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DA COMENSALIDADE À CONVIVIALIDADE:
POR UM CONTRATO DE CUM VIVERE 1
Tássia Carvalho (UERJ)
Não seria exagero dizer que as interações à mesa nos trouxeram até aqui.
Isso é evidente tanto se partimos da perspectiva da família nuclear, quanto da
importância fundamental da comensalidade para o processo de constituição das
sociedades, das mais primitivas às mais complexas. Primeiro porque, como
defendia Luís da Câmara Cascudo (2011), o ato de alimentar-se que é, em essência
o imperativo da natureza mais selvagem do humano, também é aquele que incorporou
a maior quantidade de tabus sociais. Segundo, porque os sistemas de símbolos
presentes nas interações à mesa revelam muito mais que apenas saciar desejos. A
mesa carrega consigo o mais alto grau de tradições de uma sociedade,
transparecendo também ali relações de classe, status e poder. Se em algum
momento comeu-se apenas para suprir carências nutricionais, esse tempo é tão
remoto que dificilmente poderíamos considerar-nos humanos. Contudo,
presenciamos pouco a pouco o caminhar para um "resgate" desse tempo
não-humano na qual o ato de comer em comunhão vai perdendo centralidade e
tornando-se cada vez mais escasso e o valor nutricional daquilo que se come passa
a ser visto como aspecto central. Essa perda de centralidade da comensalidade é,
em diversos aspectos, uma consequência direta do processo de intensificação do
modelo capitalista de sociedade que tem no controle do tempo a forma mais
eficiente de controle dos indivíduos. Na lógica do "tempo é dinheiro”, comer à mesa
torna-se um luxo dispensável. O convivialismo, enquanto tentativa de transformação
concreta da sociedade, não propõe um modelo pronto (como nos foram vendidos o
socialismo e o liberalismo, por exemplo), mas visa a agregar diversas experiências
para a construção de uma sociedade pluriversalista. Assim, o resgate à importância
da comensalidade para as interações e cooperação entre os indivíduos, contribui
como um aspecto que se incorpora a muitas outras formas de construção dessa nova
sociedade que perpassa por um processo de reconstrução integral tanto do modelo
de produção e circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e
consumo.
DA COMENSALIDADE...
Não por acaso o marco fundamental do surgimento da cozinha, domínio do
fogo, é também o marco fundamental do surgimento da civilização. O ato de
cozinhar a carne favoreceu o hábito de fazer as refeições em comum, possibilitando
a efetivação da divisão social do trabalho e tornando mais complexes os processos
de organização em grupo (Perles, 1998). Se a relação entre transformação social e
alimentação é nítida nesse processo, cabe lembrar que os grandes marcos
revolucionários na história da humanidade coincidem com grandes transformações
nas formas de produção alimentar. Primeiro o domínio do fogo, depois o domínio da
agricultura que, notadamente, demandava um sofisticado nível de interação social e
repartição e consumo em comum dos alimentos produzidos. Esse, contudo, não é o
único aspecto relevante no processo de constituição das sociedades humanas. A
forma como a alimentação relaciona-se com o gosto, já na pré-história, revela que a
1
Transcrito do livro “Manifesto Convivialista: declaração de interdependência” (Caillé, Vandenberghe, Véran – Org.);
pgs. 183~189. São Paulo: AnnaBlume, 2016.
predileção por determinadas formas de preparo ou tipos de alimentos foram
essenciais para a constituição de identidade e origem de um pensamento simbólico,
i.e. da cultura.
Desse passo à hierarquização dos indivíduos e alimentos, à ritualização, à
sacralização e à distinção social, um longo caminho foi percorrido. À necessidade
biológica, foi-se incorporando uma série de tabus em torno do alimento. O ato de
comer em comum passou a representar não apenas uma questão de sobrevivência,
mas um símbolo de aliança e cooperação. "Companheiro” (do latim cum panis) é,
essencialmente, aquele que partilha o pão (Cascudo, 1983: 42). No período clássico,
por exemplo, os banquetes eram interpretados como forma de distinção entre os
"civilizados" e os "selvagens" ou "bárbaros". De acordo com Montanari (1998: 109),
"a mesa funciona não apenas como agente de agregação, mas também de
separação e de marginalização. O fato de ser aceito à mesa comum ou de ser
excluído dela, tem um forte significado (...)". Os banquetes (ou conviviums), comuns
em todas as culturas (antepassadas e presentes), podem ser percebidos como
expressão máxima da comensalidade e carregam consigo um processo simbólico de
trocas e construção de laços entre grupos (Joannès, 1998). Casamentos,
aniversários, celebrações de acordos, festejos religiosos e toda espécie de rito de
passagem estão sempre associados ao ato de comer em comum, mas a importância
da mesa não se faz apenas em ocasiões especiais.
O processo de socialização dos indivíduos também passa, necessariamente
pela mesa. Michel Maffesoli (2002) atribui à socialização em família um aspecto
fundamental: o da comunicação. Segundo sua visão, a mesa e o espaço onde grande
parte dos imperativos culturais são transmitidos geracionalmente, exercendo um
papel vital no fortalecimento dos laços familiares e, consequentemente, sociais.
Socialização essa, que transmite uma série de valores ao convívio não apenas em
sociedade, mas em sociedades específicas cujo “gosto" irá definir a classe social e o
estilo de vida aos quais cada indivíduo pertence (Bourdieu, 1983). Parafraseando
Jean Anthelme Brillat-Savarin, "diga-me o que comes e eu te direi o que és" (Sage
mir, was du iβt, und lch sage dir, wer du bist). A célebre frase proferida em 1826 na
Fysiologia do gosto: meditações sobre a gastronomia transcendental continha em si,
uma série de significados que relacionavam-se, essencialmente, ao prazer e requinte
em comer, mas talvez hoje ela adquira novos significados. Que tipo de sociedade a
comida que comemos é capaz de revelar?
A função social da alimentação, que por milhares de anos permaneceu
praticamente intacta, tem perdido sua centralidade de forma muito intensa. O
avançar da modernidade tem gerado uma dupla problemática alimentar. De um
lado, presenciamos o gradual desaparecimento do hábito de sentar à mesa e comer
em família, do processo de preparo dos alimentos e de interações simbólicas ligaidas
à refeição, para aos poucos voltar à lógica de comida como uma necessidade de
suprir demandas nutricionais. Os produtos industrializados somam-se à praticidade
dos fast foods que reduzem “refeição” à “comida” e simulam uma falsa globalização
do gosto, obedecendo a uma lógica de "cozinha internacional" que não consegue
propagar a cultura dos países aos quais remete. Ela apenas apropria-se de
elementos abstratos e convencionais e contribui para a padronização de um resgate
cultural artificial que remete a lugar [humano] nenhum. Câmara Cascudo, já em
1967, identificando a velocidade de transformação dos hábitos alimentares travou
críticas contundentes à tendência de mecanização da cozinha:
A industrialização dos alimentos reduz a comida a um armário de
latas. (...) Uma alimentação mecanizada, sequência de pratos
escolhidos maquinalmente e trazida na ração individual como o tigre
que recebe o naco sangrento é uma homenagem ao jardim
zoológico (...) Julio Camba profetizou "preveo que en el transcurso
de muy pocas generaciones el arte de comer habrá sido
enteramente sustituído por la ciência de nutrirse" (...) Comer é um
ato orgânico que a inteligência humana tornou social. (...) Comer
para viver e viver para comer são formas irracionais e criminosas do
direito de existir (CASCUDO, 1983: 36-37).
De outro lado, percebemos a intensificação da pauperização dos campos em
todo o mundo e a desapropriação de terras cultiváveis de pequenos proprietários
para incorporação de grandes empresas alimentares globais. A mudança no
processo de produção das commodities agrícolas tem intensificado a desigualdade
de acesso a alimentos e reduzido a qualidade daquilo que é consumido. Apesar do
intenso processo de modernização dos países do Sul ter revolucionado, a partir da
década de 1970, a eficiência no campo e contribuído também, na esteira da
"Revolução Verde", para o crescimento exponencial da produção agrícola mundial,
as consequências sociais desse processo foram desastrosas e responsáveis pelo
aumento das monoculturas latifundiárias, declínio das agriculturas familiares e
intenso êxodo rural (Chonchol, 2005). Além disso, a vinculação de produção às
lógicas de um mercado de alimentos cada vez mais globalizado contribui para uma
má distribuição de alimentos e marginalização de certas populações, bem como para
o desvio do uso de terras cultiváveis e grandes volumes de água para produção de
biocombustíveis ou ração para produção de animais.
Assim, de uma dupla visão, o sistema alimentar de nossa sociedade é
insustentável. Não se trata apenas de entender o que comemos?, mas como
comemos? E por que assim comemos? Qualquer projeto revolucionário de
transformação social não pode negligenciar essas questões, pois por meio delas
chegaremos ao passo seguinte: sua superação.
À CONVIVIALIDADE
Como demonstrado, a comensalidade pode ser compreendida como um
elemento “fundador" do humano e o convivium (ou banquete) sua expressão
máxima. Convivium também é sinônimo de convívio ou vida em comum (cum
vivere). Nesse sentido, uma filosofia política que aposta no convivium como
alternativa sistêmica em oposição à produtividade industrial e que reforça a
importância da relação autônoma e criativa entre indivíduos (Illich, 1973) perpassa,
necessariamente, pela reconstrução integral tanto do modelo de produção e
circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e consumo. No
atual modelo de sociedade que vivenciamos, não há um contrato de cum vivere (ou
se há, não é respeitado...). Certamente há banquetes, mas nem todos são
convidados a sentar à mesa. Assim, o primeiro passo é identificar quem fica de fora
do banquete, para em seguida, buscar formas de trazê-los à mesa. Não cabe aqui,
nem é necessário nomina-los. Somos muitos, em diferentes formas e contextos.
Pouco a pouco é crescente o número de indivíduos deixados de fora, mas também
não é difícil perceber que uma série de iniciativas têm, aos poucos, rompido as
barreiras impostas pelos nossos modelos de sociedade para recriar criativamente
novas dinâmicas de convivium. Tais dinâmicas atuam em uma perspectiva alimentar
que integra tanto o processo de valorização da comensalidade e de respeito à
diversidade cultural, quanto a necessidade de pensar alternativas sustentáveis de
produção e circulação de alimentos.
A partir de 2001 um grande número de indivíduos em movimentos sociais de
bandeiras tão diversas decidiram buscar novas alternativas à globalização
capitalista. Eis que surgiu o Fórum Social Mundial (FSM) em oposição ao fórum
econômico de Davos, ambiente exclusivo aos donos do capital, onde certamente não
faltara um belo banquete. Se a ideia inicial era demonstrar resistência à visão do
capitalismo como fim da história, aos pouco pudemos perceber que o FSM funcionou
como uma grande mesa posta e pronta a receber uma pluriversalidade de
alternativas. Slow food, veganismo, soberania alimentar, cultivos sustentáveis,
agricultura familiar, cooperativas agroindustriais, alimentos orgânicos, hortas
solidárias, decrescimento, agricultura urbana e periurbana, reforma agrária,
economia solidária, respeito às culturas alimentares locais, dentre muitas outras
formas de contestar o sistema alimentar vigente emergem e se fortalecem em um
espaço em que o caminho para a convivialidade já foi descoberto. O Manifesto, nesse
sentido, se propõe a uma etapa posterior: agregar diversas dessas formas
alternativas já conhecidas, mas talvez desacreditadas para transformar o contrato
de cum vivere em algo que transcenda os movimentos sociais para se constituir
como espaço aberto, de fato, a todos. Afinal, talvez a convivialidade se trate disso:
uma forma de convidar todos à mesa...
REFERÊNCIAS:
BOURDIEU, Pierre (1983). Gostos de classe e estilos de vida. In: Ortiz, Renato (org.)
Bourdieu. São Paulo: Ática.
CASCUDO, Luís da Câmara (1983). História da alimentação no Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia.
CHONCHOL, Jacques (2005). A soberania alimentar. Estudos [online] vol.19, n.55
[cited 2015-03-31], pp. 33-48.
LANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998). História da Alimentação. São
Paulo: Estação liberdade.
LICH, Iván (1973). Tools for Conviviality. Nova York: Harper and Row.
JOANNES, Francis (1998). A função social do banquete nas primeiras civilizações. In:
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo:
Estação liberdade.
MAFFESOLI, Michel (2002). Mesa espaço de comunicação. ln: DIAS, Cecília Maria de
Moraes (Org.). Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Editora Manole.
MONATARI, Massimo. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação
liberdade.
PERLES, Catherine (1998). As estratégias alimentares nos tempos pré-históricos. In:
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo:
Estação liberdade.

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Da Comensalidade à Convivialidade: por um contrato de cum vivere

  • 1. DA COMENSALIDADE À CONVIVIALIDADE: POR UM CONTRATO DE CUM VIVERE 1 Tássia Carvalho (UERJ) Não seria exagero dizer que as interações à mesa nos trouxeram até aqui. Isso é evidente tanto se partimos da perspectiva da família nuclear, quanto da importância fundamental da comensalidade para o processo de constituição das sociedades, das mais primitivas às mais complexas. Primeiro porque, como defendia Luís da Câmara Cascudo (2011), o ato de alimentar-se que é, em essência o imperativo da natureza mais selvagem do humano, também é aquele que incorporou a maior quantidade de tabus sociais. Segundo, porque os sistemas de símbolos presentes nas interações à mesa revelam muito mais que apenas saciar desejos. A mesa carrega consigo o mais alto grau de tradições de uma sociedade, transparecendo também ali relações de classe, status e poder. Se em algum momento comeu-se apenas para suprir carências nutricionais, esse tempo é tão remoto que dificilmente poderíamos considerar-nos humanos. Contudo, presenciamos pouco a pouco o caminhar para um "resgate" desse tempo não-humano na qual o ato de comer em comunhão vai perdendo centralidade e tornando-se cada vez mais escasso e o valor nutricional daquilo que se come passa a ser visto como aspecto central. Essa perda de centralidade da comensalidade é, em diversos aspectos, uma consequência direta do processo de intensificação do modelo capitalista de sociedade que tem no controle do tempo a forma mais eficiente de controle dos indivíduos. Na lógica do "tempo é dinheiro”, comer à mesa torna-se um luxo dispensável. O convivialismo, enquanto tentativa de transformação concreta da sociedade, não propõe um modelo pronto (como nos foram vendidos o socialismo e o liberalismo, por exemplo), mas visa a agregar diversas experiências para a construção de uma sociedade pluriversalista. Assim, o resgate à importância da comensalidade para as interações e cooperação entre os indivíduos, contribui como um aspecto que se incorpora a muitas outras formas de construção dessa nova sociedade que perpassa por um processo de reconstrução integral tanto do modelo de produção e circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e consumo. DA COMENSALIDADE... Não por acaso o marco fundamental do surgimento da cozinha, domínio do fogo, é também o marco fundamental do surgimento da civilização. O ato de cozinhar a carne favoreceu o hábito de fazer as refeições em comum, possibilitando a efetivação da divisão social do trabalho e tornando mais complexes os processos de organização em grupo (Perles, 1998). Se a relação entre transformação social e alimentação é nítida nesse processo, cabe lembrar que os grandes marcos revolucionários na história da humanidade coincidem com grandes transformações nas formas de produção alimentar. Primeiro o domínio do fogo, depois o domínio da agricultura que, notadamente, demandava um sofisticado nível de interação social e repartição e consumo em comum dos alimentos produzidos. Esse, contudo, não é o único aspecto relevante no processo de constituição das sociedades humanas. A forma como a alimentação relaciona-se com o gosto, já na pré-história, revela que a 1 Transcrito do livro “Manifesto Convivialista: declaração de interdependência” (Caillé, Vandenberghe, Véran – Org.); pgs. 183~189. São Paulo: AnnaBlume, 2016.
  • 2. predileção por determinadas formas de preparo ou tipos de alimentos foram essenciais para a constituição de identidade e origem de um pensamento simbólico, i.e. da cultura. Desse passo à hierarquização dos indivíduos e alimentos, à ritualização, à sacralização e à distinção social, um longo caminho foi percorrido. À necessidade biológica, foi-se incorporando uma série de tabus em torno do alimento. O ato de comer em comum passou a representar não apenas uma questão de sobrevivência, mas um símbolo de aliança e cooperação. "Companheiro” (do latim cum panis) é, essencialmente, aquele que partilha o pão (Cascudo, 1983: 42). No período clássico, por exemplo, os banquetes eram interpretados como forma de distinção entre os "civilizados" e os "selvagens" ou "bárbaros". De acordo com Montanari (1998: 109), "a mesa funciona não apenas como agente de agregação, mas também de separação e de marginalização. O fato de ser aceito à mesa comum ou de ser excluído dela, tem um forte significado (...)". Os banquetes (ou conviviums), comuns em todas as culturas (antepassadas e presentes), podem ser percebidos como expressão máxima da comensalidade e carregam consigo um processo simbólico de trocas e construção de laços entre grupos (Joannès, 1998). Casamentos, aniversários, celebrações de acordos, festejos religiosos e toda espécie de rito de passagem estão sempre associados ao ato de comer em comum, mas a importância da mesa não se faz apenas em ocasiões especiais. O processo de socialização dos indivíduos também passa, necessariamente pela mesa. Michel Maffesoli (2002) atribui à socialização em família um aspecto fundamental: o da comunicação. Segundo sua visão, a mesa e o espaço onde grande parte dos imperativos culturais são transmitidos geracionalmente, exercendo um papel vital no fortalecimento dos laços familiares e, consequentemente, sociais. Socialização essa, que transmite uma série de valores ao convívio não apenas em sociedade, mas em sociedades específicas cujo “gosto" irá definir a classe social e o estilo de vida aos quais cada indivíduo pertence (Bourdieu, 1983). Parafraseando Jean Anthelme Brillat-Savarin, "diga-me o que comes e eu te direi o que és" (Sage mir, was du iβt, und lch sage dir, wer du bist). A célebre frase proferida em 1826 na Fysiologia do gosto: meditações sobre a gastronomia transcendental continha em si, uma série de significados que relacionavam-se, essencialmente, ao prazer e requinte em comer, mas talvez hoje ela adquira novos significados. Que tipo de sociedade a comida que comemos é capaz de revelar? A função social da alimentação, que por milhares de anos permaneceu praticamente intacta, tem perdido sua centralidade de forma muito intensa. O avançar da modernidade tem gerado uma dupla problemática alimentar. De um lado, presenciamos o gradual desaparecimento do hábito de sentar à mesa e comer em família, do processo de preparo dos alimentos e de interações simbólicas ligaidas à refeição, para aos poucos voltar à lógica de comida como uma necessidade de suprir demandas nutricionais. Os produtos industrializados somam-se à praticidade dos fast foods que reduzem “refeição” à “comida” e simulam uma falsa globalização do gosto, obedecendo a uma lógica de "cozinha internacional" que não consegue propagar a cultura dos países aos quais remete. Ela apenas apropria-se de elementos abstratos e convencionais e contribui para a padronização de um resgate cultural artificial que remete a lugar [humano] nenhum. Câmara Cascudo, já em 1967, identificando a velocidade de transformação dos hábitos alimentares travou críticas contundentes à tendência de mecanização da cozinha:
  • 3. A industrialização dos alimentos reduz a comida a um armário de latas. (...) Uma alimentação mecanizada, sequência de pratos escolhidos maquinalmente e trazida na ração individual como o tigre que recebe o naco sangrento é uma homenagem ao jardim zoológico (...) Julio Camba profetizou "preveo que en el transcurso de muy pocas generaciones el arte de comer habrá sido enteramente sustituído por la ciência de nutrirse" (...) Comer é um ato orgânico que a inteligência humana tornou social. (...) Comer para viver e viver para comer são formas irracionais e criminosas do direito de existir (CASCUDO, 1983: 36-37). De outro lado, percebemos a intensificação da pauperização dos campos em todo o mundo e a desapropriação de terras cultiváveis de pequenos proprietários para incorporação de grandes empresas alimentares globais. A mudança no processo de produção das commodities agrícolas tem intensificado a desigualdade de acesso a alimentos e reduzido a qualidade daquilo que é consumido. Apesar do intenso processo de modernização dos países do Sul ter revolucionado, a partir da década de 1970, a eficiência no campo e contribuído também, na esteira da "Revolução Verde", para o crescimento exponencial da produção agrícola mundial, as consequências sociais desse processo foram desastrosas e responsáveis pelo aumento das monoculturas latifundiárias, declínio das agriculturas familiares e intenso êxodo rural (Chonchol, 2005). Além disso, a vinculação de produção às lógicas de um mercado de alimentos cada vez mais globalizado contribui para uma má distribuição de alimentos e marginalização de certas populações, bem como para o desvio do uso de terras cultiváveis e grandes volumes de água para produção de biocombustíveis ou ração para produção de animais. Assim, de uma dupla visão, o sistema alimentar de nossa sociedade é insustentável. Não se trata apenas de entender o que comemos?, mas como comemos? E por que assim comemos? Qualquer projeto revolucionário de transformação social não pode negligenciar essas questões, pois por meio delas chegaremos ao passo seguinte: sua superação. À CONVIVIALIDADE Como demonstrado, a comensalidade pode ser compreendida como um elemento “fundador" do humano e o convivium (ou banquete) sua expressão máxima. Convivium também é sinônimo de convívio ou vida em comum (cum vivere). Nesse sentido, uma filosofia política que aposta no convivium como alternativa sistêmica em oposição à produtividade industrial e que reforça a importância da relação autônoma e criativa entre indivíduos (Illich, 1973) perpassa, necessariamente, pela reconstrução integral tanto do modelo de produção e circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e consumo. No atual modelo de sociedade que vivenciamos, não há um contrato de cum vivere (ou se há, não é respeitado...). Certamente há banquetes, mas nem todos são convidados a sentar à mesa. Assim, o primeiro passo é identificar quem fica de fora do banquete, para em seguida, buscar formas de trazê-los à mesa. Não cabe aqui, nem é necessário nomina-los. Somos muitos, em diferentes formas e contextos. Pouco a pouco é crescente o número de indivíduos deixados de fora, mas também não é difícil perceber que uma série de iniciativas têm, aos poucos, rompido as barreiras impostas pelos nossos modelos de sociedade para recriar criativamente novas dinâmicas de convivium. Tais dinâmicas atuam em uma perspectiva alimentar que integra tanto o processo de valorização da comensalidade e de respeito à
  • 4. diversidade cultural, quanto a necessidade de pensar alternativas sustentáveis de produção e circulação de alimentos. A partir de 2001 um grande número de indivíduos em movimentos sociais de bandeiras tão diversas decidiram buscar novas alternativas à globalização capitalista. Eis que surgiu o Fórum Social Mundial (FSM) em oposição ao fórum econômico de Davos, ambiente exclusivo aos donos do capital, onde certamente não faltara um belo banquete. Se a ideia inicial era demonstrar resistência à visão do capitalismo como fim da história, aos pouco pudemos perceber que o FSM funcionou como uma grande mesa posta e pronta a receber uma pluriversalidade de alternativas. Slow food, veganismo, soberania alimentar, cultivos sustentáveis, agricultura familiar, cooperativas agroindustriais, alimentos orgânicos, hortas solidárias, decrescimento, agricultura urbana e periurbana, reforma agrária, economia solidária, respeito às culturas alimentares locais, dentre muitas outras formas de contestar o sistema alimentar vigente emergem e se fortalecem em um espaço em que o caminho para a convivialidade já foi descoberto. O Manifesto, nesse sentido, se propõe a uma etapa posterior: agregar diversas dessas formas alternativas já conhecidas, mas talvez desacreditadas para transformar o contrato de cum vivere em algo que transcenda os movimentos sociais para se constituir como espaço aberto, de fato, a todos. Afinal, talvez a convivialidade se trate disso: uma forma de convidar todos à mesa... REFERÊNCIAS: BOURDIEU, Pierre (1983). Gostos de classe e estilos de vida. In: Ortiz, Renato (org.) Bourdieu. São Paulo: Ática. CASCUDO, Luís da Câmara (1983). História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia. CHONCHOL, Jacques (2005). A soberania alimentar. Estudos [online] vol.19, n.55 [cited 2015-03-31], pp. 33-48. LANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998). História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade. LICH, Iván (1973). Tools for Conviviality. Nova York: Harper and Row. JOANNES, Francis (1998). A função social do banquete nas primeiras civilizações. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade. MAFFESOLI, Michel (2002). Mesa espaço de comunicação. ln: DIAS, Cecília Maria de Moraes (Org.). Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Editora Manole. MONATARI, Massimo. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade. PERLES, Catherine (1998). As estratégias alimentares nos tempos pré-históricos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade.