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Participação social e formação política de crianças e
jovens
Joanice Barbosa Parmigiani1
RESUMO
O presente artigo apresenta um trabalho que está sendo desenvolvido há três anos
num projeto de inclusão social e construção da cidadania na cidade de Carapicuíba,
região metropolitana de São Paulo. Surgiu como uma contribuição ao exercício da
cidadania dos educandos que integram a unidade, criando possibilidades de ações
concretas. Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de
todo processo administrativo da unidade, por meio de uma "Prefeitura Mirim".
Anualmente realizamos um processo de eleições no qual cada indivíduo (criança ou
adulto) tem direito a um voto, e nas urnas (num processo similar às eleições
brasileiras), cada participante do projeto (educando, educador, pessoal de apoio)
faz sua escolha entre aqueles que o grupo escolheu para candidatos.
Os eleitos têm mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e
acompanhados por todos por meio de assembléias de prestação de contas e
levantamento de propostas.
Após esse período de desenvolvimento, este trabalho vem tornando-se uma
ferramenta pedagógica que muito tem contribuído para todo o resultado
educacional almejado, possui uma intencionalidade bastante clara, envolvendo
todos os educandos, educadores e demais integrantes do grupo e proporcionando a
recuperação da identidade dos envolvidos por meio de sua participação como
atores sociais e protagonistas.
Apresentamos no artigo, os primeiros resultados da formação da consciência de
participação social e política dos educandos, dimensões que alavancam a formação
da autonomia e da emancipação do indivíduo.
Palavras-chave: prefeitura mirim; cidadania; eleições; participação social.
MOTIVAÇÃO E PROPOSTA
A participação social e a formação política são dois aspectos que cada vez mais vem
se revelando como ferramentas de emancipação e autonomia do cidadão que
deseja compreender a sociedade e perceber-se como agente constituidor e
transformador de realidades. A consciência sobre tão poderosa capacidade
individual torna-se ainda mais eficiente quando despertada ainda na infância e na
adolescência.
Há três anos, tenho contribuído no desenvolvimento de um programa de Inclusão
Social e Construção da Cidadania, da Fundação Orsa, que atende a famílias em
situação de vulnerabilidade social no município de Carapicuíba. Sentindo a
necessidade de trabalhar a dimensão político-social da educação junto às essas
crianças e jovens, iniciamos o desenvolvimento do projeto Participação Social e
Formação Política levando em consideração a necessidade de transformação das
práticas educacionais, valorizando o exercício da cidadania e a preparação do
educando para a vida.
Desta forma, abriu-se a possibilidade de efetivar a participação dos educandos
como co-responsáveis de todo o processo educativo da unidade. Aliando-se, assim,
o desejo da organização mantenedora aos princípios da educação social, resultando
em prática inovadoras.
Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de toda a
gestão da unidade por meio de uma "Prefeitura Mirim"2, que anualmente, num
processo de eleições no qual cada sujeito (criança ou adulto) tem direito a um voto
nas urnas. Num processo similar às eleições brasileiras, cada participante da
unidade (educando, educador, pessoal de apoio) faz sua escolha entre aqueles que
foram lançados como candidatos pelo próprio grupo.
Os eleitos têm um mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e
acompanhados por meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de
propostas. Essas assembléias proporcionam aos educandos o desenvolvimento de
habilidades de comunicação, trabalho em grupo, relação interpessoal, decisão,
responsabilidade, entre outras não menos importantes.
Após três anos de desenvolvimento, esse projeto tornou-se uma das mais
importantes ferramentas pedagógicas utilizadas pelos educadores. Possui uma
intencionalidade bastante clara: a formação política e o desenvolvimento do espírito
de participação. A experiência democrática é vivenciada em plenitude, pois todos os
assuntos são decididos coletivamente pelo voto, de igual valor tanto para
educadores quanto para educandos.
Como fonte fomentadora podemos citar as experiências educativas que ocorrem em
algumas escolas não-diretivas estudadas, destacando, em particular, a Escola de
Summerhill e a Escola da Ponte.
Segundo Gandin, para que ocorram as transformações necessárias à educação é
preciso trabalhar com igualdade de importância em duas dimensões: "a produção
de idéias e a organização de ferramentas para torná-las realidade". Neste sentido,
o desenvolvimento deste projeto vem proporcionando a toda equipe de educadores
envolvida, um desenvolvimento harmonioso dessas duas dimensões, além de
potencializar a concretização dos princípios metodológicos do Programa Formação:
Da relação dialogal entre o educador e o educando. Uma relação democrática,
crítica e autêntica no diálogo e compromisso mútuo entre educador e educando,
eixo de sustentação do processo educativo, o método de trabalho e a própria
reflexão.
Da atividade planejada, na qual a ação é estratégia para se alcançar o resultado.
Da otimização dos recursos, onde todos os espaços e atividades constituem-se
momentos e oportunidades de formação integral do educando.
Do educador coletivo que compreende a aprendizagem como um processo que
ocorre na relação de todos os sujeitos envolvidos.
Acreditamos e buscamos um aprendizado construído de forma coletiva e interativa,
no qual a prática e a teoria caminhem de mãos dadas, incentivando o
desenvolvimento da solidariedade, da transparência, da co-responsabilidade, da
autonomia e a organização de estratégias e políticas que possibilitem ao educando
ser o sujeito de sua própria formação.
Como afirma Boff: "o ser humano é um ser de participação, um ator social, um
sujeito histórico e coletivo de construção de relações sociais o mais igualitárias,
justas, livres e fraternas possíveis dentro de determinadas condições histórico-
sociais".
Um dos pontos cruciais que mostram que a educação tradicional vai se
desintegrando no percurso do processo de universalização das oportunidades que
transformam as escolas em escolas populares de massa, é a perda da identidade,
tanto do professor que não se identifica com o aluno, com a escola e com a
comunidade onde trabalha, quanto do próprio aluno e da própria escola. Assim, o
projeto Participação Social e Formação Política privilegia o resgate da identidade
dos sujeitos nele envolvidos.
Cada educador tem claro no plano pessoal e institucional os objetivos a serem
alcançados e, por terem participado desde a fase embrionária do projeto,
compreendem a idéia-processo-resultado. Por conseguinte, percebem a relação
ação-resultado, o que mantém a motivação do projeto.
O objetivo central desta proposta é oportunizar aos educandos a vivência da
democracia e o exercício da cidadania, garantindo uma formação política e
educacional que os instrumentalize para transformar sua própria realidade.
E como objetivos específicos podemos destacar:
Promover a consciência para a participação social criando um sentido de
comunidade entre os integrantes do grupo e levando-os a perceberem que não
existirão resultados de mudanças sociais sem a participação da própria
comunidade.
Potencializar talentos, oportunizando o desenvolvimento de lideranças como
ferramenta para a formação da responsabilidade individual e coletiva.
Desenvolver a criatividade e a auto-estima dos educandos, possibilitando que
desenvolvam as assembléias gerais com a representação de todos os grupos,
podendo propor e assumir a realização de eventos culturais, programação de festas
e projetos de férias, organização do tempo livre (ócio-criativo) e exercício de
escolhas.
METODOLOGIA DA AÇÃO
O procedimento metodológico adotado neste trabalho é o de participação
democrática, utilizando-se de recursos práticos como a co-gestão do programa
Formação, num processo em que o educando é levado a desenvolver suas
habilidades pessoais de liderança, tomada de decisões, responsabilidade,
relacionamento interpessoal e coletivo, apropriando-se dessas competências de
forma a tornarem-se seres autônomos, críticos e reflexivos.
A metodologia do projeto utiliza-se ainda da observação e do registro das oficinas
pedagógicas desenvolvidas pelos vários educadores que atuam no Formação, das
assembléias de grupos e assembléias geral e do registro das reuniões pedagógicas
realizadas mensalmente com o grupo de educadores e coordenação, na qual há o
compartilhar do processo e da percepção sobre os avanços conseguidos pelos
educandos e educadores, refletindo sobre a própria prática num exercício de
reflexão da ação para a formação de uma consciência mais crítica do trabalho
educacional.
Falando especificamente da metodologia das assembléias, nos reportamos a Araújo
(2004) que destaca a Assembléia Escolar como um exercício do fazer a educação
democrática, ressaltando que aprender a dialogar, a construir colet ivamente as
regras de convívio e a fortalecer o protagonismo das pessoas e dos grupos sociais
na busca pela justiça social e pela construção da democracia são ações possíveis a
espaços nos quais se faz a educação. Este autor elucida-nos quanto à atuação das
assembléias na resolução de conflitos e as define como o momento institucional da
palavra e do diálogo, o momento de reunir-se o coletivo para tomar consciência,
refletir e transformar. A disciplina e a indisciplina deixam de ser obrigação somente
do educador e passam a ser questões compartilhadas por todo o grupo,
responsável pelas regras e pela cobrança de seu exercício.
Como parte fundamental do trabalho temos a realização da roda, que traz em seu
exercício contínuo, o sentido do pertencimento, pois todos se apropriam do espaço
oferecido, ouvindo e sendo ouvidos. O processo de ensino-aprendizagem vivenciado
na roda está voltado para a formação integral de cada indivíduo, ao vincular
educação e prática social, por meio da qual valores, atitudes e conhecimento
corroboram na formação integral de cada educando enquanto cidadão pleno,
levando-o a compreender criticamente o conceito embutido por trás de cada
proposta pedagógica apresentada.
Para Freire (1992), o caminho para superar as práticas incoerentes está na
superação da ideologia autoritária e elitista, o que demanda sintonia entre o fazer e
o falar da educação. Ao envolvermos os educandos na gestão do trabalho, podemos
exercitar a superação da autoridade buscando uma prática democrática. Para
Giacon (s/d) conviver constantemente com os opostos é um grande desafio
instaurado na cotidianidade da educação, e é neste embate, nesta luta que surge o
caminho para a liberdade e para uma prática que possa responder aos anseios dos
educandos.
A prática da "Prefeitura Mirim" oportuniza a todos vivenciarem momentos concretos
de formação política. Os educandos organizam-se em equipes às quais chamamos
de comissões. Cada equipe reúne-se para levantar propostas e estudar seus
possíveis candidatos, analisando o perfil daqueles que desejam concorrer aos
cargos eletivos. Ao final do período de organização do processo eleitoral temos a
apresentação dos candidatos de cada comissão que apresenta, sempre na roda,
seus planos de gestão e finalmente no dia das eleições todos vamos à urna (que é
eletrônica), para decidirmos quem será nosso Prefeito.
Uma vez eleito, cabe ao Prefeito nomear seus secretários e suplentes e então
temos a Prefeitura Mirim formada com os seguintes elementos:
Prefeito eleito nas urnas
Secretário (a) e suplente da educação e cultura
Secretário (a) e suplente de esporte e lazer
Secretário (a) e suplente de meio ambiente
Secretário (a) e suplente de saúde
RESULTADOS DA AÇÃO
Neste período de três anos podemos destacar alguns resultados que foram
alcançados e que foram transformadores na nossa prática educacional:
As Secretarias de saúde e esporte realizaram reuniões com Coordenadores da
Fundação Orsa (Sede), nas quais trataram assuntos relevantes ao bom andamento
das atividades do nosso projeto. Dessas reuniões resultou uma pesquisa realizada
pela Secretaria de Saúde sobre a alimentação oferecida aos educandos. Cada
educando pode opinar sobre o cardápio apontando o que gosta ou não, e sugerindo
novidades. Destacamos aqui a resposta dada por um educando à questão "que
sugestão você tem para melhorar a alimentação", e a resposta do menino de sete
anos foi: "de todos pegar a comida que gosta e não pegar o que não gosta para
não jogar fora". Essa resposta registra que o processo de participação está sendo
interiorizado por eles, levando-os a perceberem o direito de não quererem algo, de
não aceitarem imposições e levando-os a assumirem suas posições manifestando-
as sempre que surgem as oportunidades.
Logo no primeiro mandato, o Secretário de esportes entregou um memorando à
coordenação solicitando a compra de novas bolas de futebol e de vôlei. Ele fez
pesquisa de preços e apresentou junto à sua solicitação. Essa atitude do educando
nos leva a perceber que quando o sujeito sente-se respeitado e valorizado, é capaz
de tomar iniciativas.
Os novos colegas que chegam ao Formação Carapicuíba são recebidos pelos
próprios educandos que os acolhem, apresentam todas as dependências da
unidade, orientam sobre as regras de convivência e ensinam os procedimentos do
refeitório. Estas atitudes demonstram que o respeito recebido é o mesmo
transmitido ao outro e evidencia o sentido de pertencer, o prazer de apresentar ao
outro o que é nosso inserindo-o no nosso espaço, mostrando que a proposta de
reforçar o pertencimento vem sendo amplamente alcançada.
O grupo da Prefeitura Mirim do ano de 2005 criou um programa de rádio,
veiculado internamente. O Programa traz dicas de cidadania e é protagonizado
pelos próprios autores. Eles falam sobre direitos do cidadão, recursos da
comunidade, sempre numa linguagem que favoreça aos menores o entendimento.
Protagonismo de oficina lúdica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
realizada na Conferência Lúdica da Subprefeitura de Pinheiros/SP. Neste evento
tivemos um grande envolvimento dos jovens que planejaram a ação, preparam os
materiais e aplicaram a oficina para um grupo de trinta e dois estudantes da região.
Uma atividade realizada com muita alegria pelo grupo e que trouxe uma
experiência muito satisfatória para a educadora que mediou a ação.
Participação do grupo de educandos de 7 a 10 anos nas Palestras sobre saúde
oferecidas à comunidade e realizadas em espaço de parceiros, destacando-se as
intervenções e colocações adequadas feitas por alguns educandos em colaboração
aos palestrantes. Foi uma surpresa para o grupo de educadores perceberem que,
mesmo os menores, estão desenvolvendo a habilidade de saber intervir
contribuindo com a discussão coletiva, reproduzindo assim o exercício que acontece
em cada momento de roda e de assembléias.
Organização do Campeonato Esportivo de final de ano, com a proposta tendo sido
feita pelos educandos que também trouxeram contribuição em troféus e medalhas
para serem entregues aos vencedores. Uma vez mais, percebe-se a iniciativa, a
ousadia de propor e a responsabilidade pelo fazer.
Solicitação de reunião com a coordenação pedagógica do projeto, feito pelos
educandos maiores para contestar mudanças não discutidas antes de serem
anunciadas ao grupo geral. Esta tem sido uma das melhores atitudes que temos
percebido nos educandos, é a não aceitação da imposição de regras e normas não
construídas de forma democrática. Muitas vezes isso é difícil de ser conduzido, pois
temos determinações a serem seguidas o que requer um grande exercício por parte
da coordenação para não desrespeitar as regras de convivência elaboradas
coletivamente.
Participação ativa dos integrantes da Prefeitura Mirim na organização e realização
dos eventos culturais: "Saraus e Galeria", proporcionando o crescimento do número
de grupos de apresentações culturais entre os educandos. Esse protagonismo tem
possibilitado um crescimento visível de auto-estima e auto-desenvolvimento dos
educandos e a qualidade dos eventos tem sido diretamente proporcional à esse
crescimento.
Realização do I Fórum da Prefeitura Mirim, que reuniu alunos de diversas escolas
públicas de Carapicuíba, discutindo a questão "Como o Estatuto da Criança e do
Adolescente pode ser trabalho nas escolas?". O evento contou com a presença de
representantes do CMDCA de Carapicuíba, do RISOLIDARIO – USP, e de
professores de escolas públicas do município. Desse Fórum resultou uma série de
jogos que serão levados para as escolas públicas durante o ano de 2006 e surgiu a
proposta de levar a prefeitura mirim para o município e também a realização do
primeiro Fórum em nível municipal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse
existir. 6. ed. Campinas/SP: Papirus, 2003.
ARAÚJO, Ulisses F. Assembléia Escolar – Um caminho para resolução de
conflitos. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2004.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 37
ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
FREIRE, Paulo. A pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia
do oprimido. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
GANDIN, Danilo. Temas para um projeto político pedagógico. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1999.
NEILL, Alexander S. Liberdade em medo (Summerhill): radical transformação
na teoria e na prática da educação. 18. ed. São Paulo: Ibrasa, 1979.
WARSCHAUER, Cecília. A roda e o registro: uma parceria entre professor,
alunos e conhecimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
1 É mestranda em Educação Social pela Universidade Salesiana de São Paulo,
orientada pelo Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes. E-mail:
jparmigiani@fundacaoorsa.org.br
2 Todas as Unidades do Programa Formação da Fundação Orsa desenvolvem o
trabalho da Prefeitura Mirim. Cada equipe tem autonomia para desenvolver o
projeto de acordo com sua realidade local, sendo, portanto, autores de todo o
processo.
Direitos da Criança e do Adolescente e Políticas
Públicas
André VianaCustódio
1. Considerações Iniciais.
A compreensão dos elementos constitutivos da doutrina da proteção integral, como base
teórica legitimante e orientadora das políticas públicas para a infância no Brasil, exigem
apontamentos sobre os significados históricos atribuídos à infância na produção jurídica
brasileira pela doutrina da situação irregular.
Isso porque a inclusão dos Direitos da Criança e do Adolescente no campo dos novos
direitos ainda causa espanto. Ora, como a exclusão dos direitos humanos, de uma
parcela significativa da população brasileira, resistiu ao processo histórico sendo
reconhecidos como direitos fundamentais tão recentemente? Qual o significado
jurídico-político da afirmação do Direito da Criança e do Adolescente como ramo
jurídico autônomo e interdependente dos demais campos da ciência jurídica? Seria
realmente necessária uma mudança conceitual em relação à matéria? Quais as
concepções superadas em 1988 com a instituição do Direito da Criança e do
Adolescente? As respostas para todas essas questões estariam absolutamente
incompletas se desconsideradas a real dimensão das idéias de situação irregular
produzidas no processo histórico brasileiro.
Além disso, o interesse pela matéria decorre do descompasso profundo entre a lei e a
realidade brasileira. Daí, a necessidade de compreensão dos reais limites e perspectivas
do novo Direito da Criança e do Adolescente para que se transformem em instrumentos
provocadores de mudanças sociais positivas. Por isso, a compreensão destas questões
implica necessariamente na análise da transição desde as origens do Direito do Menor
até o estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. É
fundamentalmente essa transição que instaura o Direito da Criança e do Adolescente no
campo dos denominados novos direitos.
A compreensão deste processo requer uma perspectiva histórica. No entanto, é preciso
ressaltar que a descrição dos elementos históricos visa tão somente resgatar alguns
elementos para melhor compreensão do tema, deixando-se à margem qualquer
expectativa classificatória em torno dos aspectos históricos do tema. Sob este aspecto,
PINHEIRO observou:
“[...] quatro representações sociais mais recorrentes sobre a criança e o adolescente:
objeto de proteção social; objeto de controle e de disciplinamento; objeto de repressão
social; e sujeitos de direitos. Cada uma delas emerge em cenário sócio-histórico
específico, respectivamente: Brasil-Colônia; início do Brasil-República; meados do
século XX; e décadas de 70 e 80 do mesmo século. À medida que vão emergindo e se
consolidando, verifica-se a coexistência de duas ou mais delas, marcada pelo embate
simbólico. (2004, p. 345)”
Em visão semelhante entende-se que a percepção da infância no processo histórico
brasileiro envolve retratos do período colonial e imperial, bem como, elementos
constituídos em diversos momentos, arbitrariamente definidos e propostos como:
Período Pré-Republicano (1530-1889) Primeira República (1889-1927), Período do
Direito do Menor (1927-1964), Período da Política Nacional do Bem Estar do Menor
(1964-1979), Período da Situação Irregular (1979-1988) e Período da Proteção Integral
de 1988 até os dias atuais.
As idéias da situação irregular e do “menorismo” dominaram a maior parte da história
brasileira, pois apesar da “descoberta da infância” (ARIES, 1981), o Brasil continuou
convivendo com idéias segregacionistas, tais como incapacidade e discernimento
(VERONESE, 1999). Segundo MENDEZ: “No momento em que a infância é
descoberta, ela começa a ser percebida por aquilo que não pode, por aquilo que não tem,
por aquilo que não sabe, por aquilo que não é capaz. Aparece uma definição negativa de
criança.” (1994) Essa definição produziu uma política e uma normatividade definida
pela orientação dos princípios menoristas, que estabeleceu um modelo que perdurou por
quase cinco séculos no Brasil e, fundamentalmente, ainda resiste no imaginário cultural
e nas práticas institucionais na atualidade. Para compreender os meandros dessa
concepção é preciso percorrer alguns momentos históricos decisivos para o tema.
2. As raízes da Doutrina do Direito do Menor.
No período denominado como Pré-Republicano, ou seja, até a instalação da República
em 1889, o Brasil manteve exclusivamente um modelo caritativo-assistencial de atenção
à infância representada por ações em torno do abandono, da exposição e do
enjeitamento de crianças que, em regra, tinham como destino o acolhimento por
famílias substitutas e a institucionalização nas Rodas dos Expostos.
As Rodas criadas conforme o modelo de acolhimento infantil, em vigor na Europa
durante o período colonial brasileiro, foi reproduzido e disseminado em larga escala por
aqui. Provavelmente, foi um dos modelos assistenciais que mais perdurou na história
brasileira, pois a primeira Roda dos Expostos foi criada em 1750 e a última encerrada
em 1950, ou seja, durante duzentos anos consolidou-se como o principal modelo de
acolhimento infantil. (MARCÍLIO, 1999)
No campo da educação, as práticas pedagógicas instituídas pelos jesuítas no século XVI
representadas pelo binômio amor-repressão, que aliou a educação à imposição de
castigos corporais, também resistiu ao longo dos séculos (CHAMBOULEYRON, 1999,
SCHUELER, 2000). Embora, no século XIX as escolas de primeiras letras tenham se
ramificado pelas comunidades brasileiras, a real condição da infância era a da absoluta
exclusão educacional, com exceção, das crianças nobres que desde esta época recebiam
cuidados diferenciados em um modelo educacional doméstico extremamente
diversificado.
A escravidão também deixou sua marca na história da infância brasileira, pois mesmo
no século XIX com os avanços no campo das ciências e a lenta incorporação dos ideais
liberais europeus, a maior parte das crianças afro-descendentes foi subjugada à condição
de absoluta exploração, muitas vezes tratadas como pequenos animaizinhos como
retrata a historiografia referente ao período. (GÓES, 1999)
Até o final do período imperial brasileiro, praticamente inexistiu qualquer interesse,
garantia de direito e proteção jurídica à infância. Apesar dessa condição, é possível
encontrar nas Decisões do Império mulheres reivindicando a liberdade de seus filhos e a
devolução de meninos e meninas subtraídos pelas Rodas dos Expostos.
Um interesse jurídico especial pela infância surge com a proclamação da República em
1889, quando em decorrência da abolição da escravidão, meninos e meninas
empobrecidos circulam pelos centros urbanos das pequenas cidades procurando
alternativas de sobrevivência e “perturbam” a tranqüilidade das elites locais. É
principalmente a partir destas circunstâncias que o sistema de controle penal é colocado
em ação visando estabelecer um controle jurídico específico sobre a infância.
Embora, o Código Criminal do Império, de 1830, já tratasse da menoridade como uma
categoria jurídica; foi a partir da aprovação do Código Penal da República que a
repressão assumiu um caráter político claro em torno do que se desejava enquanto
imagem da infância brasileira, ou seja, aquela consagrada como o futuro do país
baseado nas concepções básicas do positivismo. WOLKMER observa que
“A supremacia do positivismo jurídico nacional constrói-se no contexto progressivo de
uma ideologização representada e promovida pelos dois maiores pólos de ensino do
saber jurídico: a Escola de Recife e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (São
Paulo). Produto de concepções consideradas avançadas na Europa, o apelo cientificista
do positivismo surgia como discurso hegemônico e uniforme, identificado com os
interesses emergentes da burguesia urbana liberal e com as novas aspirações normativas
da formação sócio-econômica brasileira. (2000, p. 130.)”
As idéias positivistas aliadas ao movimento higienista e a todo um novo aparato jurídico
foi responsável pela produção do “menor” enquanto objeto normativo, segundo o qual o
Estado “visando garantir o futuro do país” deveria tomar medidas especializadas.
(VIEIRA, 2005, p. 15)
É neste contexto que a criminalização, mesmo por meio de contravenções como a
vadiagem e a capoeira, tornaram-se instrumentos poderosos de controle social das
classes populares. Medidas como a criação do Instituto Disciplinar em 1902 para
“menores delinqüentes” e a ampliação da aprendizagem pelas instituições militares
serão medidas de caráter simbólico na nova estrutura institucional que se estabelecia na
transição dos séculos XIX-XX.
Nos primeiros anos do século XX são criadas diversas iniciativas públicas e privadas de
atenção à criança, seja pela influência européia decorrente da descoberta da infância ou
ainda pela própria necessidade do Estado em oferecer respostas a uma constante pressão
social de uma enorme massa de excluídos considerados como obstáculos reais ao
ideário positivista da ordem e do progresso. Neste contexto, várias iniciativas isoladas
procuravam oferecer medidas de caráter filantrópico e assistencial às crianças já nesta
época submetidas ao estigma da “menoridade”.
A produção jurídica no período da Primeira República também foi muito intensa com
uma vasta produção, geralmente de caráter meramente simbólico, mas que tratavam de
temas como a assistência à infância desvalida, o controle do espaço público, a
institucionalização de crianças, a regulamentação do trabalho, da aprendizagem e da
educação em patronatos agrícolas, o abandono e a delinqüência.[1]
É preciso considerar também que o modelo federativo republicano também deixava aos
estados as responsabilidades de políticas neste campo, que eram tratadas de acordo com
as conveniências locais, mas que indistintamente tiveram como elemento basilar o
controle judicial da menoridade.
3. A Doutrina do Direito do Menor.
A Doutrina do Direito do Menor teria sua primeira versão organizada com a proposta do
primeiro Código de Menores no Brasil, iniciado com a edição do Decreto nº 5.083, de
01 de dezembro de 1926 e manifestando o interesse governamental na elaboração de
uma legislação que consolidasse toda a produção normativa referente à matéria.
Para desempenhar esta função, o então Presidente Washington Luís, atribuiu ao Juiz de
Menores do Rio de Janeiro José Candido Albuquerque de Mello Mattos, conhecido
como o primeiro juiz de menores do Brasil e por sua preocupação com a menoridade, a
responsabilidade de sistematizar uma proposta. Como resultado, em 12 de outubro de
1927 seria aprovado o primeiro Código de Menores da América Latina. (BRASIL,
1927) Este Código consolidou toda a legislação produzida desde a proclamação da
república. De acordo com VERONESE,
“O Código de Menores veio alterar e substituir concepções obsoletas como as de
discernimento, culpabilidade, penalidade, responsabilidade, pátrio poder, passando a
assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional. Abandonou-se a
postura anterior de reprimir e punir e passou-se a priorizar, como questão básica, o
regenerar e educar. Desse modo, chegou-se à conclusão de que questões relativas à
infância e à adolescência devem ser abordadas fora da perspectiva criminal, ou seja,
fora do Código Penal. (1999, p. 27-28)”
O Código de Menores brasileiro seria representativo das visões em vigor na Europa
neste período, segundo as quais era necessário o estabelecimento de práticas psico-
pedagógicas, geralmente carregadas de um forte conteúdo moralizador, produzindo e
reproduzindo uma visão discriminatória e elitista, que desconsiderou as condições
econômicas como fatores importantes na condição de exclusão. Para supostamente
resolver os incômodos da delinqüência, do abandono e da ociosidade apresentava
propostas focalizadas nas conseqüências dos problemas sociais omitindo-se em relação
à absoluta condição de exploração econômica.
Os Institutos e estabelecimentos criados para o internamento dos considerados como
menores eram motivos de constantes críticas por parte das autoridades, mas o modelo
resistiu até o ano de 1941, quando foi criado a Serviço de Assistência a Menores, com a
finalidade de prestar a proteção social aos menores institucionalizados. (BRASIL, 1941)
A criação do Serviço de Assistência aos Menores demarca uma mudança importante
com a inclusão de uma política de assistência social nos estabelecimentos oficiais que
até então estavam sob a jurisdição dos juizados de menores. A principal característica da
política proposta pelo Código de Menores de 1927 era a institucionalização como via
necessária para a solução dos problemas considerados como essenciais à organização
social.
De todo modo, ao longo de todo o período foi freqüente o reconhecimento da
incapacidade do Estado em prover uma política assistencial mesmo mínima, mas que
não deixava de exercer o papel de repressão, controle e vigilância aos grupos
estigmatizados pelo ideário elitista. Além disso, estimulou a inserção de crianças no
trabalho pelos artifícios da aprendizagem e da profissionalização, pois se interessava
mais pelos interesses econômicos do que qualquer outra necessidade social.
Até 1964, o modelo jurídico do Direito do Menor, que na verdade foi reduzido ao
direito de ação estatal contra o menor, subsistiu às diversas transformações do Estado
brasileiro praticamente inalterado, convivendo com pequenas experiências democráticas
como nas Constituições de 1934 e de 1946, e também com modelos autoritários como
do Estado Novo em 1937. No entanto, não se pode desconsiderar que por detrás das
concepções menoristas estão as idéias fundamentais do pensamento autoritário. O
pensamento autoritário no Brasil teve ênfase principalmente no período compreendido
entre 1930 e 1945, sendo resultado da produção política e teórica de intelectuais tais
como Francisco Campos, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Alceu Amoroso Lima e
Plínio Salgado. (MEDEIROS, 1978)
Contudo, a transposição desse modelo centrado no controle jurisdicional sobre a
menoridade para o controle repressivo assistencial aconteceria a partir do golpe militar
em 1964 com o estabelecimento da Política Nacional do Bem-Estar do Menor e a
correspondente criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor.
4. A Política do Bem-Estar do Menor.
A Fundação Nacional do Bem Estar do Menor foi criada pela Lei nº 4.513, em 01 de
dezembro de 1964, integrando, a partir daí, o Sistema Nacional de Previdência e
Assistência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Sua
personalidade jurídica era a de entidade de direito privado o que garantia a autonomia
técnica, financeira e administrativa, mas seus recursos estavam vinculados ao Fundo de
Previdência e Assistência Social, de qualquer forma gozava das mesmas “regalias e
privilégios” das autarquias federais. A FUNABEM estava sediada em Brasília e tinha
por finalidade promover a execução da Política Nacional do Bem Estar do Menor
mediante a orientação, coordenação e fiscalização das entidades executoras da política
nacional.
A Política Nacional do Bem-Estar do Menor foi constituída com base nos princípios da
doutrina da segurança nacional oriunda da ideologia da Escola Superior de Guerra.
Declarava como objetivo o atendimento das necessidades “básicas do menor atingido
por processo de marginalização social”.
Como se pode observar, a idéia de irregularidade e segmentação já se fazia presente em
tal doutrina na medida em que as políticas públicas eram orientadas apenas para parcela
estigmatizada com a marca da marginalização social. Além disso, o compromisso do
Estado era mínimo, pois se reduzia ao oferecimento das necessidades básicas e sem
qualquer comprometimento com as necessidades mais amplas de desenvolvimento
integral.
De igual modo, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor também estabeleceu
como objetivo de atuação o atendimento às necessidades “básicas do menor atingido por
processo de marginalização social”, ou seja, reconhecia as necessidades sociais pela via
do avesso, pois além de manter o caráter discriminatório, produzia a atuação estatal pela
via de uma estigmatização na qual o a marginalização era o pressuposto para o
oferecimento de medidas públicas, condições características do ideário repressivo da
época.
Quando se afirma que suas diretrizes estavam orientadas para a observação dos
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, é preciso notar que naquele
momento ainda não havia sequer uma convenção internacional que amparasse os
direitos da criança e do adolescente, mas que as ideologias das Escolas Superiores de
Guerra, em especial a americana e a brasileira, estavam em franca ascensão, sendo, pois
inevitável compreender que eram estas propostas às quais se vinculavam todo seu
conteúdo programático.
A prioridade amparada pelas diretrizes da fundação limitava-se a integração do “menor”
na comunidade, prestada mediante a assistência à família, e medidas muito próximas da
tradição excludente das políticas brasileiras, tais como o incentivo à adoção, colocação
familiar em lares substitutos e a institucionalização de “programas tendentes a corrigir
as causas de desintegração.” Ora, a romântica visão que os problemas sociais seriam
resolvidos por meio do assistencialismo e da propagação das visões deterministas de
famílias estruturadas.
Se por um lado a idéia de família estruturada povoava o imaginário do bem-estar do
menor neste período, na outra face da política estava a institucionalização como
reprodutora do ideal de família. O art. 8º, III, do Estatuto da Funabem previa em suas
diretrizes que deveria:
“[...] incrementar a criação de instituições para menores que possuam características
aproximadas das que informam a vida familiar e a adaptação, a esse objetivo, das
entidades existentes, de modo que somente se venha a admitir internamento de menor à
falta de instituições desse tipo ou por determinação judicial.”
Embora a prática proposta fosse a do controle centralizado pelo Estado, o regime tinha
claro que a política deveria ter certa articulação com as instituições locais, por isso,
considerada a necessidade de atender as necessidades de cada região de acordo com
suas peculiaridades, incentivando as iniciativas locais, públicas e privadas, visando
dinamizar a “autopromoção” das comunidades, conforme art. 8º, IV do referido
Estatuto.
O discurso da autopromoção das comunidades foi resposta à constante pressão pela
implantação de um modelo de atendimento assistencial. Como o Estado já havia
demonstrado, pelo menos desde a década de quarenta, seu absoluto desinteresse em
prover o devido atendimento, mas ao mesmo tempo, interessava-se em manter o
controle absoluto, a solução foi conciliar o discurso da institucionalização com a
autopromoção comunitária, que em regra significou o controle regulador sobre as
entidades sociais e a atuação estatal no campo da repressão, com o respaldo das
autoridades judiciárias.
É neste contexto, que a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor caracterizava-se
como típica instituição de controle centralizado, sendo vedada a criação ou manutenção
de órgãos executivos voltados ao atendimento, reduzindo-se ao treinamento e
experimentação de técnicas e metidos de atendimento. Por isso, estabeleceu a
competência para:
I - realizar estudos, inquéritos e pesquisas, procedendo ao levantamento nacional do
problema do menor; II - promover a articulação das atividades de entidades públicas e
privadas dedicadas à execução da política nacional do bem-estar do menor; III -
propiciar a formação, o treinamento e o aperfeiçoamento de pessoal técnico e auxiliar,
inclusive pertencente a outras instituições públicas ou particulares, necessário à
consecução de seus objetivos; IV - promover cursos, seminários e congressos, com o
fim de examinar questões de interesse comum das autoridades administrativas e
judiciárias relacionadas com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, em todas as
Unidades da Federação; V - mobilizar a opinião pública no sentido da indispensável
participação de toda a comunidade na solução do problema do menor; VI - prestar
assistência técnica ou financeira aos Estados, Municípios e entidades públicas ou
privadas para o desenvolvimento de programas de interesse da política nacional do bem-
estar do menor; VII - fiscalizar a execução dos convênios, acordos e contratos de
prestação de serviço celebrados com entidades públicas e privadas.
Todas essas ações tinham como fundamento elementar o conceito básico de “menor” e a
perfeita correlação com a idéia de problema, daí ao longo de todo esse período o foco de
atenção institucional submeter-se à expressão: o problema do menor. Pura subjetivação,
amparada por uma normatividade, que retirava as responsabilidades da família, da
sociedade e do Estado como focos centrais dos problemas propostos. Assim, o problema
do menor não era o problema de um país autoritário e capitalista, que produzia e
reproduzia a exclusão social. Nada mais fácil do que transferir a responsabilidade à
própria vítima.
É preciso dizer que a administração da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor era
exercida por um Presidente nomeado pelo Presidente da República, mas também
contava com a participação de outros órgãos governamentais e não-governamentais,
motivo pelo qual não se pode atribuir a visão centralizada do modelo apenas aos
governos de plantão, ainda que sejam os maiores responsáveis, houve também entidades
que contribuíram para a legitimação daquele modelo.
A administração da FUNABEM era composta por representantes de órgãos como o
Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Ministério da Educação e Cultura,
Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde, Ministério da Previdência e Assistência
Social, bem como, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais, Conselho Federal dos Assistentes Sociais, Fundação
Legião Brasileira de Assistência, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial,
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil, Conferência dos Religiosos do Brasil, Confederação Evangélica do Brasil,
Confederação Israelita do Brasil, Federação Espírita Brasileira e Federação das
Bandeirantes dos Brasil.
Como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor estava submetida ao Ministério da
Previdência e Assistência Social, cabia ao Ministro nomear e destituir os representantes
da sociedade civil bem como supervisionar as ações do Conselho de Administração. O
controle sobre as entidades era estabelecido de forma centralizada e com fortes
vínculos, pois as entidades que recebiam dotações compulsórias, subvenções ou auxílios
de qualquer natureza, por parte dos poderes públicos, para a prestação de assistência ao
menor, eram obrigadas a planejar suas atividades com observância da política nacional
do bem-estar do menor e a submeter à FUNABEM seus planos de trabalho e relatórios
circunstanciados dos serviços executados.
No ano de 1978, a Fundação Nacional do Bem-Estar e sua respectiva política já era alvo
de críticas contundentes sobre o modelo adotado, inclusive de vários organismos
internacionais. Como resposta a essa condição, o Governo brasileiro cria, em 11 de
dezembro de 1978, a Comissão Nacional do Ano Internacional da Criança. O resultado
dos trabalhos da referida comissão seria a base para a declaração formal da Doutrina do
Menor em Situação Irregular no Brasil, que desde 1927 estabelecia-se como prática
corrente, que precisava de nova roupagem para subsistir às críticas.
5. A Doutrina do Menor em Situação Irregular.
O Código de Menores do regime militar, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979,
proposto pela Associação Brasileira de Juízes de Menores, foi aprovado nas
Comemorações relativas ao Ano Internacional da Criança da Organização das Nações
Unidas (ONU). A nova lei institui a denominada doutrina da situação irregular no
Brasil, da qual os maiores expoentes são os juristas Allyrio Cavallieri e Ubaldino
Calvento. A proposta tem origem nas doutrinas da Organização dos Estados
Americanos (OEA) e do Instituto Interamericano del Niño. Nesta época já havia clareza
sobre as diferentes concepções em torno do tema, pois
“No I Congresso Ibero-Americano de Juízes de Menores, realizado neste ano [1979] na
Nicarágua, juristas do porte de JOSÉ MANOEL COELHO, JOSÉ PEDRO ACHARD,
RAFAEL SAJÓN, PEDRO DAVID e LUIZ MENDIZÁBAL OSES aceitaram a
colocação feita por UBALDINO CALVENTO, civilista argentino e assessor jurídico da
OEA, relativa à existência de três escolas em torno do Direito do Menor. Aqui estão
elas:
1ª – Doutrina da proteção integral – partindo dos direitos das crianças, reconhecidos
pela ONU, a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor
idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação,
recreação, profissionalização etc.
2ª – Doutrina do Direito Penal do Menor – somente a partir do momento em que o
menor pratique um ato de delinqüência interessa ao direito.
3º - Doutrina intermediária da situação irregular – os menores são sujeitos de direito
quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente. É a doutrina
brasileira.” (CAVALLYERI apud ALENCAR, Ana, LOPES, Carlos Alberto, 1982, p.
85)
A visão da situação irregular proposta no Código de Menores de 1979, desde a sua
concepção foi objeto de profundas críticas no Brasil. NOGUEIRA lembra:
“Quando foi discutido o Código de Menores, o Senador José Londoso, em parecer sobre
o Projeto, de autoria do Senador Nelson Carneiro, salientava que: ‘dentro desse
contexto, o menor deve ser considerado como vítima de uma sociedade de consumo,
desumana e muitas vezes cruel, e como tal deve ser tratado e não punido, preparado
profissionalmente e não marcado pelo rótulo fácil de infrator, pois foi a própria
sociedade que infringiu as regras mínimas que deveriam ser oferecidas ai ser humano
quando nasce, não podendo, depois, agir com verdadeiro rigor penal contra um menor,
na maioria das vezes subproduto de uma situação social anômala. Se o menor é vítima,
deverá sempre receber medidas inspiradas na pedagogia corretiva [...]’” (1998, p. 4).
Em que pese uma leve percepção em torno das contradições da própria proposta, pode-
se observar a permanência dos mitos em torno da profissionalização redentora, das
perspectivas limitantes de compreensão do menor como infrator ou subproduto, e da
insistência em relacionar à idéia de que a exclusão social consistia em uma situação
social anômala, quando já poderia ser verificada que a regra geral no modelo capitalista
brasileiro era e sempre foi a total exclusão.
Assim, o Código de Menores foi aprovado com a proposta de estabelecer o
disciplinamento jurídico sobre “assistência, proteção e vigilância a menores”
considerando-os como aqueles até 18 anos de idade caracterizados como em situação
irregular e, excepcionalmente, até os 21 anos nos casos previstos na própria lei. É de se
anotar que
“Ainda na fase de estudos para a elaboração de um novo Código de Menores, a Juiz e
Professor ALLYRIO CAVALLIERI propôs ‘a eliminação das denominações
abandonado, delinqüente, transviado, infrator, exposto etc. para a rotulação de
menores’, sugerindo ‘a adoção da expressão situação irregular para todos os casos em
que for competente o Juiz de Menores ou aplicável o Direito do Menor.” (ALENCAR,
LOPES, 1982)
De qualquer forma, a condição de situação irregular foi expressamente classificada a
partir dos mesmos estigmas. Nesse sentido, o art. 2º da lei determinava expressamente
os critérios para a determinação da situação irregular:
“Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória,
ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou
responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente
contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
Parágrafo Único. Entende-se por responsável àquele que, não sendo pai ou mãe, exerce,
a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz
em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.”
A Doutrina do Menor em Situação Irregular não representou real ruptura em relação ao
modelo anterior. Ao contrário foi uma configuração jurídica precisa do se almejada
desde o golpe de 1964. Nesse sentido o art. 4º do Código é expresso ao recomendar que
a aplicação da lei deva considerar “I - as diretrizes da Política Nacional do Bem Estar do
Menor, definidas pela legislação pertinente.”
As entidades consideradas como de assistência e proteção ao menor eram classificadas
entre àquelas criadas pelo poder público e as entidades particulares. As entidades
criadas pelo poder público para assistência ou promoção continuaram submetidas às
diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que propunham a implantação
de centros especializados e destinados à recepção, triagem, observação e permanência
dos considerados menores.
A inserção no sistema incluía estudo de caso nos centros de recepção, triagem e
observação que deveria ser realizado num prazo médio de três meses considerando-se os
aspectos sociais, médicos e psicopedagógicos, ou seja, puro controle disciplinar. Nos
centros de permanência, a escolarização e a profissionalização eram obrigatórias, sendo
oferecidas em regra uma escolarização de péssima qualidade e uma precária
profissionalização.
O sistema de identificação era despersonalizante com anotações sobre as datas,
circunstâncias dos motivos que provocaram a institucionalização e mantidas todas as
informações controladas em fichas que tornassem possíveis o controle individualizado e
absoluto dos corpos.
O controle do Estado sobre as entidades particulares também continuou absoluta, pois
precisavam de registro nos órgãos estaduais responsáveis pelos programas para poderem
funcionar, sendo comunicados à autoridade judiciária local e à Fundação Nacional do
Bem-Estar do Menor. As entidades que não estivessem adequadas às diretrizes da
Política Nacional do Bem-Estar do Menor tinham seus registros negados, com base no
Art. 10 do Código de Menores.
Enfim, a doutrina da situação irregular caracterizou-se pela imposição de um modelo
que submetia a criança à condição de objeto, estigmatizando-as como em situação
irregular, violando e restringindo seus direitos mais elementares, geralmente reduzindo-
as a condição de incapazes, aonde vigorava uma prática não participativa, autoritária e
repressiva representadas pela centralização das políticas públicas.
Houve um controle social por parte de um Poder Judiciário onipotente e assessorado
pelas práticas policiais mais violentas, no qual a institucionalização era a regra para o
menino e a menina, simplesmente porque nasceram pobres e destituídos das condições
básicas de exercer seus poderes políticos e ter uma vida digna como deveria ser o direito
de toda a criança. Sobre este tema VIEIRA destaca:
Impressionante como a ideologia da Ditadura Militar caminhava na contramão da
história, inclusive quanto à regulação normativa das condições de vida da população
infanto-juvenil. Em 1979, mesmo ano em que se iniciavam as discussões internacionais
acerca da necessidade de se repensar a condição da infância no mundo (discussões estas
que culminaram com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança
em 1989), o Brasil editava seu novo Código de Menores baseado na Doutrina da
Situação Irregular. Enquanto o mundo começava a compreender que a criança não é
mero objeto, mas pessoa que tem direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, a
legislação brasileira perpetuava a visão de que crianças e adolescentes se igualavam a
objetos sem autonomia, cujos destinos seriam traçados pelos verdadeiros sujeitos de
direitos, isto é, pelos adultos. (2005, p. 22)
Resta destacar que, invariavelmente na análise da produção do Direito do Menor e da
Doutrina da Situação Irregular no Brasil, alguns aspectos comuns são observados como
característicos de todo o período, tais como: 01) visão estigmatizada da infância pela
produção do conceito de “menoridade” ou simplesmente pelo conceito de “menor”; 02)
tratamento da “menoridade” como objeto de políticas de controle social; 03) atuação
estatal direcionada para a violação e restrição dos direitos humanos; 04) (re)produção da
condições de exclusão, com base em critérios individuais, econômicos, políticos,
sociais, jurídicos que acentuavam as práticas de discriminação racial e de gênero; 05)
definição da infância pelo o que ela não tem e não é, ou seja, a afirmação da teoria
jurídica das incapacidades; 06) gestão das políticas governamentais de forma
centralizada, autoritária, não-participativa; 07) controle centralizado e repressivo das
ações associativas e dos movimentos sociais; 08) atuação dos poderes de Estado,
principalmente Executivo e Judiciário, justificado pelas condições idealizadas de risco
ou perigo; 09) responsabilização individual do menino e da menina à condição de
irregularidade; 10) atuação do Judiciário no campo da gestão direta das ações sociais
produzindo o juiz-assistente-social e o juiz-policial; 11) garantias oferecidas ao Estado e
a Sociedade contra o menino e a menina; 12) institucionalização como prática
dominante e freqüente.
A constatação deste quadro provocaria significativas resistências às concepções
vigentes e com o fortalecimento dos movimentos sociais diversos setores começavam a
exigir mudanças no início da década de oitenta, pois não era mais admissível conviver
com o velho modelo.
Tais práticas foram favorecidas, à época, por uma conjunção de fatores: as precárias
condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes; as contundentes críticas
às diretrizes e ao conjunto de práticas governamentais de assistência; o acentuar-se das
discussões sobre direitos da criança e do adolescente, formalizadas na CNUDC; o
contexto sociopolítico propício à reivindicação e reconhecimento legal de direitos; e a
articulação de setores da sociedade civil, concretizada no movimento em defesa da
criança e do adolescente. Iniciativas de afirmação de direitos também emergiram no
espaço governamental. É exemplo a campanha Criança e Constituinte, desencadeada no
Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1986, presente na ANC, através das
possibilidades de participação de que dispunham outros atores sociais, além dos
Parlamentares. (PINHEIRO, 2004, p. 346)
Era o início de um complexo processo de transição que resultaria na superação do
Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e consequentemente, na
substituição correspondente da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da
Proteção Integral.
Com segurança, pode-se afirmar que a transição da “doutrina da situação irregular do
menor” para a “doutrina da proteção integral” estabeleceu-se gradativamente a partir da
consolidação dessas práticas e experiências ocorridas durante toda a década de oitenta,
com ênfase no processo de elaboração da nova Constituição, que, posteriormente, seria
o elemento constitutivo da afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes no Brasil.
6. A afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.
6.1 Os fundamentos da doutrina da proteção integral.
Para encontrar as bases da Doutrina da Proteção Integral das Nações é necessário
resgatar a Declaração de Genebra, de 26 de setembro de 1924. A Declaração reconhece
pela primeira vez em um documento internacional os direitos da criança. Este
importante documento foi proposto pelo Conselho da União Internacional de Proteção à
Infância (Save the Children International) e estabeleceu: 01) a proteção à criança,
independente de qualquer discriminação de raça, nacionalidade ou crença, 02) o dever
de auxílio à criança com respeito à integridade da família, 03) o oferecimento de
condições de desenvolvimento de maneira normal com condições materiais, morais e
espirituais, 04) que a criança deve ser alimentada, tratada, auxiliada e reeducada e 05) a
primazia de receber socorro em quaisquer circunstâncias. Como síntese, pode-se afirmar
que a declaração afirmava concepções oriundas das teorias positivistas e higienistas nos
campos da educação e saúde, como se pode notar com os conceitos de tratamento e
normalidade.
Em 1948, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Esta declaração afirmou direitos de caráter civil e
político, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais de todos os seres
humanos, envolvendo, portanto, as crianças. No seu artigo 25 estabeleceu cuidados e
assistência especiais à maternidade e à infância. Para as crianças reconheceu uma
proteção social, independentemente se nascidas dentro ou fora do matrimônio.
Estas transformações provocaram a edição da Declaração Universal dos Direitos da
Criança, aprovada por unanimidade na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de
novembro de 1959, que traz em seu conteúdo, o primeiro conjunto de valores da
Doutrina da Proteção Integral. A Doutrina da Proteção Integral foi constituída por
princípios fundamentais reconhecidos para todas as crianças, tais como: 01) o
reconhecimento de direitos sem distinção ou discriminação; 02) a proteção especial; 03)
a identidade e a nacionalidade; 04) a proteção à saúde e à maternidade, 05) à
alimentação, à habitação, à recreação e à assistência médica; 06) ao tratamento e aos
cuidados especiais à criança incapacitada; 07) ao desenvolvimento sadio e harmonioso
com amor e compreensão com a proteção da família, da sociedade e das autoridades
públicas; 08) à educação; 09) o melhor interesse da criança; 10) a primazia de socorro e
proteção; 09) a proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração
e 10) a proteção contra atos de discriminações raciais, religiosas ou de qualquer outra
natureza.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança afirma os direitos humanos, com base
no princípio da dignidade e o valor do ser humano, visando atingir melhores condições
de vida para a população infantil, mediante o exercício de direitos e liberdades,
protegidos contra qualquer espécie de discriminação, reconhecendo a condição peculiar
de pessoa em processo de desenvolvimento, que necessita de cuidados e direitos
especiais, antes e depois do nascimento, visando o bem-estar da criança, a quem a
humanidade deve o melhor de seus esforços.
No entanto, o marco discursivo das declarações somente ganhará força a partir
instituição de um Grupo de Trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ONU, em
1979, com a finalidade de iniciar os estudos visando à construção de uma proposta de
Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O grupo de trabalho desenvolveu
suas atividades durante toda a década de oitenta. Neste momento, acontecia o processo
de abertura democrática no Brasil e a discussão de uma nova Constituição.
Em 1987, a Emenda Popular denominada Criança Prioridade Absoluta, com milhares de
assinaturas, proposta por organizações não-governamentais, foi adotada pela
Assembléia Nacional Constituinte. No ano seguinte, promulgou o novo texto, e adotou a
Doutrina da Proteção Integral na Constituição da República Federativa do Brasil, em
seu art. 227, do seguinte modo:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, Constituição,
1988)
No ano seguinte, o Grupo de Trabalho da Comissão dos Direitos Humanos da ONU
encerra suas atividades e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança é aprovada
pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.
O Brasil ratificou a convenção logo após, em 21 de novembro de 1990 e incorporou
definitivamente a Doutrina da Proteção Integral no corpo normativo brasileiro. Para o
educador Antônio Carlos Gomes da Costa:
“Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade
especial de respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo
da infância e da juventude, como portadora de continuidade do seu povo e da espécie e
o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes
merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual
deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.”
(COSTA, 1992, p. 19)
A Doutrina da Proteção Integral foi o fundamento basilar para a consolidação de um
novo ramo do direito no Brasil: o Direito da Criança e do Adolescente. Segundo
AMARAL E SILVA, a partir daí é:
“Muito mais adequado falar-se em Direito da Criança e do Adolescente, um novo ramo
mais científico, mais jurídico, dirigido a todas as crianças e adolescentes, com
denominação correspondente ao conteúdo da matéria por ele tratada. A nova doutrina
evoluiu ‘da situação irregular do menor’ para a situação irregular da família, da
sociedade e do Estado, preconizando novas medidas, também para os responsáveis
ativos da situação irregular.” (AMARAL E SILVA, 2005)
A construção do Direito da Criança e do Adolescente proporcionou significativo
processo de reordenamento institucional com reflexos de grande importância, tais como:
01) a desjudicialização das práticas de caráter administrativo; 02) mudanças de
conteúdo, método e gestão; 03) a integração dos princípios constitucionais da
descentralização político-administrativa e da democratização na efetivação dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente e 04) o reconhecimento do status de sujeito de
direitos para toda a infância. Esse reconhecimento da criança e do adolescente como
sujeitos de direitos garantiu, pelo menos no plano formal, o irrestrito, amplo e
privilegiado acesso à Justiça. (ROCHA & PEREIRA, 2005)
O art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil ao reconhecer crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos não se reduz a uma declaração meramente
formal; mas envolve uma perspectiva mais ampla ao substituir a menoridade enquanto
categoria conceitual.
No Brasil, a Doutrina da Situação Irregular do Menor consolidou uma prática
discriminatória e estigmatizante da população empobrecida, submetida ao controle
repressivo, através de um sistema centralizado e fundamentado na velha Doutrina da
Segurança Nacional, que vitimizou a população brasileira nos anos da ditadura. Com o
processo de abertura democrática, a proposta menorista reprodutora das desigualdades
sociais brasileiras, já não encontrava mais fundamentos.
A própria expressão “menor”, que ao longo de século XX, foi habitualmente
relacionada à condição de abandono ou delinqüência serviu, principalmente, para
distinções arbitrárias entre crianças favorecidas e desfavorecidas. Isso provocou uma
dualidade, na medida em que às crianças eram reconhecidas em sua condição de
infantes e os menores eram submetidos à condição de objeto de políticas, geralmente
repressivas, punitivas e negadoras da sua condição de sujeito histórico. Nas discussões
da década de oitenta, a expressão será questionada como portadora de forte estigma,
pois foi geralmente utilizada como forma de discriminação. No Brasil, os próprios
meninos e meninas reivindicaram o direito de serem reconhecidos universalmente como
crianças e adolescentes.
Por isso, a nova Constituição da República do Brasil revogou a expressão “menor” do
ordenamento jurídico brasileiro e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos. É preciso destacar, que embora, nos textos das declarações e convenções
internacionais o termo utilizado seja “criança”, o Brasil optou por uma distinção de
acordo com a etapa de desenvolvimento fazendo a distinção entre crianças e
adolescentes.
Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990,
criança é a pessoa com idade até doze anos incompletos e, adolescente, aquele com
idades entre doze e dezoito anos. Além da importante mudança terminológica, que
reconhece a criança e o adolescente como “sujeitos”, a Constituição foi além ao garantir
a condição de “sujeito de direitos”. O reconhecimento desta condição consolida uma
nova lógica de compreensão e pensamento em relação à infância e a adolescência no
Brasil.
A titularidade de direitos resguardada pela legalidade formal apresenta-se como reflexo
ideológico do momento histórico vivido, construído pelas forças sociais representativas
do discurso do poder, que encerra em si, um universo de possibilidades latentes,
almejando real capacidade de efetivação.
“A idéia de titularidade corresponde ao reconhecimento da dignidade humana, isto é, à
possibilidade de reconhecer o direito, de lutar por seus direitos. Esta possibilidade é
identificada mediante a própria consciência de cidadania civil, política e social. Quando
a cidadania está em crise não há identificação dos direitos de cada pessoa.” (COSTA &
LIMA, 2005)
A racionalidade formal do direito circunscreve o limite do possível, sem ao mesmo
tempo, limitar as forças emancipatórias que desestabilizam as relações de poder em
busca da superação das condições materiais e concretas de existência. Por outro lado, a
condição de sujeito de direitos altera a relação tradicional de controle e vigilância do
Estado sobre a infância deslocando o campo de exigibilidade de direitos para o universo
difuso da população infanto-juvenil. Assim, procurou fortalecer os movimentos sociais
e a condição de cidadania como forma de garantir a exigência permanente de novas
conquistas no campo de serviços públicos e, que sejam capazes de efetivar as promessas
jurídicas inscritas na lei.
O reconhecimento universal de crianças e adolescentes na condição de sujeitos de
direitos pretende assegurar um status social para que seja possível nas mesmas
condições o exercício efetivo e pleno destes direitos. Embora o reconhecimento da
titularidade dos direitos fundamentais seja uma conquista do frágil e tardio liberalismo
brasileiro, que talvez nunca tenha se efetivado concretamente, é importante destacar que
mesmo a garantia formal desses direitos à criança e ao adolescente foi reconhecida
apenas no final do século XX, com o amparo constitucional e, por isso, reveste-se de
caráter inovador.
Portanto, para além das suas possibilidades em garantir a efetivação dos direitos
fundamentais, seu maior significado está na superação da posição predominante no
século XX, que reduziu a criança a objeto de tutela, incapaz ou menor. O
reconhecimento como sujeito de direitos implica num desenlace libertário da criança
das amarras institucionais que cultivavam as obrigações de obediência e submissão.
Neste contexto, não interessa mais o estigma justificativo da intervenção estatal imposto
à criança, mas sim, na possibilidade concreta e objetiva da criança e do adolescente
exigir a efetivação de seus direitos.
Deste modo, o reconhecimento da condição de sujeitos de direitos implica na
universalização do conceito de direitos de cidadania, que qualifica os espaços de
participação no controle público do Estado como forma de direcionar sua atuação na
perspectiva de efetivação dos direitos, ultrapassando uma concepção meramente
normativa de direitos humanos, transformando-se em instrumentos concretos de ação
política orientadora de políticas públicas. (BRASIL, Comissão de Direitos Humanos,
2003, p. 08)
Trata-se da abertura de um novo espaço jurídico-participativo dos agentes sociais na
medida em que se reconhece a possibilidade do direito a ter direitos, que surge a partir
do exercício dos direitos já conquistados. É neste sentido, que o sujeito transfigura-se no
sujeito cidadão. (VERONESE, 1997, p. 14)
O Direito da Criança e do Adolescente afirma-se no contexto jurídico brasileiro como
instrumento para transformações. Não se tratam de mudanças apenas do campo da
organização burocrática do Estado, mas antes de tudo, representa a consolidação de uma
base de sustentação para numa nova ética, uma nova técnica e uma nova estética. A
nova ética, proposta pelo Direito da Criança e do Adolescente, desloca seu campo de
percepção não apenas para uma nova etiologia, mas essencialmente para a dimensão do
reconhecimento da dignidade humana como elemento axiológico orientador de todo o
ordenamento jurídico. Isso se pretende com nova técnica jurídica e com mudanças de
conteúdo, método e gestão. (COSTA, 1994, p. 25)
As transformações estruturais do novo direito trazem em seu corpo uma potencialidade
de re-significação estética da infância. É a superação da imagem simbólica abstrata do
menor como “portador de futuro em risco”. O desafio é alcançar a realidade concreta da
criança e do adolescente como “detentores de presente como sujeito de direitos”. Trata-
se de nova descoberta da infância como período próprio e particular de
desenvolvimento. No Brasil, é segunda tentativa histórica de superação do sentimento
de indiferença em relação à infância.
O estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral como elemento basilar do novo
sistema jurídico implica no reconhecimento da criança e do adolescente como pessoas
em condições peculiares de desenvolvimento; mas também no valor presente e
prospectivo da infância e nas suas condições especiais de vulnerabilidade. Por isso, o
reconhecimento dos direitos humanos para todos e um conjunto de direitos especiais
destinados à ampliação das possibilidades e capacidades de proteção à criança e ao
adolescente.
No Brasil, o reconhecimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente se
fez acompanhar também por uma verdadeira política de direitos com um sistema
próprio e particular destinado à sua efetivação. É por meio de uma práxis jurídica e uma
ação transformadora da sociedade civil que se pretende estimular capacidade de
transformação.
Neste contexto, o Direito da Criança e do Adolescente promove o reordenamento
institucional atribuindo responsabilidades à família, à sociedade, ao mercado e ao
Estado. O objetivo é a construção de uma nova cultura de proteção à infância e à
adolescência.
Esses novos compromissos éticos, jurídicos e políticos constituídos nas práticas sociais,
mas também no sistema normativo, fortalece o papel do Estado democrático e de
direito, como agente de efetivação dos direitos fundamentais, orientados por uma
teleologia diferente e inerente aos novos princípios, regras e valores em construção.
Contudo é preciso lembrar que:
“Um dos grandes mitos contemporâneos é o de que os direitos humanos estão
assegurados quando inscritos em uma Constituição democrática. O Estado de Direito
ocidental aparece como o único garantidor dos direitos humanos. E a existência destes é
a garantia da existência da própria democracia.
Esta pseudo-relação entre direitos humanos, Estado de Direitos e democracia liberal,
omite o fato de que estes últimos também sustentam o sistema econômico capitalista,
que, na prática, impede a efetivação de uma grande parcela daqueles. Omite ainda que o
Estado de Direito burguês também garante os direitos do capital e da exploração do
trabalho.” (RODRIGUES, 2005, p. 23)
Entretanto, é exatamente neste contexto que emerge o Direito da Criança e do
Adolescente, frutificando como um sistema aberto, potencialmente contraditório,
materialmente valorativo e teleológico, inacabado e dinâmico. Enfim, comprometido
com o processo histórico, pois tem como base uma justiça material, não formal, para
além da lógica, com caráter axiológico, com tendência à generalização, que pretende
alcançar a igualdade material. “[...] o Estado social não é artigo ideológico, nem
postulado metafísico, nem dogma religioso, mas verdade da Ciência Política e axioma
da democracia.” (BONAVIDES, 2003, p. 45)
Para que sua realização esteja próxima ao possível, exige um pensamento jurídico
crítico, comprometido com uma sociedade em mudança. A efetivação do Direito da
Criança e do Adolescente implica na superação do modelo liberal clássico, não
intervencionista, para um modelo de intervenção social democrático-participativo.
Resgata-se o essencial papel da política como forma de realização das necessidades
mediante o exercício da subjetividade, do restabelecimento dos vínculos comunitários
com a realidade concreta apresentando um amplo campo de infinitas possibilidades de
ação.
Por isso, o desafio da efetividade dos direitos está proposto em torno de um sistema
próprio denominado Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente, que
pretende deslocar o direito do campo das idéias para a realização prática na realidade
social. É, portanto, um sistema com as ligações complexas da vida social estabelecendo
relações essencialmente contraditórias e tensas.
Enfim, a compreensão teórica do Direito da Criança e do Adolescente exige a
articulação entre princípios, regras e valores próprios, mas que apenas encontram
sentido na medida em que estão co-relacionados com as demandas concretas e
necessidades de transformação social. De acordo com MENDEZ, “A nova relação
infância-lei implica uma profunda revalorização crítica do sentido e da natureza do
vinculo entre a condição jurídica e a condição material da infância.” (2001, p. 25)
6.2 O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente.
Neste momento, o grande desafio é como fazer o Direito da Criança e do Adolescente
transformar o mundo da vida. Quando se afirma: “o Direito da Criança e do
Adolescente é inovador porque garante muitos direitos”. É preciso reconhecer que o
Direito da Criança e do Adolescente apenas afirma o universo dos Direitos Humanos
para a população infanto-juvenil. Na verdade, o Direito da Criança e do Adolescente é
inovador porque pela primeira vez na história brasileira houve uma declaração de
direitos acompanhada de um sistema de garantias que possibilita a realização concreta
destes direitos.
Como os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de
incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, ele requer uma hermenêutica
própria comprometida com a proteção integral e o melhor interesse da criança.
“O modelo hermenêutico apropriado ao Direito da Criança e do Adolescente deve partir
de premissas epistemológicas e metodológicas que o reconheçam como um direito
garantista, eticamente comprometido com a cidadania infanto-juvenil, implicando na
subordinação da sociedade e do Estado à democracia como um valor universal, com um
regime de direitos, liberdades e garantias localizados como eixo central da ordem
política e social.” (LIMA, 2001, p. 456)
O direito da criança e do adolescente como um sistema de garantia dos direitos
fundamentais ampara a proteção integral num sistema lógico, organizado sob a
perspectiva de redes com responsabilidades compartilhadas entre família, sociedade e
Estado.
O sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente foi constituído com base
em princípios norteadores da ação estatal, tais como a descentralização, o
reordenamento e a integração operacional do sistema. A proposta está orientada por
uma dinâmica que se afasta das tradicionais intervenções, restritas a imposição das
práticas de governo, bem como, das lógicas lineares de ação que transferem
responsabilidades de um órgão para outro, burocratizando o sistema, e historicamente
atingindo poucos resultados. Mas, é preciso ressaltar que a integração das diversas
esferas e órgãos do sistema ainda é uma realidade distante no Brasil.
Um dos aspectos fundamentais desse novo sistema foi a criação de duas instituições
básicas: os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. Os Conselhos de Direitos
da Criança e do Adolescente são órgãos responsáveis pelo planejamento, controle,
deliberação e monitoramento das políticas públicas.
Já, os Conselhos Tutelares são órgãos compostos por representantes da sociedade civil
com a atribuição de agir sempre que os direitos forem ameaçados ou violados, pela
família, pela sociedade, pelo Estado e, até mesmo, pelas próprias crianças e
adolescentes. Diante de situações como estas, os Conselhos Tutelares aplicam medidas
de proteção às crianças e adolescentes e, também, aos pais ou responsáveis. Os
Conselhos Tutelares são órgãos que devem funcionar em todos os municípios
brasileiros. Já os Conselhos de Direitos, além de funcionar nos municípios, tem
instâncias em outras esferas, tais como a estadual e a nacional.
Em síntese, o sistema de garantias de direitos pretende provocar transformações
estruturais a partir do entrelaçamento de quatro dinâmicas específicas, que envolvem: a
política de atendimento, a política de proteção, a política de promoção e a política de
justiça.
6.3 Apontamentos sobre a política de atendimento.
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente realiza-se por meio
do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais nos três níveis de
governo, mediante a colaboração recíproca entre os municípios, os Estados, o Distrito
Federal e a União. Na proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente, a política de
atendimento envolve linhas de ação, diretrizes e responsabilidades relativas aos
programas e entidades de atendimento.
As linhas de ação da política de atendimento envolvem: políticas sociais básicas;
políticas e programas de assistência social; serviços especiais de prevenção,
atendimento, identificação e localização dos pais ou responsáveis, bem como, proteção
jurídica e social prestada por entidades de defesa dos direitos da criança e do
adolescente.
As políticas sociais básicas estão direcionadas para a efetivação direta e imediata dos
direitos fundamentais, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, no
artigo 227. As políticas sociais básicas envolvem:
“Os benefícios ou serviços de prestação pública dos quais podemos dizer: ‘isto é direito
de todos e dever do Estado’, ou seja, as políticas sociais básicas dirigem-se ao universo
mais amplo possível dos destinatários, sendo, portanto, de prestação universal.
Educação e saúde, por exemplo, são direitos de todas as crianças e dever do Estado. Não
pode, portanto, existir criança ou adolescente, independente da sua condição, que esteja
legalmente privado do direito à educação e à saúde. Trata-se de um direito de todos,
reconhecido e prestado ao conjunto da população infanto-juvenil sem distinção
alguma.” (COSTA, 1994, p. 43)
Sob esta perspectiva a política social básica incluiu os programas de atendimento
articulado com a prestação de serviços especializados como forma de garantia e
efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, mas também,
estabelecer uma política subsidiária de Assistência Social para àqueles que dela
necessitem, visando promover a emancipação da criança, do adolescente e de sua
família. Trata-se, portanto, de uma política do agir estatal. Para LIMA,
“[...] uma política do agir estatal é uma macro-política que impõe ao Estado um Agir,
por dever de agir, tendo em vista que o Estado é instrumento à disposição da sociedade
para que o processo social centrado na pessoa humana seja permanente e não fique à
mercê da caridade, da filantropia, da concessão, nem dependa de eventuais crises
sistêmicas que possam abalar a estabilidade social ou política, a governabilidade, ou
fenômeno desse gênero.” (LIMA, 2001, p. 322)
Entretanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente também se preocupou com a
necessidade de atendimento às condições especiais que possam ameaçar ou violar os
direitos da criança e do adolescente ao prever a garantia de oferecimento de serviços
especiais que façam prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de
negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Estes serviços
especiais destinam-se, inclusive, a proteção da criança e do adolescente, quando vítimas
de negligência e maus-tratos e, muitas vezes, com crueldade e opressão. Daí a
necessidade do atendimento especializado, que compreenda suas conseqüências e esteja
preparado para perceber os danos ao desenvolvimento físico e psicológico da criança e
do adolescente oferecendo alternativas concretas àquela condição.
Os serviços especiais devem estar preparados para atender as crianças e adolescentes
vítimas, independentemente de qualquer condição, preocupando-se sempre com o
restabelecimento dos laços familiares, o amparo e a proteção. Por isso a importância da
manutenção de serviços para a identificação dos pais ou responsáveis, possibilitando a
efetiva reintegração familiar e, evitando-se desta forma o rompimento dos vínculos
afetivos e sociais da criança e do adolescente, desde que estas medidas venham
acompanhadas de um suporte assistencial visando atender as necessidades da família, da
criança e do adolescente.
Os serviços especiais de atendimento à criança e ao adolescente reservam um papel
importante, mas que isoladamente apresentam pouco efeito, ou seja, precisam estar
acompanhados de um conjunto integrado de políticas públicas básicas de caráter
universal e acessível para todos.
A crítica produzida pela verificação do limites das tradicionais políticas sociais
brasileiras de caráter centralizador, burocrático e compensatório e, que sem dúvida,
além de deixarem poucos resultados contribuíram decisivamente para o aprofundamento
do processo de exclusão social, possibilitou uma nova concepção relativa à política de
atendimento, hoje já consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente está amparada por um
conjunto de diretrizes que trouxeram um verdadeiro reordenamento institucional,
“[...] de forma a re-situar os serviços, regionalizar ações e estabelecer funções
compartilhadas pelas diferentes instâncias e setores da sociedade (governamentais e
não-governamentais, no sentido de viabilizar a atenção em rede através de ações
integradas.” (OBSERVATÓRIO DOS DIREITOS DO CIDADÃO, 2004, p. 24-25)
Isso representa uma profunda ruptura com os modelos anteriores, orientados pelo
estigma da menoridade, da situação irregular e do falacioso Bem Estar do Menor. Nesse
sentido, foram estabelecidas a municipalização do atendimento, a criação dos Conselhos
dos Direitos da Criança e do Adolescente, a mobilização e participação da sociedade
civil, a descentralização, a criação de fundos vinculados aos conselhos, a integração
operacional dos órgãos do sistema de garantias de direitos.
As diretrizes dedicam atenção especial aos programas e entidades de atendimento,
definindo regimes dos programas, procedimentos para registro e autorização de
funcionamento às entidades não-governamentais e programas governamentais, bem
como, atribuiu uma sistemática para a fiscalização das entidades, promovendo a
participação ativa da sociedade na política de atendimento.
A construção de uma política de atendimento requer a integração de uma rede de
organizações de atendimento, governamentais e não-governamentais, que colaboram
para a produção de diagnósticos, controles, monitoramentos e avaliações, com vistas a
uma melhoria qualitativa dos serviços prestados.
Além das diretrizes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos últimos anos
foram estabelecidas novas estratégias de ação nas Conferências Municipais, Estaduais e
Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, ambas amparadas pelos princípios
da Doutrina da Proteção Integral. As Conferências dos Direitos da Criança e do
Adolescente são realizadas no interstício de dois anos com a finalidade de avaliar as
ações realizadas e apontar diretrizes de ação para os próximos dois anos nos três níveis
com ampla participação da sociedade civil e os representantes de governo.
A comunidade encontra nas Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente um
novo espaço de participação e de interferência no sentido dos caminhos desejados para a
política de atendimento à criança e ao adolescente representando uma oportunidade de
verdadeira relação do Estado com os Movimentos Sociais. Para BARBALET,
“[...] os movimentos sociais, ao contrário dos movimentos políticos, não são
vocacionados para tomar o poder político, mas parar exprimir as aspirações, interesses,
valores e normas – das colectividades sociais. O movimento, social está portanto ligado
à mudança social através da modificação das expectativas e dos costumes que
influenciam as relações sociais. Como meio de mudança cultural, os movimentos
sociais reformulam em que pode consistir a participação social. Assim os movimentos
sociais podem apressar o desenvolvimento da cidadania, os direitos de cidadania
facilitam o aparecimento dos movimentos sociais.” (BARBALET, 1989, p. 149-150)
A construção da Política de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente tem
como pressuposto a participação da comunidade, daí a necessidade de municipalização
do atendimento. A municipalização do atendimento é decorrente do princípio da
descentralização político-administrativa com vistas a garantir o atendimento à criança e
ao adolescente no lugar em que vivem. A experiência histórica brasileira demonstrou
que a concentração de recursos públicos nas esferas mais elevadas sempre apresentou
alto custo, baixo nível de eficiência, demora no atendimento e, como se não fosse
suficiente, ainda dava margem para o desvio de recursos, o clientelismo e a corrupção.
A municipalização do atendimento, que se entende, como aliada indispensável à
descentralização dos recursos, pretende tornar sua aplicação mais segura, facilitando o
controle social sobre sua aplicação e ampliando as possibilidades de influência e
controle da comunidade local sobre o destino dos recursos e as necessidades efetivas de
atendimento à criança e ao adolescente.
A municipalização visa aproximar os níveis de decisão e execução das políticas de
modo que os programas estejam sintonizados com as necessidades das comunidades,
permitindo que as mesmas possam fazer o controle das ações e influenciando na
consecução de alternativas mais efetivas de atendimento às crianças e aos adolescentes
mediante a criação e manutenção dos programas. (LIMA, 2001, p. 271)
Os recursos públicos para o atendimento à criança e ao adolescente não seriam
suficientes se não houvesse mecanismos específicos de deliberação, controle e
monitoramento das políticas de atendimento nos municípios. Isso se fez necessário,
diante da desastrosa experiência do sistema da Política Nacional do Bem-Estar do
Menor, que não garantia a participação popular, sendo mantido pelo controle
centralizado de um pequeno grupo dirigente e, na maioria das vezes, reproduzido nas
instâncias locais.
Para resolver esta questão foram criados os Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente como órgãos, deliberativos e controladores, nos níveis municipal, estadual
e nacional promovendo a primeira grande alteração nas relações hierárquicas de gestão
da política pública de atendimento, pois até então as esferas nacionais e estaduais
detinham poder de intervenção nos níveis inferiores, sedimentando o controle
hierarquizado das ações. Atualmente, “[...] a Constituição estabelece bases jurídicas
para a construção de um novo formato de cidadania, agora contemplando o ramo social
como direito do cidadão e dever do Estado. Mas não apenas isto; agora a cidadania
política transcende os limites de delegação de poderes da democracia representativa e
expressa-se por meio da democracia participativa, da constituição de conselhos
paritários, que se apresentam como novo lócus de exercício político.” (CAMPOS &
MACIEL, 1997, p. 145)
Com a criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, essa relação
hierárquica sofre uma ruptura, já que os conselhos são autônomos em seus respectivos
níveis, estando unicamente submetido às leis, ou seja, as deliberações e resoluções dos
conselhos hierarquicamente superiores não vinculam os conselhos locais que devem
deliberar e resolver de acordo com a sua própria realidade.
O caráter deliberativo dos conselhos vincula a administração pública que deve,
necessariamente, atender aos comandos emitidos por esta instância, ocorrendo, portanto,
a substituição da arbitrariedade do governante em relação às políticas públicas, devendo
agora se restringir à execução das deliberações propostas.
Aos Conselhos de Direitos compete deliberar e controlar o conjunto de políticas
públicas básicas, dos serviços especializados e de todas as ações governamentais e não-
governamentais, direcionadas para o atendimento da criança e do adolescente. Para
Vanderlino Nogueira,
“Os Conselhos de Direito surgiriam assim como espaços públicos institucionais
‘pontes’, entre a sociedade política e a sociedade civil. O espaço do teste das
possibilidades de uma mista democracia representativo-participativa. Aí seriam testados
os trabalhos de formação dos gestores públicos comunitários. (Conselheiros não-
governamentais). Aí, estariam eles sendo desafiados para o mister de
articulação/integração,
com os representantes do Estado-governo: para o trabalho de formulação/normatização
geral das políticas públicas, o controle das decorrentes ações governamentais e
comunitárias e a mobilização social.” (NOGUEIRA, 1997, p. 29-30).
Nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, a lei assegura a participação da
sociedade civil na sua composição. Os membros são escolhidos pelos Fóruns
Permanentes de Entidades Não-governamentais em Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Fórum DCA). Os Fóruns DCA são constituídos pelas organizações não-
governamentais, mas também por pessoas da comunidade que podem sugerir, decidir,
encaminhar e acompanhar suas demandas e necessidades junto aos seus representantes
Conselheiros de Direitos, mas também, participar ativamente de todo o processo de
consolidação dos direitos da criança e do adolescente, já que
“A lei maior consagrou-nos o direito de participação na definição e controle das
políticas públicas em todos os níveis. Dessa forma, a cidadania da criança, do
adolescente e de qualquer adulto presume participação, materializando a condição de
sujeitos de direitos, ou seja, agentes ativos e não objetos de intervenções, como
estabelecem as velhas tradições. “(MOTTI, 2005, p. 56).
Os Conselhos de Direitos precisam do apoio da comunidade para a definição de suas
ações, tais como a formulação de diagnóstico da situação das crianças e adolescentes, o
planejamento das políticas públicas necessárias para efetivação do atendimento de
acordo com as diversas necessidades; O monitorando e o controle co funcionamento
operacional do sistema.
Deste modo, o princípio-fim estabelecido pelo Direito da Criança e do Adolescente
transfigura-se numa estratégia de empoderamento local. Para que isso seja possível é
necessário:
- Criação de espaços institucionais adequados para que setores excluídos participem na
elaboração das políticas públicas;
- Formalização de direitos legais e cuidados no seu conhecimento e respeito;
- Fomentos de organização para que as pessoas que integram o capital social excluído
possam efetivamente participar e influir nas estratégias adotadas pela sociedade. Esta
influência se dá quando a organização permite estender e ampliar a rede social das
pessoas que a integram;
- Transmissão de capacidades para o exercício da cidadania e da produção, incluindo os
saberes instrumentais essenciais além de ferramentas para analisar dinâmicas
econômicas e políticas e políticas recentes;
- Criação de acesso e o controle de recursos e ativos (materiais, financeiros e de
informação) para possibilitar o efetivo aproveitamento de espaços, direitos, organização
e capacidades, em competência e articulados com outros atores;
- Uma vez construída essa base de condições facilitadoras do empoderamento e da
constituição de um ator social, dá-se relevância aos critérios de participação efetiva,
com a apropriação de instrumentos e capacidades propositivas, negociativas e
executivas. (BARTHOLO JÚNIOR, R. S., MOTA, C. R., FERREIRA, G. S.,
MEDEIROS, C. M. B., 2003, p. 04)
Para viabilizar o complexo conjunto de ações e responsabilidades dos Conselhos de
Direitos da Criança e do Adolescente foi criado, em todos os níveis, o Fundo da
Infância e da Adolescência (FIA), vinculado aos respectivos conselhos. O FIA é um
fundo especial, nos termos previstos na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964: “Art. 71
– Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à
realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas
peculiares de aplicação.”
A composição do FIA é bastante diversificada incluindo as multas judiciais previstas no
art. 213, de Termos de Ajustamento de Conduta propostos pelo Ministério Público, da
contribuição decorrentes de dedução do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas,
conforme o art. 260, ou recursos provenientes de dotação orçamentária ou repasse da
União, estados e municípios.
Neste contexto, é o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente que têm a
competência para fixar os critérios de utilização dos recursos através de planos de
aplicação, com a ressalva que os recursos do FIA não se destinam apenas ao
financiamento da política de atendimento, pois o Poder Público deve garantir os
recursos para suas políticas públicas mediante previsão orçamentária e as organizações
não-governamentais, mediante seus próprios orçamentos e estratégias de mobilização de
recursos. Os recursos do Fundo da Infância e da Adolescência destinam-se,
prioritariamente, ao diagnóstico, ao planejamento, ao monitoramento e à avaliação das
políticas públicas, possibilitando ao Conselho de Direitos a realização efetiva de seu
papel institucional.
Além disso, cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
identificar nas ações governamentais o conjunto de recursos destinados para a política
de atenção à criança e ao adolescente, avaliando o grau de prioridade estabelecido na
distribuição dos recursos públicos, monitorar a implementação das diretrizes emanadas
pelas Conferências de Direitos da Criança e do Adolescente e contribuir na avaliação
dos programas de atendimento.
No entanto, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como instância
inovadora no quadro jurídico institucional brasileiro enfrenta diversos obstáculos. Júlio
Manoel Pires observou que:
“- Há uma sobreposição no caráter deliberativo do CMDCA em relação ao poder
executivo municipal; da mesma forma que há também com relação ao caráter de
formulação de políticas públicas em relação a Câmara Municipal;
- Não existem critérios claros para a escolha dos conselheiros, sendo esta uma situação
que varia para cada município; - Não existe uma homogeneização de conhecimento do
sistema jurídico relativo à criança e ao adolescente por parte dos conselheiros,
acarretando uma não implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente; - Não é
ação comum dos conselhos realizarem um diagnóstico de necessidades e prioridades do
município, no que se refere à situação da criança e do adolescente, de maneira a nortear
as ações do CMDCA; neste caso a defesa de interesses pessoais ou classistas se torna
constante; - A troca de membros do conselho conforme o estatuto, muitas vezes acarreta
a descontinuidade das ações; da mesma maneira a sucessão de prefeitos que podem
definir novas diretrizes de ação das políticas públicas para o município.” (PIRES, 2006,
p. 7-8)
A superação dos obstáculos apontados exige uma efetiva mobilização da opinião
pública e a participação da sociedade civil na discussão sobre o necessário papel
institucional do Conselho de Direitos e, especialmente, dos conselheiros, pois sua
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Formação política e participação social de crianças

  • 1. Participação social e formação política de crianças e jovens Joanice Barbosa Parmigiani1 RESUMO O presente artigo apresenta um trabalho que está sendo desenvolvido há três anos num projeto de inclusão social e construção da cidadania na cidade de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo. Surgiu como uma contribuição ao exercício da cidadania dos educandos que integram a unidade, criando possibilidades de ações concretas. Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de todo processo administrativo da unidade, por meio de uma "Prefeitura Mirim". Anualmente realizamos um processo de eleições no qual cada indivíduo (criança ou adulto) tem direito a um voto, e nas urnas (num processo similar às eleições brasileiras), cada participante do projeto (educando, educador, pessoal de apoio) faz sua escolha entre aqueles que o grupo escolheu para candidatos. Os eleitos têm mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e acompanhados por todos por meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de propostas. Após esse período de desenvolvimento, este trabalho vem tornando-se uma ferramenta pedagógica que muito tem contribuído para todo o resultado educacional almejado, possui uma intencionalidade bastante clara, envolvendo todos os educandos, educadores e demais integrantes do grupo e proporcionando a recuperação da identidade dos envolvidos por meio de sua participação como atores sociais e protagonistas. Apresentamos no artigo, os primeiros resultados da formação da consciência de participação social e política dos educandos, dimensões que alavancam a formação da autonomia e da emancipação do indivíduo. Palavras-chave: prefeitura mirim; cidadania; eleições; participação social. MOTIVAÇÃO E PROPOSTA A participação social e a formação política são dois aspectos que cada vez mais vem se revelando como ferramentas de emancipação e autonomia do cidadão que deseja compreender a sociedade e perceber-se como agente constituidor e
  • 2. transformador de realidades. A consciência sobre tão poderosa capacidade individual torna-se ainda mais eficiente quando despertada ainda na infância e na adolescência. Há três anos, tenho contribuído no desenvolvimento de um programa de Inclusão Social e Construção da Cidadania, da Fundação Orsa, que atende a famílias em situação de vulnerabilidade social no município de Carapicuíba. Sentindo a necessidade de trabalhar a dimensão político-social da educação junto às essas crianças e jovens, iniciamos o desenvolvimento do projeto Participação Social e Formação Política levando em consideração a necessidade de transformação das práticas educacionais, valorizando o exercício da cidadania e a preparação do educando para a vida. Desta forma, abriu-se a possibilidade de efetivar a participação dos educandos como co-responsáveis de todo o processo educativo da unidade. Aliando-se, assim, o desejo da organização mantenedora aos princípios da educação social, resultando em prática inovadoras. Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de toda a gestão da unidade por meio de uma "Prefeitura Mirim"2, que anualmente, num processo de eleições no qual cada sujeito (criança ou adulto) tem direito a um voto nas urnas. Num processo similar às eleições brasileiras, cada participante da unidade (educando, educador, pessoal de apoio) faz sua escolha entre aqueles que foram lançados como candidatos pelo próprio grupo. Os eleitos têm um mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e acompanhados por meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de propostas. Essas assembléias proporcionam aos educandos o desenvolvimento de habilidades de comunicação, trabalho em grupo, relação interpessoal, decisão, responsabilidade, entre outras não menos importantes. Após três anos de desenvolvimento, esse projeto tornou-se uma das mais importantes ferramentas pedagógicas utilizadas pelos educadores. Possui uma intencionalidade bastante clara: a formação política e o desenvolvimento do espírito de participação. A experiência democrática é vivenciada em plenitude, pois todos os assuntos são decididos coletivamente pelo voto, de igual valor tanto para educadores quanto para educandos. Como fonte fomentadora podemos citar as experiências educativas que ocorrem em algumas escolas não-diretivas estudadas, destacando, em particular, a Escola de Summerhill e a Escola da Ponte. Segundo Gandin, para que ocorram as transformações necessárias à educação é preciso trabalhar com igualdade de importância em duas dimensões: "a produção de idéias e a organização de ferramentas para torná-las realidade". Neste sentido, o desenvolvimento deste projeto vem proporcionando a toda equipe de educadores envolvida, um desenvolvimento harmonioso dessas duas dimensões, além de potencializar a concretização dos princípios metodológicos do Programa Formação: Da relação dialogal entre o educador e o educando. Uma relação democrática, crítica e autêntica no diálogo e compromisso mútuo entre educador e educando, eixo de sustentação do processo educativo, o método de trabalho e a própria reflexão. Da atividade planejada, na qual a ação é estratégia para se alcançar o resultado.
  • 3. Da otimização dos recursos, onde todos os espaços e atividades constituem-se momentos e oportunidades de formação integral do educando. Do educador coletivo que compreende a aprendizagem como um processo que ocorre na relação de todos os sujeitos envolvidos. Acreditamos e buscamos um aprendizado construído de forma coletiva e interativa, no qual a prática e a teoria caminhem de mãos dadas, incentivando o desenvolvimento da solidariedade, da transparência, da co-responsabilidade, da autonomia e a organização de estratégias e políticas que possibilitem ao educando ser o sujeito de sua própria formação. Como afirma Boff: "o ser humano é um ser de participação, um ator social, um sujeito histórico e coletivo de construção de relações sociais o mais igualitárias, justas, livres e fraternas possíveis dentro de determinadas condições histórico- sociais". Um dos pontos cruciais que mostram que a educação tradicional vai se desintegrando no percurso do processo de universalização das oportunidades que transformam as escolas em escolas populares de massa, é a perda da identidade, tanto do professor que não se identifica com o aluno, com a escola e com a comunidade onde trabalha, quanto do próprio aluno e da própria escola. Assim, o projeto Participação Social e Formação Política privilegia o resgate da identidade dos sujeitos nele envolvidos. Cada educador tem claro no plano pessoal e institucional os objetivos a serem alcançados e, por terem participado desde a fase embrionária do projeto, compreendem a idéia-processo-resultado. Por conseguinte, percebem a relação ação-resultado, o que mantém a motivação do projeto. O objetivo central desta proposta é oportunizar aos educandos a vivência da democracia e o exercício da cidadania, garantindo uma formação política e educacional que os instrumentalize para transformar sua própria realidade. E como objetivos específicos podemos destacar: Promover a consciência para a participação social criando um sentido de comunidade entre os integrantes do grupo e levando-os a perceberem que não existirão resultados de mudanças sociais sem a participação da própria comunidade. Potencializar talentos, oportunizando o desenvolvimento de lideranças como ferramenta para a formação da responsabilidade individual e coletiva. Desenvolver a criatividade e a auto-estima dos educandos, possibilitando que desenvolvam as assembléias gerais com a representação de todos os grupos, podendo propor e assumir a realização de eventos culturais, programação de festas e projetos de férias, organização do tempo livre (ócio-criativo) e exercício de escolhas. METODOLOGIA DA AÇÃO
  • 4. O procedimento metodológico adotado neste trabalho é o de participação democrática, utilizando-se de recursos práticos como a co-gestão do programa Formação, num processo em que o educando é levado a desenvolver suas habilidades pessoais de liderança, tomada de decisões, responsabilidade, relacionamento interpessoal e coletivo, apropriando-se dessas competências de forma a tornarem-se seres autônomos, críticos e reflexivos. A metodologia do projeto utiliza-se ainda da observação e do registro das oficinas pedagógicas desenvolvidas pelos vários educadores que atuam no Formação, das assembléias de grupos e assembléias geral e do registro das reuniões pedagógicas realizadas mensalmente com o grupo de educadores e coordenação, na qual há o compartilhar do processo e da percepção sobre os avanços conseguidos pelos educandos e educadores, refletindo sobre a própria prática num exercício de reflexão da ação para a formação de uma consciência mais crítica do trabalho educacional. Falando especificamente da metodologia das assembléias, nos reportamos a Araújo (2004) que destaca a Assembléia Escolar como um exercício do fazer a educação democrática, ressaltando que aprender a dialogar, a construir colet ivamente as regras de convívio e a fortalecer o protagonismo das pessoas e dos grupos sociais na busca pela justiça social e pela construção da democracia são ações possíveis a espaços nos quais se faz a educação. Este autor elucida-nos quanto à atuação das assembléias na resolução de conflitos e as define como o momento institucional da palavra e do diálogo, o momento de reunir-se o coletivo para tomar consciência, refletir e transformar. A disciplina e a indisciplina deixam de ser obrigação somente do educador e passam a ser questões compartilhadas por todo o grupo, responsável pelas regras e pela cobrança de seu exercício. Como parte fundamental do trabalho temos a realização da roda, que traz em seu exercício contínuo, o sentido do pertencimento, pois todos se apropriam do espaço oferecido, ouvindo e sendo ouvidos. O processo de ensino-aprendizagem vivenciado na roda está voltado para a formação integral de cada indivíduo, ao vincular educação e prática social, por meio da qual valores, atitudes e conhecimento corroboram na formação integral de cada educando enquanto cidadão pleno, levando-o a compreender criticamente o conceito embutido por trás de cada proposta pedagógica apresentada. Para Freire (1992), o caminho para superar as práticas incoerentes está na superação da ideologia autoritária e elitista, o que demanda sintonia entre o fazer e o falar da educação. Ao envolvermos os educandos na gestão do trabalho, podemos exercitar a superação da autoridade buscando uma prática democrática. Para Giacon (s/d) conviver constantemente com os opostos é um grande desafio instaurado na cotidianidade da educação, e é neste embate, nesta luta que surge o caminho para a liberdade e para uma prática que possa responder aos anseios dos educandos. A prática da "Prefeitura Mirim" oportuniza a todos vivenciarem momentos concretos de formação política. Os educandos organizam-se em equipes às quais chamamos de comissões. Cada equipe reúne-se para levantar propostas e estudar seus possíveis candidatos, analisando o perfil daqueles que desejam concorrer aos cargos eletivos. Ao final do período de organização do processo eleitoral temos a apresentação dos candidatos de cada comissão que apresenta, sempre na roda, seus planos de gestão e finalmente no dia das eleições todos vamos à urna (que é eletrônica), para decidirmos quem será nosso Prefeito.
  • 5. Uma vez eleito, cabe ao Prefeito nomear seus secretários e suplentes e então temos a Prefeitura Mirim formada com os seguintes elementos: Prefeito eleito nas urnas Secretário (a) e suplente da educação e cultura Secretário (a) e suplente de esporte e lazer Secretário (a) e suplente de meio ambiente Secretário (a) e suplente de saúde RESULTADOS DA AÇÃO Neste período de três anos podemos destacar alguns resultados que foram alcançados e que foram transformadores na nossa prática educacional: As Secretarias de saúde e esporte realizaram reuniões com Coordenadores da Fundação Orsa (Sede), nas quais trataram assuntos relevantes ao bom andamento das atividades do nosso projeto. Dessas reuniões resultou uma pesquisa realizada pela Secretaria de Saúde sobre a alimentação oferecida aos educandos. Cada educando pode opinar sobre o cardápio apontando o que gosta ou não, e sugerindo novidades. Destacamos aqui a resposta dada por um educando à questão "que sugestão você tem para melhorar a alimentação", e a resposta do menino de sete anos foi: "de todos pegar a comida que gosta e não pegar o que não gosta para não jogar fora". Essa resposta registra que o processo de participação está sendo interiorizado por eles, levando-os a perceberem o direito de não quererem algo, de não aceitarem imposições e levando-os a assumirem suas posições manifestando- as sempre que surgem as oportunidades. Logo no primeiro mandato, o Secretário de esportes entregou um memorando à coordenação solicitando a compra de novas bolas de futebol e de vôlei. Ele fez pesquisa de preços e apresentou junto à sua solicitação. Essa atitude do educando nos leva a perceber que quando o sujeito sente-se respeitado e valorizado, é capaz de tomar iniciativas. Os novos colegas que chegam ao Formação Carapicuíba são recebidos pelos próprios educandos que os acolhem, apresentam todas as dependências da unidade, orientam sobre as regras de convivência e ensinam os procedimentos do refeitório. Estas atitudes demonstram que o respeito recebido é o mesmo transmitido ao outro e evidencia o sentido de pertencer, o prazer de apresentar ao outro o que é nosso inserindo-o no nosso espaço, mostrando que a proposta de reforçar o pertencimento vem sendo amplamente alcançada. O grupo da Prefeitura Mirim do ano de 2005 criou um programa de rádio, veiculado internamente. O Programa traz dicas de cidadania e é protagonizado pelos próprios autores. Eles falam sobre direitos do cidadão, recursos da comunidade, sempre numa linguagem que favoreça aos menores o entendimento.
  • 6. Protagonismo de oficina lúdica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente realizada na Conferência Lúdica da Subprefeitura de Pinheiros/SP. Neste evento tivemos um grande envolvimento dos jovens que planejaram a ação, preparam os materiais e aplicaram a oficina para um grupo de trinta e dois estudantes da região. Uma atividade realizada com muita alegria pelo grupo e que trouxe uma experiência muito satisfatória para a educadora que mediou a ação. Participação do grupo de educandos de 7 a 10 anos nas Palestras sobre saúde oferecidas à comunidade e realizadas em espaço de parceiros, destacando-se as intervenções e colocações adequadas feitas por alguns educandos em colaboração aos palestrantes. Foi uma surpresa para o grupo de educadores perceberem que, mesmo os menores, estão desenvolvendo a habilidade de saber intervir contribuindo com a discussão coletiva, reproduzindo assim o exercício que acontece em cada momento de roda e de assembléias. Organização do Campeonato Esportivo de final de ano, com a proposta tendo sido feita pelos educandos que também trouxeram contribuição em troféus e medalhas para serem entregues aos vencedores. Uma vez mais, percebe-se a iniciativa, a ousadia de propor e a responsabilidade pelo fazer. Solicitação de reunião com a coordenação pedagógica do projeto, feito pelos educandos maiores para contestar mudanças não discutidas antes de serem anunciadas ao grupo geral. Esta tem sido uma das melhores atitudes que temos percebido nos educandos, é a não aceitação da imposição de regras e normas não construídas de forma democrática. Muitas vezes isso é difícil de ser conduzido, pois temos determinações a serem seguidas o que requer um grande exercício por parte da coordenação para não desrespeitar as regras de convivência elaboradas coletivamente. Participação ativa dos integrantes da Prefeitura Mirim na organização e realização dos eventos culturais: "Saraus e Galeria", proporcionando o crescimento do número de grupos de apresentações culturais entre os educandos. Esse protagonismo tem possibilitado um crescimento visível de auto-estima e auto-desenvolvimento dos educandos e a qualidade dos eventos tem sido diretamente proporcional à esse crescimento. Realização do I Fórum da Prefeitura Mirim, que reuniu alunos de diversas escolas públicas de Carapicuíba, discutindo a questão "Como o Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser trabalho nas escolas?". O evento contou com a presença de representantes do CMDCA de Carapicuíba, do RISOLIDARIO – USP, e de professores de escolas públicas do município. Desse Fórum resultou uma série de jogos que serão levados para as escolas públicas durante o ano de 2006 e surgiu a proposta de levar a prefeitura mirim para o município e também a realização do primeiro Fórum em nível municipal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 6. ed. Campinas/SP: Papirus, 2003.
  • 7. ARAÚJO, Ulisses F. Assembléia Escolar – Um caminho para resolução de conflitos. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2004. BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 37 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. FREIRE, Paulo. A pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. GANDIN, Danilo. Temas para um projeto político pedagógico. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999. NEILL, Alexander S. Liberdade em medo (Summerhill): radical transformação na teoria e na prática da educação. 18. ed. São Paulo: Ibrasa, 1979. WARSCHAUER, Cecília. A roda e o registro: uma parceria entre professor, alunos e conhecimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 1 É mestranda em Educação Social pela Universidade Salesiana de São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes. E-mail: jparmigiani@fundacaoorsa.org.br 2 Todas as Unidades do Programa Formação da Fundação Orsa desenvolvem o trabalho da Prefeitura Mirim. Cada equipe tem autonomia para desenvolver o projeto de acordo com sua realidade local, sendo, portanto, autores de todo o processo.
  • 8. Direitos da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas André VianaCustódio 1. Considerações Iniciais. A compreensão dos elementos constitutivos da doutrina da proteção integral, como base teórica legitimante e orientadora das políticas públicas para a infância no Brasil, exigem apontamentos sobre os significados históricos atribuídos à infância na produção jurídica brasileira pela doutrina da situação irregular. Isso porque a inclusão dos Direitos da Criança e do Adolescente no campo dos novos direitos ainda causa espanto. Ora, como a exclusão dos direitos humanos, de uma parcela significativa da população brasileira, resistiu ao processo histórico sendo reconhecidos como direitos fundamentais tão recentemente? Qual o significado jurídico-político da afirmação do Direito da Criança e do Adolescente como ramo jurídico autônomo e interdependente dos demais campos da ciência jurídica? Seria realmente necessária uma mudança conceitual em relação à matéria? Quais as concepções superadas em 1988 com a instituição do Direito da Criança e do Adolescente? As respostas para todas essas questões estariam absolutamente incompletas se desconsideradas a real dimensão das idéias de situação irregular produzidas no processo histórico brasileiro. Além disso, o interesse pela matéria decorre do descompasso profundo entre a lei e a realidade brasileira. Daí, a necessidade de compreensão dos reais limites e perspectivas do novo Direito da Criança e do Adolescente para que se transformem em instrumentos provocadores de mudanças sociais positivas. Por isso, a compreensão destas questões implica necessariamente na análise da transição desde as origens do Direito do Menor até o estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. É fundamentalmente essa transição que instaura o Direito da Criança e do Adolescente no campo dos denominados novos direitos. A compreensão deste processo requer uma perspectiva histórica. No entanto, é preciso ressaltar que a descrição dos elementos históricos visa tão somente resgatar alguns elementos para melhor compreensão do tema, deixando-se à margem qualquer expectativa classificatória em torno dos aspectos históricos do tema. Sob este aspecto, PINHEIRO observou:
  • 9. “[...] quatro representações sociais mais recorrentes sobre a criança e o adolescente: objeto de proteção social; objeto de controle e de disciplinamento; objeto de repressão social; e sujeitos de direitos. Cada uma delas emerge em cenário sócio-histórico específico, respectivamente: Brasil-Colônia; início do Brasil-República; meados do século XX; e décadas de 70 e 80 do mesmo século. À medida que vão emergindo e se consolidando, verifica-se a coexistência de duas ou mais delas, marcada pelo embate simbólico. (2004, p. 345)” Em visão semelhante entende-se que a percepção da infância no processo histórico brasileiro envolve retratos do período colonial e imperial, bem como, elementos constituídos em diversos momentos, arbitrariamente definidos e propostos como: Período Pré-Republicano (1530-1889) Primeira República (1889-1927), Período do Direito do Menor (1927-1964), Período da Política Nacional do Bem Estar do Menor (1964-1979), Período da Situação Irregular (1979-1988) e Período da Proteção Integral de 1988 até os dias atuais. As idéias da situação irregular e do “menorismo” dominaram a maior parte da história brasileira, pois apesar da “descoberta da infância” (ARIES, 1981), o Brasil continuou convivendo com idéias segregacionistas, tais como incapacidade e discernimento (VERONESE, 1999). Segundo MENDEZ: “No momento em que a infância é descoberta, ela começa a ser percebida por aquilo que não pode, por aquilo que não tem, por aquilo que não sabe, por aquilo que não é capaz. Aparece uma definição negativa de criança.” (1994) Essa definição produziu uma política e uma normatividade definida pela orientação dos princípios menoristas, que estabeleceu um modelo que perdurou por quase cinco séculos no Brasil e, fundamentalmente, ainda resiste no imaginário cultural e nas práticas institucionais na atualidade. Para compreender os meandros dessa concepção é preciso percorrer alguns momentos históricos decisivos para o tema. 2. As raízes da Doutrina do Direito do Menor. No período denominado como Pré-Republicano, ou seja, até a instalação da República em 1889, o Brasil manteve exclusivamente um modelo caritativo-assistencial de atenção à infância representada por ações em torno do abandono, da exposição e do enjeitamento de crianças que, em regra, tinham como destino o acolhimento por famílias substitutas e a institucionalização nas Rodas dos Expostos. As Rodas criadas conforme o modelo de acolhimento infantil, em vigor na Europa durante o período colonial brasileiro, foi reproduzido e disseminado em larga escala por aqui. Provavelmente, foi um dos modelos assistenciais que mais perdurou na história brasileira, pois a primeira Roda dos Expostos foi criada em 1750 e a última encerrada em 1950, ou seja, durante duzentos anos consolidou-se como o principal modelo de acolhimento infantil. (MARCÍLIO, 1999) No campo da educação, as práticas pedagógicas instituídas pelos jesuítas no século XVI representadas pelo binômio amor-repressão, que aliou a educação à imposição de castigos corporais, também resistiu ao longo dos séculos (CHAMBOULEYRON, 1999, SCHUELER, 2000). Embora, no século XIX as escolas de primeiras letras tenham se ramificado pelas comunidades brasileiras, a real condição da infância era a da absoluta exclusão educacional, com exceção, das crianças nobres que desde esta época recebiam
  • 10. cuidados diferenciados em um modelo educacional doméstico extremamente diversificado. A escravidão também deixou sua marca na história da infância brasileira, pois mesmo no século XIX com os avanços no campo das ciências e a lenta incorporação dos ideais liberais europeus, a maior parte das crianças afro-descendentes foi subjugada à condição de absoluta exploração, muitas vezes tratadas como pequenos animaizinhos como retrata a historiografia referente ao período. (GÓES, 1999) Até o final do período imperial brasileiro, praticamente inexistiu qualquer interesse, garantia de direito e proteção jurídica à infância. Apesar dessa condição, é possível encontrar nas Decisões do Império mulheres reivindicando a liberdade de seus filhos e a devolução de meninos e meninas subtraídos pelas Rodas dos Expostos. Um interesse jurídico especial pela infância surge com a proclamação da República em 1889, quando em decorrência da abolição da escravidão, meninos e meninas empobrecidos circulam pelos centros urbanos das pequenas cidades procurando alternativas de sobrevivência e “perturbam” a tranqüilidade das elites locais. É principalmente a partir destas circunstâncias que o sistema de controle penal é colocado em ação visando estabelecer um controle jurídico específico sobre a infância. Embora, o Código Criminal do Império, de 1830, já tratasse da menoridade como uma categoria jurídica; foi a partir da aprovação do Código Penal da República que a repressão assumiu um caráter político claro em torno do que se desejava enquanto imagem da infância brasileira, ou seja, aquela consagrada como o futuro do país baseado nas concepções básicas do positivismo. WOLKMER observa que “A supremacia do positivismo jurídico nacional constrói-se no contexto progressivo de uma ideologização representada e promovida pelos dois maiores pólos de ensino do saber jurídico: a Escola de Recife e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (São Paulo). Produto de concepções consideradas avançadas na Europa, o apelo cientificista do positivismo surgia como discurso hegemônico e uniforme, identificado com os interesses emergentes da burguesia urbana liberal e com as novas aspirações normativas da formação sócio-econômica brasileira. (2000, p. 130.)” As idéias positivistas aliadas ao movimento higienista e a todo um novo aparato jurídico foi responsável pela produção do “menor” enquanto objeto normativo, segundo o qual o Estado “visando garantir o futuro do país” deveria tomar medidas especializadas. (VIEIRA, 2005, p. 15) É neste contexto que a criminalização, mesmo por meio de contravenções como a vadiagem e a capoeira, tornaram-se instrumentos poderosos de controle social das classes populares. Medidas como a criação do Instituto Disciplinar em 1902 para “menores delinqüentes” e a ampliação da aprendizagem pelas instituições militares serão medidas de caráter simbólico na nova estrutura institucional que se estabelecia na transição dos séculos XIX-XX. Nos primeiros anos do século XX são criadas diversas iniciativas públicas e privadas de atenção à criança, seja pela influência européia decorrente da descoberta da infância ou ainda pela própria necessidade do Estado em oferecer respostas a uma constante pressão
  • 11. social de uma enorme massa de excluídos considerados como obstáculos reais ao ideário positivista da ordem e do progresso. Neste contexto, várias iniciativas isoladas procuravam oferecer medidas de caráter filantrópico e assistencial às crianças já nesta época submetidas ao estigma da “menoridade”. A produção jurídica no período da Primeira República também foi muito intensa com uma vasta produção, geralmente de caráter meramente simbólico, mas que tratavam de temas como a assistência à infância desvalida, o controle do espaço público, a institucionalização de crianças, a regulamentação do trabalho, da aprendizagem e da educação em patronatos agrícolas, o abandono e a delinqüência.[1] É preciso considerar também que o modelo federativo republicano também deixava aos estados as responsabilidades de políticas neste campo, que eram tratadas de acordo com as conveniências locais, mas que indistintamente tiveram como elemento basilar o controle judicial da menoridade. 3. A Doutrina do Direito do Menor. A Doutrina do Direito do Menor teria sua primeira versão organizada com a proposta do primeiro Código de Menores no Brasil, iniciado com a edição do Decreto nº 5.083, de 01 de dezembro de 1926 e manifestando o interesse governamental na elaboração de uma legislação que consolidasse toda a produção normativa referente à matéria. Para desempenhar esta função, o então Presidente Washington Luís, atribuiu ao Juiz de Menores do Rio de Janeiro José Candido Albuquerque de Mello Mattos, conhecido como o primeiro juiz de menores do Brasil e por sua preocupação com a menoridade, a responsabilidade de sistematizar uma proposta. Como resultado, em 12 de outubro de 1927 seria aprovado o primeiro Código de Menores da América Latina. (BRASIL, 1927) Este Código consolidou toda a legislação produzida desde a proclamação da república. De acordo com VERONESE, “O Código de Menores veio alterar e substituir concepções obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, penalidade, responsabilidade, pátrio poder, passando a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional. Abandonou-se a postura anterior de reprimir e punir e passou-se a priorizar, como questão básica, o regenerar e educar. Desse modo, chegou-se à conclusão de que questões relativas à infância e à adolescência devem ser abordadas fora da perspectiva criminal, ou seja, fora do Código Penal. (1999, p. 27-28)” O Código de Menores brasileiro seria representativo das visões em vigor na Europa neste período, segundo as quais era necessário o estabelecimento de práticas psico- pedagógicas, geralmente carregadas de um forte conteúdo moralizador, produzindo e reproduzindo uma visão discriminatória e elitista, que desconsiderou as condições econômicas como fatores importantes na condição de exclusão. Para supostamente resolver os incômodos da delinqüência, do abandono e da ociosidade apresentava propostas focalizadas nas conseqüências dos problemas sociais omitindo-se em relação à absoluta condição de exploração econômica. Os Institutos e estabelecimentos criados para o internamento dos considerados como menores eram motivos de constantes críticas por parte das autoridades, mas o modelo
  • 12. resistiu até o ano de 1941, quando foi criado a Serviço de Assistência a Menores, com a finalidade de prestar a proteção social aos menores institucionalizados. (BRASIL, 1941) A criação do Serviço de Assistência aos Menores demarca uma mudança importante com a inclusão de uma política de assistência social nos estabelecimentos oficiais que até então estavam sob a jurisdição dos juizados de menores. A principal característica da política proposta pelo Código de Menores de 1927 era a institucionalização como via necessária para a solução dos problemas considerados como essenciais à organização social. De todo modo, ao longo de todo o período foi freqüente o reconhecimento da incapacidade do Estado em prover uma política assistencial mesmo mínima, mas que não deixava de exercer o papel de repressão, controle e vigilância aos grupos estigmatizados pelo ideário elitista. Além disso, estimulou a inserção de crianças no trabalho pelos artifícios da aprendizagem e da profissionalização, pois se interessava mais pelos interesses econômicos do que qualquer outra necessidade social. Até 1964, o modelo jurídico do Direito do Menor, que na verdade foi reduzido ao direito de ação estatal contra o menor, subsistiu às diversas transformações do Estado brasileiro praticamente inalterado, convivendo com pequenas experiências democráticas como nas Constituições de 1934 e de 1946, e também com modelos autoritários como do Estado Novo em 1937. No entanto, não se pode desconsiderar que por detrás das concepções menoristas estão as idéias fundamentais do pensamento autoritário. O pensamento autoritário no Brasil teve ênfase principalmente no período compreendido entre 1930 e 1945, sendo resultado da produção política e teórica de intelectuais tais como Francisco Campos, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Alceu Amoroso Lima e Plínio Salgado. (MEDEIROS, 1978) Contudo, a transposição desse modelo centrado no controle jurisdicional sobre a menoridade para o controle repressivo assistencial aconteceria a partir do golpe militar em 1964 com o estabelecimento da Política Nacional do Bem-Estar do Menor e a correspondente criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. 4. A Política do Bem-Estar do Menor. A Fundação Nacional do Bem Estar do Menor foi criada pela Lei nº 4.513, em 01 de dezembro de 1964, integrando, a partir daí, o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Sua personalidade jurídica era a de entidade de direito privado o que garantia a autonomia técnica, financeira e administrativa, mas seus recursos estavam vinculados ao Fundo de Previdência e Assistência Social, de qualquer forma gozava das mesmas “regalias e privilégios” das autarquias federais. A FUNABEM estava sediada em Brasília e tinha por finalidade promover a execução da Política Nacional do Bem Estar do Menor mediante a orientação, coordenação e fiscalização das entidades executoras da política nacional. A Política Nacional do Bem-Estar do Menor foi constituída com base nos princípios da doutrina da segurança nacional oriunda da ideologia da Escola Superior de Guerra. Declarava como objetivo o atendimento das necessidades “básicas do menor atingido por processo de marginalização social”.
  • 13. Como se pode observar, a idéia de irregularidade e segmentação já se fazia presente em tal doutrina na medida em que as políticas públicas eram orientadas apenas para parcela estigmatizada com a marca da marginalização social. Além disso, o compromisso do Estado era mínimo, pois se reduzia ao oferecimento das necessidades básicas e sem qualquer comprometimento com as necessidades mais amplas de desenvolvimento integral. De igual modo, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor também estabeleceu como objetivo de atuação o atendimento às necessidades “básicas do menor atingido por processo de marginalização social”, ou seja, reconhecia as necessidades sociais pela via do avesso, pois além de manter o caráter discriminatório, produzia a atuação estatal pela via de uma estigmatização na qual o a marginalização era o pressuposto para o oferecimento de medidas públicas, condições características do ideário repressivo da época. Quando se afirma que suas diretrizes estavam orientadas para a observação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, é preciso notar que naquele momento ainda não havia sequer uma convenção internacional que amparasse os direitos da criança e do adolescente, mas que as ideologias das Escolas Superiores de Guerra, em especial a americana e a brasileira, estavam em franca ascensão, sendo, pois inevitável compreender que eram estas propostas às quais se vinculavam todo seu conteúdo programático. A prioridade amparada pelas diretrizes da fundação limitava-se a integração do “menor” na comunidade, prestada mediante a assistência à família, e medidas muito próximas da tradição excludente das políticas brasileiras, tais como o incentivo à adoção, colocação familiar em lares substitutos e a institucionalização de “programas tendentes a corrigir as causas de desintegração.” Ora, a romântica visão que os problemas sociais seriam resolvidos por meio do assistencialismo e da propagação das visões deterministas de famílias estruturadas. Se por um lado a idéia de família estruturada povoava o imaginário do bem-estar do menor neste período, na outra face da política estava a institucionalização como reprodutora do ideal de família. O art. 8º, III, do Estatuto da Funabem previa em suas diretrizes que deveria: “[...] incrementar a criação de instituições para menores que possuam características aproximadas das que informam a vida familiar e a adaptação, a esse objetivo, das entidades existentes, de modo que somente se venha a admitir internamento de menor à falta de instituições desse tipo ou por determinação judicial.” Embora a prática proposta fosse a do controle centralizado pelo Estado, o regime tinha claro que a política deveria ter certa articulação com as instituições locais, por isso, considerada a necessidade de atender as necessidades de cada região de acordo com suas peculiaridades, incentivando as iniciativas locais, públicas e privadas, visando dinamizar a “autopromoção” das comunidades, conforme art. 8º, IV do referido Estatuto. O discurso da autopromoção das comunidades foi resposta à constante pressão pela implantação de um modelo de atendimento assistencial. Como o Estado já havia
  • 14. demonstrado, pelo menos desde a década de quarenta, seu absoluto desinteresse em prover o devido atendimento, mas ao mesmo tempo, interessava-se em manter o controle absoluto, a solução foi conciliar o discurso da institucionalização com a autopromoção comunitária, que em regra significou o controle regulador sobre as entidades sociais e a atuação estatal no campo da repressão, com o respaldo das autoridades judiciárias. É neste contexto, que a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor caracterizava-se como típica instituição de controle centralizado, sendo vedada a criação ou manutenção de órgãos executivos voltados ao atendimento, reduzindo-se ao treinamento e experimentação de técnicas e metidos de atendimento. Por isso, estabeleceu a competência para: I - realizar estudos, inquéritos e pesquisas, procedendo ao levantamento nacional do problema do menor; II - promover a articulação das atividades de entidades públicas e privadas dedicadas à execução da política nacional do bem-estar do menor; III - propiciar a formação, o treinamento e o aperfeiçoamento de pessoal técnico e auxiliar, inclusive pertencente a outras instituições públicas ou particulares, necessário à consecução de seus objetivos; IV - promover cursos, seminários e congressos, com o fim de examinar questões de interesse comum das autoridades administrativas e judiciárias relacionadas com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, em todas as Unidades da Federação; V - mobilizar a opinião pública no sentido da indispensável participação de toda a comunidade na solução do problema do menor; VI - prestar assistência técnica ou financeira aos Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas para o desenvolvimento de programas de interesse da política nacional do bem- estar do menor; VII - fiscalizar a execução dos convênios, acordos e contratos de prestação de serviço celebrados com entidades públicas e privadas. Todas essas ações tinham como fundamento elementar o conceito básico de “menor” e a perfeita correlação com a idéia de problema, daí ao longo de todo esse período o foco de atenção institucional submeter-se à expressão: o problema do menor. Pura subjetivação, amparada por uma normatividade, que retirava as responsabilidades da família, da sociedade e do Estado como focos centrais dos problemas propostos. Assim, o problema do menor não era o problema de um país autoritário e capitalista, que produzia e reproduzia a exclusão social. Nada mais fácil do que transferir a responsabilidade à própria vítima. É preciso dizer que a administração da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor era exercida por um Presidente nomeado pelo Presidente da República, mas também contava com a participação de outros órgãos governamentais e não-governamentais, motivo pelo qual não se pode atribuir a visão centralizada do modelo apenas aos governos de plantão, ainda que sejam os maiores responsáveis, houve também entidades que contribuíram para a legitimação daquele modelo. A administração da FUNABEM era composta por representantes de órgãos como o Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Ministério da Educação e Cultura, Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde, Ministério da Previdência e Assistência Social, bem como, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, Conselho Federal dos Assistentes Sociais, Fundação Legião Brasileira de Assistência, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial,
  • 15. Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Conferência dos Religiosos do Brasil, Confederação Evangélica do Brasil, Confederação Israelita do Brasil, Federação Espírita Brasileira e Federação das Bandeirantes dos Brasil. Como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor estava submetida ao Ministério da Previdência e Assistência Social, cabia ao Ministro nomear e destituir os representantes da sociedade civil bem como supervisionar as ações do Conselho de Administração. O controle sobre as entidades era estabelecido de forma centralizada e com fortes vínculos, pois as entidades que recebiam dotações compulsórias, subvenções ou auxílios de qualquer natureza, por parte dos poderes públicos, para a prestação de assistência ao menor, eram obrigadas a planejar suas atividades com observância da política nacional do bem-estar do menor e a submeter à FUNABEM seus planos de trabalho e relatórios circunstanciados dos serviços executados. No ano de 1978, a Fundação Nacional do Bem-Estar e sua respectiva política já era alvo de críticas contundentes sobre o modelo adotado, inclusive de vários organismos internacionais. Como resposta a essa condição, o Governo brasileiro cria, em 11 de dezembro de 1978, a Comissão Nacional do Ano Internacional da Criança. O resultado dos trabalhos da referida comissão seria a base para a declaração formal da Doutrina do Menor em Situação Irregular no Brasil, que desde 1927 estabelecia-se como prática corrente, que precisava de nova roupagem para subsistir às críticas. 5. A Doutrina do Menor em Situação Irregular. O Código de Menores do regime militar, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, proposto pela Associação Brasileira de Juízes de Menores, foi aprovado nas Comemorações relativas ao Ano Internacional da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). A nova lei institui a denominada doutrina da situação irregular no Brasil, da qual os maiores expoentes são os juristas Allyrio Cavallieri e Ubaldino Calvento. A proposta tem origem nas doutrinas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Instituto Interamericano del Niño. Nesta época já havia clareza sobre as diferentes concepções em torno do tema, pois “No I Congresso Ibero-Americano de Juízes de Menores, realizado neste ano [1979] na Nicarágua, juristas do porte de JOSÉ MANOEL COELHO, JOSÉ PEDRO ACHARD, RAFAEL SAJÓN, PEDRO DAVID e LUIZ MENDIZÁBAL OSES aceitaram a colocação feita por UBALDINO CALVENTO, civilista argentino e assessor jurídico da OEA, relativa à existência de três escolas em torno do Direito do Menor. Aqui estão elas: 1ª – Doutrina da proteção integral – partindo dos direitos das crianças, reconhecidos pela ONU, a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação, profissionalização etc. 2ª – Doutrina do Direito Penal do Menor – somente a partir do momento em que o menor pratique um ato de delinqüência interessa ao direito.
  • 16. 3º - Doutrina intermediária da situação irregular – os menores são sujeitos de direito quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente. É a doutrina brasileira.” (CAVALLYERI apud ALENCAR, Ana, LOPES, Carlos Alberto, 1982, p. 85) A visão da situação irregular proposta no Código de Menores de 1979, desde a sua concepção foi objeto de profundas críticas no Brasil. NOGUEIRA lembra: “Quando foi discutido o Código de Menores, o Senador José Londoso, em parecer sobre o Projeto, de autoria do Senador Nelson Carneiro, salientava que: ‘dentro desse contexto, o menor deve ser considerado como vítima de uma sociedade de consumo, desumana e muitas vezes cruel, e como tal deve ser tratado e não punido, preparado profissionalmente e não marcado pelo rótulo fácil de infrator, pois foi a própria sociedade que infringiu as regras mínimas que deveriam ser oferecidas ai ser humano quando nasce, não podendo, depois, agir com verdadeiro rigor penal contra um menor, na maioria das vezes subproduto de uma situação social anômala. Se o menor é vítima, deverá sempre receber medidas inspiradas na pedagogia corretiva [...]’” (1998, p. 4). Em que pese uma leve percepção em torno das contradições da própria proposta, pode- se observar a permanência dos mitos em torno da profissionalização redentora, das perspectivas limitantes de compreensão do menor como infrator ou subproduto, e da insistência em relacionar à idéia de que a exclusão social consistia em uma situação social anômala, quando já poderia ser verificada que a regra geral no modelo capitalista brasileiro era e sempre foi a total exclusão. Assim, o Código de Menores foi aprovado com a proposta de estabelecer o disciplinamento jurídico sobre “assistência, proteção e vigilância a menores” considerando-os como aqueles até 18 anos de idade caracterizados como em situação irregular e, excepcionalmente, até os 21 anos nos casos previstos na própria lei. É de se anotar que “Ainda na fase de estudos para a elaboração de um novo Código de Menores, a Juiz e Professor ALLYRIO CAVALLIERI propôs ‘a eliminação das denominações abandonado, delinqüente, transviado, infrator, exposto etc. para a rotulação de menores’, sugerindo ‘a adoção da expressão situação irregular para todos os casos em que for competente o Juiz de Menores ou aplicável o Direito do Menor.” (ALENCAR, LOPES, 1982) De qualquer forma, a condição de situação irregular foi expressamente classificada a partir dos mesmos estigmas. Nesse sentido, o art. 2º da lei determinava expressamente os critérios para a determinação da situação irregular: “Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
  • 17. III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal. Parágrafo Único. Entende-se por responsável àquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.” A Doutrina do Menor em Situação Irregular não representou real ruptura em relação ao modelo anterior. Ao contrário foi uma configuração jurídica precisa do se almejada desde o golpe de 1964. Nesse sentido o art. 4º do Código é expresso ao recomendar que a aplicação da lei deva considerar “I - as diretrizes da Política Nacional do Bem Estar do Menor, definidas pela legislação pertinente.” As entidades consideradas como de assistência e proteção ao menor eram classificadas entre àquelas criadas pelo poder público e as entidades particulares. As entidades criadas pelo poder público para assistência ou promoção continuaram submetidas às diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que propunham a implantação de centros especializados e destinados à recepção, triagem, observação e permanência dos considerados menores. A inserção no sistema incluía estudo de caso nos centros de recepção, triagem e observação que deveria ser realizado num prazo médio de três meses considerando-se os aspectos sociais, médicos e psicopedagógicos, ou seja, puro controle disciplinar. Nos centros de permanência, a escolarização e a profissionalização eram obrigatórias, sendo oferecidas em regra uma escolarização de péssima qualidade e uma precária profissionalização. O sistema de identificação era despersonalizante com anotações sobre as datas, circunstâncias dos motivos que provocaram a institucionalização e mantidas todas as informações controladas em fichas que tornassem possíveis o controle individualizado e absoluto dos corpos. O controle do Estado sobre as entidades particulares também continuou absoluta, pois precisavam de registro nos órgãos estaduais responsáveis pelos programas para poderem funcionar, sendo comunicados à autoridade judiciária local e à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. As entidades que não estivessem adequadas às diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor tinham seus registros negados, com base no Art. 10 do Código de Menores. Enfim, a doutrina da situação irregular caracterizou-se pela imposição de um modelo que submetia a criança à condição de objeto, estigmatizando-as como em situação irregular, violando e restringindo seus direitos mais elementares, geralmente reduzindo-
  • 18. as a condição de incapazes, aonde vigorava uma prática não participativa, autoritária e repressiva representadas pela centralização das políticas públicas. Houve um controle social por parte de um Poder Judiciário onipotente e assessorado pelas práticas policiais mais violentas, no qual a institucionalização era a regra para o menino e a menina, simplesmente porque nasceram pobres e destituídos das condições básicas de exercer seus poderes políticos e ter uma vida digna como deveria ser o direito de toda a criança. Sobre este tema VIEIRA destaca: Impressionante como a ideologia da Ditadura Militar caminhava na contramão da história, inclusive quanto à regulação normativa das condições de vida da população infanto-juvenil. Em 1979, mesmo ano em que se iniciavam as discussões internacionais acerca da necessidade de se repensar a condição da infância no mundo (discussões estas que culminaram com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989), o Brasil editava seu novo Código de Menores baseado na Doutrina da Situação Irregular. Enquanto o mundo começava a compreender que a criança não é mero objeto, mas pessoa que tem direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, a legislação brasileira perpetuava a visão de que crianças e adolescentes se igualavam a objetos sem autonomia, cujos destinos seriam traçados pelos verdadeiros sujeitos de direitos, isto é, pelos adultos. (2005, p. 22) Resta destacar que, invariavelmente na análise da produção do Direito do Menor e da Doutrina da Situação Irregular no Brasil, alguns aspectos comuns são observados como característicos de todo o período, tais como: 01) visão estigmatizada da infância pela produção do conceito de “menoridade” ou simplesmente pelo conceito de “menor”; 02) tratamento da “menoridade” como objeto de políticas de controle social; 03) atuação estatal direcionada para a violação e restrição dos direitos humanos; 04) (re)produção da condições de exclusão, com base em critérios individuais, econômicos, políticos, sociais, jurídicos que acentuavam as práticas de discriminação racial e de gênero; 05) definição da infância pelo o que ela não tem e não é, ou seja, a afirmação da teoria jurídica das incapacidades; 06) gestão das políticas governamentais de forma centralizada, autoritária, não-participativa; 07) controle centralizado e repressivo das ações associativas e dos movimentos sociais; 08) atuação dos poderes de Estado, principalmente Executivo e Judiciário, justificado pelas condições idealizadas de risco ou perigo; 09) responsabilização individual do menino e da menina à condição de irregularidade; 10) atuação do Judiciário no campo da gestão direta das ações sociais produzindo o juiz-assistente-social e o juiz-policial; 11) garantias oferecidas ao Estado e a Sociedade contra o menino e a menina; 12) institucionalização como prática dominante e freqüente. A constatação deste quadro provocaria significativas resistências às concepções vigentes e com o fortalecimento dos movimentos sociais diversos setores começavam a exigir mudanças no início da década de oitenta, pois não era mais admissível conviver com o velho modelo. Tais práticas foram favorecidas, à época, por uma conjunção de fatores: as precárias condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes; as contundentes críticas às diretrizes e ao conjunto de práticas governamentais de assistência; o acentuar-se das discussões sobre direitos da criança e do adolescente, formalizadas na CNUDC; o contexto sociopolítico propício à reivindicação e reconhecimento legal de direitos; e a
  • 19. articulação de setores da sociedade civil, concretizada no movimento em defesa da criança e do adolescente. Iniciativas de afirmação de direitos também emergiram no espaço governamental. É exemplo a campanha Criança e Constituinte, desencadeada no Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1986, presente na ANC, através das possibilidades de participação de que dispunham outros atores sociais, além dos Parlamentares. (PINHEIRO, 2004, p. 346) Era o início de um complexo processo de transição que resultaria na superação do Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e consequentemente, na substituição correspondente da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. Com segurança, pode-se afirmar que a transição da “doutrina da situação irregular do menor” para a “doutrina da proteção integral” estabeleceu-se gradativamente a partir da consolidação dessas práticas e experiências ocorridas durante toda a década de oitenta, com ênfase no processo de elaboração da nova Constituição, que, posteriormente, seria o elemento constitutivo da afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes no Brasil. 6. A afirmação histórica dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. 6.1 Os fundamentos da doutrina da proteção integral. Para encontrar as bases da Doutrina da Proteção Integral das Nações é necessário resgatar a Declaração de Genebra, de 26 de setembro de 1924. A Declaração reconhece pela primeira vez em um documento internacional os direitos da criança. Este importante documento foi proposto pelo Conselho da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children International) e estabeleceu: 01) a proteção à criança, independente de qualquer discriminação de raça, nacionalidade ou crença, 02) o dever de auxílio à criança com respeito à integridade da família, 03) o oferecimento de condições de desenvolvimento de maneira normal com condições materiais, morais e espirituais, 04) que a criança deve ser alimentada, tratada, auxiliada e reeducada e 05) a primazia de receber socorro em quaisquer circunstâncias. Como síntese, pode-se afirmar que a declaração afirmava concepções oriundas das teorias positivistas e higienistas nos campos da educação e saúde, como se pode notar com os conceitos de tratamento e normalidade. Em 1948, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta declaração afirmou direitos de caráter civil e político, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais de todos os seres humanos, envolvendo, portanto, as crianças. No seu artigo 25 estabeleceu cuidados e assistência especiais à maternidade e à infância. Para as crianças reconheceu uma proteção social, independentemente se nascidas dentro ou fora do matrimônio. Estas transformações provocaram a edição da Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, que traz em seu conteúdo, o primeiro conjunto de valores da Doutrina da Proteção Integral. A Doutrina da Proteção Integral foi constituída por princípios fundamentais reconhecidos para todas as crianças, tais como: 01) o reconhecimento de direitos sem distinção ou discriminação; 02) a proteção especial; 03)
  • 20. a identidade e a nacionalidade; 04) a proteção à saúde e à maternidade, 05) à alimentação, à habitação, à recreação e à assistência médica; 06) ao tratamento e aos cuidados especiais à criança incapacitada; 07) ao desenvolvimento sadio e harmonioso com amor e compreensão com a proteção da família, da sociedade e das autoridades públicas; 08) à educação; 09) o melhor interesse da criança; 10) a primazia de socorro e proteção; 09) a proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração e 10) a proteção contra atos de discriminações raciais, religiosas ou de qualquer outra natureza. A Declaração Universal dos Direitos da Criança afirma os direitos humanos, com base no princípio da dignidade e o valor do ser humano, visando atingir melhores condições de vida para a população infantil, mediante o exercício de direitos e liberdades, protegidos contra qualquer espécie de discriminação, reconhecendo a condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento, que necessita de cuidados e direitos especiais, antes e depois do nascimento, visando o bem-estar da criança, a quem a humanidade deve o melhor de seus esforços. No entanto, o marco discursivo das declarações somente ganhará força a partir instituição de um Grupo de Trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1979, com a finalidade de iniciar os estudos visando à construção de uma proposta de Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O grupo de trabalho desenvolveu suas atividades durante toda a década de oitenta. Neste momento, acontecia o processo de abertura democrática no Brasil e a discussão de uma nova Constituição. Em 1987, a Emenda Popular denominada Criança Prioridade Absoluta, com milhares de assinaturas, proposta por organizações não-governamentais, foi adotada pela Assembléia Nacional Constituinte. No ano seguinte, promulgou o novo texto, e adotou a Doutrina da Proteção Integral na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 227, do seguinte modo: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, Constituição, 1988) No ano seguinte, o Grupo de Trabalho da Comissão dos Direitos Humanos da ONU encerra suas atividades e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança é aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. O Brasil ratificou a convenção logo após, em 21 de novembro de 1990 e incorporou definitivamente a Doutrina da Proteção Integral no corpo normativo brasileiro. Para o educador Antônio Carlos Gomes da Costa: “Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade especial de respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora de continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual
  • 21. deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.” (COSTA, 1992, p. 19) A Doutrina da Proteção Integral foi o fundamento basilar para a consolidação de um novo ramo do direito no Brasil: o Direito da Criança e do Adolescente. Segundo AMARAL E SILVA, a partir daí é: “Muito mais adequado falar-se em Direito da Criança e do Adolescente, um novo ramo mais científico, mais jurídico, dirigido a todas as crianças e adolescentes, com denominação correspondente ao conteúdo da matéria por ele tratada. A nova doutrina evoluiu ‘da situação irregular do menor’ para a situação irregular da família, da sociedade e do Estado, preconizando novas medidas, também para os responsáveis ativos da situação irregular.” (AMARAL E SILVA, 2005) A construção do Direito da Criança e do Adolescente proporcionou significativo processo de reordenamento institucional com reflexos de grande importância, tais como: 01) a desjudicialização das práticas de caráter administrativo; 02) mudanças de conteúdo, método e gestão; 03) a integração dos princípios constitucionais da descentralização político-administrativa e da democratização na efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente e 04) o reconhecimento do status de sujeito de direitos para toda a infância. Esse reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos garantiu, pelo menos no plano formal, o irrestrito, amplo e privilegiado acesso à Justiça. (ROCHA & PEREIRA, 2005) O art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos não se reduz a uma declaração meramente formal; mas envolve uma perspectiva mais ampla ao substituir a menoridade enquanto categoria conceitual. No Brasil, a Doutrina da Situação Irregular do Menor consolidou uma prática discriminatória e estigmatizante da população empobrecida, submetida ao controle repressivo, através de um sistema centralizado e fundamentado na velha Doutrina da Segurança Nacional, que vitimizou a população brasileira nos anos da ditadura. Com o processo de abertura democrática, a proposta menorista reprodutora das desigualdades sociais brasileiras, já não encontrava mais fundamentos. A própria expressão “menor”, que ao longo de século XX, foi habitualmente relacionada à condição de abandono ou delinqüência serviu, principalmente, para distinções arbitrárias entre crianças favorecidas e desfavorecidas. Isso provocou uma dualidade, na medida em que às crianças eram reconhecidas em sua condição de infantes e os menores eram submetidos à condição de objeto de políticas, geralmente repressivas, punitivas e negadoras da sua condição de sujeito histórico. Nas discussões da década de oitenta, a expressão será questionada como portadora de forte estigma, pois foi geralmente utilizada como forma de discriminação. No Brasil, os próprios meninos e meninas reivindicaram o direito de serem reconhecidos universalmente como crianças e adolescentes. Por isso, a nova Constituição da República do Brasil revogou a expressão “menor” do ordenamento jurídico brasileiro e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. É preciso destacar, que embora, nos textos das declarações e convenções
  • 22. internacionais o termo utilizado seja “criança”, o Brasil optou por uma distinção de acordo com a etapa de desenvolvimento fazendo a distinção entre crianças e adolescentes. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, criança é a pessoa com idade até doze anos incompletos e, adolescente, aquele com idades entre doze e dezoito anos. Além da importante mudança terminológica, que reconhece a criança e o adolescente como “sujeitos”, a Constituição foi além ao garantir a condição de “sujeito de direitos”. O reconhecimento desta condição consolida uma nova lógica de compreensão e pensamento em relação à infância e a adolescência no Brasil. A titularidade de direitos resguardada pela legalidade formal apresenta-se como reflexo ideológico do momento histórico vivido, construído pelas forças sociais representativas do discurso do poder, que encerra em si, um universo de possibilidades latentes, almejando real capacidade de efetivação. “A idéia de titularidade corresponde ao reconhecimento da dignidade humana, isto é, à possibilidade de reconhecer o direito, de lutar por seus direitos. Esta possibilidade é identificada mediante a própria consciência de cidadania civil, política e social. Quando a cidadania está em crise não há identificação dos direitos de cada pessoa.” (COSTA & LIMA, 2005) A racionalidade formal do direito circunscreve o limite do possível, sem ao mesmo tempo, limitar as forças emancipatórias que desestabilizam as relações de poder em busca da superação das condições materiais e concretas de existência. Por outro lado, a condição de sujeito de direitos altera a relação tradicional de controle e vigilância do Estado sobre a infância deslocando o campo de exigibilidade de direitos para o universo difuso da população infanto-juvenil. Assim, procurou fortalecer os movimentos sociais e a condição de cidadania como forma de garantir a exigência permanente de novas conquistas no campo de serviços públicos e, que sejam capazes de efetivar as promessas jurídicas inscritas na lei. O reconhecimento universal de crianças e adolescentes na condição de sujeitos de direitos pretende assegurar um status social para que seja possível nas mesmas condições o exercício efetivo e pleno destes direitos. Embora o reconhecimento da titularidade dos direitos fundamentais seja uma conquista do frágil e tardio liberalismo brasileiro, que talvez nunca tenha se efetivado concretamente, é importante destacar que mesmo a garantia formal desses direitos à criança e ao adolescente foi reconhecida apenas no final do século XX, com o amparo constitucional e, por isso, reveste-se de caráter inovador. Portanto, para além das suas possibilidades em garantir a efetivação dos direitos fundamentais, seu maior significado está na superação da posição predominante no século XX, que reduziu a criança a objeto de tutela, incapaz ou menor. O reconhecimento como sujeito de direitos implica num desenlace libertário da criança das amarras institucionais que cultivavam as obrigações de obediência e submissão. Neste contexto, não interessa mais o estigma justificativo da intervenção estatal imposto à criança, mas sim, na possibilidade concreta e objetiva da criança e do adolescente exigir a efetivação de seus direitos.
  • 23. Deste modo, o reconhecimento da condição de sujeitos de direitos implica na universalização do conceito de direitos de cidadania, que qualifica os espaços de participação no controle público do Estado como forma de direcionar sua atuação na perspectiva de efetivação dos direitos, ultrapassando uma concepção meramente normativa de direitos humanos, transformando-se em instrumentos concretos de ação política orientadora de políticas públicas. (BRASIL, Comissão de Direitos Humanos, 2003, p. 08) Trata-se da abertura de um novo espaço jurídico-participativo dos agentes sociais na medida em que se reconhece a possibilidade do direito a ter direitos, que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. É neste sentido, que o sujeito transfigura-se no sujeito cidadão. (VERONESE, 1997, p. 14) O Direito da Criança e do Adolescente afirma-se no contexto jurídico brasileiro como instrumento para transformações. Não se tratam de mudanças apenas do campo da organização burocrática do Estado, mas antes de tudo, representa a consolidação de uma base de sustentação para numa nova ética, uma nova técnica e uma nova estética. A nova ética, proposta pelo Direito da Criança e do Adolescente, desloca seu campo de percepção não apenas para uma nova etiologia, mas essencialmente para a dimensão do reconhecimento da dignidade humana como elemento axiológico orientador de todo o ordenamento jurídico. Isso se pretende com nova técnica jurídica e com mudanças de conteúdo, método e gestão. (COSTA, 1994, p. 25) As transformações estruturais do novo direito trazem em seu corpo uma potencialidade de re-significação estética da infância. É a superação da imagem simbólica abstrata do menor como “portador de futuro em risco”. O desafio é alcançar a realidade concreta da criança e do adolescente como “detentores de presente como sujeito de direitos”. Trata- se de nova descoberta da infância como período próprio e particular de desenvolvimento. No Brasil, é segunda tentativa histórica de superação do sentimento de indiferença em relação à infância. O estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral como elemento basilar do novo sistema jurídico implica no reconhecimento da criança e do adolescente como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento; mas também no valor presente e prospectivo da infância e nas suas condições especiais de vulnerabilidade. Por isso, o reconhecimento dos direitos humanos para todos e um conjunto de direitos especiais destinados à ampliação das possibilidades e capacidades de proteção à criança e ao adolescente. No Brasil, o reconhecimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente se fez acompanhar também por uma verdadeira política de direitos com um sistema próprio e particular destinado à sua efetivação. É por meio de uma práxis jurídica e uma ação transformadora da sociedade civil que se pretende estimular capacidade de transformação. Neste contexto, o Direito da Criança e do Adolescente promove o reordenamento institucional atribuindo responsabilidades à família, à sociedade, ao mercado e ao Estado. O objetivo é a construção de uma nova cultura de proteção à infância e à adolescência.
  • 24. Esses novos compromissos éticos, jurídicos e políticos constituídos nas práticas sociais, mas também no sistema normativo, fortalece o papel do Estado democrático e de direito, como agente de efetivação dos direitos fundamentais, orientados por uma teleologia diferente e inerente aos novos princípios, regras e valores em construção. Contudo é preciso lembrar que: “Um dos grandes mitos contemporâneos é o de que os direitos humanos estão assegurados quando inscritos em uma Constituição democrática. O Estado de Direito ocidental aparece como o único garantidor dos direitos humanos. E a existência destes é a garantia da existência da própria democracia. Esta pseudo-relação entre direitos humanos, Estado de Direitos e democracia liberal, omite o fato de que estes últimos também sustentam o sistema econômico capitalista, que, na prática, impede a efetivação de uma grande parcela daqueles. Omite ainda que o Estado de Direito burguês também garante os direitos do capital e da exploração do trabalho.” (RODRIGUES, 2005, p. 23) Entretanto, é exatamente neste contexto que emerge o Direito da Criança e do Adolescente, frutificando como um sistema aberto, potencialmente contraditório, materialmente valorativo e teleológico, inacabado e dinâmico. Enfim, comprometido com o processo histórico, pois tem como base uma justiça material, não formal, para além da lógica, com caráter axiológico, com tendência à generalização, que pretende alcançar a igualdade material. “[...] o Estado social não é artigo ideológico, nem postulado metafísico, nem dogma religioso, mas verdade da Ciência Política e axioma da democracia.” (BONAVIDES, 2003, p. 45) Para que sua realização esteja próxima ao possível, exige um pensamento jurídico crítico, comprometido com uma sociedade em mudança. A efetivação do Direito da Criança e do Adolescente implica na superação do modelo liberal clássico, não intervencionista, para um modelo de intervenção social democrático-participativo. Resgata-se o essencial papel da política como forma de realização das necessidades mediante o exercício da subjetividade, do restabelecimento dos vínculos comunitários com a realidade concreta apresentando um amplo campo de infinitas possibilidades de ação. Por isso, o desafio da efetividade dos direitos está proposto em torno de um sistema próprio denominado Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente, que pretende deslocar o direito do campo das idéias para a realização prática na realidade social. É, portanto, um sistema com as ligações complexas da vida social estabelecendo relações essencialmente contraditórias e tensas. Enfim, a compreensão teórica do Direito da Criança e do Adolescente exige a articulação entre princípios, regras e valores próprios, mas que apenas encontram sentido na medida em que estão co-relacionados com as demandas concretas e necessidades de transformação social. De acordo com MENDEZ, “A nova relação infância-lei implica uma profunda revalorização crítica do sentido e da natureza do vinculo entre a condição jurídica e a condição material da infância.” (2001, p. 25) 6.2 O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente.
  • 25. Neste momento, o grande desafio é como fazer o Direito da Criança e do Adolescente transformar o mundo da vida. Quando se afirma: “o Direito da Criança e do Adolescente é inovador porque garante muitos direitos”. É preciso reconhecer que o Direito da Criança e do Adolescente apenas afirma o universo dos Direitos Humanos para a população infanto-juvenil. Na verdade, o Direito da Criança e do Adolescente é inovador porque pela primeira vez na história brasileira houve uma declaração de direitos acompanhada de um sistema de garantias que possibilita a realização concreta destes direitos. Como os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, ele requer uma hermenêutica própria comprometida com a proteção integral e o melhor interesse da criança. “O modelo hermenêutico apropriado ao Direito da Criança e do Adolescente deve partir de premissas epistemológicas e metodológicas que o reconheçam como um direito garantista, eticamente comprometido com a cidadania infanto-juvenil, implicando na subordinação da sociedade e do Estado à democracia como um valor universal, com um regime de direitos, liberdades e garantias localizados como eixo central da ordem política e social.” (LIMA, 2001, p. 456) O direito da criança e do adolescente como um sistema de garantia dos direitos fundamentais ampara a proteção integral num sistema lógico, organizado sob a perspectiva de redes com responsabilidades compartilhadas entre família, sociedade e Estado. O sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente foi constituído com base em princípios norteadores da ação estatal, tais como a descentralização, o reordenamento e a integração operacional do sistema. A proposta está orientada por uma dinâmica que se afasta das tradicionais intervenções, restritas a imposição das práticas de governo, bem como, das lógicas lineares de ação que transferem responsabilidades de um órgão para outro, burocratizando o sistema, e historicamente atingindo poucos resultados. Mas, é preciso ressaltar que a integração das diversas esferas e órgãos do sistema ainda é uma realidade distante no Brasil. Um dos aspectos fundamentais desse novo sistema foi a criação de duas instituições básicas: os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são órgãos responsáveis pelo planejamento, controle, deliberação e monitoramento das políticas públicas. Já, os Conselhos Tutelares são órgãos compostos por representantes da sociedade civil com a atribuição de agir sempre que os direitos forem ameaçados ou violados, pela família, pela sociedade, pelo Estado e, até mesmo, pelas próprias crianças e adolescentes. Diante de situações como estas, os Conselhos Tutelares aplicam medidas de proteção às crianças e adolescentes e, também, aos pais ou responsáveis. Os Conselhos Tutelares são órgãos que devem funcionar em todos os municípios brasileiros. Já os Conselhos de Direitos, além de funcionar nos municípios, tem instâncias em outras esferas, tais como a estadual e a nacional. Em síntese, o sistema de garantias de direitos pretende provocar transformações estruturais a partir do entrelaçamento de quatro dinâmicas específicas, que envolvem: a
  • 26. política de atendimento, a política de proteção, a política de promoção e a política de justiça. 6.3 Apontamentos sobre a política de atendimento. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente realiza-se por meio do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais nos três níveis de governo, mediante a colaboração recíproca entre os municípios, os Estados, o Distrito Federal e a União. Na proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente, a política de atendimento envolve linhas de ação, diretrizes e responsabilidades relativas aos programas e entidades de atendimento. As linhas de ação da política de atendimento envolvem: políticas sociais básicas; políticas e programas de assistência social; serviços especiais de prevenção, atendimento, identificação e localização dos pais ou responsáveis, bem como, proteção jurídica e social prestada por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente. As políticas sociais básicas estão direcionadas para a efetivação direta e imediata dos direitos fundamentais, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 227. As políticas sociais básicas envolvem: “Os benefícios ou serviços de prestação pública dos quais podemos dizer: ‘isto é direito de todos e dever do Estado’, ou seja, as políticas sociais básicas dirigem-se ao universo mais amplo possível dos destinatários, sendo, portanto, de prestação universal. Educação e saúde, por exemplo, são direitos de todas as crianças e dever do Estado. Não pode, portanto, existir criança ou adolescente, independente da sua condição, que esteja legalmente privado do direito à educação e à saúde. Trata-se de um direito de todos, reconhecido e prestado ao conjunto da população infanto-juvenil sem distinção alguma.” (COSTA, 1994, p. 43) Sob esta perspectiva a política social básica incluiu os programas de atendimento articulado com a prestação de serviços especializados como forma de garantia e efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, mas também, estabelecer uma política subsidiária de Assistência Social para àqueles que dela necessitem, visando promover a emancipação da criança, do adolescente e de sua família. Trata-se, portanto, de uma política do agir estatal. Para LIMA, “[...] uma política do agir estatal é uma macro-política que impõe ao Estado um Agir, por dever de agir, tendo em vista que o Estado é instrumento à disposição da sociedade para que o processo social centrado na pessoa humana seja permanente e não fique à mercê da caridade, da filantropia, da concessão, nem dependa de eventuais crises sistêmicas que possam abalar a estabilidade social ou política, a governabilidade, ou fenômeno desse gênero.” (LIMA, 2001, p. 322) Entretanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente também se preocupou com a necessidade de atendimento às condições especiais que possam ameaçar ou violar os direitos da criança e do adolescente ao prever a garantia de oferecimento de serviços especiais que façam prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Estes serviços
  • 27. especiais destinam-se, inclusive, a proteção da criança e do adolescente, quando vítimas de negligência e maus-tratos e, muitas vezes, com crueldade e opressão. Daí a necessidade do atendimento especializado, que compreenda suas conseqüências e esteja preparado para perceber os danos ao desenvolvimento físico e psicológico da criança e do adolescente oferecendo alternativas concretas àquela condição. Os serviços especiais devem estar preparados para atender as crianças e adolescentes vítimas, independentemente de qualquer condição, preocupando-se sempre com o restabelecimento dos laços familiares, o amparo e a proteção. Por isso a importância da manutenção de serviços para a identificação dos pais ou responsáveis, possibilitando a efetiva reintegração familiar e, evitando-se desta forma o rompimento dos vínculos afetivos e sociais da criança e do adolescente, desde que estas medidas venham acompanhadas de um suporte assistencial visando atender as necessidades da família, da criança e do adolescente. Os serviços especiais de atendimento à criança e ao adolescente reservam um papel importante, mas que isoladamente apresentam pouco efeito, ou seja, precisam estar acompanhados de um conjunto integrado de políticas públicas básicas de caráter universal e acessível para todos. A crítica produzida pela verificação do limites das tradicionais políticas sociais brasileiras de caráter centralizador, burocrático e compensatório e, que sem dúvida, além de deixarem poucos resultados contribuíram decisivamente para o aprofundamento do processo de exclusão social, possibilitou uma nova concepção relativa à política de atendimento, hoje já consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente. A política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente está amparada por um conjunto de diretrizes que trouxeram um verdadeiro reordenamento institucional, “[...] de forma a re-situar os serviços, regionalizar ações e estabelecer funções compartilhadas pelas diferentes instâncias e setores da sociedade (governamentais e não-governamentais, no sentido de viabilizar a atenção em rede através de ações integradas.” (OBSERVATÓRIO DOS DIREITOS DO CIDADÃO, 2004, p. 24-25) Isso representa uma profunda ruptura com os modelos anteriores, orientados pelo estigma da menoridade, da situação irregular e do falacioso Bem Estar do Menor. Nesse sentido, foram estabelecidas a municipalização do atendimento, a criação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, a mobilização e participação da sociedade civil, a descentralização, a criação de fundos vinculados aos conselhos, a integração operacional dos órgãos do sistema de garantias de direitos. As diretrizes dedicam atenção especial aos programas e entidades de atendimento, definindo regimes dos programas, procedimentos para registro e autorização de funcionamento às entidades não-governamentais e programas governamentais, bem como, atribuiu uma sistemática para a fiscalização das entidades, promovendo a participação ativa da sociedade na política de atendimento. A construção de uma política de atendimento requer a integração de uma rede de organizações de atendimento, governamentais e não-governamentais, que colaboram
  • 28. para a produção de diagnósticos, controles, monitoramentos e avaliações, com vistas a uma melhoria qualitativa dos serviços prestados. Além das diretrizes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos últimos anos foram estabelecidas novas estratégias de ação nas Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, ambas amparadas pelos princípios da Doutrina da Proteção Integral. As Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente são realizadas no interstício de dois anos com a finalidade de avaliar as ações realizadas e apontar diretrizes de ação para os próximos dois anos nos três níveis com ampla participação da sociedade civil e os representantes de governo. A comunidade encontra nas Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente um novo espaço de participação e de interferência no sentido dos caminhos desejados para a política de atendimento à criança e ao adolescente representando uma oportunidade de verdadeira relação do Estado com os Movimentos Sociais. Para BARBALET, “[...] os movimentos sociais, ao contrário dos movimentos políticos, não são vocacionados para tomar o poder político, mas parar exprimir as aspirações, interesses, valores e normas – das colectividades sociais. O movimento, social está portanto ligado à mudança social através da modificação das expectativas e dos costumes que influenciam as relações sociais. Como meio de mudança cultural, os movimentos sociais reformulam em que pode consistir a participação social. Assim os movimentos sociais podem apressar o desenvolvimento da cidadania, os direitos de cidadania facilitam o aparecimento dos movimentos sociais.” (BARBALET, 1989, p. 149-150) A construção da Política de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente tem como pressuposto a participação da comunidade, daí a necessidade de municipalização do atendimento. A municipalização do atendimento é decorrente do princípio da descentralização político-administrativa com vistas a garantir o atendimento à criança e ao adolescente no lugar em que vivem. A experiência histórica brasileira demonstrou que a concentração de recursos públicos nas esferas mais elevadas sempre apresentou alto custo, baixo nível de eficiência, demora no atendimento e, como se não fosse suficiente, ainda dava margem para o desvio de recursos, o clientelismo e a corrupção. A municipalização do atendimento, que se entende, como aliada indispensável à descentralização dos recursos, pretende tornar sua aplicação mais segura, facilitando o controle social sobre sua aplicação e ampliando as possibilidades de influência e controle da comunidade local sobre o destino dos recursos e as necessidades efetivas de atendimento à criança e ao adolescente. A municipalização visa aproximar os níveis de decisão e execução das políticas de modo que os programas estejam sintonizados com as necessidades das comunidades, permitindo que as mesmas possam fazer o controle das ações e influenciando na consecução de alternativas mais efetivas de atendimento às crianças e aos adolescentes mediante a criação e manutenção dos programas. (LIMA, 2001, p. 271) Os recursos públicos para o atendimento à criança e ao adolescente não seriam suficientes se não houvesse mecanismos específicos de deliberação, controle e monitoramento das políticas de atendimento nos municípios. Isso se fez necessário,
  • 29. diante da desastrosa experiência do sistema da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que não garantia a participação popular, sendo mantido pelo controle centralizado de um pequeno grupo dirigente e, na maioria das vezes, reproduzido nas instâncias locais. Para resolver esta questão foram criados os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente como órgãos, deliberativos e controladores, nos níveis municipal, estadual e nacional promovendo a primeira grande alteração nas relações hierárquicas de gestão da política pública de atendimento, pois até então as esferas nacionais e estaduais detinham poder de intervenção nos níveis inferiores, sedimentando o controle hierarquizado das ações. Atualmente, “[...] a Constituição estabelece bases jurídicas para a construção de um novo formato de cidadania, agora contemplando o ramo social como direito do cidadão e dever do Estado. Mas não apenas isto; agora a cidadania política transcende os limites de delegação de poderes da democracia representativa e expressa-se por meio da democracia participativa, da constituição de conselhos paritários, que se apresentam como novo lócus de exercício político.” (CAMPOS & MACIEL, 1997, p. 145) Com a criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, essa relação hierárquica sofre uma ruptura, já que os conselhos são autônomos em seus respectivos níveis, estando unicamente submetido às leis, ou seja, as deliberações e resoluções dos conselhos hierarquicamente superiores não vinculam os conselhos locais que devem deliberar e resolver de acordo com a sua própria realidade. O caráter deliberativo dos conselhos vincula a administração pública que deve, necessariamente, atender aos comandos emitidos por esta instância, ocorrendo, portanto, a substituição da arbitrariedade do governante em relação às políticas públicas, devendo agora se restringir à execução das deliberações propostas. Aos Conselhos de Direitos compete deliberar e controlar o conjunto de políticas públicas básicas, dos serviços especializados e de todas as ações governamentais e não- governamentais, direcionadas para o atendimento da criança e do adolescente. Para Vanderlino Nogueira, “Os Conselhos de Direito surgiriam assim como espaços públicos institucionais ‘pontes’, entre a sociedade política e a sociedade civil. O espaço do teste das possibilidades de uma mista democracia representativo-participativa. Aí seriam testados os trabalhos de formação dos gestores públicos comunitários. (Conselheiros não- governamentais). Aí, estariam eles sendo desafiados para o mister de articulação/integração, com os representantes do Estado-governo: para o trabalho de formulação/normatização geral das políticas públicas, o controle das decorrentes ações governamentais e comunitárias e a mobilização social.” (NOGUEIRA, 1997, p. 29-30). Nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, a lei assegura a participação da sociedade civil na sua composição. Os membros são escolhidos pelos Fóruns Permanentes de Entidades Não-governamentais em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA). Os Fóruns DCA são constituídos pelas organizações não- governamentais, mas também por pessoas da comunidade que podem sugerir, decidir,
  • 30. encaminhar e acompanhar suas demandas e necessidades junto aos seus representantes Conselheiros de Direitos, mas também, participar ativamente de todo o processo de consolidação dos direitos da criança e do adolescente, já que “A lei maior consagrou-nos o direito de participação na definição e controle das políticas públicas em todos os níveis. Dessa forma, a cidadania da criança, do adolescente e de qualquer adulto presume participação, materializando a condição de sujeitos de direitos, ou seja, agentes ativos e não objetos de intervenções, como estabelecem as velhas tradições. “(MOTTI, 2005, p. 56). Os Conselhos de Direitos precisam do apoio da comunidade para a definição de suas ações, tais como a formulação de diagnóstico da situação das crianças e adolescentes, o planejamento das políticas públicas necessárias para efetivação do atendimento de acordo com as diversas necessidades; O monitorando e o controle co funcionamento operacional do sistema. Deste modo, o princípio-fim estabelecido pelo Direito da Criança e do Adolescente transfigura-se numa estratégia de empoderamento local. Para que isso seja possível é necessário: - Criação de espaços institucionais adequados para que setores excluídos participem na elaboração das políticas públicas; - Formalização de direitos legais e cuidados no seu conhecimento e respeito; - Fomentos de organização para que as pessoas que integram o capital social excluído possam efetivamente participar e influir nas estratégias adotadas pela sociedade. Esta influência se dá quando a organização permite estender e ampliar a rede social das pessoas que a integram; - Transmissão de capacidades para o exercício da cidadania e da produção, incluindo os saberes instrumentais essenciais além de ferramentas para analisar dinâmicas econômicas e políticas e políticas recentes; - Criação de acesso e o controle de recursos e ativos (materiais, financeiros e de informação) para possibilitar o efetivo aproveitamento de espaços, direitos, organização e capacidades, em competência e articulados com outros atores; - Uma vez construída essa base de condições facilitadoras do empoderamento e da constituição de um ator social, dá-se relevância aos critérios de participação efetiva, com a apropriação de instrumentos e capacidades propositivas, negociativas e executivas. (BARTHOLO JÚNIOR, R. S., MOTA, C. R., FERREIRA, G. S., MEDEIROS, C. M. B., 2003, p. 04) Para viabilizar o complexo conjunto de ações e responsabilidades dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente foi criado, em todos os níveis, o Fundo da Infância e da Adolescência (FIA), vinculado aos respectivos conselhos. O FIA é um fundo especial, nos termos previstos na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964: “Art. 71 – Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à
  • 31. realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.” A composição do FIA é bastante diversificada incluindo as multas judiciais previstas no art. 213, de Termos de Ajustamento de Conduta propostos pelo Ministério Público, da contribuição decorrentes de dedução do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas, conforme o art. 260, ou recursos provenientes de dotação orçamentária ou repasse da União, estados e municípios. Neste contexto, é o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente que têm a competência para fixar os critérios de utilização dos recursos através de planos de aplicação, com a ressalva que os recursos do FIA não se destinam apenas ao financiamento da política de atendimento, pois o Poder Público deve garantir os recursos para suas políticas públicas mediante previsão orçamentária e as organizações não-governamentais, mediante seus próprios orçamentos e estratégias de mobilização de recursos. Os recursos do Fundo da Infância e da Adolescência destinam-se, prioritariamente, ao diagnóstico, ao planejamento, ao monitoramento e à avaliação das políticas públicas, possibilitando ao Conselho de Direitos a realização efetiva de seu papel institucional. Além disso, cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente identificar nas ações governamentais o conjunto de recursos destinados para a política de atenção à criança e ao adolescente, avaliando o grau de prioridade estabelecido na distribuição dos recursos públicos, monitorar a implementação das diretrizes emanadas pelas Conferências de Direitos da Criança e do Adolescente e contribuir na avaliação dos programas de atendimento. No entanto, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como instância inovadora no quadro jurídico institucional brasileiro enfrenta diversos obstáculos. Júlio Manoel Pires observou que: “- Há uma sobreposição no caráter deliberativo do CMDCA em relação ao poder executivo municipal; da mesma forma que há também com relação ao caráter de formulação de políticas públicas em relação a Câmara Municipal; - Não existem critérios claros para a escolha dos conselheiros, sendo esta uma situação que varia para cada município; - Não existe uma homogeneização de conhecimento do sistema jurídico relativo à criança e ao adolescente por parte dos conselheiros, acarretando uma não implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente; - Não é ação comum dos conselhos realizarem um diagnóstico de necessidades e prioridades do município, no que se refere à situação da criança e do adolescente, de maneira a nortear as ações do CMDCA; neste caso a defesa de interesses pessoais ou classistas se torna constante; - A troca de membros do conselho conforme o estatuto, muitas vezes acarreta a descontinuidade das ações; da mesma maneira a sucessão de prefeitos que podem definir novas diretrizes de ação das políticas públicas para o município.” (PIRES, 2006, p. 7-8) A superação dos obstáculos apontados exige uma efetiva mobilização da opinião pública e a participação da sociedade civil na discussão sobre o necessário papel institucional do Conselho de Direitos e, especialmente, dos conselheiros, pois sua