3. Este conto é uma obra de ficção, em nada nomes, fatos e
datas podem servir como embasamento histórico.
4. Dedicatórias
A Ludmila Fukunaga, minha amiga, minha admiradora,
minha linda.
A Juliana Skwara, amiga, ativista de letras e sobrinha amada.
A Julliana Monteiro por emprestar à minha caçadora, seus
dons de ver a vida.
Ao Jonathan Rhys Meyers por ter emprestado seu rosto e
sua atuação em Drácula, para me fazer sonhar.
E, por fim, a Abraham Bram Stoker pelo personagem criado
com tanto esmero e que, até hoje, é um clássico e uma
inspiração.
5. Eu luto. Luto contra mim mesmo e a provação de minha
essência.
Luto contra o desejo que corre em minhas veias e escorrega
por meus lábios cada vez que elas pulsam... Próximas aos
meus lábios. Saudáveis, convidativas... Lascivas e saborosas
em outro corpo.
Inebriantes.
Tentadoras...
Quentes.
Eu fecho meus castanhos e inalo o doce bouquet férreo,
com variações diversas. Tênues iguarias para aquilo que me
tornei: caçador de mim.
Algo que não devia existir... Contra qual sempre lutei. Mas,
inesperadamente, onde a minha luta me levou.
Eu me tornei parte da lenda que rasga a noite, por trás de
sonhos e sombras, e afugenta as dores e as incertezas de
corações perdidos. Que se aproveita da inocência...
Posso lhe trazer a paz, ou apenas um suspiro de ilusão, feliz.
Quase indolor...
Eu parei de me importar com o que sentem, ou com o que
lhes dou, quando a ausência de Elise se tornou minha maior
fraqueza diante de meu inimigo. Achei que seria forte, mas
sozinho não sou nada.
Virei refém dos meus sentimentos, e passei a andar a
margem do que sempre norteou meus atos. Apenas anseio
me sentir vivo por alguns dias a mais, na espera de que minha
luta a mantenha a salvo, quando a lembrança dela já não me
mantém são como antes e consome a minha existência fútil.
Condena minhas horas, minutos; entrega-me ao desejo de
minha sede, me transforma nesse promíscuo dependente vil
6. de corpos embebidos em notas de bergamota, anis,
calêndula, jasmim ou rosas.
Eu não me reconheço mais... E, ainda que pareça inútil, me
esforço cada vez que minhas presas penetram a carne tenra,
para dar o meu melhor. Para que um sopro de felicidade
minimize a dor da partida.
Tão frágil é a existência humana, para que seja consumida
pela tristeza num único e diminuto momento em que a
plenitude é só minha.
Invejo-os como Lise sempre o fez.
Respeito-os e tento me impor o lamento por cada morte
que deixo, a cada passo meu nessa cidade. Mas a ausência
dela é, talvez, a minha luta maior.
Estou longe de casa, mas não das minhas leis.
Não das regras que jurei seguir. Elas podem me punir a
qualquer momento.
Em cada beco que piso, ou rua mal iluminada.
Eu não descanso mais, não consigo mais fechar os olhos e
não ver Lise.
Vejo-a nas ruas, vielas... Praças.
Em louras, morenas e ruivas. E eu imploro que não me
abandone.
Desde que a deixei, já fiz coisas que me desabonariam
como um Ernöyi. E, Londres não será melhor que Paris ou
Bélgica. O medo de que Napoleão marche sobre Londres, tem
mantido uma constante tensão e receio na cidade, e se cria
um cenário propício para minha ação.
Eu os observo, estudo... e mato.
Embora minha ação possa lhe parecer absurda diante do
imortal que conheceu, asseguro-lhe que tudo o que vi em
7. Namur me fez crer que o mal ainda pode ser mais cruel do que
eu... E não mata por alimento, mas por prazer.
Quando deixei Lise, pensei que ela estava segura, porém
quando olhei aqueles verdes eu soube que não... E, que,
enquanto minhas mãos estivessem sujas de sangue, eu não
poderia voltar.
Estou postado à entrada de uma construção de tijolos, cuja
higiene tem um cunho duvidoso. As paredes escuras respiram
umidade, e transbordam pelos aposentos, alugados a bons
xelins* ao mês, certo descaso e impaciência de sua
administradora, a sra. Owen.
Uma mulher de meia idade, baixa e roliça, que afasta seus
interlocutores com o olhar severo e um avental amarelado.
Cheira a peixe, na maioria das vezes, e não há vontade alguma
em mudar isso. Então eu a vejo, com seu velho vestido verde,
roto e amarfanhado. Seus lindos cachos louros não perdem o
brilho, apesar da constante falta de alimento em sua mesa.
O mesmo sorriso é dispensado ao leiteiro, ao padeiro e ao
jovem que lhe cede uma rosa. Ela não percebe, mas ele a fita
com interesse. Ele poderia fazê-la feliz, mas ela desce a rua
com seus sapatos gastos, quase furados, em direção aos
bairros abastados de Londres.
Uma limpadora de chaminés.
Não é um emprego que envolva sua reputação, ou que
possa envergonhá-la, além da cobertura fina e cinza do pó
diário. E que, em nada, afasta sua beleza. Eu poderia
mencionar que é quase uma pintura. Sua pele tem a cor e a
consistência de pêssegos. Seus lábios são vivos como cerejas,
8. e há algo em seus olhos azuis, que nos fazem temer sua
profundidade.
De todas as raparigas, com quem já travei conhecimento
em Londres, essa foi a mais intrigante. E a que
estranhamente tenho mantido longe de meu apetite. Devo
dizer que travei um conhecimento mais próximo dela quando
apostador em cavalos, trouxe-a até minha residência uma
bela mansão na Picadilly um jovem franzino, que em minha
opinião, não possuía mais que treze anos. Ao tentar arrebatar-lhe
a carteira, Allan o interceptou e o trouxe consigo, na
esperança de lhe dar um corretivo, coisa que o álcool e o
láudano impediram, e que me fizeram ter a oportunidade de
conhecer a moça dentro da veste de menino, a bela srta.
Ludmila Sonieur, ou Milla, como pediu para ser chamada após
cinco minutos de conversa.
Seu olhar era de uma sinceridade crua e serena, como se a
vida já a houvesse maltratado tanto, que expor suas angústias,
era apenas mais um lado escuro da tristeza que a consumia.
Não posso negar que minha primeira intenção, ao mantê-la
em minha sala e revelar a farsa de seu sexo, fora tão somente a
de sorvê-la até a última gota de sangue e fazer George meu
valete e grande entusiasta se livrar do corpo.
Todavia, ela me fascinou. De alguma forma diferente de
Lise, de uma maneira humana e doce. Eu, que estava tão
perdido e incerto sobre qual seria meu futuro, tinha diante de
mim alguém com o coração mais frágil que o meu. Não
saberia qualificar até que ponto a tristeza se instalara nele,
porque a vida para Milla não era feita de esperança... Eram
momentos que ela aproveitava. Simples momentos.
9. Se a mim, que possuo a eternidade, a esperança me inspira;
o que dizer de um humano destituído dela? Milla me
intrigava. Era como uma gema rara, que poucos conhecem o
valor. Mesmo sem esperança seus olhos sorriam, havia cor em
cada gesto seu... Seria isso, viver na miséria?
Observava-a com renovado interesse quando o mordomo
trouxe-lhe comida. O olhar dela, para cada iguaria a sua frente,
fez-me, ainda que minimamente, sorrir. Como os humanos
Cruzei os dedos sobre a boca e Milla respirou fundo,
mordendo o lábio inferior, sem me dar a mínima atenção. O
que será que pensava? Eu, certamente, não comeria nada.
Exceto, talvez, frutas.
Por onde quer começar? indaguei, não irei mentir,
levemente divertido.
Ahn... Bateu o indicador contra os lábios. Por onde
começaria? Ela me pegou desprevenido, tanto que
demorei a responder e, rapidamente, emendou: Tudo
parece tão apetitoso! Fechou os olhos e aspirou o aroma
que, a ela, deveria ser algo ímpar, como o cheiro de um
sangue raro.
A sopa disse após breves segundos. É geralmente o
prato de abertura. Esse é um creme de aspargos.
Ela enviesou o nariz.
A sopa é tudo que sempre conseguimos... Entreabriu
os lábios em dúvida do que alegara. Não poderia comer a
ave?
Perdizes corrigi, admirado com sua simplicidade cada
vez mais. Era tão fácil ser o que quisesse na sua frente, sem
falsos maneirismos. Sirva-a, por favor, Lyod dirigi-me ao
mordomo.
10. Em silêncio, Lyod cumpriu seu papel e, com um mínimo
gesto, nos deixou. Milla quase não respirava entre uma
garfada e outra enquanto eu passeava o indicador pelos
lábios sem ser visto analisando-a.
Quer mais um? indaguei ainda divertido pela avidez
dela. Não, que não conhecesse a pobreza de Whitechapel, por
várias vezes havia frequentado o lugar, mas nada havia
prendido minha atenção como a jovem.
Por que está fazendo isso? cortou-me sincera. Os
olhos ansiosos pela comida, mas o brilho, no fundo dos azuis,
denotando receio.
Bem... Medi-a com interesse. Foi trazida a minha
casa, e não costumo ser um péssimo anfitrião. Não seria a
coisa certa a se fazer. Se está aqui, é porque é minha
convidada, e será tratada como tal. Depositei meus lábios
suavemente na taça de vinho. Sim, era vinho, não estava
querendo impressionar ninguém.
Ela correu os olhos pela sala, apreciando cada detalhe da
mobília e da decoração.
Nunca estive num lugar assim... Mudou sua postura.
Eu estaria ganhando terreno? Sua esposa deve ser uma
mulher de bom gosto, como o senhor.
As imagens de Elise e Sophie vieram a minha mente, uma
realidade distante da que eu possuía naquele momento.
Receio que não possa transmitir-lhe seus elogios, ainda
que devessem ter um destino mais digno. Todavia, não há
uma senhora nesse solar.
Não? Ela me fitou séria, como se considerasse minha
afirmação algum tipo de bravata.
Isso a surpreende?
11. Em parte... Serviu-se de uma farta garfada. Não é
um homem a ser ignorado, sir.
Eu sorri. Minimamente, mas sorri.
Então, eu presumo que deveria ter a casa repleta de
filhos, correndo por entre as cadeiras...
Não Milla retrucou enfática. Por segundos corou até
obter o controle sobre suas emoções. Eu podia sentir.
Não foi isso que quis dizer, sir...
Tenho certeza que não. Admirei os azuis. Foi
apenas uma brincadeira... Perdoe-me. Fitei-a sério.
Não há nenhuma senhora, nem herdeiros dos Fendrich...
Por pura falta de habilidade de minha parte.
Ela sorriu. Um sorriso claro como sua pele.
Deixe-me adivinhar algo sobre você, já que se permitiu
me conhecer um pouco... Francesa de nascença?
Por parte de pai, somente.
Uhn... Mademoiselle Sonieur... prossegui com
aguçado interesse: Acredito que possa ajudá-la.
A mim? estranhou. Achei que seu amigo apenas
quisesse me punir pelo furto da carteira. Não é algo que
costume fazer, sir... Mas há dias não comia.
Talvez tenha, de fato, sido esse o intuito de meu
amigo. Não nego. Ergui-me da cadeira, sabendo-me
observado. Não obstante que um olhar seja pouco para me
intimidar, passeei calmamente atrás de onde ela
encontrava-se sentada. Contudo, minha estadia em
Londres requer descrição.
Oh... Achei que vivesse a vida toda aqui.
Sorri. Ah, como era doce, a inocência.
Estou aqui apenas há alguns meses. Minha família é
originária da Hungria.
12. O senhor está bem longe de casa.
Talvez, algumas milhas mais distante que a senhorita.
A distância muitas vezes é uma questão de ponto de vista.
Milla calou-se de pronto e eu podia sentir o sangue subir-lhe
à face diante de minha audácia em confrontá-la com sua
posição. De fato, era necessário antes de meu pedido:
Como deve ter imaginado, em algum momento...
Devo? interrompeu-me e eu a admirei por isso, mas
nada disse, apenas prossegui como se nada houvesse
acontecido:
Tenho inúmeros convites sociais a serem cumpridos, e
há muita curiosidade em relação ao Conde de Várad,
principalmente sobre a ausência de uma senhora Fendrich.
Não quero ter que responder a isso constantemente, então,
pensei numa ajuda mútua. Você será minha companhia
enquanto eu estiver em Londres, e eu a tiro de Whitechapel
para sempre e a devolvo à França, de forma que poderá se
manter decentemente por toda sua vida.
Esperei-a degustar não só uma grande colherada de purê
de maçã quanto o que lhe dissera.
Não é uma proposta feita para ser recusada. Vejo que
ponderou, até mesmo, como ficaria minha reputação. Algo
que muitos não fariam diante da posição em que me
encontro determinou. Mas porque, me escolheu?
Tenho certeza de que não é por falta de opção, em meio a
tantas mulheres que devem estar suscetíveis ao seu charme,
sir.
Meu charme? ponderei instantaneamente sob um
sorriso.
Uhum assentiu, provando mais purê.
13. Tem razão concordei com sua linha de raciocínio.
Não tinha a menor intenção de negar o que ele afirmava,
pois estava certa. Se eu quisesse alguém de minha posição,
eu a teria com facilidade. Contudo, há algo que não
levou em consideração... A sobrancelha dela enviesou
em alerta. Ter qualquer uma delas significaria problemas
amorosos.
Não quer se apaixonar... a ponderação refletia uma
pergunta implícita.
Aqueles grandes olhos azuis estavam em mim. De certa
forma, sim. Ainda não tinha ideia de quanto tempo
demoraria para voltar a ver Lise e, certamente, um
relacionamento não era algo adequado à posição em que
me encontrava: afastado de minha família e caçado por um
humano. Não era propriamente a posição mais cômoda que
eu poderia estar. Entretanto, admito que tenho gostado da
distração que Van Helsing me proporciona.
humanos criaram diante dos parcos conhecimentos de
minha raça são de certa forma interessantes. Não,
obviamente, pela racionalidade do pensamento, já que não
sou de todo uma besta sanguinária, e porque no fundo,
também os caço. Posso dizer que já matei muitos
renegados utilizando-me do caçador como isca, mas não é
algo que goste. Apenas me proporciona certa diversão, vê-lo
falhar em determinar que sou um deles.
Talvez seja este um dos motivos que me leva a não querer
me misturar aos humanos, como Lise faria tão facilmente.
Observo-os de longe enquanto o tempo passa tedioso, pela
minha janela. Tempo, para alguém como eu, não significa
nada.
14. Digamos que seja conveniente não me envolver.
Então existe alguém que ama ela ponderou uma
vez mais.
Sim optei, novamente, por não mentir. Era certo
que voltaria para Lise... Era uma questão de Luas e Sóis que
se deitariam sob o céu.
Os talheres foram deixados de lado e ela se pôs de pé. Um
movimento que avaliei como péssima posição ao que eu
dissera.
Deveria chamá-la, sir disse firme, encarando-me
numa altivez inesperada. Como mulher, não gostaria de
outra assumindo meu papel.
Madmoiselle Sonieur garanto-lhe que não há a menor
possibilidade dela aceitar estar ao meu lado, nesse ou em
qualquer outro momento próximo.
Os azuis se estreitaram sobre mim curiosos.
Você a ama em segredo? É uma mulher casada?
Precisei de toda minha habilidade e concentração para
não rir do espanto que fez sua pele empalidecer.
Devo dizer que possui uma mente brilhante
Madmoiselle Sonieur, e por isso mesmo gostaria de contar
com sua discrição. Pois, o primeiro certamente é
consequência do segundo, e isso me faz retomar minha
oferta... Vai me ajudar?
Seus azuis escureceram e ela baixou-os ao chão. Eu podia
sentir seu batimento acelerar.
Ela respirou fundo.
Tenho a impressão que seu convite foi uma grande
cortesia, se comparado ao que seu amigo tinha em mente
determinou e um arrepio frio passou por sua espinha.
15. Desta forma, um não de minha parte também nunca foi
cogitado.
Vou pedir que lhe arrumem um quarto.
Mas eu não trouxe nada além do que está comigo...
Não vai precisar de nada do que possuía, eu lhe
asseguro. Puxei a campainha próxima ao aparador.
Tudo que for necessário para sua estadia aqui, será
providenciado amanhã. Lyod entrou pela porta e eu
determinei Precisamos de um quarto. Ele assentiu
prontamente e me voltei a Milla, tomando-lhe a mão entre a
minha e beijando seu dorso. Tenha uma boa noite,
mademoiselle.
Observei-a deixar a sala, seguindo Lyod, com suas roupas
de menino, mas profundamente intrigado em como seu
corpo assentaria num vestido que lhe fizesse jus às formas.
Fazer compras em Londres não é algo que se mantenha
em segredo, principalmente quando se é a sensação da
temporada e quase todas as mulheres cogitam e cochicham
a seu respeito. Sendo assim, ha
atelier de Mrs. Du pont, incendiou
a cidade mais do que um rastro de pólvora o faria. Embora a
dona do atelier nada dissesse, apenas tomava as medidas
de Milla, anotava os tecidos e os trajes que deveriam ser
confeccionados... Os de dia e os de noite. E, certamente, não
lhe escapou o detalhe de colher o nome de sua cliente:
Ludmila Sonieur, minha sobrinha.
Em nada Milla me contradisse, sorria e andava ao meu
lado coquete. Mesmo assim, eu possuía a exata noção do
que isso lhe custava. Havia olhares e bocas maliciosas em
todo nosso percurso, e me era essencial que assim fosse. Eu
16. a salvara da prisão e sabe-se lá o que mais, promover-lhe-ia
o futuro, mas ainda assim o presente lhe reservava
infortúnios... Como a reprovação silenciosa de uma
sociedade hipócrita.
Ela não parecia se importar, contudo, por mais que isso
não devesse me atingir e eu o encarasse como parte de um
serviço adquirido, revoltava-me a natureza escusa dos
humanos. Diletos ditadores dos eufemismos sociais. Os
homens tão poucos escapavam dessa premissa, já que de
tão distintos que eram, cumprimentavam-me, passeando
olhos em suas curvas, dentro do vestuário de cetim róseo
recém-adquirido em Mrs. Du Pont. Enojava-me a forma
como a cobiçavam, era praticamente como se a exibisse
desnuda, mas a falta de respeito jamais partiria de seus
lábios enquanto ela estivesse comigo. Uma vez mais,
hipócritas.
Milla sustentava o olhar de cada um deles, fosse às ruas,
ou no café em que paramos para evidenciar ainda mais
nosso relacionamento. Todavia, ao por os pés no solar, eu a
perdi.
Perdi-a para as paredes de seu quarto, as colchas e os
travesseiros. Observando-a subir em passos apressados, eu
sabia que seu coração estava a um passo de fluir por seus
olhos. E eu me calei, ciente de minha culpa e de que
nenhuma palavra minha desfaria suas angústias.
No silêncio, eu jantei; e, em minha constante solidão
entre aquelas paredes, pedi que lhe fosse servida uma ceia.
Eu precisava dela, e ela também precisava de mim, agora
mais do que nunca.
17. A lua ia alta, iluminando fracamente as ruas de Londres. E,
admiravelmente, lá estava eu, promovendo acrobacias nos
telhados londrinos, procurando sorrateiro, a próxima vítima
minha e de Van Helsing. Ele não era mais velho do que eu
aparentava. Um pouco mais alto, talvez, e mais encorpado.
Seus olhos eram verdes e os cabelos castanhos claros, ao
contrário dos meus sempre curtos, oscilavam à altura de
seus ombros.
Devo admitir que ambos éramos almas da noite e nos
escondíamos nas sombras, e da sociedade. A família de
Abraham era originária dos Países Baixos, e seu pai se
tornara uma celebridade médica na sociedade londrina em
pouco tempo, demonstrando habilidade única em cirurgias
de drenagens pericárdicas. O jovem Van Helsing seguia
distintamente os passos do pai, e sua perícia com uma
espada era quase tão aguçada como a com um bisturi.
Apreciá-lo em combate era, em muitas vezes, melhor que
intervir. Todavia, Isabella, sua irmã, não possuía tanto afinco
em manter a salvo o bom nome da família.
Desde a Revolução Francesa, muitos renegados foram
para Londres, e anos depois, a cidade cheirava a eles. Minha
atração por ela, foi justamente aproveitar essa eclosão para
inocular qualquer ação de maior porte e deixar que ela se
tornasse um problema para nossa sociedade. Infelizmente
ou não, Abraham havia nos descoberto. Não era de Órion,
nem um Protettori, mas era alguém a quem eu devia
respeito.
Nesse momento, ele interpelava o mesmo jovem que eu
lâmina de Van Helsing refletia a luz e disparava em direção à
garganta do renegado. Os olhos do jovem se tornaram
18. rubros e num único movimento, ele interrompeu o avanço
da lâmina no ar enquanto erguia o corpo à calha do telhado
e disparava em minha direção.
Eu estava atrás das muitas chaminés que cobriam os
telhados e não foi difícil cruzar sua rota de fuga, estirpando-lhe
a cabeça. Bastou apenas alguns momentos, em que eu
limpava a lâmina de minha espada no sobretudo, para que
Abraham estivesse em minha frente.
Está longe de casa, Edmund...
Pensei que me agradeceria ponderei, guardando a
espada.
Ele me fitou sob a aba do chapéu de couro que usava.
Já lhe avisei uma vez, está no meu caminho.
E você no meu conclui.
Os dentes dele cerraram e ele se aproximou rápido.
Não sei como consegue andar de dia, mas eu sei que
vai se trair mais cedo ou mais tarde. Encarou-me sério,
com brilho nos verdes. Eu sei quem você realmente é...
Sempre terei meus olhos sobre seus atos e quando você
errar, eu vou estar lá. Rangeu os dentes e deu-me às
costas. Eu apenas sorri. A propósito... deixou no ar
quando desceu do telhado, habilmente. Aquela jovem é
bela demais para alguém como você.
Meu sorriso aumentou.
Tem razão, talvez deva visitar Isabella...
Ele era bom, eu tinha que admitir. Pois com a mesma
destreza que demonstrara antes, estava com a espada
contra minhas costas, sem que eu o houvesse percebido.
Retire o que disse.
Retirar o quê? sugeri irônico.
Abraham se aproximou e deixou contra meu ouvido:
19. Se tocar em Isabella, eu juro que o mato sem precisar
de qualquer alento para minha alma.
A brisa da noite soprou e eu me vi sozinho no telhado. Eu
não tencionava tocar em Isabella, mas não pelo pedido
dele, ou porque ela não o quisesse. Era simplesmente
porque eu não a queria.
Vir para a Inglaterra me habilitou em outra arte de luta
além de espadas, sabres e katanas. Meu estilo de luta
corporal nunca foi bem trabalhado, unicamente pela minha
falta de comprometimento com ele. Porém, estar em
Londres significava adquirir hábitos de vida um tanto
diferentes, como a famosa chávena à tarde, o que limitava
bastante o horário de visitas apropriadas a um período de
tempo não muito condizente com minhas atividades.
Nós, imortais, ainda que possamos sair à luz do dia, a
evitamos por motivos óbvios: queremos anonimato.
Quanto menos vistos, menos conhecidos; embora, isso já
não se aplique aos hábitos desenvolvidos pelos renegados,
que o utilizam para caça de alimento. Facilitando, dessa
forma, as versões fantasiosas e deturpadas dos humanos
em relação a nós.
O vampiro é uma degeneração de nossa raça. Seu
metabolismo não possui uma maneira de sobreviver dentro
de um corpo mal adaptado a ele. Viverá menos, se não
houver um imortal que lhe ceda sangue e mantenha seu
coração ativo. O sangue humano é um mero paliativo, a
imortalidade está em nós, não em vocês. Ainda que um dia,
fossem como nós... E Londres estava infestada deles, depois
da morte de Carl e Victor não havia líderes, apenas
caçadores. Tanto de nosso lado, quando dos humanos.
20. O boxe é uma arma fatal se bem doutrinada e utilizada.
Com Abraham em meu encalce, eu raramente podia sair
com a espada, e muitas vezes, a caçada envolvia uma
proximidade cuja lâmina me colocava em desvantagem.
Assim, passo boa parte do dia dedicando-me a aperfeiçoá-lo
para o que necessito, já que o termo visitas não se aplica
essencialmente a minha rotina.
Contudo, a curiosidade é algo nato dos seres humanos e,
creio, as refeições que passamos a dividir nos últimos dias
não era o suficiente para aplacar a curiosidade de Milla. E,
aquele dia em especial, Allan havia me trazido um convite
para um baile... Um baile que eu não ousaria recusar. Um
baile na residência dos Van Helsing.
Eu me encontrava no porão, alternando minhas técnicas
ao mesmo tempo em que direcionava meu pensamento
para determinar o que Abraham tinha em mente... Ou seria
mera coincidência? Eu não me atreveria a contar com isso
depois de nosso último encontro.
Estava desfechando um gancho de esquerda no saco de
areia enquanto minha perna direita acertava o
sobressalente atrás de mim quando a voz de Milla surgiu
sobre meus ombros:
Você me surpreende...
eu poderia ponderar.
Desfiz minha posição e me afastei dela, buscando uma
toalha para me secar. O porão era espaçoso e limpo, possuía
uma mesa com cadeiras ao canto, rústicas aonde eu me
encontrava naquele instante ; várias armas dispostas nas
paredes de pedra, desde machados às sais, que tanto Elise
gostava; e havia também a área de treinamento, um ringue
improvisado. Não era um lugar em que eu trouxesse visitas,
21. era um refúgio da vida lá fora. Na verdade, ela estava mais
para uma intrusa do que uma convidada, naquele
momento.
Apesar de acreditar ser uma pergunta desnecessária,
gostaria de saber como me achou.
Eu estava sem sono e...
Aproveitou que os empregados dormiam para
bisbilhotar cortei-a irritado. Ela chegara no momento
errado e me privara de discernir o que Abraham queria, não
deveria esperar por flores.
Na verdade, eu percebi que não estava bem no jantar
ela disse com cuidado.
Seus olhos azuis presos às minhas costas, analisando cada
pedaço de meu dorso nu. Há tempos eu não tinha aquela
sensação quente sobre minha pele; a deliciosa sensação de
ser admirado por uma mulher como algo além de uma
diversão momentânea e fugaz. Cerrei meus castanhos e,
uma vez mais, controlei a onda de frenesi que me atingiu.
Uma tortura.
Tecnicamente, essa foi apenas a desculpa que a fez me
procurar. Ainda de olhos fechados, enxuguei as gotas de
suor que rolavam por meu tórax; em minha mente a
atmosfera estava tão quente que era quase sufocante...
Amassei a toalha entre os dedos. Ela simplesmente não
devia estar ali. Não me disse como me encontrou. Loyd
não a traria aqui.
Voltei-me para ela e, com os rubros sob controle, encarei-a
sério sob um olhar castanho profundo.
Confesso que andei bisbilhotando. Desviou os azuis
de mim e as maçãs de seu rosto ficaram rubras, como as
que haviam sido trazidas por Loyd horas antes e
22. repousavam sobre a mesa numa travessa de prata. O
silêncio nos envolveu e eu cruzei os braços sobre o peito,
esperando por algo que nem mesmo eu sabia o que era.
Então aquelas orbes azuis brilharam sobre mim
determinadas: Confesso que, deliberadamente, observei
as atividades de seu mordomo antes dele ir se deitar. Segui-o
pelos corredores e...
Milla respirou fundo, incerta se deveria revelar tudo.
E? Ela estava com sorte por eu não rosnar a
pergunta, diante do estado em que me encontrava:
possesso.
E descobri a entrada do porão pausou, observando-me
curiosa. Esperei até que todos dormissem e notei que
você não estava em seu quarto, pois a porta costuma estar
trancada... Ela agora me parecia febril. Toda sua pele
emanava um aroma peculiar da caça. Deliciosa. Foi
apenas juntar dois mais dois. Baixou rapidamente seu
olhar ao chão.
Diga-me... comecei a me aproximar dela devagar.
As notas de jasmim se misturavam ao receio no ar e me
seduziam, assim como o borbulhar do sangue em minhas
veias me cegava. Em que momento passou a ter
curiosidade sobre mim?
Eu estava quase sobre seu corpo, ela recuara até próximo
do saco de areia e me fitou em azuis aturdidos.
Eu lhe fiz uma pergunta Madmoiselle... insisti.
A veia em seu pescoço palpitava nervosismo e não havia
para onde ela fugir.
Desde que... engoliu em seco. Quase não come,
quase não dorme... Quase não tem amigos. Que tipo de ser
humano vive assim?
23. Eu sorri sobre seus lábios partidos em busca de ar.
Você não iria gostar de saber como sou de verdade.
Avancei o dorso de minha mão sobre suas bochechas.
Em momento nenhum eu o julguei, sir ela
balbuciou, não sei se por medo ou por pura apreensão, mas
eu gostei de senti-la acuada.
Não... afirmei convicto. Eu sei que não. E é
justamente a sua falta de defesa contra mim que me faz
conservá-la na ignorância da verdade. Corri meus olhos
ávidos em cada linha de seu rosto, decorando-as. Deve
conhecer apenas o homem que irá ajudá-la... É o bastante
para nós dois.
Ela respirou sob mim, pesadamente, cerrando os azuis. Só
então percebi que a tinha nos braços e que, na cegueira de
minha ira, não notara suas roupas íntimas. O decote do robe
me permitia apreciar o arfar leve de seus seios contra o
tecido fino da camisola, e sobre esta o robe de flanela. Os
cabelos caíam levemente ondulados pelo pescoço e eu os
afastei, delicadamente, até que meus lábios quase
repousassem na linha de seu ombro... Sensual, sedutora, e
que trouxe os rubros aos meus castanhos. Meu ser inteiro
clamava por sangue.
Ela arrepiou e eu a soltei, colocando alguns passos entre
nós e fechando meus olhos. Eu não era uma besta, nunca
seria. Milla me fitava sem jeito enquanto tentava fazer a
cena parecer natural. Ajeitou seu robe e contrapôs:
E não há como eu ajudá-lo? Eu o vi lutando deve haver
um motivo para fazê-lo. Havia mais que habilidade em sua
técnica.
Ponderei meros minutos e encarei as maçãs, distantes,
intocadas.
24. Você irá me ajudar amanhã, ao ir comigo à casa dos
Van Helsing.
Sim... sugeriu calma. Isso faz parte de nosso
acordo. Mas e quanto ao que o aflige?
Já lhe disse que basta conhecer apenas um lado da
verdade.
Você poderia ao menos fingir que sou sua amiga...
Entre um homem e uma mulher raramente há traços
de amizade.
E o que poderia haver entre nós, além de um contrato?
Foi a minha vez de respirar fundo e com uma das mãos
tomar-lhe o pulso entre os dedos, colando-a mim. Meus
dedos entre os cabelos soltos; o pulsar de seu coração
descompassado, surpreso; o tecido flanelado e o delicioso
cheiro de jasmim. Tudo era corruptível.
Se quer tanto saber mais sobre mim... inclinei-a para
trás propositalmente, permitindo-me acesso ao seu colo.
Era alvo e cremoso, e ostentava uma mínima cruz de
madeira. Sorri, pois muitos humanos achavam que tal
artefato me manteria longe, mas ele só indicava com seu
lado maior o lugar onde minha boca gostaria de repousar.
Pura ironia. Deve saber se proteger como eu deixei
contra seu ouvido enquanto voltava-a à posição inicial.
Vou ensiná-la e, então, poderá saber mais.
Ainda com sua mão atada a minha, depositei, suave, um
beijo em seu dorso.
Tenha uma boa noite, Madmoiselle.
Milla...
Edmund contrapus numa linha fina de sorriso.
Obrigada e boa noite Edmund.
25. Ela novamente ajeitou o robe e me deixou sozinho no
porão... Entre o doce perfume de jasmim eu me perguntei
onde estava com a cabeça para querer ensiná-la a lutar. E a
resposta era óbvia: o certo era fazer qualquer coisa para
mantê-la longe de minha fome.
Ela respirou fundo ao meu lado, no coche. Levando as
mãos à borda do corpete.
Tenho certeza de que não cabe mais nada aqui dentro
murmurou para si mesma.
O vestido de veludo verde lhe assentava muito bem, e eu
apreciava a visão que tinha do decote, realçando as formas
avantajadas dos seios, que se comprimiam contra o tecido,
febrilmente.
Lembre-se determinei o foco. Eu respondo as
perguntas sobre nós.
Sim... A mão trêmula deslizou pela pele clara e
alcançou o colar de rubis e diamantes que eu havia
depositado ali. Apalpou-o e completou: Acha mesmo
seguro?
Seguro e lindo, deixe-o em paz. Tomei sua mão na
minha, roçando levemente sua pele. Eu estarei ao seu
lado o tempo todo.
Sorri-lhe de canto no exato momento em que o coche
parou.
Parece que estamos entregues... Pronta?
Apesar do olhar curioso que me dirigiu, ela assentiu e foi
questão de minutos para estarmos sendo introduzidos ao
salão e a Sra. Van Helsing.
Lorena Van Helsing não era uma mulher a ser ignorada, e
certamente não admitiria isso em nenhuma hipótese.
26. Quando estávamos de frente para ela e Thomas, o pai de
Abraham, seu olhar correu por Milla, avaliativo.
Disse sua prima, milorde? fez questão de repetir.
Ah, sim assenti, fazendo-me também de tolo. A
sociedade, inglesa ou não, tem uma séria queda à hipocrisia
e eu gosto de manter essa estranha arma ao meu alcance.
Francesa completei, tornando o sorriso dela uma linha
levemente dissonante.
É um prazer recebê-los, de qualquer forma acudiu
Thomas, sempre simpático. Eu tinha certeza de que
Abraham puxara a mãe.
Com uma leve curvatura tomei a mão de Milla na minha e
adentramos definitivamente o salão. Não sei explicar como
sobrevivemos aos primeiros dez minutos dentro daquela
atmosfera. Eu tinha plena consciência de que estava
expondo-nos a uma prova de fogo, e se ainda coubesse em
minha razão, a prova estava lá, nos inúmeros murmúrios
que correram o salão.
Estão falando sobre nós... Milla sussurrou ao meu
ouvido.
Impressão sua sugeri-lhe ao pé do ouvido, fazendo
uma onda de olhares reprovadores correr sobre nós.
Ela sorriu de volta. Um sorriso tão limpo, que me fez
esquecer onde estávamos. Apenas voltando à realidade ao
ouvir:
Se importaria de me ceder a próxima dança?
Abraham estava diante de nós, encarando Milla. Os olhos
azuis dela voltaram-se, preocupados, para mim. Eu deveria
ensiná-la a não se expressar tão francamente. Embora, eu
houvesse demorado um pouco a compreender o estranho
brilho no olhar dos verdes.
27. Com um meio sorriso e um suave beijo no dorso de sua
mão, deixei Milla aos cuidados de Abraham e busquei a
varanda da casa. A noite estava quente e os olhares
abrasivos me impeliam a manter uma distância
considerável do salão, ainda que não a perdesse de vista.
Não gostaria de uma bebida, monsieur le conté...
A voz doce de Isabella ganhou o ar a minha volta com a
leveza do aroma de camélias que seu corpo emanava,
dentro de um vestido carmim de corpo justo e decote
baixo, realçando as curvas perfeitas que ameaçavam
escapulir dele, a qualquer instante. Seus cachos castanhos
estavam presos ao alto da cabeça, evidenciando ainda mais
as linhas sensuais de seu colo.
Com um sorriso, ela me passou um dos dois copos de
whisky que trazia consigo.
Um brinde! disse em seguida enquanto eu a
observava e um sorriso torto escapulia de meus lábios.
Ao solteiro mais cobiçado de Londres! E molhou
intensamente os lábios, fazendo seus olhos castanhos
luzirem nos meus, maliciosos.
Certamente fala de seu irmão, em breve será tão
famoso quanto seu pai sugeri, vendo a expressão dela se
tornar séria conforme se aproximava de mim e espalmava a
mão livre, e enluvada, contra meu peito. Inclinando-se até
alcançar minha orelha, contrapôs:
Se me referisse a meu irmão, como diz, eu jamais
poderia fazer isso...
E, às palavras, uniu um movimento provocativo de seus
lábios sobre a linha de meu maxilar até tomar minha boca
na sua e mordê-la sensualmente. Correndo a língua contra
28. meus lábios e fazendo-me perder o controle de meu corpo.
Sou homem, não uma pedra.
Meu movimento não foi tão sútil quanto o dela. Ainda
que não tivesse interesse em Isabella, ela era uma mulher
bonita e desejável, e sabia usar isso a seu favor quando
queria, mesmo que arriscasse a reputação de seu pai. A mim
isso não importava, não tenho escrúpulos em admitir. Ela
era macia, como a pele de um pêssego, e o cerne, entre suas
coxas, transbordava todo ímpeto da mulher que era.
Colei nossos corpos à parede externa da casa, sob uma
frondosa sombra da varanda superior. Ela não mais falava,
apenas sentia minhas mãos erguerem as saias enquanto
deslizava minha língua ávida, e nenhum pouco delicada,
contra seu pescoço e colo, buscando-lhe a borda do decote.
Arranquei-lhe a liga com a mesma intensidade da
explosão das imagens em minha cabeça: a de Milla em
meus braços. Retirei um dos seios para fora, molhei-o
vagarosamente, fazendo-a gemer e aceitar meus dedos
dentro dela, massageando-a... Golpeando-a, punindo-a em
olhos cerrados enquanto arranhava minhas presas no bico
de seu seio.
Meu sexo pinicava contra minhas calças, mas eu não
poderia consumar nada ali, então, ela gemeu uma nota
mais alta, se liquefazendo sob meu carinho. Agarrada aos
meus cabelos, a boca arfando contra minha razão, que me
fez abrir os castanhos num ímpeto e ter a visão mais
aterradora que poderia provar: Milla nos observando.
Pude sentir seu coração comprimido. Pude ver o bolo em
sua garganta enquanto tentava absorver nós dois ali. Os
lábios se separaram, parecendo que deixariam algo o ar. O
29. cenho franziu e os olhos azuis me tornaram uma aberração
de fato.
Eu não ousaria falar, e antes que Isabella pudesse se dar
conta de sua presença, seus passos tornaram-se ecos na
direção do salão.
O que houve? a Van Helsing indagou conforme eu
cerrava os punhos e me odiava.
Vá para o salão rosnei.
Mas...
Apenas vá cortei-a severo, e ela ajeitou o vestido,
deixando-me sozinho.
Meu controle perdido. Os olhos em rubros, o sexo
pulsando e nada além do vazio aniquilador que era minha
vida. Ela jamais entenderia que eu a desejava ao ponto de
corromper outra alma, para deixar a dela intacta.
O jantar ainda seria servido, todavia, eu havia usufruído
mais do que desejara, ao pôr meus pés ali, da hospitalidade
dos Van Helsing. Até mesmo para meu senso de ironia.
Dirigi-me discretamente à porta e pedi meu sobretudo ao
mordomo, e estava para sair quando uma mão pesada se
fechou sobre meu ombro direito, me detendo:
Eu não sei o que fez a ela, Edmund... Mas irei descobrir.
O olhar de Abraham era intenso, e também um aviso. Por
segundos fiquei atônito, percebendo exatamente a
mensagem oculta em seu brilho. O brilho que tanto me
chamara atenção antes. Com um puxão no sobretudo, não
voltei a olhá-lo e desci as escadarias num passo contido.
Eu não daria a ele o gostinho de perceber minha emoção.
Entrei no coche e bati com minha bengala no teto,
avisando-o para partir. E, conforme ele se pôs em
movimento, eu interrompi os pensamentos dela:
30. Aquilo era algo que você não deveria ter visto.
O silêncio nos envolveu.
Eu não deveria ter pensado obter mais respeito do que
a mulher a quem ama...
E o som dos cascos dos cavalos se misturou ao do meu
coração, encobrindo-o por completo.
Todos nós já ouvimos, alguma vez em nossa vida, a
são o início de tudo, a fonte da
e, acredite em quem já viveu muito mais que
você, elas o são. O corpo de uma mulher é de uma
harmonia ímpar. Curvas e retas desenhadas à mão livre, que
se mesclam ora para o prazer, sua sensualidade explícita em
cada pequeno movimento; ora para simplesmente mostrar
sua essência, o poder e consciência ainda que oculta
de ser única.
Tocar uma mulher e compreendê-la, a cada sinal que
envia sem sentir; a cada pedido feito por um olhar
impensado; a cada murmúrio que não ousa deixar seus
lábios, deveria fazer do homem que a observa, um
companheiro apaixonado. A mulher é um ser feito de
sentimentos e entrelinhas, e desvendá-los é o maior enigma
imposto aos homens que se colocam em seu caminho.
Por isso nos surpreendem. Por isso eu estou aqui, parado
à entrada de meu porão, observando-a curioso, não o
nego golpear freneticamente o saco de areia à sua
frente. Passeio a mão pelo meu queixo tendo a exata noção
de que era eu, o destino de cada um deles. E eles me
acertam de formas diversas, sem que ela saiba, pois uma
das piores armas que o homem possui é o cinismo.
31. Eu me aproximo silencioso e, quando me sinto seguro,
até mesmo de meus sentimentos, eu a confronto:
É alguma tática de defesa inovadora?
Ela não me olha, ignora. E eu saboreio, entre o prazer e a
desolação, o fato de eu estar certo diante da resposta
silenciosa dela. Rodeio-a mais um pouco; ela se exaspera.
Estamos quase lá... E paro em frente aos seus olhos azuis.
Ele já foi judiado demais, conseguiu sua revanche...
Retiro minha camisa branca. Sei que ela me observa e o
calor do olhar dela, em minha pele, fecha as feridas que a ira
dela despertou em mim. Encaro-a firme, aproximo-me
lentamente, é necessário impor controle. Ela está linda na
roupa de montaria, que não me parece confortável para um
esporte. E também está atônita com minha proximidade,
toco seu braço e ela arrepia. É um bálsamo saber que não
está tão chateada ao ponto de refutar meu toque; é bom
saber que ainda possuo poder sobre ela. Não é mesmo
assim? Vamos ajustar esse uniforme e começar o treino.
Em silêncio dessa vez sufocante eu roço sua pele,
consciente de meu efeito sobre ela, dobrando-lhe as
mangas da camisa até o cotovelo. Ela está sem ar, suas veias
palpitam frenéticas e me chamam, imploram por mais. Que
tipo de homem eu sou?
Aquele que lhe dá mais... Então eu a viro de frente para
mim, sem resistência, e a alicio. Toco-lhe o pescoço, deslizo
os dedos pela clavícula, num martírio, até alcançar-lhe os
primeiros botões da blusa, e abri-los. Ela fechou os azuis...
Eu escorreguei meu indicador pela fenda entre os seios. O
coração bombeia frenético, enlouquecedor, e eu me
impeço de seguir, parto meus lábios e desejo tomar os dela
32. nos meus. Respiro, suspiro... Decoro traços. Afasto-me e o ar
gelado me faz retesar.
Assim está bom. Cerro os punhos, sei que me olha,
e quer me socar de novo. Voilá... Eu soco primeiro o saco.
Precisava daquilo. Um soco certeiro em meu queixo,
cretino. Tem que ser debaixo para cima, ou não faz efeito
sentencio.
A manhã chegou como todas do outono, com um sol
inexpressivo espreitando por entre as cortinas. E, tão logo
se encerrou o dejejum, o convite para um chá, ainda aquele
dia, foi deixado sobre a salva de prata à frente de Milla.
Eu não me incomodaria que ela comparecesse a nenhum
deles, e era certo que muitos viriam diante de nossa
aparição em sociedade, mas começar justamente por um
vindo dos Van Helsing, e em especial, de Isabella, não
contribuía em quase nada para que a encorajasse a ir.
Embora, claro, tivesse a noção exata de que uma recusa
estava longe de poder ser nossa resposta.
O olhar azul dela, escureceu, e posou sobre mim sem
reservas, ainda que eu estivesse absorto pelas notícias do
jornal.
Então... Ela estava postada atrás de mim e, sem
reservas, colocou a missiva entre meus castanhos e o
impresso. O que quer que eu faça?
Sem fitá-la, restitui-lhe o convite.
Deve fazer o que acha certo ponderei. Não
pretendo dispor de suas vontades, como está sugerindo.
Ela sorriu, eu não precisava vê-la, para sabê-la esplêndida
sob um sorriso.
33. Isso quer dizer que não gostaria que eu aceitasse, mas
como é algo inevitável, e essencial para seu plano, vai deixar
que eu tome a decisão de ir e aliviá-lo de me pedir o
contrário... pausou. Pois, como salientou, é um
cavalheiro, e jamais ousará se por entre mim e meus
desejos.
Milla agora estava a minha frente, sentada parcialmente
sobre a mesa, numa atitude que definitivamente me fazia
encará-la, como se qualquer notícia conseguisse fazê-lo
depois que ela se erguera de sua cadeira.
Diga-me... prosseguiu determinada: Vai mesmo
deixar que eu a atinja com um golpe preciso de direita?
Eu sorri. Apreciava o espírito combativo dela, isso me
seria útil, mas era também meu ponto fraco, pois deveria
deter a mim e a ela de expor tais sentimentos. Mesmo que,
cada vez mais, me visse dependente deles.
Não vou rebater o fato de que é conveniente que vá,
nem tampouco que estou me valendo de seu senso de ética
para que assim proceda. Contudo, estou curioso... Apoiei
meu queixo sobre meus dedos e inclinei meu rosto até
junto ao dela. Acredita que a srta. Van Helsing a esteja
chamando para um embate desse porte?
Sempre que ficávamos próximos era impossível não
ouvir-lhe a palpitação em sintonia com a minha. As
bochechas dela se tornaram rubras e ela sustentou seu
olhar no meu, arriscando:
Eu diria que ela é extremamente petulante por me
convidar a sua casa, quando protagonizou tal cena com o
meu... Milla focou meus lábios, mas mordeu os seus na
incapacidade de prosseguir.
34. Todavia eu não a deixaria escapar tão facilmente. Então,
quando corpo dela ameaçou abandonar a posição em que
se encontrava e buscar uma mais segura, meus dedos se
entrelaçaram aos dela sobre a toalha de renda. Havia um
misto de surpresa e apreensão em seu olhar quando
conduzi o dorso de sua mão aos meus lábios e o beijei
suave.
O que sou para você, Milla? Soprei sobre sua pele.
Correu seus olhos azuis nos meus castanhos.
Um amigo... balbuciou.
E eu escorreguei novamente minha boca sobre sua mão.
Confesso que não queria manter o controle, ou ser honesto,
até obter uma confissão de seus lábios.
E eu deveria estar agradecido pela sua amizade ser tão
devotada ao ponto de se expor assim por mim. Beijei os
nós de seus dedos.
Eu... A pele dele exalou o delicioso perfume de
jasmim. Não espero sua gratidão determinou entre a
indignação e o receio.
De um amigo não se espera gratidão... sugeri
levemente rouco. Se espera cumplicidade e lealdade.
Mas, intriga-me, não acha que sou leal a você ou qualquer
outra mulher. Então, certamente, não sou seu amigo. O que
sou para você, Milla? disse uma nota mais alta, estava
ansioso como um menino.
Ela me olhou lívida.
Alguém especial ditou furiosa consigo mesma por
não ter conseguido manter o controle. Não a culpo, eu
raramente não consigo o que quero. Alguém com quem
me importo! Droga!
35. Ela se ergueu da mesa e correu para porta, livrando-se
meu toque e completando irritada:
Eu odeio o modo como consegue essas coisas!
A porta bateu estrondosa. Eu a fitei sério, cada pequeno
detalhe do entalhe da madeira. Estava enganado se achava
que ambos conseguiríamos levar esse jogo até o fim.
O jornal ficou amassado sobre a mesa.
A partir do desenrolar de certos acontecimentos, se faz
necessário que Milla transmita suas impressões, pois nessas
não estive presente, minimamente conjecturei o que
ocorreu através de minha mente insana.
Eram quatro e meia da tarde quando fui recebida na
residência dos Van Helsing. Ainda estava aborrecida pela
forma como Edmund tratara aquela visita, como insistia em
nos manter próximos nos treinos, mas afastados no que tange
nossas emoções; e o retorno aquele lugar, principalmente para
encontrar Isabella, não colaborava para amenizar meu ânimo.
Eu queria apenas que as horas se escoassem rápidas. Deixei
minha sobrinha com o mordomo e o segui pelo corredor até
uma porta dupla de nogueira, que me introduziu a uma saleta
de chá. Com uma curta reverência, fui convidada a esperar
minha anfitriã em silêncio, e mortificada. O que ela teria para
me dizer? Não julgara audácia suficiente estar com meu
acompanhante num jardim, ao alcance de todos?
Retirei as luvas e brinquei de batê-las uma contra a outra,
reproduzia um som compasso torturante dos minutos que me
afastavam da entrevista nada apropriada com aquela
mulher. Eu retesei e busquei novamente domesticar meu
gênio, já que o tempo passado na carruagem, da residência do
Conde até ali, não fora suficiente.
36. Inspirei, fechei meus olhos, andei e expirei. Quando os abri
de novo, estava de frente para a cornija da lareira e encarava
um par de olhos verdes intensos. Os mesmos olhos que
bisbilhotaram minha alma enquanto valsávamos no dia festa.
Eu me aproximei com cuidado, notando que não importava a
distância, eles me encaravam. Isso era perturbador.
Assustador não é? A voz me fez sobressaltar e voltar-me
à porta, surpresa.
Controlei-me.
Foi essa a intenção do pintor? devolvi rápido, sem lhe
dar chance de ver o quanto estava assustada de fato.
Nunca soube disse sincero, estreitando a distância
entre nós. Porém, todos que olham esse retrato, o criticam.
E você? ponderei. Acredita que capturou sua
essência?
Os olhos verdes brilharam.
Penso que há uma acusação implícita nessa pergunta, e
eu não me considero um bisbilhoteiro.
Nem mesmo no que diz respeito ao Conde? alfinetei-o.
A porta se abriu e o mordomo entrou com uma salva de
prata e chá.
Permita transmitir-lhe as desculpas de minha irmã.
Fez um gesto para que eu me sentasse no sofá castanho de
veludo. Houve um compromisso inadiável...
O mordomo nos serviu e se retirou a um aceno de Abraham.
Então, talvez eu deva voltar numa hora em que ela se
encontre rebati, devolvendo a porcelana à prata.
Creio que isso não fará diferença, pois de certo sabe ou
conjectura, que não foi ela que lhe enviou o convite, mas sim
eu. Bebeu da porcelana calmamente. Jamais ousaria
menosprezar sua inteligência.
37. Eu sorri, voltando a me entreter com o chá.
Devo crer que tenho sido observada e que, mesmo não
encontrando motivo para tal, dei-lhe provas de minha
vigorosa capacidade mental.
Está zombando de mim determinou.
Não tanto quanto o senhor de mim ao me trazer aqui e
me dizer esse monte de baboseiras revidei seca. O que
deseja de mim, sr. Van helsing?
Pode me chamar de Abraham...
Não o tenho no meu circulo de amigos, por isso não acho
esse um tratamento correto.
Sempre é tão intransigente?
Só quando me menosprezam.
Ele sorriu e se ergueu do sofá. Os cabelos castanhos claros
ondularam a altura do pescoço e ele se voltou ao quadro.
Eu a achei atraente desde a primeira vez que a vi...
Certamente essa não é mais uma conversa adequada.
Abraham se virou tão rápido, que não deu dois passos e se
pôs entre mim e a porta.
Não só a achei bela como me questionei que tipo de
mulher seria para estar ao lado de Edmund.
Um sonoro tapa repercutiu no ar, e levei minhas mãos aos
lábios. Céus, ele havia me tirado do sério.
Me perdoe...
Pedi quando o vi por sua mão na marca sobre a bochecha.
Seus olhos verdes me fitaram atentamente.
Não é mesmo a mulher que todos imaginaram ditou
sob um sorriso de triunfo.
Eu não tinha a intenção de machucá-lo, mas não me
deixou outra alternativa prossegui sem lhe dar inicialmente
atenção. O que disse?
38. Srta. Sonieur o que sabe sobre o Conde? ele não
repetiu o que dissera, mas eu ouvira muito bem. Achavam-me
uma leviana.
Sei o que devo saber.
E isso não deve ser muito ponderou astuto.
Talvez sim, talvez não.
Quantas refeições fazem juntos?
Como? estranhei a pergunta. Que tipo de
questionamento era aquele?
Pode parecer inoportuno, mas eu tenho estudado os
hábitos do Conde.
Você é algum tipo de pervertido?
Posso assegurá-la que tenho interesse em mulheres, não
em homens, se é isso que sugere.
Meu coração acelerou quando diminuiu a distância entre
nós, quase nos colando.
Eu creio que essa nossa conversa, há muito, passou do
normal.
Ora, ele havia mentido para me trazer até ali, desconfiava
de Edmund e de forma alguma se portava como um
cavalheiro!
Acredite... Sua respiração pesou sobre meu rosto. Ele
possuía um raro cheiro de anis. Nossa conversa é de
extrema relevância.
Relevância para quem?
Para a senhorita sugeriu há centímetros de meu rosto.
Não nego que, a mim, muito me alegra tê-la tão perto, mas
posso assegurar-lhe que minha preocupação maior é a sua
vida.
Minha vida? Empurrei-o com toda força e me refugiei
junto à lareira, bem próximo dos atiçadores.
39. A senhorita desconhece a natureza do homem que
acoberta, e que muito pode lhe ser fatal.
Certamente ele não se referia aos sentimentos de Edmund
ou meus. Não tinha como conhecê-los, já que até cogitara que
eu fosse uma leviana.
Devo dizer que também desconheço a sua, ainda que
muito se fale sobre sua conduta como médico. E que, de fato,
sempre seja enaltecendo-a. Porém, a do cavalheiro que deveria
ser, asseguro-lhe, está longe de ser a mais digna.
É engraçado vê-la falar sobre dignidade quando está sob
o teto de um homem que nem seu noivo é.
Eu estava pronta para acertá-lo novamente, quando a
minha mão foi detida. Meu pulso foi envolvido por dedos
largos e grossos, e meu braço dobrado de forma que meu
corpo definitivamente se colou ao dele. Seu olhar adquirira um
brilho selvagem e seus cabelos estavam espalhados sobre meu
rosto, escondendo-nos do mundo exterior.
Ele me inspirava receio, mas seus músculos me impediam de
raciocinar, imobilizavam não só meu corpo, mas minha alma.
Como ele podia conseguir tal efeito?
Eu tinha que lutar, me livrar dele. Fechei meus olhos e
respirei fundo. Senti o calor do rosto dele junto ao meu, o hálito
quente quebrando minhas defesas... Eu parti os lábios e agora
esperava por algo que nem sabia o que seria. Ele não era
confiável, poderia fazer o que quisesse de mim e ninguém
saberia.
O frio do mármore chocou-se com meu corpo no minuto
seguinte e eu estava apoiada na cornija, com as mãos fixas em
seus entalhes.
De onde eu estava só conseguia ver-lhe as costas largas e o
corte perfeito do casaco.
40. Por favor, srta. Sonieur, devo pedir que vá embora.
Não cogitei refutar o pedido dele, aquela situação estava
fugindo ao controle. Contudo, eu me sentia com mais de um
motivo para odiar Abraham Van Helsing!
Então? disse bebericando o chá.
Aparentemente a visita aos Van Helsing não foi o que
esperava concedi após o longo silêncio dela à mesa.
Ela continuou entretida com seu dejejum.
Pretende ficar silenciosa para sempre?
Achei que estaria ansioso por minha volta. O som
de talheres inundou o ar. Para saber o que Isabella
queria.
O tom era rascante, e eu estava longe de ser inocente do
brilho escuro que aqueles olhos azuis emanavam no
momento, ainda que não os visse. Certamente, me
aguardara até tarde, mas eu não havia voltado aquela noite.
Um casal de renegados que, há noites, havia fazendo uma
limpa em bêbados em East End. Eu havia me descuidado
deles ao dedicar meu tempo a Milla e à árdua tarefa de tirar
Abraham de meu encalço. Felizmente, ontem à noite agi
sozinho, ainda que a intervenção do Van Helsing teria sido
bem vinda, pois tornaram-se um bando. Havia mais de vinte
deles, porém, apenas a mulher fugiu.
E apesar de tê-la procurado, não restava nenhum rastro
no ar... Nenhum cheiro característico. Ela simplesmente
desaparecera. Contudo... olho sobre os telhados de um
Londres sonolenta em meio à névoa tenho certeza de
que já encontrei aqueles olhos antes.
41. Não foi uma noite calma para mim. Lise me visitou em
sonhos, seus lábios deitaram sobre os meus vorazes. Filetes
de sangue guarneciam sua boca, que passeava por meu
tórax, enlouquecendo-me. Não era apenas a pele dela
contra a minha, que me queimava, mas o rubro do sangue
que pulsava no meu. Numa batida cada vez mais intensa,
insana. Entrelacei meus dedos a seus cabelos escuros e
puxei-a para mim.
Sua respiração espiralava no ar unida a minha, e eu
observava, em êxtase, os veios escarlates que novamente se
abriam para mim. Não era mais um convite, tão somente a
ordem de que a tomasse, gota por gota... Nota por nota de
lis. Fechei meus rubros e me entreguei a sensação quase
dolorida de sorvê-la, sofregamente, entre os lábios. Líquido
quente me preenchendo, chamando-me cada vez mais para
me perder nela como homem.
Tomei-lhe um dos seios nas mãos, provei-lhe o peso, a
textura e os gemidos que ela despejava no ar para mim.
Rolei a palma de minha mão contra o bico, segurei-o firme e
deixei a outra mão passear por seu ventre até o encontro de
suas pernas. Até que não houvesse mais nenhuma
resistência dela a mim.
O frio dos lençóis de linho era tão intenso quanto meu
corpo desperto para o desejo e entregue a desilusão de um
sonho arrebatador. Não havia nada quente naquele quarto,
nem mesmo o fogo que insistia em se manter aceso,
quando até mesmo a madeira lhe dispensava o último
sopro de vida.
Varri o lençol de mim, da cama. Desfiz, em finas tiras, com
as unhas, um travesseiro inteiro. Minha dor não era só física
e relegada ao meu sexo. Eu me sentia extremamente só, era
42. dor de uma alma incompleta. Meu sexo em riste era apenas
a constatação evidente daquilo que não conseguia saciar...
Minha sede de Lise.
Encarei os olhos azuis a minha frente, chamando-me à
realidade e alheios a pergunta que martelava em minha
mente: ela tinha ideia de quanto eu estava pronto para
atacá-la? Que mesmo que o seu cheio não fosse de Lis, eu
poderia revelar-lhe o lado mais obscuro de minha espécie?
Baixei minha mão esquerda e crispei-a contra minhas
calças. Respirei fundo e passeei o dedo indicador pelo lábio
inferior, buscando controle. Eu a sorveria até a última gota,
sem me incomodar em confessar que adoraria fazê-lo.
Precisava me sentir vivo, ter o doce líquido rubro
revolvendo minhas entranhas, vibrando em minhas veias.
Ainda que não a amasse como a Lise, era para mim
incontestável que a atração entre nós dois era forte o
suficiente para desejá-la. Sua pele contra a mim; meu corpo
preenchendo o dela.
A solidão é algo torturante, capaz de nos fazer perder a
sanidade.
Não foi um convite de Isabella ela ditou,
interrompendo o fluxo de meus pensamentos.
Não? retruquei ainda não tão concentrado como
deveria.
Abraham me esperava para o chá prosseguiu em
falsa serenidade. No fundo, testava-me.
E, por minha conturbação interna, estava longe de
conseguir me manter sob controle diante de minha
insatisfação em conhecer a verdade sobre seu encontro.
E foi agradável? tentei me manter indiferente.
43. Talvez não tão agradável quanto se eu tivesse as
respostas certas Milla retribuiu na mesma nota.
Que tipo de respostas Abraham queria? indaguei
para ganhar tempo.
As do tipo pessoais. Havia um interesse particular
sobre suas verdadeiras intenções...
Meus olhos estreitaram sobre ela, entrelaçando meus
dedos sob o queixo.
Estou curioso para saber sua resposta ponderei
sério.
Não havia nada a ser dito.
Foi tão simples assim? retruquei pensativo. Não
acreditava que toda aquela encenação por parte do Van
Helsing terminaria em algo tão insignificante.
Acontece... Seus azuis brilharam e eu soube que
estava encrencado. Que não tinha nada para dizer.
Realmente eu não estava enganado, ele havia dado um
passo. Um belo passo. Eu não sei absolutamente nada
sobre você.
Eu estava onde Abraham queria, contra a parede.
Contudo, devo observar que certamente não havia como
ele prever minha fragilidade emocional por conta de Lise.
Esse não foi um passo dado por ele, mas por mim, quando
deixei que Milla se tornasse importante em minha vida.
Lentamente, permiti que meus rubros aflorassem e, com
um movimento hábil, estava com meu rosto sobre o dela,
encarando aquelas turquesas.
Ele deveria ter sido melhor em seu alerta. Segurei-lhe
o queixo e deixei os escarlates transbordarem nos azuis.
Escorreguei meus dedos entre seus fios louros,
desfazendo a trança que os cingia ao alto de sua cabeça. Ela
44. ofegou, cada músculo seu tencionado; cada veia sua
trêmula, suspensa em ansiedade.
Beijei-lhe a testa, ela ofegou uma vez mais. Meu corpo
agora estava febril, toda a sede pelo rubro havia voltado.
Intensa, dolorida, capaz de fazer minhas presas aflorarem e
arranharem lentamente a base de seu pescoço, quando
meus lábios pararam de molhar sua pele e seu corpo estava
mole entre meus dedos.
Milla não possuía um vestígio de receio. De medo de
mim, e isso fazia minha alma ansiar por sorvê-la, cada vez
mais. Ela partiu os lábios num convite e não tive como fugir
da intensidade daqueles orbes azuis. Fitei-a com carinho e
busquei por sua boca, arrancando-lhe um mínimo fio
escarlate.
Um pequeno deleite para uma alma atormentada como a
minha; um despertar da fome que, a muito, eu temia.
Eu lhe alertei que estava mais segura quando não
sabia de nada sussurrei-lhe ao pé do ouvido, enquanto
minha mão desatava-lhe os nós do corpete e corria livre
dentro da chemise, tocando-lhe a ponta do seio. Ela
arquejou, permitindo-me explorar mais o gosto de sua
boca, calar-lhe os pensamentos.
Quem é você? resfolegou quando a deixei respirar.
Tomei-a nos braços e depositei-a sobre a mesa, varrendo
metade do café da manhã com meu gesto. Ergui-lhe a barra
da saia e debrucei-me sobre ela, sorvendo seu delicioso
cheiro de jasmim.
Sou alguém que precisa de você sugeri, beijando-a
mais uma vez. Sem deixá-la pensar, envolvendo sua língua
com paixão. Deixando o imortal em mim, vir à pele.
Edmund...
45. Ela gemeu meu nome quando toquei-lhe as coxas. Eu
estava a um passo de tê-la completamente. Inteira. Em pele
e sangue.
Então, o rosto de Lise permeou meus pensamentos. Sua
boca tomou a minha e seu perfume se espalhou por tudo a
minha volta.
Lise eu murmurei, procurando por ela em meio à
névoa de meus pensamentos. Lise! gritei, levando as
mãos à cabeça, alucinado por sentir o gosto dela, e foram os
olhos aturdidos de Milla que encontrei.
Não havia mais presas ou o olhar escarlate em mim,
apenas a frustração de mão poder cobrir o vazio de Lise. Eu
não podia destruir Milla por um capricho. Não tinha o
direito de roubar-lhe a vida em troca da minha efêmera
felicidade.
Sem olhar para trás, eu a deixei sozinha. Em meio à
comida, talheres de prata e falta de respostas.
Os dias seguiram cinzentos, Milla passou a adotar uma
postura mais reservada, mesmo nos treinos, que
mantivemos. E, eu, evitei invadir o seu refúgio. Os sonhos
com Lise se tornaram mais frequentes e eu passei a ter a
certeza de que qualquer coisa que vivesse ao lado de Milla;
se me permitisse tal envolvimento, estaria deixando de lado
minhas convicções, e o que me faz ser um pouco mais
humano. Eu deixaria apenas o imortal agir... Cego, louco,
sedutor.
Aquela noite, eu deixei-lhe um bilhete sobre minha
ausência. Havia recebido uma mensagem bem intrigante, e
estava longe de ignorá-la. Com o cair da noite e o tilintar
das horas mais obscuras, eu me dirigi à Brixton, lugar
46. curioso para o encontro que iria ter. Embora imaginasse o
que me levava a seguir as recomendações severas de quem
o premeditara.
Brixton era o submundo de Londres. Você poderia
encontrar qualquer tipo de estrangeiro em suas vielas;
pouco desenvolvimento e uma facilidade grande de se
movimentar sem ser percebido. Eu não poderia, de fato,
pensar num lugar mais encantador para uma caçada. Ainda
que aquele fosse apenas um encontro. Um interlúdio.
Fui deixado a alguns quarteirões do local. Sabia que
qualquer descuido meu, tornaria previsível a minha entrada.
Todavia, sou um homem discreto, de hábito contrito.
Escorreguei pelas sombras até alcançar o pequeno, e
duvidoso, estabelecimento cujas paredes, mesas e cadeiras
possuíam inúmeras manchas de bebidas e lascas de
madeiras a menos.
As janelas eram menos encardidas, que o avental da
mulher que servia as bebidas. Senti o inusitado perfume de
violetas e a cabeleira ruiva não deixou margem a duvidas de
que o lugar era aquele mesmo.
Aproximei-me sem disfarçar minha presença, e um par de
olhos avelãs se fixou em mim.
Truzzi... sibilei na direção dela.
Alteza ela devolveu irônica.
Achei que tínhamos um acordo.
Julliana sorriu-me de canto. Começara, diante daquele
mesmo sorriso, a minha caçada. Nunca gostei dos
sortilégios usados pela Sociedade de Órion para conseguir
seus intentos, contudo, o que ela me trouxe era algo que
não podia ser ignorado.
47. Isso foi antes do Conselho se transformar num caos e a
maioria dos vampiros estar fora de controle. E, deve
imaginar, que com eles, os renegados também. Não há
mais tempo para esperas. Voltou os olhos à bebida, e
emendou: Seu irmão não costura alianças como você, e
em breve, não será só Londres que estará infestada deles.
Sentei-me a sua frente, deixando meus sentidos em
alerta.
E o que a Sociedade deseja que eu faça... agora?
sentenciei sob um meio sorriso irônico.
Na verdade, não vim pelos de Órion determinou
séria. Já brincou muito com a jovem, devemos resolver
logo a questão com Thryn pausou. Ele está cada vez
mais alerta, e há um homem que anda se metendo em
nossos assuntos. Encarou-me. O cheiro de fumo de
cachimbo barato preencheu o ar. E, pelo que andei
apurando nos últimos dias, não parece querê-lo fora de sua
vista. Por quê?
Bebi o resto da bebida num só gole.
Ele nos será útil, da mesma forma que Milla.
Suas avelãs me fitaram atentamente.
Era para ser apenas uma mulher qualquer, alteza ela
sibilava e, em parte, eu entendia o motivo. Não deveria
se quer expô-la como alguém próxima a você.
Achei que isso daria mais veracidade à história e nos
acobertaria. Tenho certeza de que o olhar de Thryn está
mais sobre Milla do que já esteve sobre Lise.
E se acha capaz de abrir mão dela no momento certo?
disparou sarcástica.
Não é a única que possui uma carta na manga, Truzzi...
sugeri baixo. É melhor deixar as coisas nos termos que
48. acordamos. Cumprirei com a minha parte, é isso que veio se
certificar não é?
Eu havia me inclinado à frente e sorria sob um rubro
intenso, e sobre um tampo oleado, onde mais bebida foi
depositada para nós.
Ela, entretanto, recuou um pouco.
Não ousaria menosprezá-lo, mas não posso fingir que
não vejo o quanto está envolvido com aquela mulher.
Julliana jogou os longos cabelos ruivos para trás e
gargalhou, fazendo todos os olhares duvidosos, ao nosso
redor, nos fitarem penetrantes, e, a mim, resguardar meus
rubros. Devo lembrá-lo de quem é e o que esperamos de
você?
Meu sorriso era agora uma linha bem delineada de
escárnio.
Enquanto ele se preocupa comigo, você tem podido
agir nos subúrbios londrinos com facilidade. Baixei mais
ainda a voz para que somente ela me ouvisse: Acredite, o
jovem médico também terá sua participação para
colocarmos as mãos em Thryn.
Eu não confio em humanos, e você também não
deveria.
Desviei meu olhar do dela mantive o sorriso, pensando
em Lise.
Eu aprendi a confiar, em alguns. Algum sinal de Thryn?
Ele tem tomado suas precauções. Há muitas crias dele
por aí, mas poucos que sirvam realmente de rastro ao seu
mestre determinou em avelãs flamejantes. Quanto a
confiança que deposta em seu entusiasta, minha missão
estava sendo divertida até a noite passada, quando pegou
um deles.
49. Abraham? Eu não poderia estar mais surpreso, fora
o que sempre tentei evitar.
Está com uma cria de Thryn. Ela sorriu deliciada,
estava guardando o melhor para o final. Vim lhe avisar
que farei uma visita a ele.
Não a quero perto de Abraham sentenciei seco.
Tinha certeza do passo que Van Helsing daria e o esperaria
fazê-lo. Eu resolverei esse problema.
Eu aceitei sua ajuda quando chegou aqui. Contei a
você tudo que sabia sobre o retorno de Thryn e seu desejo
de ocupar lugar de Carl. Truzzi enviesou a sobrancelha
profundamente. Mas o doutor está fora do nosso acordo.
É a inclusão de uma clausula mínima desafiei-a.
O jogo que está jogando é perigoso, e eu não tenho
certeza de que irá mesmo até o final...
Eu não esqueço meus compromissos, e por mais que
Milla seja uma bela mulher, meu coração seria incapaz de
trair Elise. Ergui-me da mesa e me dirigi à saída.
Não falo do coração ditou a Truzzi, detendo minha
passada e atirando algumas moedas à mesa. Sei que a
falta do sangue reclamado pode causar a dependência do
corpo pelo contato físico. E, quando o corpo reclama sua
recompensa, a mente falha. Colocou o capuz sobre o
rosto e passou por mim.
Eu não fui tão longe para por tudo a perder apenas
pela vontade de possuir uma mulher! Cerrei meus
punhos. Há algo muito maior em jogo, e eu não vou abrir
mão de Elise novamente... arranhei a verdade.
É bom ouvi-lo falar como o Edmund que sempre foi.
Admitir fraquezas não é algo comum nos imortais que
conheci ela contrapôs sem interromper seus passos.
50. Por isso eu vou lhe dar uma semana, alteza. Nenhum dia a
mais. Não podemos correr o risco de perder Thryn.
Fitei-a abrir porta e deixar o estabelecimento, sentindo
apenas o ar gélido da noite que trouxe as lembranças de
Pest a minha mente.
por Milla
A porta da saleta se abriu, permitindo que Lyod introduzisse
o sr. Abraham. Seus olhos verdes procuraram os meus sem
cerimônia enquanto eu dispensava o mordomo com um
mínimo assentimento.
Srta. Sonieur... Dispensou-me uma reverência.
Tão somente por delicadeza retribui.
Continua contribuindo, fervorosamente, para que não o
leve muito a sério, sr. Van Helsing delimitei contrafeita,
indicando-lhe um assento. Ambos sabíamos que, o que o
houvesse trazido ali, não seria demovido facilmente.
Confesso que não entendi seu intento. Sentou-se,
encarando-me severo. Por certo, já que não me parece ter
poderes fora do comum aos de uma bela mulher, ainda não
sabe o que tenho a lhe dizer.
Por certo, e jamais menosprezando sua inteligência,
também não é coincidência anunciar sua visita quando sabe
que Edmund não está em casa.
Não o negarei. Ele sorriu minimamente. Mas insisto
que não possui um mínimo motivo para temer minha
presença.
Não? Arqueei minha sobrancelha. Era muita
petulância.
51. Excetuando, talvez, o risco que corro em ter meu coração
inerte...
Não está me adulando em excesso, sir?
Num único e preciso gesto, capturou minha mão e beijou-lhe
o dorso com carinho. Seus olhos nos meus.
É um risco que vale a pena correr... Um frio cobriu
levemente minha espinha sob o veludo da voz dele. Milla.
Meu estômago revirou, gelando, e meu corpo foi impelido a
ficar ereto. Minha mão deixou o calor da dele.
Asseguro-lhe que é um risco eminente, e maior do que
supõe ditei, retirando meus azuis do contato visual.
Edmund pode chegar a qualquer momento.
Então, seria melhor conversarmos em outro lugar.
Imitou meu gesto. Permita-me que a convide para uma
volta.
Mas sir...
Estaremos sob a vista de todos sentenciou.
E por que deveria aceitar? disse rascante. Havia algo
em Abraham que me irritava. Provou-me, mais de uma vez,
não ser uma pessoa digna de minha confiança. E está
determinado a destruir alguém que prezo demais...
Não estou a favor de Edmund, é fato, mas jamais
atentaria contra sua reputação, senhorita. Sua voz soou
séria demais; o que me chamou a atenção, fazendo-me fitá-lo.
Há algo que quero mostrar-lhe.
A mim?
Sim, algo que pode fazê-la acreditar em minhas boas
intenções.
Em relação a quem?
A você.
Em outras palavras, algo que compromete Edmund.
52. Gosta tanto dele assim ao ponto de negar qualquer
evidência? Seu tom guardava algo além de incredulidade.
Claro que não. Não há nada que possa mudar o fato de
que possuo uma dívida com o Conde.
Então não tem o que temer... Estendeu-me a mão.
Ele continuará a salvo.
Estreitei meu olhar sobre ele e deixei-me guiar para fora da
casa. Será que um dia me perdoaria pelo passo que estava
dando?
O coche de Abraham traçou um caminho movimentado até
a escola de Medicina, que eu conhecia de nome muito bem,
pois não fora apenas um cadáver que eu vira ser vendido para
os estudiosos.
Curiosamente, não paramos na entrada principal, e sim,
junto a uma pequena porta rodeada por heras, na lateral do
edifício. Por segundos, enquanto Abraham se dirigia ao
cocheiro, pensei em interpelá-lo sobre estarmos ali apenas os
dois. Contudo, decidi deixar de lado minha exigência inicial e
seguir meus instintos.
Eu acreditava que ele havia descoberto algo que
considerava muito importante para mudar minha opinião
sobre o Conde. E, confesso, que estava curiosa em até aonde
ele iria para isso. Ainda não estava convencida de que o súbito
interesse de Abraham por mim não era fruto de algum plano
para ficar mais perto de Edmund. Ainda assim, não atinava o
motivo de tanto interesse de um pelo outro.
Edmund já provara inúmeras vezes que possuía apenas
certa tolerância a Abraham. Não compreendia muito Edmund,
apenas o tanto que meu coração se deixava envolver por sua
personalidade sedutora. Embora, esses momentos sempre
esbarrassem na tristeza que toldava seus olhos castanhos. Não
53. era como se ele não quisesse estar comigo, mas como se parte
dele fosse inatingível.
Acredito que aquela mulher, Elise, seja única capaz de
romper aquela tristeza. A única que, definitivamente, o
completa. Quando o vi com Isabella tive a certeza de que
deveria manter meu coração longe do dele, pois eu jamais
conseguiria agir como ela... Ter um homem em meus braços,
mas não fazer parte de sua alma, de seus pensamentos a cada
batida de um relógio.
O som do sapato de Abraham me chamou de volta à
realidade. Atravessávamos um corredor cujas portas
ostentavam nomes variados e paramos diante da placa que
grafava Van Helsing no dourado. Abraham girou a maçaneta
e um anfiteatro surgiu sob meus pés. As fileiras de cadeiras
desciam em cinco camadas até o centro, onde havia uma
mesa.
Abraham passou a minha frente e me ajudou a descer a
diminuta escada. Passeou os olhos em meu rosto todo tempo
enquanto eu me preocupava em pisar no meio do degrau
estreito e não causar nenhum dano a mim ou a ele. Afinal, um
passo em falso e rolaríamos até lá embaixo, efetivamente.
Diga-me... ele sentenciou, mantendo meus dedos
unidos aos dele. Não está surpresa?
Eu segurava minha saia e tomava conta da altura a ser
vencida quando devolvi:
Com o fato de romper sua promessa, não; por me trazer,
certamente não... Chegamos a último obstáculo e fixei meu
olhar em seus verdes. Vejamos se me surpreende no que
pretende me mostrar.
Ele sorriu e inclinou-se para beijar minha mão. Era um belo
homem, como costas largas e quadris levemente estreitos. A
54. barba por fazer lhe dava um ar de desleixo momentâneo,
negado pelo corte impecável de suas roupas. Os lábios
roçaram levemente minha pele e me perdi na sensação
poderosa de atrair dois homens tão diferentes... E ter a certeza
de que, com um, certamente eu me perderia.
Farei tudo ao meu alcance para não decepcioná-la ele
ditou sob jades profundas. Por favor... Pediu ao abrir a
porta ao fundo do anfiteatro.
Fiz-lhe uma leve mesura e entrei na sala. Pilhas de livros
travavam uma luta feroz com igual quantidade de vidros.
Fosse alguém com estômago rebelde ou fraco, por natureza, se
veria em maus lençóis ali dentro. Por um instante agradeci ter
vivido em Whitechapel, jamais bancaria a tola diante de
órgãos humanos ou animais conservados em formol.
Havia uma escrivaninha ao canto sob pilhas de papéis, e um
bancada ao fundo, próxima à janela, onde havia outros vidros
menores com líquidos coloridos. Muitos vermelhos, numa
textura aparente de sangue.
Abraham se adiantou à mesa enquanto meus olhos se
entretinham curiosos com tudo a minha volta.
Eu gostaria que lesse isso... Estendeu-me um maço de
papéis. Antes de qualquer coisa que eu venha a lhe mostrar.
Corri meus azuis dele para os papéis, e novamente destes
para seus verdes até tomar o maço para mim. Estreitei minhas
sobrancelhas e procurei um acento, que prontamente ele
arranjou. Eu não iria ler quase trinta páginas em pé.
Ele, ao contrário, pôs-se junto à janela e cruzou os braços,
olhando para fora. A lua ia alta, ainda que entre nuvens, e
algo dentro de mim parara de questionar o que uma mulher
solteira estaria fazendo com um homem como o doutor,
dentro daquelas paredes escuras e silenciosas.
55. Todavia, a leitura havia me apreendido a atenção. A história
sobre Vlad III cresceu diante dos meus olhos extremamente
atrativa e misteriosa. Quando me permiti interromper
brevemente a leitura, questionei-me o que de fato me trouxera
ali... A possibilidade de desvendar Edmund ou as teorias de
Abraham?
As horas passaram sem que eu percebesse, havia detalhes
desde a divisão da família Basarab até as formas aterradoras
como Drakulya tratava seus inimigos. A história verdadeira do
homem se fundia às lendas locais, relatadas pelo povo da
época, que via em seu suserano um ser com poderes
inimagináveis, devido a sua postura sempre imponente. Foi
assim que sempre encarei qualquer lenda: um nome
verdadeiro com vários feitos fantasiosos.
Todavia, admito que certos relatos provincianos me fizeram
querer aprofundar mais na história. Eu agora estava diante de
uma foto de Vlad e ele não me parecia familiar em nenhum
ponto. E, bom, se Abraham acreditava que seres assim
existiam, eu não tinha nada a acrescentar. Muito pelo
contrário, sentia muitíssimo que desperdiçasse seu tempo e
dinheiro em meros clichês.
Nunca encontraram um corpo na tumba ele cortou
meu pensamento como uma faca.
Perdão? interpelei-o, deixando de lado ainda metade
dos escritos. Agora inúmeros relatos de assassinatos em vários
países, com perfurações semelhantes no pescoço, possuíam
datas cada vez mais atuais.
O lugar onde supostamente ele foi enterrado... Não há
relato de corpos encontrados no local, exceto animais.
56. Sei que isso talvez devesse tornar sua busca um pouco
mais concreta, mas não pode descartar a possibilidade dele
nunca ter sido enterrado ali? pausei, percebendo que os
olhos dele escureceram. De certo, seu lado científico deve
alertá-lo sobre os fatos mais reais.
O que indica ser real também pode estar apoiado em
outros fatos misteriosos ponderou Abraham.
Eu o encarei séria.
O que tanto quer provar a mim, sr. Van Helsing? Não
quero concluir que me trouxe aqui apenas para ler essas
histórias...
Fatos corrigiu.
Que seja. Era só isso? contrapus. Histórias de um
suposto vampiro?
Há relatos, como viu, de mortes com certas
características...
Sim, há cortei-o seca. Mas aonde quer chegar com
isso?
Conheço Edmund há anos iniciou, aproximando-se de
mim Imagino que ele não tenha lhe contado isso.
Não... Internamente me questionei o motivo de não
saber daquele detalhe. Por hora, entretanto, apenas externei
algo que não comprometesse Edmund: Nem havia motivo
para isso.
Ele me avaliou intensamente, deixando-me inquieta.
Nos conhecemos há dez anos, na Bélgica prosseguiu
com cuidado: Em um evento um tanto misterioso.
Parece-me que mistério está se tornando a sua
especialidade mais do que a ciência em si... Doutor sugeri
irônica e ele me lançou um olhar penetrante, que atravessou
como uma descarga elétrica o meu corpo.
57. Srta. Sonieur não sou um homem dado a invenções ou
mentiras disse-me levemente irritado. Há, ainda, outra
coisa que desejo lhe mostrar...
Não eram somente os papéis? alfinetei-o. Ele parecia
gostar de me ver acuada; eu, por outro lado, gostava de ter as
coisas sob controle.
Creio que já leu o suficiente para compreender aonde
quero chegar, ainda que, conscientemente, lhe seja inteligível.
Eu realmente devo me opor a sua menção de que meu
intelecto possa...
Jamais a traria aqui e revelaria meu maior segredo, se
não concebesse que você fosse capaz de compreendê-lo. Ele
cerrou os pulsos, contendo a frustração eminente que o
atravessou diante de minhas palavras. Em olhos fechados,
prosseguiu: Permite-me continuar?
Nos encaramos e eu poderia dizer que não era indiferente a
sua presença, e a minha curiosidade, como gostaria de ser. Eu
consenti lentamente, Abraham se tornara tão intrigante
quanto Edmund.
Estávamos em um clube... Era tarde da noite e muitos
frequentadores estavam bêbados. Não se discutia mais
política além dos muitos goles de bebidas que eram vertidos
pausou. Eu confesso que meus sentidos não estavam
plenamente ativos, mas jamais poderia esquecer o rosto
daquele homem... Ele olhou para mim, mas não estava me
vendo. Era como se visse além de mim, como se voltasse à
cena. Ele entrou pelas sombras, seus olhos não demoraram
mais que segundos para encontrar seu alvo. Contudo, não
pareceu ter a mesma pressa em enfrentá-lo. Estávamos
anestesiados, e foi impotente, que assisti as mesas e o chão se
preencherem de sangue. Deixando um rastro viscoso até a
58. mesa ao meu lado... Até... pausou. Nunca havia
presenciado nada parecido.
Um homem? estranhei, ainda que sua expressão de
horror me mostrasse que não mentia.
Sim... E ele não usou nada além de sua força e presas
disse baixo, como se o terror daquela noite se espalhasse pela
parede a nossa volta.
Você disse, presas?
E os olhos dele estavam nos meus, brilhantes.
Eu só não tive o mesmo destino dos demais porque
Edmund estava lá...
Ele também é um sobrevivente? indaguei surpresa que
alguém pudesse lidar com algo como aquilo facilmente.
Os verdes escuros me fitaram em silêncio.
Acho que chegou a hora de lhe mostrar algo mais, para
que o que tenho a dizer sobre Edmund não lhe pareça um
despautério...
Sem nenhuma cerimônia, envolveu meu pulso com os dedos
e me arrastou pela sala e, depois, pelo anfiteatro. Eu tropeçava
em minha saia enquanto obrigava meu corpo a seguir o dele
em passadas firmes pela escada e pelo corredor, até que
alcançamos o ar livre e uma rajada de vento nos arrebatou.
Aonde vamos? perguntei, tentando conter meus
cabelos que se embolavam, impedindo-me de ver onde pisava.
Precisa me prometer que não contará nada a ninguém,
srta. Sonieur.
Não contarei balbuciei, entrando numa pequena
construção nos fundos da escola. Era térrea e lembrava um
armazém.
O vento parou de correr entre nós, mas ainda assobiava
pelas frestas da madeira. Um cheiro fétido inundava o ar e
59. tudo estava escuro a nossa volta. A mão de Abraham
abandonou meu pulso e levei ambas as mãos ao entorno de
meus braços. O cheiro estava cada vez mais forte e começava
a me enjoar, era como se algo estivesse decompondo. Um
animal, ou quem sabe... Um arrepio correu minha espinha e
Abraham acendeu um lampião, que trouxe até mim.
Minhas pernas bambearam e o complemento da frase
cobriu meus lábios, ainda que sem som: um corpo. Todavia, o
que me estarreceu, foi o que o lampião iluminou quando
Abraham o colocou a nossa frente. Havia algo oscilando a um
metro do chão, amarrado com grossas correntes a duas
colunas de madeira, que serviam de sustentação à estrutura
do telhado.
O-o que é isso? Eu não podia negar que estava
assustada.
Isso, srta. Sonieur, foi algo que cacei ontem à noite.
Ele se afastou de mim e se colocou junto ao farnel de tecidos,
removendo a sua parte superior, e para meu desespero total,
revelando uma grande cascata de cabelos castanhos
enquanto era retirado. E, depois, deixando a mostra uma
cabeça de mulher muito pálida, que tombou para o lado.
Ah meu Deus! grunhi, levando minhas mãos aos
lábios e andando para trás. O que você fez a ela?
Eu? Ele me fitou surpreso e deu um passo em minha
direção.
Não se aproxime retruquei. Não sou uma mulher
qualquer afirmei convicta. Sou cheia de surpresas.
Continuei recuando.
Acha que a matei?
Ela está mesmo morta? indaguei indignada pela
audácia dele e analisando minha rota de fuga. Como eu
60. pudera ser tão tola? Várias moças haviam sido atacadas em
Whitechapel, e não conseguiam pegar o homem que as
mutilava. Quem sabe o segredo de tal falha era porque ele era
um médico?
Uma náusea profunda tomou conta de mim. Minha pele
resfriou. Abraham Van Helsing era o assassino?
Srta. Sonieur, sei o que está pensando...
Eu duvido muito tentei desviar a atenção dele.
Sabe, Edmund deve estar sentindo minha falta e...
Droga! ele berrou e eu estremeci. Ele é um monstro!
Deixá-lo raivoso não era uma boa tática.
Não há monstros aqui. Tentei ser complacente.
Sim há ele retrucou e apontou para a mulher. Este é
um deles!
Deus, como eu podia ter sido tão imprudente e ter confiado
em Abraham? Conjecturei várias teorias, mas todas péssimas.
A porta por onde entramos estava trancada, e as janelas eram
estreitas e raras; e o pior, não trouxera meu punhal.
Certo... Você acredita que ela seja um monstro.
Ela é. E voltou-se para o corpo. E vou lhe provar.
De dentro do sobretudo, ele sacou um punhal e avançou
contra a mulher, eu gritei enquanto o imitava em passo largos:
Abraham não!
Então, ele fez algo absurdamente estranho, olhou para mim
e cortou seu antebraço, fazendo o sangue pingar pela
bochecha e lábios da mulher. Como num espasmo, o corpo
abriu os olhos enquanto a língua passeava afoita pelas gotas
do líquido.
Horrorizada, eu recuei vários passos e vi a mulher se projetar
na direção de Abraham, que voltou-se para mim, conforme
fazia um torquinete em seu antebraço com o próprio lenço.
61. Eu ainda olhava dele para a mulher, aterrorizada. Ele
preocupava-se em dar um nó ao lenço quando ela esticou o
braço e o segurou pela lapela do casaco. Soltei um grito
estridente enquanto ele livrava-se do aperto.
Acredito... resfolegou que agora poderá me ouvir
com mais atenção, srta. Sonieur.
Eu assenti, em semblante aflito, enquanto a criatura me
sorria. Abraham fitou-a com desprezo, puxando-me para
longe dela.
Foi exatamente isso, o que me atacou aquela noite no
clube.
Eu não conseguia deixar de olhar a mulher, sua pele pálida e
macilenta, seus olhos sem brilho e parte da fronte ainda
coberta de sangue, que sua língua tentava inutilmente
alcançar.
Não entendo... balbuciei.
No mesmo instante em que Abraham se preparava para me
responder, um estrondo fez tremer todo lugar. Não só o chão,
como as paredes e o teto, e um vento frio e cheiro de chuva
adentrou o lugar. Não havia brilho na noite, ainda que o céu
estivesse sobre parte do galpão.
Os verdes dele passearam por todo o lugar e,
instintivamente, segurei em sua mão. A mulher gargalhou e
uma voz poderosa preencheu todo lugar, sem que
conseguíssemos designar de onde vinha.
Talvez eu possa lhe esclarecer algumas dúvidas, minha
jovem.
Mestre... a mulher sibilou deliciada, fechando os olhos.
Com a mesma presteza, Abraham se desvencilhou de mim e,
para minha total surpresa, sacou uma pistola.
Fique atrás de mim.
62. Parece que dessa vez não está com seu arsenal de caça,
doutor a voz masculina prosseguiu.
Vocês se conhecem? Não tive como não indagar.
Digamos que eu e doutor temos assuntos inacabados
a resposta veio de algum lugar a nossa frente. Deus sabe
que tentei ignorá-lo... soou mais irônico do que deveria.
Mas a curiosidade tende a meter os humanos em situações
que não controlam.
E, sem um mínimo ruído, um homem moreno se destacou
da escuridão do galpão.
Thryn...
Você realmente o conhece? murmurei.
Sim e não sentenciou o moreno, parando ao lado da
mulher. Como ele mesmo disse, estávamos num mesmo
clube, numa certa data especial. Sorriu. Todavia, tenho
certeza de que não me apresentei a nenhuma das pessoas ali.
E, devo admitir, que não cometerei o mesmo erro esta noite,
srta. Sonieur.
Oh... sabe meu nome estava surpresa.
Não vai tocá-la. Abraham se colocou a minha frente.
Ora, eu não era uma mulher indefesa!
Interessante... Ele voltou a sorrir, e mesmo que fosse
um belo homem com um porte austero, não gostei de vê-lo
daquela forma. Não pensava que seria tão fácil.
Pegue sua cria e vá embora determinou o Van Helsing.
Mestre, por favor... a mulher sibilou novamente. E,
com apenas uma mão, e os verdes sobre nós, ele quebrou-lhe o
pescoço.
Mudança de planos Abraham... Avançou para nós,
devagar, enquanto retirava uma espada do sobretudo.
Você está com algo que eu desejo.
63. Quando eu disser para correr, faça Abraham disse
baixo. Há uma espada junto à porta, pegue-a. Será sua
única chance de defesa.
Algo que vai me trazer Edmund completou, andando
mais rápido.
Houve um estampido seguido da ordem:
Corre.
Eu não olhei para trás, apenas fiz o que Abraham
sentenciou, ainda que meu coração falhasse ao ouvir o
segundo estampido. Tateei a madeira e quando senti o metal,
o empunhei. Voltei-me para Abraham e tudo que vi foram
aqueles verdes sobre mim.
Quer brincar, boneca? A espada dele desceu certeira,
mas eu a impedi. Será que sabe mesmo o que está fazendo?
Eu respirava rápido, a espada em riste enquanto via
Abraham se erguer do chão e vir em nossa direção. O louro
fechou os olhos, murmurando:
Que tolo! Sorriu e os abriu em rubros para mim.
Diga, princesa, o que prefere... Continuar fingindo que
duelamos e eu o mato, sem nenhum remorso; ou prefere
baixar essa espada e deixar o doutor vivo?
Eu tremi, hesitei, olhado dele para Abraham que se
aproximava claudicante, com sangue escorrendo da perna.
Minha paciência é pequena, tem dois segundos...
Eu vou disse, atirando a espada ao chão, na direção de
Abraham, que parou ao som do barulho do metal colidindo
com o chão.
Boa menina. Ele se aproximou de mim e enlaçou-me a
cintura, levando-me com ele, num salto preciso para cima do
telhado.
Milla! Abraham ainda tentou me segurar.
64. Dê um recado a Edmund, doutor... Se ele quiser a mulher
de volta, que venha até mim.
A chuva voltou a cair impunemente sobre Londres, e minha
última lembrança foi Abraham com a mão estirada em minha
direção. Depois disso, as sombras nos engoliram.
***
Eu tamborilava os dedos no braço da poltrona, ouvindo o
crepitar da lenha na lareira e tentando mensurar a falta de
senso de Milla ao sair com o doutor. Cada nervo meu gritava
absurdos, não o nego. Minha parte humana, infelizmente, é
extremamente machista e não comporta outro macho em
mesmo território; todavia, a parte racional de meu ser
estava conformada em abrir mão da jovem e seguir meu
caminho, sem deixar-me alquebrar como a Truzzi sugerira.
Contudo, a sequencia de arremessos de uma mão contra
a porta de entrada de minha casa, num ritmo frenético,
aborreceu-me o suficiente para quase me fazer perder a
compostura. Lyod deveria estar deitado a uma hora
daquelas, não administra hábitos noturnos tão bem como
eu. É um humano como outro qualquer. Atei firmemente o
robe a minha cintura, irritado, e me ergui da poltrona,
deixando a biblioteca no exato momento em que a porta foi
aberta e um Van Helsing ensopado, gotejava sob o batente
de minha porta.
Deixe-o comigo, Lyod... sentenciei, avançando na
direção de ambos.
Como quiser milorde deferiu, olhando para mim e
se curvando, para dar início a sua volta a ala dos
empregados.
65. Aproximei-me dele, alisando o cavanhaque para me
acalmar. Certamente gostaria de matá-lo.
Onde está Milla?
É o que você vai me dizer. Ele me encarou,
passando por mim e entrando na casa.
Usei de meu sorriso mais sardônico para introduzi-lo na
biblioteca.
Aparentemente, veio para conversar... Permita-me.
Indiquei-lhe a porta e ele assim prosseguiu.
Aproximou-se rápido do fogo e esfregou as mãos. Era
certo que aquela chuva não lhe faria bem, encharcado
como estava da cabeça aos pés. Havia uma casaca
descansando sobre o espaldar da cadeira, junto à
escrivaninha. Peguei-a e atirei-a a Abraham.
Vista ordenei. Antes que não saiba dizer nada
sobre o que aconteceu a srta. Sonieur.
Ele se desfez de sua casaca e cobriu-se com a minha.
Eu poderia dizer o mesmo a você rebateu irritado.
Nunca entendi porque a escolheu entre tantas mulheres
de Whitechapel.
Eu sorri e me sentei na poltrona mais próxima, mordendo
meu indicador. Era uma das perguntas que me fazia, desde
que comecei a observá-la, mas apesar do início dessa
história não ser muito claro em relação a isso, o que me
levou a Whitechapel e, posteriormente, a Milla, foi
exatamente o doutor. A conveniência de Sir Allan tê-la
trazido até mim foi tão somente obra do destino. Uma
daquelas armadilhas que você se pergunta se a sorte, que
os humanos tanto clamam, existe.
Milla, de fato, não me era desconhecida completamente.
Não desde que começara a querer saber mais sobre o
66. doutor, já que ele resolvera se meter em meus negócios.
Nada melhor do que conhecer os dele, porém, isso resultou
em algo inusitado. Ainda que a jovem jamais tivesse
travado qualquer diálogo com Abraham, como também
não o fizera com inúmeros de seus admiradores secretos,
este se demorava demasiado quando estava próximo a ela,
quer fosse somente para sentir-lhe o perfume.
Como observador externo, eu poderia dizer que ele fazia
visitas a mais a seus pacientes, do que o estado deles
necessitava. Pobre doutor, deveria viver com receio de que
sua família jamais a aceitasse. Francesa e pobre, uma
agressão completa à sociedade em que Abraham circulava,
assim como ao seu futuro, que não tenho dúvidas, será
esplêndido.
Está posto, então, de forma devidamente clara que
ainda que contando com a sorte ter Milla comigo não era
só pela intensa fascinação que ela, como mulher, exercia em
mim desde sempre, mas era um trunfo contra Abraham.
Ela é uma mulher fascinante sentenciei sério.
Não é só bela, como é inteligente e tem espírito.
Não é só um jogo, não é? Desviou os verdes de
mim. Achei que a queria para me afrontar.
As chamas da lareira estavam refletidas em seus olhos e,
ouso dizer, também em seu coração.
Meu caro Abraham... prossegui, erguendo-me e
pondo as mãos em seus ombros. Ela é encantadora
sugeri ao pé de seu ouvido: Nenhum homem seria
suficientemente idiota em negá-lo, ou mentir, dizendo não
desejá-la.
Ele voltou-se para mim tão rápido, que eu não recuei e
deixei-o envolver meu pescoço com suas mãos.
67. Vá em frente...
Ele apertou com força e eu realmente fiquei sem ar. Não
funciono como os vampiros. Devo ter assustado-o com isso,
pois ele me soltou e recuou.
O que é você?
Surpreso que não sou um vampiro...? Ajeitei meu
robe. É, não sou. Mas também não sou humano como
você. Eu me curo rápido, ando a luz do dia, respiro, como,
faço sexo... Sou capaz de manipular seu pensamento, os
elementos; tenho uma velocidade surpreendente também.
E, claro, preciso de sangue. Não tanto que precise sorvê-lo
até a morte, e nem com tanta frequência que justifique
ataques a humanos. Eu sou algo que definitivamente não
conhece, Abraham, mas convivo com vocês desde que o
mundo é mundo. Eu sou um imortal, e sinto muito que a
minha espécie seja responsável por pessoas como Thryn
estarem a solta em sua sociedade.
Como sente muito por Thryn estar a solta?
Somos responsáveis por seres como Thryn.
Vampiros? indagou.
Mão necessariamente. Seus seguidores, sim, são o que
vocês chamam de vampiros. Quanto a ele existem
possibilidades...
Como assim? esbravejou.
É complicado explicar.
Experimente.
Ele foi adotado por um dos 7 Clãs Principais, porém,
nunca soubemos a origem de Thryn. Ele age como um
vampiro, cria renegados que os servem, mas eu não tenho
tanta certeza de que seja igual a eles.
68. Pois é bom que saiba como matá-lo rangeu
Abraham, os olhos em fúria. Porque se Milla morrer, não
me importa quem ou o que você é, eu te mato.
Eu sorri.
***
Não foi difícil, desta vez, seguir o rastro de Thryn. O que
deixava explícito, claramente, aos meus sentidos, seu
convite para uma visita. Porém, tão bem quanto eu, ele
sabia que não iria só, e Van Helsing não era toda ajuda de
que eu precisava para enfrentá-lo.
O curioso, entretanto, foi o local peculiar que Thryn
escolheu para utilizar de esconderijo: uma locomotiva, que
sibilava sobre os trilhos na estação de King Cross. Ainda que
Julliana me fitasse estranhamente, não havia um resquício
de dúvida em mim que Thryn havia embarcado; e,
muito provavelmente, não só ele.
Eu diria que foi uma excelente escolha ela
ponderou ao passar por mim e Abraham, que a fitou
longamente.
Ela também é uma de vocês?
Estava pronto a responder, quando a Truzzi o fez, sob um
sorriso:
Não... prosseguiu com um olhar intenso. Mas já
cheguei a cogitar ser um vampiro, e ter o prazer sublime de
me livrar de pessoas inconvenientes.
Isso foi uma ameaça? Abraham sugeriu, subindo
atrás dela.
Não, foi um aviso. Nesse exato momento, o trem e
pôs em movimento.
69. O corpo dela oscilou, e Abraham que estava logo atrás
, enlaçou-a pela cintura num reflexo. Os olhos dela
flamejaram nos verdes, e pisou firme com a bota no último
degrau, fazendo seu corpo inclinar para frente e deixar,
bruscamente, os dedos do doutor.
Ela é o que afinal? Voltou-se para mim, levemente
irritado.
Uma caçadora eu disse com cuidado. Desde que
criamos o Conselho, e impomos regras a nossa sociedade,
contamos com a ajuda da Sociedade de Órion. São
humanos treinados por nós, para combater e caçar
renegados, protegendo-nos. Deixando-nos no anonimato.
Eu não confio nela ditou sem rodeios.
Eu não o culpo por isso disse, tomando a frente no
corredor.
As sobrancelhas de Abraham arquearam.
Então, por que a trouxe?
Porque ela é uma das melhores, e, nessa questão em
especial, temos um objetivo em comum.
Passamos pelos corredores estreitos dos vagões leitos e,
quando íamos em direção aos de carga, a cabeleira ruiva da
Truzzi surgiu em nosso campo de visão.
É pior do que eu imaginava... respirou rápido e o
vagão chacoalhou, acelerando a locomotiva. Os olhos dela
estavam nos meus, sérios. Não acredito que eles pensem
deixar essas pessoas ilesas. ofegou.
Mas há pelo menos uma centena de pessoas
embarcadas agitou-se o Van Helsing. Como vamos
salvá-las?
Um sorriso torto brotou nos lábios da ruiva.
Você é o doutor aqui...
70. E você, me disseram, o gênio devolveu com igual
sarcasmo.
Parem os dois intervi. Seus homens embarcaram
antes de nós voltei-me para Julliana , estão
posicionados?
Sim... Mas sou obrigada a dizer que eles estão em
grande vantagem numérica.
Isso nunca foi um problema para você sentenciei
irônico, fixando meus castanhos no doutor. Abraham,
nós vamos avançar... Você vai descobrir um meio de
descarrilar os outros vagões.
Mas... Milla sentenciou atônito.
Pus minha mão no ombro dele.
Eu a manterei em segurança até que tenha feito o que
lhe peço. E, num único movimento, retirei minha espada
do sobretudo.
Inusitado, entretanto, foi a expressão de Abraham
quando a Truzzi rolou suas duas foices no ar.
Você realmente sabe usar isso?
Eu adoraria matar a sua curiosidade... Deu-lhe às
costas. Qualquer dia desses.
E sumiu na passagem escura que se formava com a porta
do vagão aberta e o céu coberto de nuvens lá fora. A brisa
soprou forte no corredor e eu a segui.
***
Relato de Abraham, ouvido após uma deliciosa chávena
num pequeno apartamento, recém-decorado, à beira do
Tâmisa.