(1) A entrevista apresenta a escritora italiana Silvia Avallone e seu livro de estreia "Aço", que retrata a vida dos jovens operários de uma siderúrgica na Toscana. (2) Avallone critica a ideia de usar a beleza e juventude como mercadorias para ascensão social e defende que seus personagens, apesar das dificuldades, pensam no coletivo. (3) Para a escritora, a incerteza econômica atual fortalece os jovens, que buscam constru
1. 6 Sábado, 10 de dezembro de 2011
PROSA & VERSO
‘A incerteza nos fortalece’
A escritora italiana Silvia Avallone vê na crise uma fonte de renovação do sentimento de coletividade
ENTREVISTA Com apenas 25 anos, em janeiro de 2010. Os direitos autorais foram ne- toral da Toscana, em frente à Ilha de Elba e sede de
Silvia Avallone embara- gociados em 17 países, e a obra acaba de chegar ao uma siderúrgica, ela é o cenário de ritos de passa-
Silvia Avallone
lhou as cartas do mer- Brasil pela editora Alfaguara (tradução de Eliana gens, das esperanças e das dificuldades dos jovens
cado editorial italiano. Entre uma faxina e outra em Aguiar). No romance, a escritora desmantelou uma de hoje. A leitura de “Aço” revela um mosaico de
casa — como “remédio antiestresse”, como contou siderúrgica, mergulhou em suas vísceras e saiu de lá personagens e situações de uma geração que brinca
em entrevista ao GLOBO por email —, ela publicou com um retrato da dura vida do jovem operário ita- com o destino, à beira do precipício. No ocaso do
seu romance de estreia, “Aço”, que vai virar filme liano e dos sonhos de duas adolescentes crescidas “berlusconismo”, eis uma radiografia de quem cres-
em 2012, ganhou diversos prêmios na Itália e já ven- numa cidade provinciana, Piombino, terra natal da ceu à sombra dos novos costumes e modelos de vi-
deu meio milhão de cópias desde seu lançamento, escritora, real e imaginária ao mesmo tempo. No li- da, quase sempre incompatíveis com o cotidiano.
Divulgação
Guilherme Aquino ● O livro apresenta uma Toscana
prosaeverso@oglobo.com.br fora da ideia “fácil” do cartão pos-
tal do turista. Podemos imaginar a
O GLOBO: No livro você apresenta realidade universal de Piombino,
a siderúrgica Lucchini como se fosse cidade da fábrica Lucchino, diante
um outro planeta, um lugar mitoló- da Ilha de Elba, frequentada pela
gico, “onde a matéria se transfor- elite, como um “Rio de Janeiro”
ma”. Em suas lembranças de adoles- com a sua praia de Ipanema, “ina-
cente, o que representava o conceito cessível” aos pobres da favela?
de fábrica segundo o qual a “classe Cresci em décadas nas quais o
operária não vai ao paraíso”? ideal publicitário reinava absoluto.
SILVIA AVALLONE: Meu olhar so- O mundo lampejante das paisagens
bre a siderúrgica de Piombino é um dos cartões postais, da televisão,
olhar infantil maravilhado, que nun- escondeu as paisagens reais. Com o
ca perdi. Lembro como me impres- tempo, desenvolvi uma rejeição às
sionava, quando criança, observar paisagens de plástico, construídas e
sua gigantesca imagem, quase mági- fotografadas para o consumo turís-
ca, com as chaminés fumegantes, tico. A literatura se ocupa de mun-
seus vapores, seus segredos além dos muito mais complexos. Sempre
das barreiras intransponíveis. Na amei Piombino, que é um lugar con-
época, não tinha qualquer noção da traditório ao máximo grau: de um la-
“classe operária”, nem das questões do a imponência da fábrica, do ou-
ligadas ao trabalho. Na infância, a fá- tro, as maravilhas das praias. Sem-
brica era para mim um monstro pre amei a província, as periferias
enorme, parecido com os dragões das grandes cidades, esfomeadas e
dos contos de fadas. E sempre con- sedentas, mas pulsantes de desejo.
servei esse olhar “encantado” e “mí- Amo os lugares onde percebo a von-
tico”, que me ajudou a contar um la- tade das pessoas de lutar. Mas na
do oculto da fábrica. Quando cresci, Itália não há metrópoles como o Rio
a siderúrgica se tornou para mim a de Janeiro. A Itália é, em grande par-
história dos seus protagonistas: os te, um país de províncias de peque-
jovens operários da minha idade, SILVIA AVALLONE, sucesso editorial aos 25 anos: protagonistas “pensam no plural”, apesar da influência dos valores individualistas nas cidades, onde ainda é possível
que eu comparava com os heróis da viver em comunidade. E é essa ideia
mitologia grega, que me contavam ções sexuais. Não se deve discrimi- te do status social de cada um. Não deiramente, cuidar do próprio futuro de coletividade que quis descrever.
na praia, depois do fim do turno, nar o afeto, o sentimento. é possível voltar no tempo e tirar a e, por consequência, de seus jovens
suas proezas e seus medos dentro poeira da imagem estereotipada do cidadãos, deve investir na escola pú- ● Numa passagem do livro, um
da imensa “esfinge” de aço. ● As protagonistas do livro são as “punho fechado”. Além disso, acre- blica e na pesquisa universitária. dos personagens, Cristiano, diz ao
adolescentes Anna e Francesca. E dito que os operários sempre foram filho de apenas 6 meses: “Papai te
● Além do aspecto social do livro, o modelo ideal é aquele da televi- muito mais humanos e complexos ● Você cresceu com o fenômeno leva ao Brasil para assistir ao car-
existe o lado da sexualidade. Ado- são, em que a beleza é usada para do que os estereótipos que os repre- Bersluconi. Além da politica, co- naval”. Qual é a sua percepção do
lescentes e jovens podem se reco- a escalada social. sentaram no passado. O ponto é es- mo mudaram os valores da socie- Brasil, hoje em grande desenvolvi-
nhecer nos personagens? Que tabus A ideia de usar a beleza e a juven- te: livrar-se dos estereótipos sem re- dade italiana? mento econômico? Acha que o
deveriam cair para que uma pessoa tude como mercadorias para alcan- nunciar a uma identidade forte. De- Para gerações inteiras, crescidas país representa um ideal de fuga,
possa ser melhor no futuro? çar um status social mais alto é velha ve-se fundar novamente aquela com pão e televisão (a máquina dos um pouco como a Ilha de Elba dos
Sou suspeita, pois amo todos os como o mundo, e faz parte de uma identidade partindo dos jovens que sonhos e dos desejos), certas mis- personagens do livro?
meus personagens. Amo a malícia concepção inaceitável da mulher. É trabalham, hoje, nas fábricas. Te- tificações de bem estar e exibicio- Eu me sinto muito atraída pelo Bra-
inocente e um pouco “palhaça” de um “hábito” do passado, difícil de ser mos que ouvir o que eles dizem. nismo vazio se perderam no tempo. sil, que de onde estou parece um
Anna e Francesca, o carinho escon- combatido. Tratei da sedução que es- Creio que minha geração, hoje, não Hoje somos obrigados a nos con- país gigantesco, transbordado de
dido em Alessio, a coragem da mãe se mito fajuto e discriminatório pode seja mais uma vítima da cultura con- frontar com a incerteza, a crise eco- vitalidade, novidades e contradi-
Sandra e a fragilidade de todos eles. exercer sobre as adolescentes, ainda sumista de massa como foi há um nômica, o desemprego e o trabalho ções. A Europa é um continente “ve-
Porque é uma fragilidade na qual hoje, e o fiz exatamente porque que- tempo: nascemos e crescemos nela, temporário. Isso nos fortalece, nos lho” pela idade da população, e es-
transpiram a vida, a dignidade, os ro combatê-lo, como a maioria das fizemos um calo, e a superamos. torna mais conscientes e responsá- tá atravessando um período difícil,
prazeres, as esperanças, a coragem. mulheres italianas e estrangeiras. veis. Os jovens italianos e estran- de estalo da economia. É natural
É uma humanidade esfomeada e be- ● Qual é sua receita para acreditar geiros hoje se preocupam não ape- que todos olhemos com grande cu-
líssima. Nenhum dos personagens é ● Como você avalia esta cultura, num futuro melhor num momento nas em se “divertir”, mas, sobretu- riosidade para o Brasil muito jovem
individualista. Todos sabem querer que não é mais aquela do operário tão dramático? Como tantos jovens, do, em construir um futuro mais es- e em plena expansão. A literatura e
bem ao outro, pensar no plural. E es- com o punho fechado e que serve, você não tinha um trabalho fixo. tável. A proteção do meio ambien- o cinema latino-americano trouxe-
sa é sua maior força. A descoberta da no ideal do jovem operário, de tram- A escola é a verdadeira estrada te, uma economia mais justa, uma ram um vento revolucionário nas
sexualidade na adolescência, que polim para ter acesso a carro do que deu a mim e a tantos outros a cultura mais livre e direitos civis a últimas décadas do século passa-
conto a partir das emoções de Anna ano e roupas de grife, regalias que possibilidade de correr atrás de um todos são as preocupações que nos do, e essa ventania continua. Sendo
e Francesca, é uma experiência fortís- antes eram apenas dos jovens de fa- sonho. Ler e estudar me ajudaram a movem. Sabemos que a vida não é italiana, percebo uma extraordiná-
sima, que escancara mistérios, temo- mílias com bom poder econômico? imaginar novos lugares, tempos dife- uma festa, como a TV gostaria de ria proximidade com o Brasil, que
res e entusiasmos. Tentei tocar nesse É normal que nos anos 2000, em rentes dos meus e vidas diferentes nos iludir. E estamos prontos para espero conhecer em primeira pes-
tema com o maior respeito possível, culturas invadidas e homologadas da minha. Isso me ensinou a pensar, vivê-la com os pés no chão, pensan- soa, em toda a sua complexidade
protegendo a intimidade dos perso- por televisão, consumismo e publi- a me preocupar com os problemas do não apenas nos nossos interes- caleidoscópica. Para muitos jovens
nagens. Os tabus que devem cair são cidade, todos os jovens desejem as dos outros e não apenas com os ses imediatos, mas também nos europeus, o Brasil é a ilha das ma-
todos os relacionados às discrimina- mesmas coisas, independentemen- meus. Uma nação que quer, verda- das gerações que virão. ravilhas a ser alcançada. ■