1) A história descreve Ana, uma mulher que vive nas ruas de São Paulo com o marido Cícero.
2) Ana tem problemas de visão em um olho devido a uma infecção e espera marcar uma cirurgia para melhorar.
3) Cícero revela que eles vivem nas ruas desde que uma cunhada os expulsou de casa, mas ele não quer deixar Ana sozinha.
1. 7
Ana e eu1
Guilherme Soares Dias
Casada, um filho morto, pouco ou nenhum contato com o restante da família.
Sentada, olha a paisagem urbana da região central de São Paulo como se
fizesse parte dela. Aquela mulher não precisa mais do sobrenome. O nome é o
resto de uma vida que ela tenta esquecer e prefere não contar: o passado
sofrido. O marido, Cícero, diz que estão juntos há 20 anos, mas nunca
conheceu seus parentes. Ela jura que os dois irmãos que vivem na capital
paulista sabem de seu paradeiro.
Ana usa um agasalho para se proteger do friozinho sentido em uma segunda-
feira nublada e chuvosa. As unhas estão pretas de sujeira e os cabelos,
brancos e despenteados. Mas saca um pequeno pente preto de sua bolsa e
tenta desembaraçá-los, pelo menos até que assentem um pouco. Apesar de já
passarem das 16 horas, devia ser a primeira vez que fazia aquilo aquele dia.
Para mim, não foi fácil chegar até ali. E foi mais difícil ainda conversar com ela.
Em certo momento, deu vontade de chorar e fiquei com medo dos meus olhos
me traírem. Depois pensei que a pena que ela despertava em mim não era
benéfica para a matéria. Então quem era ela? Como sobrevivia? O que
desejava?
“Você tá me especulando da ponta do pé até o último fio de cabelo”, repetiu ela
por três vezes até eu conseguir entender o que ela falava. O barulho do trânsito
constante, aliado à sua voz baixa, me impedia de entender muitas coisas.
Minha opção de, pela primeira vez, fazer uma matéria sem anotar ou gravar
nada, com medo de que isso pudesse atrapalhar algo, também me fez perder
partes daquele diálogo.
Em meio à poluição sonora, a voz embargada, típica de quem já se abasteceu
com o combustível daqueles que precisam inebriar a mente para sobreviver,
dispara: “Eu bebo, mas não mexo com ninguém. Mas esse homem aí, ó. Esse
aí...”, aponta, com mais raiva e quase me obrigando a olhar para trás e encarar
seu algoz. Resisto à curiosidade, com medo de uma represália do homem,
primeiro coberto, depois prestando atenção no que conversávamos. “Esse
homem aí me bate, me incomoda. Eu quero que tirem ele daí”, balbucia,
repetidas vezes, até conseguir que eu lhe dê atenção e registre mentalmente o
seu anseio. Logo ela que se interessou tão depressa por mim.
Ao chegar, puxei assunto e Ana foi logo pedindo para ficar mais perto. Parecia
esperar por meses. Todos aqueles em que ensaiei conversar com ela. Quando
1
Texto publicado no TextoVivo-Narrativas da vida real. Ano VIII, 2ª edição. Disponível em
http://www.textovivo.com.br/detalhe.php?conteudo=fl20101210165935&category=autobiografic
a. Acesso em 10/12/2010.
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me aproximei, um cachorro preto me atacou. Eu estava na defensiva – foi o
meu primeiro medo naquele lugar. Era uma cadela gorda, que latia e tentava
alcançar minhas pernas. A mulher me defendeu com um gesto de “passa” e
pediu para eu me sentar ao seu lado. Com o comando, a cachorra voltou a
deitar no seu espaço, onde repousava até que eu ousei adentrar o território que
tomava conta. Sentei bem no campo indicado pela mulher e, numa fração de
segundos, a distância que havia entre nós virou poeira.
Pela primeira vez, estávamos frente a frente e nos encarávamos. Sem
desconfiança ou receios, ela foi me contando sobre como era morar no número
340 da Avenida General Olímpio da Silveira. A localização em frente ao metrô
Marechal Deodoro era estratégica. Afinal, a moradora do canteiro da avenida
utiliza o banheiro do terminal para fazer suas necessidades.
A mulher miúda e de expressão cansada me olhava no fundo dos olhos. Antes
de perceber os barulhos que invadiam aquilo que representava a sua casa, me
incomodei com o cheiro do lugar. O papelão onde dormiam protegidos por
caixas exalava odor de urina. O cheiro me incomodava, mas não parecia ser
percebido por eles e aos poucos fui me adaptando também. Parcialmente
coberta, ela dizia que não faltava comida. “Os moradores dos prédios e das
comunidades ali da rua de trás trazem para gente. Isso não falta, não é
problema”, reitera, garantindo que não passa fome.
Na boca, sobraram poucos ou nenhum dente. Ela engasga nas palavras e
conta sobre os onze dias em que ficou internada no Hospital Sorocabano. “Fui
picada por um inseto”, diz. “Era piolho de cobra, ela ficou com a cara toda
verde, demorou um tempão para sair”, complementa o marido. “Eu fiquei
sozinho!”, diz. Foi num desses dias longos e tristes para Cícero que eu tentei
falar com ela pela primeira vez. Naquele começo de noite de domingo, um
mormaço quente brotava do chão como se reverberasse o sol forte que
acabara de se esconder. Para mim era uma noite morna, uma amiga reclamou
do calor e no outro dia no rádio, ouvi que foi a noite mais quente dos últimos 12
meses, algo como 31ºC.
Era 10 de janeiro, e ela não estava no lugar onde eu sabia que morava. “O que
teria acontecido?”, pensei. Poderia ter voltado para casa ou ter sido vítima de
um dos perigos da rua. Onde estaria? Perambulei de um lado para o outro da
via até chamar a atenção dos moradores do canteiro da avenida, que carrega
consigo o Elevado Costa e Silva. Levei uma encarada de um dos vizinhos de
Ana. “O que foi?”, gesticulou ele, com braços estendidos, para mim, que,
arriscava olhar para o lugar que entendia ser seu. Saí dali, antes que
arranjasse confusão e fiquei com medo de nunca conseguir saber a história
daquela mulher.
Aquela senhora sentada ao lado da estação
E pensar que na primeira vez que a vi voltava feliz para casa depois de me
lembrar de passar na minha padaria predileta e comprar os deliciosos pães
franceses que davam mais sabor às minhas manhãs. Curtia a brisa de um fim
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3. 9
de tarde bonito, após um dia de julho mais quente que o comum em São Paulo.
Havia sido pouco produtivo no serviço, mas nem isso me incomodava mais.
Caminhava pensando na vida, ziguezagueando pelos cerca de vinte
quarteirões que separavam meu local de trabalho de casa.
Percebi que atravessava o trecho de uma rua que nunca tinha estado antes.
Sorri internamente, pois gostava de transitar por novos lugares, ver novas
paisagens. Quando entendi onde estava, vi que passaria pela lateral do metrô
Marechal Deodoro e alcançaria a General Olímpio da Silveira, a umas cinco
quadras do prédio onde moro.
Foi aquela senhora sentada ao lado da estação que me tirou do cerne. De
olhar perdido e cheio d’água, ela parecia mastigar alguma coisa. A cena durou
meros segundos, mas o tapa na cara foi tão forte que o senti por algum tempo.
Havia caído do meu pedestal e me juntado a ela. Pensei que, como um
personagem de Clarice Lispector, poderia nunca mais voltar a ser a mesma
pessoa. Aquela imagem reverberaria por muito tempo na minha cabeça.
Enquanto, os outros moradores de rua pareciam não me sensibilizar mais –
quase se encaixando no quadro que retratava meu cotidiano –, aquela senhora
ali, indefesa, com um problema nos olhos, passando em silêncio por todos os
terrores da rua, parecia ter gritado comigo. Não teria casa? Filhos? Alguém que
a ajude? Dormiria aquela noite ali, sentada ao lado do metrô?
Tive vontade de pegar sua mão e conduzi-la até em casa. No caminho, nos
apresentaríamos e saberíamos tudo o que é possível de uma vida em dez
minutos. Longe da rua, limparia seus olhos com colírio e algodão, pentearia
seus cabelos grisalhos e desgrenhados e esquentaria suas mãos frias e
trêmulas. Ouviria suas histórias e conselhos de vó. Talvez colocasse a cabeça
em seu colo e fecharia os olhos enquanto ela fizesse cafuné. Não fiz nada
disso. Quando percebi, meus passos largos já tinham me afastado daquela
senhora.
Pelo menos os pães poderia ter dado a ela. Nem isso. Quando o trajeto estava
completo e, finalmente, passava manteiga no pão para saboreá-lo, engoli-o,
com desprezo. Estava em dívida com alguém. Tinha vontade de fazer minha
parte e despejar meu conta-gotas no incêndio que é a miséria em São Paulo.
Naquela noite nada fiz.
No outro dia, acordei e, ao pentear os cabelos, era como se minha imagem
refletisse a da velha. Cabelos desgrenhados, olhos cheio d’água, boca
mascando. Estava fora de mim. Pisquei os olhos novamente, afastando aquela
cena incômoda. Voltei para a rotina mecânica, tentando esquecer tudo o que
aquilo representava. Até consegui durante metade do dia. Mas, depois do
almoço, voltava para o trabalho, quando vi outro morador de rua que dormia
sobre a mão calejada e estendida, como se pedisse esmola mesmo durante o
sono. O contraste da sujeira negra dos dedos, da mão branca e suas marcas,
trouxeram à tona todos aqueles sentimentos de novo. Tinha culpa engasgada
em meu ser. Não teria jeito, precisava agir.
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4. 10
E, no caso de Ana, havia algo de ainda mais grave. Ela lembra minha avó (sua
ternura e fragilidade). Uma dessas mulheres fortes e lutadoras do interior do
Brasil, que superou a fome para viver hoje uma vida modesta, mas confortável.
No entanto, poderia ser ela ali, ou você, ou eu... E isso me angustiava.
“Não entendo por que ela não sai da rua”
Passaram oito meses até que conseguisse encarar aqueles olhos e saber a
resposta para algumas das minhas perguntas. Pela primeira vez, percebi que a
vista direita estava encoberta por uma membrana azulada. “É por conta do
bicho”, disse ela. O marido explicou que ela deveria fazer uma raspagem e
que, com isso, voltaria a enxergar normalmente com aquele olho. “Eu preciso
que marque o médico”, pede ela. “Já vieram te levar e você não foi”, rebate ele.
“Foi o Ivo, um gordo da comunidade ali em baixo, mas eu queria ir direto pro
hospital”, explica Ana. Cícero conta que um carro veio levá-la, mas que ela
ficou com medo e pediu que voltassem no outro dia. Agora, Ana espera que a
cirurgia seja marcada e diz que depois vai sair da rua. “Só estou esperando
isso”, promete, como se tentasse convencer a si mesma.
“Eu não entendo por que ela não sai da rua”, desabafa Cícero. Ele repete a
frase por mais duas ou três vezes enquanto conversamos. Conta que tem uma
casa fechada em Mauá e que foram para a rua após uma cunhada “encrencar”
com Ana. “Ela disse para eu arrumar uma mulher mais nova e que, enquanto
estivesse com ela, não precisava voltar lá. Foi quando viemos para cá”, diz.
Sua barba branca e espessa, que cobre boa parte do rosto, está ficando
amarela. A pele morena e queimada do sol sofre com as marcas do tempo e
com as intempéries do clima. Ele tem cor de concreto. A mesma que Ana. A
mesma que todos por aqui. O mesmo material que reveste o viaduto que os
encobre, o canteiro onde dormem, os prédios que os cercam e o órgão que
pulsa no peito de quem nem os percebe mais ali. Talvez por tudo ser da
mesma cor, haja mesmo dificuldade em percebê-los. Talvez eu só tenha
notado Ana por que, em meio a tanto concreto, seus olhos ainda brilhem, não
por ainda ter a chama da vida dentro de si, mas por chorar a morte de cada dia.
Ela lacrimeja, enquanto Cícero diz que, por conta do barulho, “não dorme nem
um segundo”. “O movimento diminui 70% a partir da meia-noite e às 4h30 já
volta por conta dos ônibus”, constata. Ele revela que, se a mulher voltasse para
a família, ele poderia ir para sua casa. “Não volto por dó dela. Meus parentes
não sabem que estou aqui e não vou deixar ela sozinha”, declara.
O pranto de Ana é mais fundo. E ela o conta enquanto o marido atravessa a
avenida. Não tem problemas em viver na rua, em beber seu corote, guardado
nas caixas que a cerca, junto com um pote de comida e com a bolsa preta que
ela tanto fuça. “Mas esse homem aí, ô, esse aí me enche o saco. Ele me
violenta. Quero que o tirem daí”, repete, agora com voz embargada e choro de
verdade. O homem gordo encostado em sua cadeira de rodas enferrujada olha
com desprezo para ela. O ar agora exala dor.
Com aquele desabafo em voz mole, ela deixa transparecer claramente que
está sob efeitos da cachaça. Eu, que tinha tantas dúvidas, tantas perguntas,
observo a cena em silêncio. Ela também se cala e abaixa a cabeça. Como num
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5. 11
filme, aquele quadrado de mundo para, enquanto o restante acelera. Ela se
recompõe aos poucos, me encara e despeja: “E então, meu filho?!”. Era como
se cobrasse uma explicação pelo motivo de eu estar ali. Ela, que lacrimejava o
tempo todo, parecia envergonhada pelo seu choro, pedindo para eu dizer algo,
invertendo o foco da situação.
Aos 70 anos, a mulher de pele negra e cor de concreto vê o mundo por meio
de lágrimas. Vou trabalhar, volto da aula, passo para ir para um barzinho... Ela
está sempre ali, sentada, cabelo despenteado, resignada no seu canto. Cícero
se movimenta. Ora confabula com outros moradores de rua em frente à
estação de metrô, ora ocupa diferentes espaços ao longo daquele grande
viaduto em formato de minhoca.
Os vizinhos do canteiro também perambulam, esmolam, praticam pequenos
furtos, fazem pequenas fogueiras. “A gente não se mistura muito com eles”,
revela Cícero, dando a entender que o clima é de hostilidade. De repente,
surge um deles com metade de uma melancia e oferece para o homem que
Ana havia denunciado como seu agressor. Ele sacode a cara de lua cheia e se
nega a comer. Outro homem surge e ordena: “Não joga, não!”. Sem cerimônia,
toma a fruta do outro que mal consegue se equilibrar nas próprias pernas e
ameaça a tombar. Novamente sinto medo. Eles poderiam me notar e
questionar minha presença em seu território. Mas estão mais preocupados
consigo mesmo, um em sugar as últimas gotas daquela melancia, e outro em
prolongar ao máximo o calor que a cachaça lhe provocava naquele momento.
Quando o céu fica cor de chumbo ele também lacrimeja. Estava assim, naquela
sexta-feira, 29 de janeiro, quando vou procurar Ana pela manhã.
Provavelmente ainda não tinha bebido naquele dia e não estava para muito
papo. Cícero havia saído. Como muitas mulheres, ela tinha que ficar em “casa”
para cuidar do que lhe pertencia: alguns papelões, a bolsa, o corote de pinga e
a marmita de comida. Não sabia dizer onde o marido tinha ido. Tento puxar
papo falando do tempo. “Agora chove todo dia, né?”. Ela ergue os ombros,
revira os olhos e se conforma. “Fazer o que, né?”. Seu único lamento naquela
manhã é o olho que coça.
É ela quem nos observa o tempo todo
O incômodo é com o olho que não vê, mas enxerga. A cegueira branca está,
na verdade, nos olhos de quem a vê, mas não a enxerga. A cegueira daqueles
que vêem muito e não captam nada. A escuridão cotidiana de pessoas que
vivem numa cidade que padece com o excesso de tudo. De uma sociedade
que não percebe mais o que está a sua frente. Assim, ficar ali exposta não a
incomoda. Poderia até afetar a gente, afinal, é ela que nos observa o tempo
todo.
“Cadê a menina que sempre está com você?”, questiona. Confuso, respondo:
“Não sei”. Afinal, sempre a procurei sozinho e ela devia estar me confundindo
com algum membro de entidades assistenciais que ajudam pessoas como ela.
“Deu o cano”, respondeu ela, com sua voz de tom grave e rouco, que, aliada
com a maneira malevolente da sua fala, lembra a da Elza Soares. A frase
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6. 12
arrancou um sorriso do meu rosto e fez com ela própria sorrisse, pela primeira
vez, tornando meu riso ainda mais sincero.
Ela balança a cabeça e cantarola. Ignora solenemente minha presença.
Entendo o recado e apelo: “A senhora está precisando de alguma coisa hoje?”.
Ela podia querer tanta coisa, todo mundo precisa... Mas com um semissorriso
ela faz que “não” com a cabeça e eu me despeço.
Vou tentar achar a “comunidade” da rua de trás que lhe oferta ajuda. Na
padaria em frente, o comerciante de meia-idade, branco e de olhos claros
também usa um movimento de cabeça para responder que não sabe de
nenhuma organização que ajude os vizinhos. No comércio ao lado, a jovem
loira é mais simpática. Ela até sorri. Mas também não conhece entidades ou
pessoas que ajudem os moradores do Minhocão. A atendente também não
sabe quem é Ana. E ela está logo ali, antes do fim do horizonte visto de seu
balcão. “Eles incomodam vocês?”, interrogo. “De jeito nenhum, principalmente
os daqui da frente”, analisa, prontamente. Percorro a Brigadeiro Galvão, “a rua
de trás”, e não encontro nenhuma pista de organização governamental ou não
governamental que ajude pessoas em situação de rua.
No dia seguinte, a tarde cai nublada e triste, sem muito a oferecer além de uma
gostosa brisa. “Eles vem de turminha numa perua”, conta Ana, dando mais
detalhes das pessoas que lhe trazem comida. Naquele sábado, no entanto,
eles não tinham passado ainda. Antes que eu me penalize por ela, Ana lembra:
“Todo mundo aqui não comeu”, diz, apontando um a um daqueles com que
dividem o mesmo espaço.
De repente, Cícero, que estava sentado perto do homem que “amola” a mulher,
se exalta com algo. Ela pede desculpa para mim e solta em voz alta e forte.
“Não é empregado de ninguém! Quer fazer os outros de empregado, esse
miserável aí”, diz apontando novamente aquele homem negro e de barba por
fazer que vive a menos de dois metros dela. Gordo e com má formação nas
pernas, ele tem dificuldade de locomoção. Compro fácil o ódio de Ana, afinal
ele tem cara de mau. “Nunca fez nada. Ela que é xarope, cabeça de cobra”,
defende Cícero, com a naturalidade de quem sabe com quem está lidando.
Não entendi por que discutiam e Ana mudou de assunto. Contava agora que o
marido ganha “uns trocados” trabalhando para barraquinhas de frutas e
importados da China que ficam na rua ao lado do metrô. “Ele ajuda a limpar,
trocar dinheiro, faz tudo”, afirma. Segundo ela, os dois estão juntos desde “16
de julho de 99”. “Faz as contas aí”, pede. São quase onze anos de convivência,
nove a menos do que o marido declara terem.
“E vocês se dão bem?”, pergunto. “O problema é só esse aí”, faz gesto com a
cabeça apontando novamente o homem com jeito de ruim e emenda: “o resto
tá tudo bem”. Ninguém mexe com ela e Cícero, lembra. Questiono, então, o
que Ana sonha para o futuro, e sem pestanejar demonstra sintonia com a
sociedade que a cerca: “eu quero dinheiro!”. Faz movimento de circunferência
com os dedos, para contar que identidade, CPF e carteira de trabalho foram
roubados. Ela lembra que já conseguiu o registro de nascimento e que agora
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7. 13
pretende tirar novamente o restante dos documentos para conseguir receber
sua aposentadoria.
Meu coração acelera e me bate uma tristeza. Meus olhos me traem. Agora, sou
eu que lacrimejo. Talvez chorar me fizesse bem, mas não me permito tanto.
Nem sei ao certo por que me emocionei naquele momento. Talvez por todos os
silêncios que ela me provoca. Talvez pela necessidade de alguém ali chorar
um sentimento, já que suas lágrimas eram decorrentes de um problema físico.
Um sentimento, como escreve Clarice Lispector, de que as pessoas da rua
eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da
escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que
elas não sabiam para onde ir.
Eu, que senti dó pela sua cara de carente e me culpei por não ter feito nada por
meses, percebia que talvez quisesse ajudá-la por querer ficar bem comigo
mesmo e não porque quisesse vê-la bem de verdade. Agora, eu me doía por
ter sua própria história e não se contentar com a que eu imaginei para ela.
A dessa mulher que hoje traja calça jeans, blusa rosa e meia começou em
Morro Agudo, no interior paulista. “Todo mundo chama lá de Agudos”, ressalta.
Quando veio para São Paulo, morou na Vila dos Remédios e casou-se pela
primeira vez. O filho nasceu com problema do coração e morreu aos dois anos.
As reticências com que resume a história fazem com que ela se esgote antes
dos nomes, datas e detalhes.
Volto a perguntar sobre a “comunidade” que a ajuda. “Fica na Rua Vitorino
Carmilo. Fiz exame lá uma vez”, relata. Hoje o olho “dói e coça” e os remédios
que recebeu no hospital foram roubados. Ivo, o homem gordo que presta
auxílio às pessoas em situação de rua, a visita todos os dias. “Estou esperando
ele me levar para o hospital”. A tarde cai e, em poucas horas, irá escurecer.
Agora que sei o nome da rua da comunidade, resolvo procurá-la novamente.
“Tenho que ir, tudo de bom para a senhora”, desejo do fundo do coração, como
se aquilo realmente fosse possível. “Para você também”, devolve ela.
Ninguém conhecia a tal entidade
Passava das 19 horas e as portas metálicas daquela rua estavam todas
abaixadas. Pouca gente circula pela via, que percorro até o fim. Moradores das
casas e das calçadas, comerciantes, transeuntes, ninguém conhece a entidade
que ajuda as pessoas que moram no Minhocão. Sem nenhum sinal, volto, indo
para o lado contrário da rua. Encontro uma unidade de Assistência Médica
Ambulatorial, a AMA de Santa Cecília. Está fechada, só atende nos dias de
semana. Será que eles fariam trabalho assistencial também? A unidade está
em reforma e nenhum guarda toma conta do local.
A dúvida dura poucos minutos. A uma quadra dali, há o Pronto-Socorro
Municipal da Barra Funda, onde resolvo entrar para me informar na recepção.
“Você tem que procurar a AMA durante a semana. Lá eles devem fazer esse
trabalho, mas aqui atrás também tem um órgão que ajuda esse tipo de
moradores”, responde o atendente, dando a primeira pista do dia. No número
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8. 14
40 da Rua Albuquerque Lins, uma fachada de tijolinhos a vista, esconde uma
garagem onde Kombis brancas estão estacionadas e um grupo de quatro
pessoas de jaleco conversa.
Por uma janela, pergunto ao guarda o que funciona ali, e ele confirma. “É um
órgão do governo onde médicos e enfermeiros se reúnem para atender os
moradores de rua”. Pergunto se o Ivo trabalha com ele e responde que não o
conhece. Peço para entrar e falar com uma daquelas pessoas. O guarda
pergunta quem sou e me apresento como jornalista. Ele mesmo vai falar com o
grupo e volta analisando minhas roupas. “Você tem que procurar a Secretaria
de Saúde. Aqui não podemos passar nenhuma informação”, diz, com um
sorriso malicioso que parece pensar que aquele sujeito de Havaianas, short
casual e camiseta vermelha não é jornalista coisa nenhuma.
Agradeci e fui embora dali, com a sensação de ter morrido na praia. Voltava
cabisbaixo em direção ao elevado. De fora devia parecer um sujeito excêntrico.
Jovem, migrante, cheguei em São Paulo há menos de um ano, vindo de uma
família simples de Campo Grande (MS). Ainda me impressionava com a
pequenez e com a grandeza dessa metrópole. Os tipos humanos e as
disparidades sociais, que outrora me levaram a escolher o jornalismo como
profissão, agora recheavam meu cotidiano de morador de um bairro de classe
média, localizado ao lado de um viaduto, que abriga parte da extrema pobreza
da cidade. Minha rotina estava tomada por contradições.
De uma das calçadas, um homem interrompeu meus pensamentos e me pediu
dinheiro para comprar comida. “Não tenho”, afirmei com tanta sinceridade que
ele agradeceu. A poucos metros dali, um churrasco desses que têm mais
cheiro do que consistência cruzou minhas narinas. Com meu bloquinho
pressionado contra o queixo, estava de volta a Avenida General Olímpio da
Silveira.
Ali, há grafites elaborados nas colunas de sustentação do viaduto, que
delimitam o quadrado dividido entre Ana e outras dez pessoas. Uma cara com
grandes olhos exibe palavras representativas para o local como “socorro”,
“loucura”, “corrupção”, “povo”, “cegueira”, “vazio”, “desprezo”. Do outro lado,
uma cabeça azul é servida em um prato. O sangue do desenho escorre,
enquanto um garfo e uma faca se preparam para saboreá-la. Dessa cabeça,
surgem outras, num emaranhado de imagens, das quais se destacam as
palavras: “eu tenho vergonha do Senado brasileiro” e “cidade desigual”.
Assinadas por “mundano”, as figuras são o único lampejo de uma área que
perdeu o colorido para desafogar o trânsito.
Os prédios antigos e imponentes do entorno estão sujos e há anos não
recebem um trato. Ao invés de tinta, são recobertos por mofo e pichações.
Lugar de gente que decidiu abandonar a vida social como conhecemos e da
sociedade corresponder com descaso. No meio dessa falta de cuidado há
muita história, e ela só existe por que ainda resta vida.
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9. 15
No dia seguinte, volto ao órgão governamental que atende pessoas em
situação de rua. Ao me apresentar como morador da região, fui melhor
atendido. Apesar de ter passado o horário de ir embora, uma das enfermeiras
me recebeu. “Você também é morador de rua?”, perguntou ela. Negro, barba e
roupas simples. Assim eu poderia ser descrito naquele fim de tarde, assim são
também todos aqueles que moram em volta de Ana. Ela tentava me jogar à
margem. Pela primeira vez, me senti como se estivesse do outro lado. O olhar
de desprezo dela diminuiu quando retomei minha posição e respondi um “não”
seco. Meu medo inicial poderia ter razão e aquela pergunta ecoou dentro de
mim por algum tempo.
A enfermeira atendia a área da República, não conhecia nenhum Ivo e não
sabia quem era Ana. A mulher anotou o que relatei em uma folha sustentada
por uma prancheta. Comprometeu-se em visitar o lugar indicado no próximo dia
de trabalho e procurar aquela senhora com problema nos olhos.
O atendimento assistencial especializado existe, mas será que funciona?
Mesmo não sendo tão omisso quanto pensei, o Estado atendia, mas não sabia
quem eram aqueles humanos com que lidava. Não tinham rostos, histórias e
nomes. Pessoas para quem o significado de Estado não faz mais diferença,
assim como também não importa de onde saem quem os atendem, os
números, as datas e uma série de burocracias e objetividades adotadas por
aqueles que precisam do concreto para ter certeza do que é real.
Minha angústia poderia ser resolvida acompanhando o caso, como se o
problema de Ana estivesse em seus olhos. Se eles parassem de chorar, talvez
eu não me incomodasse mais, finalmente aceitando sua posição de Não Ser e
de perdê-la no meio dessas pessoas invisíveis e cor de concreto. Talvez por
ela parecer um dos meus e eu parecer um deles, eu continuarei sentindo algo
cada vez que passar por ali.
Ana continuaria ignorando meus sentimentos. Ela é uma mulher que não
precisa de minha piedade ‘bondosa’, da minha interferência ou ajuda. Do alto
do seu livre arbítrio, ela me fez entender que pode sim morar embaixo do
minhocão, chorar copiosamente, viver suja e despenteada e levar dias
melhores do que se tivesse em uma casa com a família. O que havia causado
o rompimento? Ela tinha o direito de não dizer a um estranho. Devia ter razão
em não querer lembrar ou saber se realmente ocorreu algo que a levou para a
rua ou simplesmente decidiu chorar seus dias ali.
Ela até permitia que mais gente acompanhasse suas lágrimas, mas sem que
precisássemos também chorar por ela. Com Ana, talvez esse tenha sido meu
erro, precisava de um expoente para extravasar a tristeza que a cidade me
causava, mas ela não aceitava estar nessa posição. Chorava, mas gozava do
seu cigarro, da sua pinga, do seu homem, e sobrevivia às mudanças de tempo
na rua com o que lhe restou de dignidade – e para ela, aquilo era muito. Ela
não precisa de mim, nem de você. Ana Pereira é ela, com sua vida, seu mundo
e suas lágrimas.
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Guilherme Soares Dias - Jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário pela
Academia Brasileira de Jornalismo Literário - www.abjl.org.br -, turma São
Paulo 2009. Site: http://www.textovivo.com.br
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