O documento descreve o Sarau da Cooperifa, o maior sarau de poesia do Brasil, promovido pelo poeta Sérgio Vaz na periferia de São Paulo. O sarau reúne centenas de pessoas semanalmente para recitação de poesia e é inspiração para encontros similares em todo o país. Sérgio Vaz acredita que a periferia vive um momento cultural importante, comparável à bossa nova ou tropicália, e usa a poesia para lidar com problemas sociais.
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● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Sábado, 4 de fevereiro de 2012
PERFIL
Criador do
Poesia rima Leonardo Aversa
com periferia
maior sarau
do Brasil, na
região de
Jardim Ângela,
em SP o poeta
,
Sérgio Vaz vem
inspirando
encontros
similares
país afora
Mauro Ventura
mventura@oglobo.com.br
O
rapper Mano Brown es-
teve lá, assim como a
professora e crítica He-
loisa Buarque de Hol-
landa. O editor Luiz Schwarcz
também, da mesma forma que a
atriz Zezé Motta. Os escritores
Julio Ludemir e Marcelino Freire
foram conferir, a exemplo do di-
retor do Itaú Cultural, Eduardo
Saron. Mas não são eles as estre-
las do Sarau da Cooperifa (Coo-
perativa Cultural da Periferia),
que toda quarta, às 21h, chega a
reunir mais de 300 pessoas no
Bar do Zé Batidão, em Pirapori-
nha, na região de Jardim Ângela,
em São Paulo, que nos anos 1980
ganhou o apelido de Vietnã do
Brasil devido à violência.
A noite é dos moradores da
periferia. Donas de casa, office-
boys, taxistas, estudantes, do-
mésticas, operários que pegam
o microfone e recitam versos
para uma plateia atenta e res-
peitosa. É o maior sarau de
“
poesia do Brasil, promovido SÉRGIO VAZ, que lança livro terça no Rio, sobre a periferia hoje: “É a nossa bossa nova, nossa tropicália, nossa Primavera de Praga, tudo junto”
pelo poeta Sérgio Vaz. Criado
em 2001, ele já deu origem a de- Divulgação/João Wainer
zenas de outros encontros país dores, da revista “Trip”, Orilaxé,
afora, de Salvador a Brasília, do do AfroReggae, e Heróis Invisí-
Rio a Poços de Caldas. Só em veis, do jornalista Gilberto Di-
São Paulo são mais de 50. menstein. Há pouco, levou três
— No Rio, tenho visto o esfor- prêmios Governador do Estado
ço do pessoal do Poesia na Es- de São Paulo, nas categorias
quina, na Cidade de Deus, do Sérgio criou um dos Destaque Cultural (júri popular)
Chá com Letras, em Vila Aliança, movimentos culturais e Inclusão Cultural (júri popular
e do Desmaio Públiko, em Nova e júri especial). Os R$ 60 mil se-
Iguaçu, inspirando-se no modelo mais importantes dos rão investidos na construção de
criado pela Cooperifa para dar um espaço cultural na periferia.
um novo CEP à poesia carioca últimos anos. A energia — Em Higienópolis, tem a
— testemunha Julio Ludemir. daquele lugar (o Sarau Casa do Saber. Como a gente ig-
nora vários assuntos, vamos
Maionese e frango frito da Cooperifa), só vi em criar a Casa da Ignorância, pa-
Vaz acredita que a periferia vi- ra aprendermos juntos.
ve a mesma efervescência cultu-
estádios de futebol ou
ral que a classe média experi- em cultos carismáticos. De amor a balas perdidas
mentou nos anos 1960 e 1970. Julio Ludemir declara-se fã:
— É a nossa bossa nova, A Cooperifa sinaliza o — Ele é o poeta brasileiro
nossa tropicália, nossa Prima- horizonte de mudanças mais importante da atualidade,
vera de Praga, tudo junto. mas não pela qualidade dos
Na próxima terça-feira, às 19h, que este século pode seus textos, ainda que ser um
Vaz lança na livraria Folha Seca, poeta complexo e inspirado se-
no Centro do Rio, seu sétimo li- estar prometendo ja determinante para que eu não
vro, “Literatura, pão e poesia”. tema em lhe dar esse status. Ele
Heloisa Buarque de Hollanda,
Em São Paulo, ele vendeu 170 professora e crítica levou o fazer poético a uma São
exemplares no lançamento, num O SARAU da Cooperifa, no bairro de Piraporinha: 300 pessoas por noite, de operários a intelectuais Paulo profunda e informal.
teatro em Taboão da Serra. Bem Nascido em 1964 no Vale do
diferente do que ocorreu com Jequitinhonha, em Minas, Vaz
sua primeira obra, “Subindo a la- depois o Bar do Zé Batidão. se uma poesia, outro disse “ago- de futebol ou em cultos carismá- da — diz Vaz, que criou em 2007 mudou-se aos 3 anos para a pe-
deira mora a noite”, em 1988. — Onde era minha senzala ra você”, e assim por diante. ticos. A Cooperifa sinaliza o ho- a Semana de Arte Moderna Pe- riferia de São Paulo. Chamado de
— Foi também no Bar do Zé hoje é meu quilombo — diz ele, Dois deles, Vaz e Marco Pezão, rizonte de mudanças que este riférica, mais tarde transforma- “poeta ativista”, ele escreve em
Batidão, que à época ficava em referindo-ao ao trabalho duro levaram a ideia à frente. No pri- século pode estar prometendo. da em mostra cultural. “Literatura, pão e poesia” crôni-
Jardim Guarujá. Teve salada de na mercearia de José Vaz. meiro, apareceram 15 pessoas. Marcelino Freire tem opi- No sarau, a palavra se espa- cas sobre temas que vão do pri-
maionese e frango frito. Eram Um dia, ouviu “Pra não dizer — Eu ligava para os amigos nião semelhante. lha sem freios pelo ambiente. meiro amor e da amizade a men-
umas cem pessoas. Mas só ven- que não falei das flores”, de Ge- ameaçando: “Se não for, não vou — Quando vou, saio energiza- — São noites catárticas. O su- digos e balas perdidas. Em “Re-
di uns dez exemplares. raldo Vandré; mais tarde, caiu falar mais com você.” De repen- do, fortalecido. Em 2012, come- jeito vê o vizinho recitando e nas de Troia”, sobra para Papai
Foi aos 12 anos que ele leu em suas mãos o livro “Confes- te, virou um movimento dos moram-se 90 anos da Semana de pensa: “Se esse cara escreve, eu Noel: “Ele, pra nós, sempre foi
seu primeiro livro. Ou tentou. so que vivi”, de Pablo Neruda; sem-palco. Incrível como as pes- Arte Moderna. Vaz e seu sarau também posso.” Mas a ideia é uma pessoa extremamente dese-
— Gosto muito de misticis- depois conheceu a poesia de soas têm coisas guardadas. são a ressurreição daquele espí- formar leitores, não escritores. legante, nunca aceitou o convite
mo, e na estante do meu pai ti- Ferreira Gullar. E dessa forma Mesmo concorrendo com fu- rito antropofágico, inovador, pro- O que não quer dizer que para visitar a nossa casa.”
nha “Eram os deuses astronau- foi descobrindo seu caminho. tebol e novela, o bar fica lotado. vocador dos modernistas. eles não surjam. Cerca de 50 — Os letristas da bossa nova
tas?”. Não consegui ler e peguei — Mas demorei para assumir — A maioria vai como se fos- A comparação é pertinente. lançamentos já foram feitos no escreviam sobre barquinho des-
outro, “Cem anos de solidão”. a literatura. Onde morava, era se religião — diz Vaz. — A Cooperifa é inspirada na bar desde o início do sarau. lizando no mar. Eles abriam a ja-
José Vaz viu o interesse do fi- uma aberração. Eu era o amigo Heloisa Buarque de Hollan- antropofagia. Tudo o que a gen- — E há pessoas que passaram nela e viam isso. Eu abro e vejo
lho e passou a comprar obras gangorra. Quando me sentava, da é testemunha: te faz na periferia, a classe média a estudar ou voltaram à escola. violência, desigualdade, tráfico.
infanto-juvenis. Por essa época, o outro se levantava, pensando: — Sérgio criou um dos movi- e os intelectuais se apropriam. Vaz foi eleito em 2009 pela re- Vaz diz que escreve para
aos 13 anos, o garoto começou “Pô, lá vem aquele chato.” mentos culturais mais importan- Então, resolvemos pegar as coi- vista “Época” uma das cem pes- não “enlouquecer”.
a trabalhar na mercearia do O sarau teve início num bar. tes dos últimos anos. A energia sas do centro e colocar de forma soas mais influentes do Brasil, e — Não é escolha. Se pudesse
pai. Curiosamente, o local virou Um amigo sugeriu que se recitas- daquele lugar, só vi em estádios periférica, dando uma bronzea- ganhou os prêmios Transforma- escolher, seria engenheiro. ■