltas escravas causaram impacto: a das Carrancas (Minas G erais, 1833), dos Malês (Bahia, 1835) e de Manuel Congo (Rio de Janeiro, 1838). Não abalaram o escravismo, mas cau­ saram inegável pânico à população não-escrava e im­ primiram novos rumos à legislação repressiva, à pers- ■ 5 6 ■
  • 60. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS pectiva de imigração de estrangeiros e ao debate sobre medidas para a gradual extinção do tráfico e do traba­ lho escravo. A Revolta das Carrancas aconteceu justamente quando ocorria “briga de brancos”: a Revolta da Fu­ maça, uma sedição civil-militar que destituiu o presi­ dente da província e prendeu várias autoridades pro­ vinciais partidárias do liberalismo moderado, inclusive o vice-presidente, Bernardo Pereira de Vasconcelos. D urante dois meses (março a maio) os revoltosos ocu­ param o poder na capital da província, O uro Preto. Os sediciosos, acusados de restauradores, apontavam os situacionistas como republicanos. Q uando a situação estava sob controle com o envio de tropas do Rio de Janeiro eclode um levante de dezenas de escravos da fazenda de um deputado também ligado aos modera­ dos, em São Tomé das Letras: matam os familiares (inclusive crianças) e empregados da família e passam a atacar fazendas vizinhas. Esse levante, liderado pelo escravo tropeiro Ventura Mina, acabou sufocado e dezessete cativos terminaram condenados à morte e executados, fora os que morreram em combate, como o líder. Esses escravos rebelados teriam sido insuflados por outro fazendeiro da região, acusado de restaurador, mas de qualquer modo aproveitaram a brecha causada pela forte dissensão existente entre os grupos dirigentes da província mineira naquele momento. ■ 5 7 ■
  • 61. MARCO MOREL A Revolta dos Males, urna das mais conhecidas, durou menos de 24 horas e é considerada como a mais importante sublevação de escravos urbanos já ocorrida. E ntre 24 e 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 cativos de origem africana tomam de assalto Salvador. Perten­ ciam a varias etnias e vinham de locais diversos, mas o levante foi articulado por escravos islamizados, que sabiam 1er e escrever em árabe. Não saquearam residen­ cias nem atacaram famílias de proprietários e acabaram derrotados após duros embates com as forças militares. E ntre as motivações dos líderes e de parte dos rebela­ dos, havia o pano de fundo do jih a d (guerra santa), e um dos cativos chegou a admitir, em depoimento depois de preso, que visavam a eliminar todos os brancos e pardos e manter escravos de outras etnias como seus cativos. Cerca de 70 revoltosos morreram em combates pelas ruas e praias da capital baiana e pelo menos 500 foram punidos com açoites, degredos, pri­ sões ou morte. Esses dois episódios, pois, situam a lei de junho de 1835, que previa pena de morte para os líderes de insurreições escravas, caracterizando estas como o ajuntamento de mais de 20 cativos que tentassem se libertar pela força. Apesar disso, no impulso inicial da expansão cafeeira no Vale do Paraíba, 200 escravos de várias fazendas, sob a liderança de Manuel Congo, rebelaram-se em 1838 em Pati do Alferes (Vassouras, província do Rio de • 5 8 •
  • 62. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS Janeiro). D urante cinco dias percorreram as florestas da localidade, até que foram derrotados por tropas da G uarda Nacional e do Exército comandadas por Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias. C abanos, fa rroupilha s, balaios... O conjunto de inicia­ tivas em geral associadas aos restauradores abalou o Brasil nos dois primeiros anos da Regência. Charles- É douard Pontois, ministro plenipotenciário da França na capital do Império brasileiro, escreveu em outubro de 1831 ao ministro das Relações E xteriores de seu país, conde Sebastiani, detalhada narrativa de 19 pági­ nas manuscritas sobre ampla conspiração em curso no Brasil. Ele fora procurado por Francisco de Holanda Cavalcanti Albuquerque (visconde de Albuquerque e chefe de poderosas oligarquias), que propunha separar as províncias do Norte, como se dizia, do restante do Brasil. A França, na proposta, ficaria com uma parte do território, estendendo a fronteira da G uiana Fran­ cesa até a margem esquerda do rio Amazonas. E o novo Império, que se chamaria “do Amazonas” ou “do E qua­ dor”, iria da margem direita do mesmo rio passando pelas províncias do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio G ran­ de do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. O gover­ no francês preferiu não participar da empreitada, mas os brasileiros levaram-na adiante. Desse modo, pode-se compreender a simultaneida- de do começo da impressão do jornal O C ara muru no ■ 5 9 ■
  • 63. MARCO MOREL Rio de Janeiro, dos motins caramurus na capital do Imperio em 1832, da Cabanada e da chamada revolta de Pinto Madeira no Ceará: nesses dois últimos casos, tivemos a presença ostensiva de caudilhos militares ligados aos restauradores à frente da população amoti­ nada. Em primeiro lugar, verifica-se que o propalado consenso entre as diferentes elites quanto à unidade nacional possuía brechas e poderia ser repensado ainda nos anos 1830 no Brasil. Em conseqüência, é possível afirmar que o separatismo não era atributo exclusivo dos liberais exaltados ou de tendências republicanas, como em geral a historiografia aponta. O separatismo partiu também de restauradores. E importante, aliás, discernir separatismo, federalismo e republicanismo, que não estavam necessariamente associados. E ntretanto, seria equívoco limitar a compreensão da Cabanada (1832-1835, Pernambuco e Alagoas) a uma multidão de pobres fanatizados e manipulados. Se manipulação havia, poderia ser de mão dupla - — e todos estavam imersos num mesmo universo de códi­ gos e relações sociais. A Cabanada foi movimento basicamente rural inicialmente capitaneado por pes­ soas ligadas aos Caramurus e que pertenciam a insti­ tuições de contato estreito com as camadas pobres da população: chefes militares e padres, além de certo apoio de comerciantes lusos. As primeiras colunas foram crescendo, englobando milhares de pessoas, ín­ dios e caboclos, trabalhadores pobres e também escra-
  • 64. O PERÍODO DAS REGENCIAS vos que, ao final, formaram a principal base do movi­ mento. As bandeiras, os discursos e os objetivos decla­ rados eram ultramontanos, católicos tradicionais, ar­ caicos, conservadores e absolutistas. Em seu messianis­ mo tinham como principal alvo a reintroduçao de d. Pedro I no trono e pretendiam dizimar maçons, liberais e republicanos. Os gestos e as práticas desses contin­ gentes revelavam, ao mesmo tempo, revolta contra a miséria, ataques às propriedades, luta contra escravidão e injustiças sociais. E stabeleciam-se em arraiais, mora­ vam em cabanas (daí o nome do movimento) e atua­ vam em forma de guerrilha, comandados por chefes de bandos armados, na mesma região onde, dois séculos antes, existiram os quilombos de Palmares. Calcula-se que ao final de três anos de lutas na Cabanada 15 mil pessoas morreram (a maioria cabanos pobres) em combates, por prisão, execução e por epi­ demias que devastaram os dois lados do conflito. Q uanto aos rebeldes cabanos, quando escapavam da execução imediata ou da fome que também matava, eram enviados às prisões ou alistamentos militares forçados. A Cabanagem (Pará, 1835-1836) envolveu, igual­ mente, camadas pobres da população: pequenos lavra­ dores, militares e grande quantidade de índios e cabo­ clos, além de escravos. Mas, apesar de certa semelhança na composição social com o movimento anterior, os discursos e as bandeiras das lideranças que se pronun­ 61
  • 65. MARCO MOREL ciaram no meio urbano eram marcados por críticas à centralização do governo imperial e pela defesa do combate aos privilégios dos grupos locais. O u seja, a liderança, nesse caso, era dos exaltados. Em janeiro de 1835 milhares de rebeldes liderados pelo ex-militar Félix Antonio Malcher, pelo redator de jornais E duardo Angelim e pelo lavrador Francisco Vinagre ocuparam Belém e mataram o presidente da provincia e o comandante das Armas, cujos corpos foram arrastados pelas ruas da cidade. D esafiando e impondo derrotas ao governo das Regências, os caba­ nos ficaram no poder por mais de um ano. D eclara- ram-se separados do Rio de Janeiro, mas acabaram debelados, após cenas sangrentas de massacres. A Ca- banagem foi vista por contemporáneos, como Cipria­ no Barata, como o despontar terrível e catastrófico da tempestade da revolução, quando o povo, usando o direito de resistência à tirania, destruía as autoridades e as leis. A presença dos exaltados também estampava-se na Sabinada (Bahia, 1837). Desenhava-se uma linhagem de conspirações, motins e sedições de caráter contes- tatório na provincia desde fins do século X VI I I , durante as guerras de independência e no inicio das Regências, às vezes com os mesmos personagens. Federalismo, liberalismo radical, republicanismo, conflitos de raça e de nacionalidade mesclavam-se em diferentes contex­ tos. O movimento conhecido por Sabinada foi a última ■ 6 2 ■
  • 66. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS — e maior — expressão dessa série de lutas baianas. D urante quatro meses, a partir de 7 de novembro, os rebeldes tomaram conta de Salvador e proclamaram a Bahia como E stado independente, com tendências (nem sempre explicitadas) à República. A revolta era integrada, inicialmente, por profissionais liberais e mi­ litares que protestavam contra a centralização do poder imperial e reagiam contra a política regressista, acen­ tuada com a eleição de Araújo Lima para regente uno, mas admitiam continuar integrando a unidade brasi­ leira. Libertaram os escravos nascidos no Brasil que aderiram ao novo governo e exaltaram o exemplo “americano” (com destaque para o modelo político dos Estados Unidos). Essa rebelião espalhou-se por amplos setores da sociedade, inclusive entre os pobres urbanos, e a repres­ são foi desmedida, violenta: ao final, calculava-se em cinco mil o número de mortos em combates (nos dois lados) e por execuções. As prisões ficaram lotadas, em condições desumanas, e a província viveu sob interven­ ção militar durante cinco anos. A Sabinada teve liga­ ções com outro movimento republicano no extremo do continente, a Revolta Farroupilha ou República Riograndense (1835-1845). D urante dez anos o Sul do Brasil se insurgiu e a República, embora não aparecesse como objetivo pré­ vio, foi proclamada no Rio G rande do Sul (e, mais efêmera, em Santa Catarina, a República Juliana). . 6 3
  • 67. MARCO MOREL Kstancieiros, caudilhos e liberais exaltados estiveram à frente do movimento, que chegou a convocar urna Assembléia Constituinte e elaborar leis próprias. A Farroupilha, movimento rural com algumas ramifica­ ções urbanas, originou-se do protesto contra a injusta carga tributária que o governo monárquico brasileiro impunha aos produtores de charque e teve lances épi­ cos e românticos, incluindo a presença do revolucio­ nário italiano G iuseppe G aribaldi. O caso mais evidente de transbordamento da ativi­ dade política dos grupos urbanos e letrados para as camadas pobres da população, que se apropriaram dos embates políticos e sociais, levando-os adiante, foi o da B alaiada (Maranhão e Piauí, 1838-1842). Para se ter uma idéia de sua extensão, calcula-se que 15 mil rebel­ des foram mortos durante o episodio, sem contar os milhares de presos — cifra que equivale a Um genocidio da população das duas províncias. “Q ueiram, senhores, sangrar três homens em um só vaso, um branco, um cabra e um caboclo, e depois nos queiram mostrar o sangue dividido de um e de outro”, afirmava um dos manifestos balaios, que assim criticava diretamente as teorias raciais em voga que serviam como forma de dominação social. Toda a região ficou conflagrada e, apesar das tenta­ tivas, as alianças entre os rebelados foram precárias: liberais exaltados como Lívio Castelo Branco, três mil quilombolas chefiados por Cosme Bento, índios, ca- ■ 6 4 ■
  • 68. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS bocios, vaqueiros, lavradores, camponeses — embora grande parte do contingente fosse de pequenos bandos armados, sem maior organicidade. Os rebeldes chega­ ram a tomar a cidade de Caxias (a segunda maior do Maranhão) e foi graças a sua retomada que o chefe das tropas legalistas, o jovem coronel Luís Alves de Lima e Silva, recebeu o título de barão, chegando mais tarde a duque. Lima e Silva foi o responsável pela pacificação política e pela repressão militar do episódio. Nenhum momento da história do Brasil concentrou tanta violência num tempo tão curto e em extensões de terra tão largas quanto essa fase da monarquia. Violência social e política. Grupos étnicos variados, ligados pela comunidade da língua e da religião, mar­ cados pelas condições de regiões diversas, tendo pelas riquezas da terra um grande entusiasmo, demonstran­ do aversão ao português, mas desprezando uns aos outros — eis a obra de três séculos de colonização, na síntese do historiador Capistrano de Abreu. Referia-se às vésperas da independência e poderia perfeitamente tratar do período regencial — quando tal diagnóstico encontra sua melhor expressão e, também, começa a perder sentido. A engrenagem nacional centralizadora, modernizante e defensora da ordem social, urdida por agentes históricos, incorpora e homogeneiza os multi- facetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas ■ 6 5 •
  • 69. MARCO MOREL digerindo-os e assimilando os pedaços partidos, na busca de uma nação próspera e desigual. Autocrítica de um revolucionário Antonio Borges da Fonseca lamentou ter defendido a tranqüilidade, ordem e moderação nos idos de abril de 1831. Personagem central naqueles episodios, mergu­ lhara de ponta-cabeça na Noite das Garrafadas. Fora também o idealizador da Sociedade Defensora da In­ dependência Nacional, da qual acabaria alijado. Ao contrario de outros exaltados, Borges apoiara a aliança com os moderados, antes e depois do afastamento de d. Pedro I. Arrependera-se: não fora para isso que fizera a revolução. D aí já se pode prever o futuro participante da Revolta Praieira de 1848 e o ferrenho oposicionista dos anos 1860. Com o despontar do Regresso e a eleição de Araújo Lima para Regente, em 1837, as últimas ilusões dissi- param-se. Nessa época o jovem poeta Manoel Araújo Porto Alegre ainda fizera uns versinhos que, musicados, ecoavam pelas ruas imperiais: “Viva o amor! Fora o Regresso!” Borges da Fonseca mantinha viva a lembrança da primeira proclamação da Regência Provisoria que ce­ lebrava “nossa tão necessária quanto gloriosa revolu­ ção”, mas ao mesmo tempo prometia “nobre conduta ■ 6 6
  • 70. o per íodo das r egê ncias e moderação”. Ele assinara embaixo. Mas seis anos depois retratava-se publicamente da “promessa terrí­ vel”, quando se pretendia “dar o devido curso à revo­ lução”. A proclamação da Regencia afirmara que a revolução de 7 de abril deveria “servir de modelo a todos os povos do mundo”. Movimento que fora, como se viu, inspirado nas Três Jornadas de Julho parisienses. Borges da Fonseca rebatia, em tom de desabafo: São passados seis anos depois dessa promessa terrível, e que é do desempenho a ela? O que se fez para aproveitar a revolução? Míseros macacos somos nós que só.vivemos para imitar os outros, para copiarmos a Europa, como se a Europa nos aproveitasse. Assim mesmo os doutrinários de Luís Felipe aproveitaram os três dias de julho para reformar a Carta; para condenar os ministros traidores. Os liberais doutrinários franceses formaram uma escola política que defendia a manutenção da ordem através de um liberalismo implementado por um Es­ tado forte e centralizador. Serviam de paradigma para muitos dirigentes brasileiros, sobretudo os moderados. Mas Borges da Fonseca apontava para a especificidade de que, pelo menos na França, ocorrera uma revolução anterior e que, mesmo em 1830, os ministros do governo deposto foram presos. No Brasil, nem isso, lastimava. ■ 6 7 ■
  • 71. MARCO MOREL Três anos após essa desenganada avaliação, a anteci­ pação da maioridade de Pedro II foi implementada sem ter sido votada pelo Legislativo (mais um drible na Constituição), no que ficou conhecido como G olpe da Maioridade. Foi uma solução ansiada por grupos diri­ gentes que, assim, buscavam retomar a coesão perdida. O início do segundo Reinado eqüivalia à restauração da plenitude monárquica, cujo prestígio estivera aba­ lado durante os últimos nove anos. A sagração e coroação de d. Pedro II foi espetáculo impressionante na cidade imperial brasileira. Até os diplomatas europeus — que em geral menosprezavam as festas da Corte tropical — ficaram impressionados com o aparato, luxo e resplendor daquele 18 de julho de 1841. Carruagens, cortejos, coches, girándolas, bandeiras, estandartes, arqueiros, todos vestidos com requinte e ostentação num cerimonial grandioso e simetricamente executado. Ao entrar na Capela Impe­ rial, a poucos metros do mar azul que resplandecia sob um céu de anil, parecendo ter sido feito por encomen­ da, o jovem monarca foi seguido de perto por alguns objetos de forte teor simbólico. Os gentis-homens, orgulhosos, carregavam o manto de d. Pedro I, sua espada e um exemplar da Constituição do Império em sofisticada letra manuscrita. O mesmo Manoel de Araújo Porto Alegre, futuro barão de Santo Ângelo, fora contratado para fazer o cenário e, na escada pela qua! passou o pequeno impe- ■ 68 ■
  • 72. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS rador, havia dois leões esculpidos — representando força e poder. Seguido de perto pela espada, pelo manto e pelas leis outorgadas por seu pai, Pedro II ostentava seus próprios símbolos: outra espada (enriquecida de brilhantes e com seu nome gravado); cetro de ouro maciço de dois metros e meio de altura, cravejado com dois brilhantes; coroa também de ouro, ornada com pérolas e brilhan­ tes; manto de veludo verde salpicado de estrelas de ouro, dragões e esferas. Não apenas os cortesãos exta- siavam-se. Do lado de fora, ocupando as praças do Rio de Janeiro, uma multidão aplaudia e delirava. Um detalhe do cerimonial: o novo monarca teve suas mãos lavadas e purificadas. Ao mesmo tempo, a cerca de três mil quilómetros dali, o coronel Luís Alves de Lima e Silva erguia a espada do Império contra os rebeldes da Balaiada, em sua maioria escravos, índios e pobres livres. Os cami­ nhos da nação ainda seriam árduos. • 69 ■
  • 73. Cronologia 18 2 2 12 o ut A c la m a ç ã o d e d . P e d ro im p e ra d o r d o B ra sil 18 2 3 F e c h a m e n to d a A s s e m b lé ia C o n s t it u in t e 18 2 4 E o u to rg a d a á C o n s titu iç ã o 18 2 5 N a s c im e n to d o p rín c ip e P e d ro , h e rd e iro d a C o ro a b ra s ile ira 18 2 6 M o r t e d e d . J o ã o VI e m P o rtu g a l C o m e ç a m a fu n c io n a r a A s s e m b lé ia G e ra l ( d e p u ­ ta d o s ) e o Se n a d o 18 3 0 T rês J o rn a d a s d e J u lh o e m P aris 18 3 1 12 a 14 m ar N o ite d a s G a rra fa d a s , n o R io d e J a n e iro 19 m ar O im p e ra d o r n o m e ia n o vo m in is té rio 5 a br O im p e ra d o r n o m e ia o m in is té rio d o s m a rq u ese s 7 abr A b d ic a ç ã o d e d . P e d ro I e e s c o lh a d a R e g ê n c ia T rin a P ro vis ó ria 13 abr R e vo lta d o M a ta M a ro to s , e m S a lva d o r 5 jul D io g o F eijó é n o m e a d o m in is tro d a J u s tiç a 12 jul Se d iç ã o d o s e x a lta d o s n o R io d e J a n e iro ■ 7 0 ■
  • 74. O PERÍODO DAS REGÊNCIAS 17jul Escolha da Regência Trina Permanente Motins no Rio deJaneiro, Pernambuco e outras localidades 1832 M o t in s n o R e c ife Tem início em Pernambuco e nas Alagoas a Caba- nada, que durará até 1836 Câmara dos Deputados aprova reforma constitu­ cional 1833 C o n flit o s d e ru a n o R io d e J a n e iro c o n t ra a v o lt a d e d . P e d ro I José Bonifácio perde o cargo de tutor de d. Pedro II Sedição federalista na Bahia Revoltas da Fumaça e da Carranca, ambas em Minas Gerais 1834 ago A t o A d ic io n a l à C o n s titu iç ã o set M o rt e d e d . P e d ro I, e m P o rtu g a l 1835 Tem início no Pará a Cabanagem, movimento que durará até 1836 F e ijó é e le ito R e g e n te U n o T e m in íc io n o R io G ra n d e d o Su l a R e vo lta F a r­ ro u p ilh a , q u e d u ra rá a té 1 8 4 5 Revolta dos Malês, em Salvador 1837 F e ijó re n u n c ia à R e g ê n c ia e é s u b s titu íd o p o r P e d ro d e A r a ú jo L im a Início do “Regresso” Tem início na Bahia a Sabinada, movimento que durará até 1838 71
  • 75. MARCO MOREL 18 3 8 Tem início no Maranhão e no Piauí a Balaiada, que durará até 1842 Revolta de Manoel Congo, no Rio de Janeiro 18 3 9 República Juliana, em Santa Catarina 18 4 0 L e i d e I n te rp re ta ç ã o d o A t o A d ic io n a l A n te c ip a ç ã o d a m a io rid a d e d e d . P e d ro II/ in ic io do Segundo Reinado 18 4 1 Revisão do Código de Processo Criminal 18 4 2 Revoltas Liberais em Minas Gerais e São Paulo 18 4 8 Revolta Praieira, em Pernambuco • 7 2 ■
  • 76. Referências e fontes p. 7: O livro de João Manuel Pereira da Silva (1817- 1894) é H istória do B ra z il dura nte a m enorida de d e D . P edro I I (1831 a 1 8 40 ), Rio de Janeiro, B.L. G arnier, 1878, 2a ed., p.VII. p. 16-18: Para comparação entre a França e o Brasil ver Marco Morel, “Le roi, le peuple et la nation: méta- morphoses du libéralisme politique en France et au Brésil (1830-1831)”, C ahiers du B résil C ontempo- rain n.2 3 , Paris, EHESS, p. 59-75. p. 31-39: As análises sobre os partidos foram retiradas de Marco Morel, L a form a tion d e 1’espa ce p u b lic m oderne à R io de J a neiro (1 8 2 0 -1 8 4 0 ): O pinión, a cteurs et socia b ilités, tese de doutorado, Paris, U F R d’Histoire, Université de Paris I, 1995, parte I. p. 44: Charles D arwin, O Beagle na A mérica do Sul, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. p. 46: Stuart B. Schwartz, S egredos internos: E ngenhos e escra vos na socieda de colonia l, São Paulo, Compa­ nhias das Letras, 1995, parte I V. p. 47: K átia de Q. Mattoso, B a hia século XIX. U ma p rovíncia no L mpério, Rio de Janeiro, Nova Frontei­ ra, 1992, cap.30. p. 48: Sobre o G rande Fateusim Nacional, ver Marcello Basile, E z eq uiel C orrêa dos S antos: Um ja cob ino na