O documento descreve como as ruas do Rio de Janeiro eram extremamente sujas por séculos, com lixo e dejetos humanos sendo despejados publicamente. As praias também serviam como lixões até recentemente. Apesar de melhorias significativas nas últimas décadas, a cidade ainda lida com problemas de consciência cívica e gestão de resíduos. Historiadores atribuem isso ao legado escravista e autoritário do Brasil.
1. Product: OGlobo PubDate: 25-02-2012 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_AJ User: Schinaid Time: 02-24-2012 20:47 Color: C
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34 Sábado, 25 de fevereiro de 2012
OGLOBO
HISTÓRIA
19-02-2012/Ana Branco
Reinado da
imundície
A SUJEIRA DEIXADA na Avenida Chile, no Centro, pela passagem do bloco Boitatá no domingo passado, como parte do carnaval de rua da cidade: até 1808 era permitido por lei esvaziar penicos na via pública
Carnaval ressuscita pesadelo da sujeira que por séculos assombrou a cidade
Roberta Jansen completamente banido no períme- repleto de amônia e ureia, caía so- te portuguesa ao Brasil. O sistema O sistema de limpeza urbana foi es-
roberta.jansen@oglobo.com.br tro urbano com a chegada da corte, bre a pele (dos escravos) e, com o de coleta de esgoto baseado no ser- truturado tecnicamente algumas
em 1808. passar do tempo, deixava listras viço braçal e desumano dos tigres décadas depois, em 1876, pela em-
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hocado com as pilhas de lixo Ao longo do dia, os dejetos eram brancas sobre suas peles negras. vigorou até 1860. presa do francês Aleixo Gary. “A
acumuladas nas praias no ré- guardados para, posteriormente, Por isso, esses escravos eram co- A situação não era exclusiva do gestão dessa empresa foi tão impor-
veillon? Enojado com a sujei- serem levados para praias, terrenos nhecidos como tigres”, relata o jor- Rio de Janeiro. No início do século tante que o sobrenome do empresá-
ra e o onipresente cheiro de baldios ou valas na cidade. “Cronis- nalista Laurentino Gomes em XIX ela se repetia em outras gran- rio foi aportuguesado e passou a de-
xixi nas ruas do Rio nestes dias de tas narram que seu transporte se da- “1808”, livro sobre a chegada da cor- des cidades do mundo, como Lon- nominar os funcionários que traba-
carnaval? Acredite, a coisa já foi va por escravos carregadores e que, dres e Paris. Sem falar de Lisboa. A lham nesse serviço: gari”, escreve
muito pior. A cidade, hoje, é menos algumas vezes, o fundo do barril bem dizer, o Rio, em 1863, foi a ter- Cavalcanti.
suja. E a população mais conscien- (que levavam às costas) se rompia”, ceira cidade da era moderna a ter Hoje, no entanto, o Rio é uma cida-
te, atestam historiadores. Pelo me- escreve Cavalcanti no livro “Rio ci- um sistema de esgotos sanitários -- de bem mais suja do que a grande
nos nos dias em que não há festejos entífico: inovação e memória”. a segunda capital --, atrás apenas de maioria das capitais europeias -- pa-
arrastando multidões para as vias “Parte do conteúdo desses tonéis, Londres (1815) e Hamburgo (1842). ra ficar apenas no mundo desenvol-
públicas, quando o carnaval leva a vido -- e não apenas no carnaval e no
cidade de volta ao seu passado de réveillon.
imundície total. -- Em certo sentido, essa (sujei-
– Documentos falam do des- ra pública) é uma característica
prezo pelo espaço público, da geral das sociedades que não de-
falta de cuidado, desde o início senvolveram algumas coisas fun-
da colonização do Brasil – afir- damentais -- resume Pádua. -- Ao
ma o especialista em história longo da História, o que se obser-
ambiental José Augusto Pádua, va em determinados momentos
professor da Universidade Fede- dos séculos XVIII, XIX e XX, é que
ral do Rio de Janeiro (UFRJ). – vão surgindo mecanismos de cui-
Frei Vicente do Salvador, naquele dado com o espaço público, como
que é considerado o primeiro li- leis, instituições, governança para
vro de história do Brasil, de 1627, fazer com que as leis sejam imple-
conta que ninguém zelava pelo mentadas, vigilância policial, mul-
bem comum, mas cada um pelo tas, educação. À medida que al-
bem particular. E exemplifica, di- gumas sociedades vão desen-
zendo que os espaços coletivos volvendo melhor esses ele-
eram “uma piedade”. mentos, isso vai se refletindo
Vendedores cozinhavam no meio no espaço público.
da rua; animais domésticos como Na análise de Pádua, no en-
aves e porcos podiam estar ao lado, tanto, o Brasil tem algumas ca-
sem nenhuma divisão. Das lojas e racterísticas específicas.
das janelas se atirava lixo. Valas cor- -- É uma característica da His-
riam a céu aberto. Ratos infestavam tória brasileira um déficit gran-
não só as ruas, como também boa de de consciência de cidadania
parte das casas sem causar espanto. -- afirma. -- Porque não bastam
Cachorros poderiam ser vistos revi- educação, leis, multas, gover-
rando ossos em cemitérios. A limpe- nança. É preciso ter essa cons-
za da cidade era basicamente confi- ciência, essa cultura coletiva
ada aos urubus, como resume o his- de valorização do espaço públi-
toriador Oliveira Lima, citado no li- co. E acho que isso tem a ver
vro “1808”, de Laurentino Gomes,
sobre a chegada da família real ao
Brasil.
O lixão era na praia com a nossa herança escravis-
ta, patrimonialista, elitista, de
um controle muito forte das eli-
Um transeunte desavisado poderia Bem antes do último réveillon, dejetos da cidade iam para areia e mar tes sobre a coisa pública, os re-
ser brindado com o conteúdo de um cursos públicos, da pouca de-
penico lançado pela janela no meio l As escandalosas imagens de sujeira produ- história ambiental José Augusto Pádua, da mocracia e participação política
da noite. Os mais educados, contam zidas no último réveillon nas praias do Rio -- Universidade Federal do Rio de Janeiro do povo.
os cronistas da época, avisavam an- com pilhas de lixo acumuladas que incluíam (UFRJ). -- Antes, a praia era vista como lugar O historiador, no entanto, é
tes: “Arreda, ioiô, que lá vai cocô.” O de garrafas vazias a colchões --- não são pro- de morte, doença, perigo, não era relaciona- otimista e acredita que a situação
arremesso de dejetos pela janela não priamente uma novidade. De acordo com da a prazer e saúde. melhorou significativamente, sobre-
era a regra, para dizer a verdade. Só historiadores, tradicionalmente as praias Além do esgoto, que era jogado no mar, tudo nas últimas décadas, apesar
era permitido durante a noite, depois eram lugares de despejo de lixo e excremen- para se ter uma ideia, até 1840 havia um ma- dos excessos registrados nos últi-
da passagem dos escravos responsá- tos e só recentemente se transformaram em tadouro bem próximo da praia de Santa Lu- mos festejos públicos.
veis pelo sistema de esgoto braçal espaços mais valorizados da cidade. Por is- zia, no Centro, como lembra o historiador -- Isso está ligado ao fortalecimen-
que vigorava na época. so, talvez, a ideia de lançar todo tipo de deje- Nireu Cavalcanti, da Universidade Federal to da democracia -- acredita Pádua.
-- Com o incremento da vida notur- to nas areias durante a festa de fim de ano Fluminense (UFF). Sangue, vísceras, restos -- A ampliação da participação elei-
na, alguns moradores começam a não tenha parecido assim tão absurda e no- de animais mortos eram lançados direta- toral da Constituinte (em 1988) para
pedir que o horário a partir do qual jenta para as milhares de pessoas que foram mente na praia. cá é impressionante. Tradicional-
era permitido atirar as fezes, as assistir aos fogos. -- Hoje vivemos uma situação contraditória mente, no Brasil, apenas cerca de
águas servidas, pela janela fosse ca- -- A praia só começa a ganhar importância e -- acredita Pádua. -- Mesmo com a intensa va- 10% da elite votavam. Hoje, esse
da vez mais tarde -- conta o historia- ter valorização coletiva no começo do século lorização social e turística, como se trata de percentual está perto dos 70%. Te-
dor Nireu Cavalcanti, da Escola de XX e isso só cresce mesmo na segunda meta- um espaço público, a praia ainda sofre com a mos uma herança difícil, mas esta-
Arquitetura e Urbanismo da Univer- de do século XX -- afirma o especialista em falta de consciência, de cidadania. mos num processo acelerado de de-
sidade Federal Fluminense (UFF), mocratização e fortalecimento da
acrescentando que o hábito só foi cidadania. n