SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 17
Baixar para ler offline
i
i
i
i
i
i
i
i
www.lusosofia.net
O QUE ´E A
DASEINANALYSE?
Franc¸oise Dastur
2005
Tradutor:
Ana Falcato * IFL/ UNL
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
FICHA T´ECNICA
T´ıtulo: O que ´e a Daseinsanalyse?
Autor: Franc¸oise Dastur
Colecc¸˜ao: Artigos LUSOSOFIA
Direcc¸˜ao: Jos´e Rosa & Artur Mor˜ao
Design da Capa: Ant´onio Rodrigues Tom´e
Composic¸˜ao & Paginac¸˜ao: Jos´e M. S. Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilh˜a, 2012
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse?∗
Franc¸oise Dastur
O termo “Daseinsanalyse” apareceu pela primeira vez em 1927
na obra-mestra de Martin Heidegger, Ser e Tempo. Foi imedia-
tamente traduzido para francˆes por “analyse existentielle”. Mas
esta denominac¸˜ao est´a na origem de um contra-senso sobre o sen-
tido original que Heidegger deu ao termo Dasein: ´e essa a raz˜ao
pela qual tom´amos o h´abito de conservar o termo alem˜ao Dasein,
mesmo em francˆes. Este termo, que significa literalmente “ser-a´ı”,
´e aquele pelo qual a filosofia alem˜a traduziu, depois de Kant, o
latim existentia, mas Heidegger deu-lhe um sentido muito particu-
lar, j´a que designa na sua filosofia exclusivamente o ser do homem
que, uma vez que a compreens˜ao do ser lhe pertence, n˜ao pode
ser definido de outro modo que como o modo de ser fora de si,
como ex-istˆencia – este termo n˜ao designando mais em Heideg-
ger o simples facto de ser para um qualquer ente, mas exclusiva-
mente o modo de ser pr´oprio do Dasein. A compreens˜ao efectiva
que o Dasein tem de si mesmo ´e, pois, uma compreens˜ao exis-
tencial. Mas aquilo que Heidegger designa por an´alise existencial
ou Daseinsanalyse n˜ao se situa ao n´ıvel simplesmente “ˆontico” do
comportamento individual concreto, mas ao de uma explicitac¸˜ao
∗
Artigo publicado originalmente em Res Publica, Revista da Associac¸˜ao
de Filosofia da Universidade de Paris XII - Val de Marne, no
22, Novembro-
Dezembro-Janeiro 99/2000, pp. 41-45 e traduzido no ˆambito do Projecto “Hei-
degger em Portuguˆes”. A vers˜ao francesa apareceu igualmente em: DASTUR,
Franc¸oise. “Qu’est-ce que la Daseinsanalyse?” Phainomenon 11 (2005), 125-
133.
i
i
i
i
i
i
i
i
4 Franc¸oise Dastur
tem´atica da sua estrutura ontol´ogica. A tarefa da anal´ıtica exis-
tencial consiste em distinguir e em analisar as modalidades de ser
fundamentais do Dasein, os seus existenci´arios. A diferenc¸a en-
tre “existencial” e “existenci´ario” deve ser claramente sublinhada:
n˜ao h´a n´ıvel existenci´ario sem fundamento existencial, quer dizer,
sem a compreens˜ao que tem da sua pr´opria existˆencia um Dasein
em cada caso singular. Mas a an´alise existencial, uma vez que
n˜ao visa unicamente um Dasein particular, mas o Dasein como tal,
constitui a ontologia fundamental que serve de solo a todas as on-
tologias regionais, que tˆem por tarefa elucidar o modo de ser dos
entes diferentes do Dasein, daqueles que procedem, por exemplo,
da regi˜ao “natureza” ou “vida”.
´E Ludwig Binswanger (1881-1966) o verdadeiro fundador da
psiquiatria daseinsanal´ıtica. Ludwig Binswanger, que dirigir´a a
partir de 1910 e at´e `a sua morte a cl´ınica Bellevue, fundada pelo
seu pai em Kreuzlingen, na Suic¸a, encontrou Freud pela primeira
vez em 1906 e n˜ao parou mais de se dar com este, como atesta a sua
correspondˆencia, um di´alogo cr´ıtico que se estende sobre mais de
trinta anos. ´E, com efeito, na cr´ıtica do psicologismo que dirige
Husserl no primeiro tomo das suas Investigac¸˜oes L´ogicas, apa-
recidas em 1900, e na sua redefinic¸˜ao da consciˆencia em termos
de intencionalidade e de sentido, que Binswanger vai encontrar os
motivos para se opor ao naturalismo demasiado estreito de Freud.
Comec¸a ent˜ao a designar a direcc¸˜ao da sua pesquisa, que se desen-
volveu em relac¸˜ao com a fenomenologia husserliana, com o nome
de “antropologia fenomenol´ogica”, integrando-se assim na larga
corrente da “antropologia fenomenol´ogica”, que reuniu a partir dos
anos 20, para al´em do pr´oprio Binswanger, o neurologista Victor
von Weizs¨acker (O c´ırculo da estrutura, aparecido em 1939), o
neuropsiquiatra Erwin Strauss (Sobre o sentido dos sentidos, apare-
cido em 1935), e o psiquiatra francˆes Eug`ene Minkowski (O tempo
vivido, 1933) e muitos outros ainda, que se reclamavam da obra de
Jaspers (Psicopatologia geral, 1913, traduzida para francˆes desde
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 5
1933), mas tamb´em de Scheler, Kierkegaard, Brentano, Dilthey,
Natorp, Lipps, Bergson, antes de sofrerem as influˆencias decisivas
de Husserl e de Heidegger.
A aparic¸˜ao de Ser e Tempo em 1927 permite a Binswanger des-
cobrir que o ser do homem n˜ao ´e bem caracterizado pelos termos
“consciˆencia” ou “vida”, que s˜ao os de Husserl, mas que ´e ainda
necess´ario ter em conta a sua facticidade, o que n˜ao ´e poss´ıvel
a n˜ao ser a partir da determinac¸˜ao heideggeriana do ser humano
como Dasein e ser-no-mundo. O pr´oprio Binswanger, que desco-
briu Ser e Tempo em 1928, s´o se decidir´a a utilizar o termo “Da-
seinsanalyse” para substituir o de “Antropologia fenomenol´ogica”
em 1941. Em 1942 publica a sua obra maior Grundformen und
Erkenntnis menschlichen Daseins (Formas fundamentais e conhe-
cimento da existˆencia humana), na qual empreende uma esp´ecie
de explicac¸˜ao para o conceito fundamental de cuidado (Sorge) em
Heidegger, que julgava insuficiente para dar conta da existˆencia
humana e ao qual acrescenta o de amor (Liebe).
De Binswanger, conhecemos sobretudo, em Franc¸a, para al´em
do texto Sonho e Existˆencia – publicado em 1954 com um longo
pref´acio de Michel Foucault, e grac¸as `as traduc¸˜oes feitas nos anos
que seguiram a sua morte – os numerosos artigos que precedem
e sobretudo seguem a aparic¸˜ao do seu livro mais importante e que
foram reunidos em Discursos, Percursos e Freud (1970) e na Intro-
duc¸˜ao `a an´alise existencial (1971). Os ´ultimos textos de Binswan-
ger (Melancolia e Mania, aparecido em 1960 e Del´ırio, aparecido
em 1965), que foram traduzidos nestes ´ultimos anos pelos alunos
do professor de psiquiatria marselhˆes Arthur Tatossian, esboc¸am
um “retorno a Husserl”, que obedece `a interpretac¸˜ao da fenome-
nologia husserliana oferecida por Wilhelm Szilazi, fenomen´ologo
h´ungaro instalado na Alemanha e autor de uma Introduc¸˜ao `a Fe-
nomenologia de Edmund Husserl, aparecida em 1959. A Dasein-
sanalyse de Binswanger est´a marcada, por oposic¸˜ao `a psican´alise
que nasceu de uma motivac¸˜ao propriamente terapˆeutica, por um
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
6 Franc¸oise Dastur
cuidado sobretudo cient´ıfico, provindo de uma insatisfac¸˜ao relati-
vamente ao d´efice de um fundamento epistemol´ogico para a psi-
copatologia. ´E, pois, por um cuidado, em primeira an´alise meto-
dol´ogico, que Binswanger atacou o m´etodo das ciˆencias naturais
no campo da psiquiatria. Para tal, apoiou-se sobre a destruic¸˜ao hei-
deggeriana do cartesianismo e da relac¸˜ao sujeito-objecto, relac¸˜ao
que n˜ao hesita em apelidar de “cancro” da ciˆencia.
Depois da Segunda Guerra Mundial, uma nova escola de Da-
seinsanalyse ´e fundada em Zurich pelo psiquiatra M´edard Boss
(1903-1991), que tem por objectivo fundamental a aplicac¸˜ao da
filosofia de Heidegger `a pr´atica terapˆeutica no campo das neuro-
ses. M´edard Boss encontrou Heidegger pessoalmente e organizou
com ele, durante dez anos (de 1959 a 1969), na sua casa de Zolli-
kon, os famosos semin´arios com o mesmo nome (Zollikoner Semi-
nare), que reuniram sessenta m´edicos e psiquiatras. Publicou em
1971 a sua obra maior Grundriss der Medizin und der Psychologie
(As grandes linhas da Medicina e da Psicologia), cujo subt´ıtulo
“Rudimentos para uma fisiologia, psicologia, patologia, terapia, e
para uma medicina preventiva conforme ao Dasein na sociedade
industrial moderna” mostra a que ponto estava influenciado pelo
pensamento de Heidegger, facto que o far´a reler e corrigir pessoal-
mente o conjunto do manuscrito antes da sua aparic¸˜ao. ´E tamb´em
o que explica que tenha seguido Heidegger na cr´ıtica que este fez `a
Daseinsanalyse psiqui´atrica de Binswanger, a qual, querendo com-
pletar com o “amor” o “cuidado” heideggeriano, n˜ao compreendeu
o sentido estritamente ontol´ogico que Heidegger dava a este termo,
que n˜ao designa um fen´omeno ˆontico, a saber, um comportamento
concreto e particular do Dasein, mas antes o sentido unit´ario do ser
deste.
Nos Zollikoner Seminare (vide p´ag. 162 e seguintes, sess˜ao
de 26 de Novembro de 1965), Heidegger esforc¸a-se por redefinir
com precis˜ao o sentido do termo “Daseinsanalyse”. Para tal, ´e
preciso explicar o que ele entende em Ser e Tempo por Dasein-
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 7
sanalytik. A analit´ıca do Dasein consiste numa interpretac¸˜ao do
ser-homem como Dasein. N˜ao explicita o ser e constituic¸˜ao do ho-
mem a n˜ao ser na perspectiva da quest˜ao do ser em geral. Ora, o
que h´a de decisivo na constituic¸˜ao do homem ´e a “compreens˜ao
do ser”, quer dizer, o facto de estar aberto ao Ser e que nele “v´a o
ser” (Ser e Tempo, §9). A anal´ıtica do Dasein n˜ao consiste apenas
na elaborac¸˜ao das estruturas ontol´ogicas do pr´oprio Dasein, mas
num questionamento das determinac¸˜oes que caracterizam o ser do
Dasein, na sua relac¸˜ao com o ser em geral. Em Ser e Tempo, a
elaborac¸˜ao da anal´ıtica do Dasein s´o foi colocada com relac¸˜ao `a
quest˜ao do ser, sendo esta limitada e deixada incompleta, porque
apenas as estruturas da existˆencia (os existenci´arios) que servem na
elaborac¸˜ao desta quest˜ao acedem a uma explicac¸˜ao, sendo a tarefa
essencial do fil´osofo a definic¸˜ao do ser do Dasein como cuidado e
temporalidade. Ela n˜ao constitui, portanto, uma anal´ıtica completa
do Dasein que pudesse servir de base a uma antropologia filos´ofica.
Isso explica que os fen´omenos como o amor ou o sonho, aos quais
Binswanger atribui uma grande importˆancia, n˜ao tenham nenhum
papel em Ser e Tempo, j´a que n˜ao reenviam aos existenci´arios do
ser-no-mundo e `a solicitude, que s˜ao os ´unicos analisados nesta
obra.
Heidegger distingue, de seguida, trˆes significac¸˜oes diferentes
do termo Daseinsanalyse:
1. Em Ser e Tempo o termo “Daseinsanalyse” significa a ilu-
minac¸˜ao das determinac¸˜oes do Dasein ou, em outras palavras, dos
existenci´arios, tais como “compreens˜ao”, “disposic¸˜ao”, “discurso”,
etc. Como Heidegger precisa nos Zollikoner Seminare (p. 148),
n˜ao atribui ao termo “an´alise” o seu sentido cient´ıfico moderno de
reconduc¸˜ao aos elementos, nem o seu sentido freudiano de dis-
soluc¸˜ao dos sintomas em elementos explicativos, mas o seu sen-
tido kantiano de reconduc¸˜ao a uma unidade sistem´atica, sendo a
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
8 Franc¸oise Dastur
finalidade de Kant na “Anal´ıtica Transcendental” fazer aparecer a
unidade origin´aria da func¸˜ao do entendimento. Nesta perspectiva,
analisar significa fazer aparecer a articulac¸˜ao da unidade de um
conjunto estrutural, e ´e esse justamente o fim que persegue Hei-
degger na sua anal´ıtica do Dasein, mostrando o enraizamento dos
existenci´arios na estrutura unit´aria do cuidado.
2. O termo “Daseinsanalyse” tem, no entanto, um outro sen-
tido: o de colocar em evidˆencia e de descrever os fen´omenos que se
mostram concretamente num Dasein singular. Trata-se aqui da Da-
seinsanalyse que pratica o m´edico e a an´alise na sua relac¸˜ao a um
paciente. Esta an´alise, dirigida a um existente singular, orienta-se
necessariamente a partir dos existenci´arios colocados em evidˆencia
na anal´ıtica do Dasein. H´a, pois, uma relac¸˜ao de fundac¸˜ao entre
a Daseinsanalyse ontol´ogica de Ser e Tempo e a Daseinsanalyse
m´edica. O m´edico considera, com efeito, os fen´omenos particula-
res que aparecem na relac¸˜ao que estabelece com o seu paciente, `a
luz dos existenci´arios sob os quais podem ser subsumidos de forma
global. Isso exige, antes de mais, da parte daquele que emprega
a Daseinsanalyse m´edica ter a capacidade de compreender o seu
pr´oprio ser homem e o do seu paciente, como Dasein, e n˜ao apenas
como homem no sentido tradicional deste termo, quer dizer, como
animal racional.
3. Mas, a par da Daseinsanalyse m´edica propriamente dita, po-
demos ainda dar a este termo um terceiro sentido, segundo o qual
designa o conjunto de uma poss´ıvel disciplina que tem por objec-
tivo expor de maneira coerente os fen´omenos existenciais a que
podemos assistir no Dasein socio-hist´orico e individual, no sentido
de uma antropologia ˆontica que tenha recebido a marca da anal´ıtica
do Dasein. Trata-se, pois, de uma antropologia existencial que in-
terpreta os fen´omenos existenciais do Dasein a partir do horizonte
da anal´ıtica existencial do Dasein e que substitui a antropologia tra-
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 9
dicional, fundada sobre a interpretac¸˜ao do homem como animal ra-
cional. Uma tal antropologia conforme `a anal´ıtica existencial pode
ser, ela mesma, dividida em antropologia da normalidade e em pa-
tologia daseinanal´ıtica. Heidegger precisa que a elaborac¸˜ao de uma
tal “Daseinsanalyse” antropol´ogica n˜ao pode consistir numa sim-
ples clarificac¸˜ao dos fen´omenos considerados, mas deve tamb´em
ser constantemente orientada com relac¸˜ao `a existˆencia hist´orica
concreta do homem de hoje em dia, quer dizer, do homem das so-
ciedades industriais.
A Daseinsanalyse m´edica apoia-se sobre os elementos forne-
cidos pela Daseinsanalyse antropol´ogica, mas enquanto pr´atica te-
rapˆeutica n˜ao se confunde com esta ´ultima, que tem uma tarefa
propriamente cient´ıfica, correspondendo `a Daseinsanalyse no pri-
meiro sentido, `a qual Heidegger d´a um alcance apenas ˆontico.
No seu exame cr´ıtico da Daseinsanalyse psiqui´atrica de Binswan-
ger, Heidegger sublinha a importˆancia da compreens˜ao do ser como
base e trac¸o fundamental do Dasein. Todos os existenci´arios s˜ao
caracteres deste ´ultimo, j´a que o que Binswanger reteve de Ser e
Tempo foi o ser-no-mundo, sem reparar que este existencial ´e ele
mesmo fundado sobre a compreens˜ao do ser: n˜ao compreendeu,
portanto, que n˜ao ´e o ser-no-mundo que ´e a condic¸˜ao do Dasein,
mas antes o contr´ario. O que significa, aos olhos de Heidegger, que
a sua Daseinsanalyse n˜ao ´e verdadeiramente uma an´alise existen-
cial, mas uma interpretac¸˜ao existencial do Dasein de facto.
A distˆancia que se cavou entre Binswanger e Freud, n˜ao obs-
tante o di´alogo mantido at´e `a morte do ´ultimo, e mais ainda com
Boss, que rejeita a ideia de inconsciente ps´ıquico e o fosso que se-
para a psican´alise ortodoxa fundada sobre a metaf´ısica freudiana e
a Daseinsanalyse, que se apoia sobre a anal´ıtica existencial de Hei-
degger, estiveram na origem da institucionalizac¸˜ao do pensamento
daseinsanal´ıtico. Em 1971, foi criado em Z¨urich o “Instituto Da-
seinsanal´ıtico de Psicoterapia e de Psicosom´atica, Fundac¸˜ao Me-
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
10 Franc¸oise Dastur
dard Boss”, cujo director foi, at´e ao ´ultimo ano, o Professor Gion
Condrau, doutor em medicina e em filosofia, e autor de v´arias obras
versando sobre a Daseinsanalyse, das quais se destaca uma apare-
cida em 1992, sobre Sigmund Freud e Martin Heidegger. Em 1973
foi criada a Associac¸˜ao Internacional de Daseinsanalyse, que com-
preende um certo n´umero de organizac¸˜oes filiadas na Europa e na
Am´erica, entre as quais a Escola Francesa de Daseinsanalyse, fun-
dada em 1993 por fil´osofos e psiquiatras.
A fundac¸˜ao da Escola Francesa de Daseinsanalyse tem a sua
origem numa renovac¸˜ao recente da corrente de psiquiatria feno-
menol´ogica que, em expans˜ao nos anos sessenta, em particular por
causa do “retorno a Husserl” caracter´ıstico dos ´ultimos trabalhos de
Binswanger, ficou adormecida, sobretudo em Franc¸a, nos anos se-
tenta e oitenta, que foram fortemente marcados pela dominac¸˜ao da
psican´alise lacaniana. Esta corrente permaneceu viva na B´elgica e
na Suic¸a, e n˜ao desapareceu totalmente em Franc¸a, onde foi repre-
sentada pela Escola de Marselha, dirigida pelo psiquiatra Arthur
Tatossian (1929 – 1995), a quem foi consagrado um dossier, em
1996, nos n´umeros 5 e 6 de Arte de Compreender. Autor, em 1979,
de uma obra fundamental sobre “A fenomenologia das psicoses”,
Arthur Tatossian foi em Franc¸a a figura mais representativa da cor-
rente da psiquiatria fenomenol´ogica, e s˜ao certamente os seus alu-
nos (os psiquiatras Jean-Michel Azorin e Jean Naudin) que, com o
seu apoio, tornaram poss´ıvel a criac¸˜ao da Escola Francesa de Da-
seinsanalyse. Foi por sua instigac¸˜ao que teve lugar, em Junho de
1997, em Marselha, o segundo Col´oquio Internacional de Psiquia-
tria e de Filosofia, no qual participaram numerosos representantes,
vindos do mundo inteiro, da Daseinsanalyse e cujas actas aparece-
ram num n´umero de A Evoluc¸˜ao Psiqui´atrica. Em Junho de 1999
foi organizado em Nice, pelos psiquiatras ligados `a Daseinsanalyse
– o professor D. Pringuey e o Doutor F.-S Kohl –, um terceiro Con-
gresso internacional de Filosofia e Psiquiatria sobre o tema “Esqui-
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 11
zofrenia e Identidade”, cujas actas apareceram no princ´ıpio do ano
2000.
´E necess´ario, por fim, sublinhar, que o interesse pela psiquiatria
fenomenol´ogica e a Daseinsanalyse foi mantido vivo em Franc¸a
grac¸as aos trabalhos do fil´osofo e fenomen´ologo Henry Maldiney,
que reuniu em 1991, em Pensar o Homem e a Loucura, uma parte
dos numerosos textos que consagrou `a psiquiatria fenomenol´ogica
e `a Daseinsanalyse.
Entre as figuras marcantes da psiquiatria fenomenol´ogica que
foram profundamente influenciadas pela an´alise existencial de Hei-
degger, ´e mister citar os nomes de Tellenbach, Blankenburg e Ki-
mura.
Hubertus Tellenbach (1914-1994) foi, de 1972 a 1979, o di-
rector do departamento de psicopatologia cl´ınica da Cl´ınica Psi-
qui´atrica de Heidelberg. Tellenbach cita muito frequentemente
Heidegger e a corrente de pensamento a que ele se liga, como
Blankenburg e van Baeyer, com os quais forma o grupo de Hei-
delberg, combinando as contribuic¸˜oes de Husserl e de Heidegger
e o recurso `a filosofia para esclarecer a experiˆencia cl´ınica. Con-
sagrou em 1960 uma obra fundamental `a Melancolia na qual des-
creveu o Typus melancholicus, quer dizer, o tipo de personalidade
caracterizado por uma ligac¸˜ao forte e hipertrofiada ao sentido do
dever, que, por ocasi˜ao de uma situac¸˜ao patog´enica (mudanc¸a de
casa, promoc¸˜ao, doenc¸a, casamento, nascimento, luto, etc.) pode
transformar-se em doente melanc´olico. Uma outra das suas obras,
Gosto e Atmosfera, tem tamb´em uma traduc¸˜ao em francˆes. Um
dossier foi-lhe consagrado depois da sua morte em Arte de Com-
preender, n.o
4, 1996.
Wolfgang Blankenburg, nascido em 1928, estuda medicina em
Friburgo e filosofia com Heidegger. Esteve em contacto estreito
com Binswanger e fez parte do grupo de Heidelberg. Foi nomeado
em 1979 professor de psiquiatria e director da Cl´ınica universit´aria
de Marburgo. Entre os seus numerosos trabalhos, um lugar especial
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
12 Franc¸oise Dastur
deve ser atribu´ıdo ao seu estudo sobre a esquizofrenia, “A perda da
evidˆencia natural”, surgido em 1971, situando-se, `a vez, no encalce
de Husserl e de Heidegger.
Kimura Bin, nascido em 1931, psiquiatra japonˆes tradutor de
Binswanger, de Tellenbach e de Blakenburg, esteve por dois per´ıodos
na Alemanha, em Munique e Heidelberg, onde foi em 1969 profes-
sor associado, e inscreve-se, tamb´em ele, na corrente do grupo de
pensadores de Heidelberg. O que podemos nomear de “fenome-
nologia do si” de Kimura desenvolve-se em estreita relac¸˜ao com
as an´alises heideggerianas da temporalidade do Dasein, mas deixa
um lugar importante `as noc¸˜oes propriamente japonesas de a¨ıda
(dimens˜ao interpessoal) e de Jikaku (auto-apercepc¸˜ao). Os seus
Ensaios de psicopatologia fenomenol´ogica foram traduzidos em
francˆes em 1992 por um aluno de H. Maldiney.
Bibliografia
Textos fundamentais
Ludwig BINSWANGER, Le Rˆeve et L’existence, prefaciado
por M. Foucault, Descl´ee de Brouwer, Paris, 1954.
Ludwig BINSWANGER, Analyse existencielle et psychanalyse
freudienne, Discours, parcours et Freud, Traduzido por R. Lewin-
ter e prefaciado por P. F´edida, Tel, Gallimard, 1970.
Ludwig BINSWANGER, Introduction `a l’analyse existentielle,
E. de Minuit, Paris, 1971 (volume que re´une uma s´erie de con-
ferˆencias, traduzidas por J. Verneaux e R. Kuhn, prefaciado por R.
Kuhn e H. Maldiney.)
Ludwig BINSWANGER, Melancholie et Manie, ´Etudes ph´eno-
m´enologiques, traduzido por J.- M. Azorin e Y. Totoyan, PUF, Pa-
ris, 1987.
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 13
Ludwig BINSWANGER, Le Cas Suzanne Urban, traduzido
por J. Verneaux, Ed. G´erard Montfort, 27800, Brionne, 1988.
Ludwig BINSWANGER, Delire, Contributions `a son ´etude ph´e-
nom´enologique et daseinsanalytique, traduzido por J. – M. Azorin
e Y. Totoyan, Mil˜ao, Grenoble, 1993.
Ludwig BINSWANGER, Henrik Ibsen, et le probl´eme de l’auto-
r´ealisation en art, traduzido por M. Dupuis, com um posf´acio de
H. Maldiney, De Boeck Universit´e, Bruxelas, 1996.
Ludwig BINSWANGER, Le probl´eme de l’espace en psycho-
pathologie, traduzido e prefaciado por C. Gros Azorin, PUM, Tou-
louse, 1998.
Wolfgang BLAKENBURG, L aperte de l’´evidence naturelle,
traduzido por J. – M. Azorin e Y. Tatoyan, PUF, Paris, 1991.
Medard BOSS, Introduction `a la m´edecine psychosomatique,
PUF, Paris, 1959.
Medard BOSS, Un psychiatre en Inde, Fayard, Paris, 1971.
Medard BOSS, “Il m’est venu en rˆeve”, Essais th´eoriques et
pratiques sur l’activit´e onirique, traduzido por C. Berner e P. Da-
vid, PUF, Paris, 1989.
Sigmund FREUD-Ludwig BINSWANGER, Correspondance
1908 - 1938, Calmann-L´evy, Paris, 1995.
Martin HEIDEGGER, Zollikoner Seminare, Vittorio Kloster-
mann, Frankfurt a. M., 1987, (Protocolos, conversas, cartas, pu-
blicados por Medard Boss, traduc¸˜ao francesa de Caroline GROS-
AZORIN em preparac¸˜ao).
KIMURA Bin, ´Ecrits de psychopathologie Ph´enom´enologiques,
traduzido por J. Bouderlique, com um posf´acio de H. Maldiney,
PUF, Paris, 1992.
Henry MALDINEY, Penser l’homme et la folie a la lumi´ere de
l’analyse existentielle et de l’analyse du destin, Mil˜ao, Grenoble,
1991.
Jean NAUDIN, Ph´enom´enologie et psychiatrie, Les voix et la
chose, PUM, Toulouse, 1997.
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
14 Franc¸oise Dastur
Arthur TATOSSIAN, La ph´enom´enologie des psychoses, 1979,
segunda edic¸˜ao: n´umero fora da s´erie da revista L’Art du compren-
dre, Julho, 1997.
Hubertus TELLENBACH, La m´elancolie, PUF, Paris, 1979.
Hubertus TELLENBACH, Gaˆut et atmosph´ere, PUF, Paris, 1983.
Textos colectivos
Figures de la subjectivit´e, Approches ph´enom´enologiques et
psychiatriques, estudos reunidos por Jean-Franc¸ois COURTINE,
Edic¸˜ao do CNRS, 1992, contendo os textos de H. TELLENBACH,
H. MALDINEY, A. TATOSSIAN e artigos de J. BENOIST, F.
DASTUR e E. ESCOUBAS, sobre Medard Boss e Martin Heideg-
ger.
Ph´enom´enologie et Psychanalyse, ´Etranges relations, Ed. de
Jean-Claude Beaune, Champ Vallon, Seyssel, 1998 (artigos de G.
CHARBONNEAU sobre “Antropologia fenomenol´ogica e feno-
menologia psiqui´atrica”, de F. DASTUR sobre “Fenomenologia e
metapsicologia”, de J. NAUDIN sobre “A psicoterapia dos esqui-
zofr´enicos”, inter alia).
Psychiatrie et existence (d´ecadas de Cerisy, Setembro 1989).
Textos reunidos por Pierre F´EDIDA e Jacques SCHOTTE, Mil˜ao,
Grenoble, 1991.
Revistas
L’´evolution psychiatrique, n´umero de Junho de 1997 consa-
grado `a publicac¸˜ao das actas do II Col´oquio Internacional de Psi-
quiatria e de Filosofia de Marselha, intitulado Vuln´erabilit´e et Des-
tin: Ph´enom´enologie de la psychiatrie.
L’Art du Comprendre, revista fundada em Marc¸o de 1994 pelo
psiquiatra Georges CHARBONNEAU. O dossier central do n´umero
www.lusosofia.net
i
i
i
i
i
i
i
i
O que ´e a Daseinsanalyse? 15
8, aparecido em Fevereiro de 1999, trata do inconsciente fenome-
nol´ogico.
A Escola Francesa de “Daseinsanalyse” foi criada em Outu-
bro de 1993, sobre o impulso dado pelo Col´oquio Europeu de Fe-
nomenologia Cl´ınica, organizado por iniciativa do Doutor P. Jonckhe-
ere, da Universidade Cat´olica de Lovaina, e do Professor R. Brisart,
da Faculdade Universit´aria de St. Louis, que teve lugar em Marc¸o
de 1993, em Bruxelas. Presidida por Franc¸oise DASTUR, profes-
sora no Departamento de Filosofia da Universidade de Nice, conta
entre os seus membros fil´osofos, psiquiatras, psic´ologos e psico-
terapeutas. Sob a responsabilidade da sua presidˆencia, tem lugar,
desde o Outono de 1993, um duplo semin´ario mensal de psicologia
fenomenol´ogica e de psiquiatria fenomenol´ogica. Este semin´ario
tem lugar num S´abado em cada mˆes, da parte da tarde, na Sor-
bonne.
www.lusosofia.net

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

As sete escolas da psicanálise
As sete escolas da psicanáliseAs sete escolas da psicanálise
As sete escolas da psicanálisePatricia Ruiz
 
Pedagogia e educação
Pedagogia e educaçãoPedagogia e educação
Pedagogia e educaçãoJosé Barros
 
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidade
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidadeSaúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidade
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidadeAroldo Gavioli
 
Psicologia da educação 25.06.11
Psicologia da educação 25.06.11Psicologia da educação 25.06.11
Psicologia da educação 25.06.11Ana Lucia Gouveia
 
Atividade 1 teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPoint
Atividade 1   teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPointAtividade 1   teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPoint
Atividade 1 teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPointMárcio Emílio
 
Psicologia das relações humanas slides aula 1
Psicologia das relações humanas slides aula 1Psicologia das relações humanas slides aula 1
Psicologia das relações humanas slides aula 1souzacamila
 
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...profamiriamnavarro
 
Biografia de Lev Vygotsky
Biografia de Lev VygotskyBiografia de Lev Vygotsky
Biografia de Lev VygotskyKleber Saraiva
 
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da Educação
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da EducaçãoIntrodução aos Fundamentos Psicológicos da Educação
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da EducaçãoRodrigo Castro
 
Definições e conceitos básicos em análise do comportamento
Definições e conceitos básicos em análise do comportamentoDefinições e conceitos básicos em análise do comportamento
Definições e conceitos básicos em análise do comportamentoNilson Dias Castelano
 

Mais procurados (20)

As sete escolas da psicanálise
As sete escolas da psicanáliseAs sete escolas da psicanálise
As sete escolas da psicanálise
 
Pedagogia e educação
Pedagogia e educaçãoPedagogia e educação
Pedagogia e educação
 
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidade
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidadeSaúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidade
Saúde mental, desenvolvimento e transtornos da personalidade
 
Psicologia da educação 25.06.11
Psicologia da educação 25.06.11Psicologia da educação 25.06.11
Psicologia da educação 25.06.11
 
Atividade 1 teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPoint
Atividade 1   teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPointAtividade 1   teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPoint
Atividade 1 teorias de aprendizagem - puc-rs - PowerPoint
 
Psicologia das relações humanas slides aula 1
Psicologia das relações humanas slides aula 1Psicologia das relações humanas slides aula 1
Psicologia das relações humanas slides aula 1
 
Psicanálise
PsicanálisePsicanálise
Psicanálise
 
Linha do Tempo - História da Psicologia
Linha do Tempo - História da PsicologiaLinha do Tempo - História da Psicologia
Linha do Tempo - História da Psicologia
 
Vygotsky
VygotskyVygotsky
Vygotsky
 
Técnicas de Seleção: Psicodrama
Técnicas de Seleção: PsicodramaTécnicas de Seleção: Psicodrama
Técnicas de Seleção: Psicodrama
 
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...
EJA AULA 11: Fundamentos teóricos da Educação de Jovens e Adultos: desenvolvi...
 
Biografia de Lev Vygotsky
Biografia de Lev VygotskyBiografia de Lev Vygotsky
Biografia de Lev Vygotsky
 
Tipos De Aprendizagem
Tipos De AprendizagemTipos De Aprendizagem
Tipos De Aprendizagem
 
Inatismo
InatismoInatismo
Inatismo
 
Artigo as Neuroses
 Artigo as Neuroses Artigo as Neuroses
Artigo as Neuroses
 
Vygotsky
VygotskyVygotsky
Vygotsky
 
Aula de psicologia
Aula de psicologiaAula de psicologia
Aula de psicologia
 
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da Educação
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da EducaçãoIntrodução aos Fundamentos Psicológicos da Educação
Introdução aos Fundamentos Psicológicos da Educação
 
Psicanálise
PsicanálisePsicanálise
Psicanálise
 
Definições e conceitos básicos em análise do comportamento
Definições e conceitos básicos em análise do comportamentoDefinições e conceitos básicos em análise do comportamento
Definições e conceitos básicos em análise do comportamento
 

Semelhante a 20120506 dastur francoise-daseinsanalyse

Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Bianca Curvelo
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Érika Renata
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerÉrika Renata
 
Vol. 13 totem e tabu e outros trabalhos
Vol. 13   totem e tabu e outros trabalhosVol. 13   totem e tabu e outros trabalhos
Vol. 13 totem e tabu e outros trabalhosClaudio Marcio Santos
 
Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisJorge Barbosa
 
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfTexto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfKarlianaArruda1
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaÉrika Renata
 
Sincronicidade - CG Jung.pdf
Sincronicidade - CG Jung.pdfSincronicidade - CG Jung.pdf
Sincronicidade - CG Jung.pdfFerreira Silva
 
Fenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoFenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoSilvia Cintra
 
Vol. 11 cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhos
Vol. 11   cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhosVol. 11   cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhos
Vol. 11 cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhosClaudio Marcio Santos
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaÉrika Renata
 
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Érika Renata
 
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno CarrascoFundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno CarrascoBruno Carrasco
 

Semelhante a 20120506 dastur francoise-daseinsanalyse (20)

Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
 
Vol. 13 totem e tabu e outros trabalhos
Vol. 13   totem e tabu e outros trabalhosVol. 13   totem e tabu e outros trabalhos
Vol. 13 totem e tabu e outros trabalhos
 
Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos Difíceis
 
A Psico Existent.pptx
A Psico Existent.pptxA Psico Existent.pptx
A Psico Existent.pptx
 
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfTexto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
 
Filosofia 10ºano1
Filosofia 10ºano1Filosofia 10ºano1
Filosofia 10ºano1
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústia
 
Sincronicidade - CG Jung.pdf
Sincronicidade - CG Jung.pdfSincronicidade - CG Jung.pdf
Sincronicidade - CG Jung.pdf
 
Fenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoFenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimo
 
Dilthey (1833 1911)
Dilthey (1833 1911)Dilthey (1833 1911)
Dilthey (1833 1911)
 
Vol. 11 cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhos
Vol. 11   cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhosVol. 11   cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhos
Vol. 11 cinco lições de psicanálise, leonardo da vinci e outros trabalhos
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
 
Visao panoramica psicologia wundt
Visao panoramica psicologia wundtVisao panoramica psicologia wundt
Visao panoramica psicologia wundt
 
Visao panoramica psicologia wundt TEXTO 1
Visao panoramica psicologia wundt TEXTO 1Visao panoramica psicologia wundt TEXTO 1
Visao panoramica psicologia wundt TEXTO 1
 
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
 
Bock psicanálise
Bock psicanáliseBock psicanálise
Bock psicanálise
 
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno CarrascoFundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
 
Fenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologiaFenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologia
 

20120506 dastur francoise-daseinsanalyse

  • 1. i i i i i i i i www.lusosofia.net O QUE ´E A DASEINANALYSE? Franc¸oise Dastur 2005 Tradutor: Ana Falcato * IFL/ UNL
  • 3. i i i i i i i i FICHA T´ECNICA T´ıtulo: O que ´e a Daseinsanalyse? Autor: Franc¸oise Dastur Colecc¸˜ao: Artigos LUSOSOFIA Direcc¸˜ao: Jos´e Rosa & Artur Mor˜ao Design da Capa: Ant´onio Rodrigues Tom´e Composic¸˜ao & Paginac¸˜ao: Jos´e M. S. Rosa Universidade da Beira Interior Covilh˜a, 2012
  • 5. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse?∗ Franc¸oise Dastur O termo “Daseinsanalyse” apareceu pela primeira vez em 1927 na obra-mestra de Martin Heidegger, Ser e Tempo. Foi imedia- tamente traduzido para francˆes por “analyse existentielle”. Mas esta denominac¸˜ao est´a na origem de um contra-senso sobre o sen- tido original que Heidegger deu ao termo Dasein: ´e essa a raz˜ao pela qual tom´amos o h´abito de conservar o termo alem˜ao Dasein, mesmo em francˆes. Este termo, que significa literalmente “ser-a´ı”, ´e aquele pelo qual a filosofia alem˜a traduziu, depois de Kant, o latim existentia, mas Heidegger deu-lhe um sentido muito particu- lar, j´a que designa na sua filosofia exclusivamente o ser do homem que, uma vez que a compreens˜ao do ser lhe pertence, n˜ao pode ser definido de outro modo que como o modo de ser fora de si, como ex-istˆencia – este termo n˜ao designando mais em Heideg- ger o simples facto de ser para um qualquer ente, mas exclusiva- mente o modo de ser pr´oprio do Dasein. A compreens˜ao efectiva que o Dasein tem de si mesmo ´e, pois, uma compreens˜ao exis- tencial. Mas aquilo que Heidegger designa por an´alise existencial ou Daseinsanalyse n˜ao se situa ao n´ıvel simplesmente “ˆontico” do comportamento individual concreto, mas ao de uma explicitac¸˜ao ∗ Artigo publicado originalmente em Res Publica, Revista da Associac¸˜ao de Filosofia da Universidade de Paris XII - Val de Marne, no 22, Novembro- Dezembro-Janeiro 99/2000, pp. 41-45 e traduzido no ˆambito do Projecto “Hei- degger em Portuguˆes”. A vers˜ao francesa apareceu igualmente em: DASTUR, Franc¸oise. “Qu’est-ce que la Daseinsanalyse?” Phainomenon 11 (2005), 125- 133.
  • 6. i i i i i i i i 4 Franc¸oise Dastur tem´atica da sua estrutura ontol´ogica. A tarefa da anal´ıtica exis- tencial consiste em distinguir e em analisar as modalidades de ser fundamentais do Dasein, os seus existenci´arios. A diferenc¸a en- tre “existencial” e “existenci´ario” deve ser claramente sublinhada: n˜ao h´a n´ıvel existenci´ario sem fundamento existencial, quer dizer, sem a compreens˜ao que tem da sua pr´opria existˆencia um Dasein em cada caso singular. Mas a an´alise existencial, uma vez que n˜ao visa unicamente um Dasein particular, mas o Dasein como tal, constitui a ontologia fundamental que serve de solo a todas as on- tologias regionais, que tˆem por tarefa elucidar o modo de ser dos entes diferentes do Dasein, daqueles que procedem, por exemplo, da regi˜ao “natureza” ou “vida”. ´E Ludwig Binswanger (1881-1966) o verdadeiro fundador da psiquiatria daseinsanal´ıtica. Ludwig Binswanger, que dirigir´a a partir de 1910 e at´e `a sua morte a cl´ınica Bellevue, fundada pelo seu pai em Kreuzlingen, na Suic¸a, encontrou Freud pela primeira vez em 1906 e n˜ao parou mais de se dar com este, como atesta a sua correspondˆencia, um di´alogo cr´ıtico que se estende sobre mais de trinta anos. ´E, com efeito, na cr´ıtica do psicologismo que dirige Husserl no primeiro tomo das suas Investigac¸˜oes L´ogicas, apa- recidas em 1900, e na sua redefinic¸˜ao da consciˆencia em termos de intencionalidade e de sentido, que Binswanger vai encontrar os motivos para se opor ao naturalismo demasiado estreito de Freud. Comec¸a ent˜ao a designar a direcc¸˜ao da sua pesquisa, que se desen- volveu em relac¸˜ao com a fenomenologia husserliana, com o nome de “antropologia fenomenol´ogica”, integrando-se assim na larga corrente da “antropologia fenomenol´ogica”, que reuniu a partir dos anos 20, para al´em do pr´oprio Binswanger, o neurologista Victor von Weizs¨acker (O c´ırculo da estrutura, aparecido em 1939), o neuropsiquiatra Erwin Strauss (Sobre o sentido dos sentidos, apare- cido em 1935), e o psiquiatra francˆes Eug`ene Minkowski (O tempo vivido, 1933) e muitos outros ainda, que se reclamavam da obra de Jaspers (Psicopatologia geral, 1913, traduzida para francˆes desde www.lusosofia.net
  • 7. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 5 1933), mas tamb´em de Scheler, Kierkegaard, Brentano, Dilthey, Natorp, Lipps, Bergson, antes de sofrerem as influˆencias decisivas de Husserl e de Heidegger. A aparic¸˜ao de Ser e Tempo em 1927 permite a Binswanger des- cobrir que o ser do homem n˜ao ´e bem caracterizado pelos termos “consciˆencia” ou “vida”, que s˜ao os de Husserl, mas que ´e ainda necess´ario ter em conta a sua facticidade, o que n˜ao ´e poss´ıvel a n˜ao ser a partir da determinac¸˜ao heideggeriana do ser humano como Dasein e ser-no-mundo. O pr´oprio Binswanger, que desco- briu Ser e Tempo em 1928, s´o se decidir´a a utilizar o termo “Da- seinsanalyse” para substituir o de “Antropologia fenomenol´ogica” em 1941. Em 1942 publica a sua obra maior Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins (Formas fundamentais e conhe- cimento da existˆencia humana), na qual empreende uma esp´ecie de explicac¸˜ao para o conceito fundamental de cuidado (Sorge) em Heidegger, que julgava insuficiente para dar conta da existˆencia humana e ao qual acrescenta o de amor (Liebe). De Binswanger, conhecemos sobretudo, em Franc¸a, para al´em do texto Sonho e Existˆencia – publicado em 1954 com um longo pref´acio de Michel Foucault, e grac¸as `as traduc¸˜oes feitas nos anos que seguiram a sua morte – os numerosos artigos que precedem e sobretudo seguem a aparic¸˜ao do seu livro mais importante e que foram reunidos em Discursos, Percursos e Freud (1970) e na Intro- duc¸˜ao `a an´alise existencial (1971). Os ´ultimos textos de Binswan- ger (Melancolia e Mania, aparecido em 1960 e Del´ırio, aparecido em 1965), que foram traduzidos nestes ´ultimos anos pelos alunos do professor de psiquiatria marselhˆes Arthur Tatossian, esboc¸am um “retorno a Husserl”, que obedece `a interpretac¸˜ao da fenome- nologia husserliana oferecida por Wilhelm Szilazi, fenomen´ologo h´ungaro instalado na Alemanha e autor de uma Introduc¸˜ao `a Fe- nomenologia de Edmund Husserl, aparecida em 1959. A Dasein- sanalyse de Binswanger est´a marcada, por oposic¸˜ao `a psican´alise que nasceu de uma motivac¸˜ao propriamente terapˆeutica, por um www.lusosofia.net
  • 8. i i i i i i i i 6 Franc¸oise Dastur cuidado sobretudo cient´ıfico, provindo de uma insatisfac¸˜ao relati- vamente ao d´efice de um fundamento epistemol´ogico para a psi- copatologia. ´E, pois, por um cuidado, em primeira an´alise meto- dol´ogico, que Binswanger atacou o m´etodo das ciˆencias naturais no campo da psiquiatria. Para tal, apoiou-se sobre a destruic¸˜ao hei- deggeriana do cartesianismo e da relac¸˜ao sujeito-objecto, relac¸˜ao que n˜ao hesita em apelidar de “cancro” da ciˆencia. Depois da Segunda Guerra Mundial, uma nova escola de Da- seinsanalyse ´e fundada em Zurich pelo psiquiatra M´edard Boss (1903-1991), que tem por objectivo fundamental a aplicac¸˜ao da filosofia de Heidegger `a pr´atica terapˆeutica no campo das neuro- ses. M´edard Boss encontrou Heidegger pessoalmente e organizou com ele, durante dez anos (de 1959 a 1969), na sua casa de Zolli- kon, os famosos semin´arios com o mesmo nome (Zollikoner Semi- nare), que reuniram sessenta m´edicos e psiquiatras. Publicou em 1971 a sua obra maior Grundriss der Medizin und der Psychologie (As grandes linhas da Medicina e da Psicologia), cujo subt´ıtulo “Rudimentos para uma fisiologia, psicologia, patologia, terapia, e para uma medicina preventiva conforme ao Dasein na sociedade industrial moderna” mostra a que ponto estava influenciado pelo pensamento de Heidegger, facto que o far´a reler e corrigir pessoal- mente o conjunto do manuscrito antes da sua aparic¸˜ao. ´E tamb´em o que explica que tenha seguido Heidegger na cr´ıtica que este fez `a Daseinsanalyse psiqui´atrica de Binswanger, a qual, querendo com- pletar com o “amor” o “cuidado” heideggeriano, n˜ao compreendeu o sentido estritamente ontol´ogico que Heidegger dava a este termo, que n˜ao designa um fen´omeno ˆontico, a saber, um comportamento concreto e particular do Dasein, mas antes o sentido unit´ario do ser deste. Nos Zollikoner Seminare (vide p´ag. 162 e seguintes, sess˜ao de 26 de Novembro de 1965), Heidegger esforc¸a-se por redefinir com precis˜ao o sentido do termo “Daseinsanalyse”. Para tal, ´e preciso explicar o que ele entende em Ser e Tempo por Dasein- www.lusosofia.net
  • 9. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 7 sanalytik. A analit´ıca do Dasein consiste numa interpretac¸˜ao do ser-homem como Dasein. N˜ao explicita o ser e constituic¸˜ao do ho- mem a n˜ao ser na perspectiva da quest˜ao do ser em geral. Ora, o que h´a de decisivo na constituic¸˜ao do homem ´e a “compreens˜ao do ser”, quer dizer, o facto de estar aberto ao Ser e que nele “v´a o ser” (Ser e Tempo, §9). A anal´ıtica do Dasein n˜ao consiste apenas na elaborac¸˜ao das estruturas ontol´ogicas do pr´oprio Dasein, mas num questionamento das determinac¸˜oes que caracterizam o ser do Dasein, na sua relac¸˜ao com o ser em geral. Em Ser e Tempo, a elaborac¸˜ao da anal´ıtica do Dasein s´o foi colocada com relac¸˜ao `a quest˜ao do ser, sendo esta limitada e deixada incompleta, porque apenas as estruturas da existˆencia (os existenci´arios) que servem na elaborac¸˜ao desta quest˜ao acedem a uma explicac¸˜ao, sendo a tarefa essencial do fil´osofo a definic¸˜ao do ser do Dasein como cuidado e temporalidade. Ela n˜ao constitui, portanto, uma anal´ıtica completa do Dasein que pudesse servir de base a uma antropologia filos´ofica. Isso explica que os fen´omenos como o amor ou o sonho, aos quais Binswanger atribui uma grande importˆancia, n˜ao tenham nenhum papel em Ser e Tempo, j´a que n˜ao reenviam aos existenci´arios do ser-no-mundo e `a solicitude, que s˜ao os ´unicos analisados nesta obra. Heidegger distingue, de seguida, trˆes significac¸˜oes diferentes do termo Daseinsanalyse: 1. Em Ser e Tempo o termo “Daseinsanalyse” significa a ilu- minac¸˜ao das determinac¸˜oes do Dasein ou, em outras palavras, dos existenci´arios, tais como “compreens˜ao”, “disposic¸˜ao”, “discurso”, etc. Como Heidegger precisa nos Zollikoner Seminare (p. 148), n˜ao atribui ao termo “an´alise” o seu sentido cient´ıfico moderno de reconduc¸˜ao aos elementos, nem o seu sentido freudiano de dis- soluc¸˜ao dos sintomas em elementos explicativos, mas o seu sen- tido kantiano de reconduc¸˜ao a uma unidade sistem´atica, sendo a www.lusosofia.net
  • 10. i i i i i i i i 8 Franc¸oise Dastur finalidade de Kant na “Anal´ıtica Transcendental” fazer aparecer a unidade origin´aria da func¸˜ao do entendimento. Nesta perspectiva, analisar significa fazer aparecer a articulac¸˜ao da unidade de um conjunto estrutural, e ´e esse justamente o fim que persegue Hei- degger na sua anal´ıtica do Dasein, mostrando o enraizamento dos existenci´arios na estrutura unit´aria do cuidado. 2. O termo “Daseinsanalyse” tem, no entanto, um outro sen- tido: o de colocar em evidˆencia e de descrever os fen´omenos que se mostram concretamente num Dasein singular. Trata-se aqui da Da- seinsanalyse que pratica o m´edico e a an´alise na sua relac¸˜ao a um paciente. Esta an´alise, dirigida a um existente singular, orienta-se necessariamente a partir dos existenci´arios colocados em evidˆencia na anal´ıtica do Dasein. H´a, pois, uma relac¸˜ao de fundac¸˜ao entre a Daseinsanalyse ontol´ogica de Ser e Tempo e a Daseinsanalyse m´edica. O m´edico considera, com efeito, os fen´omenos particula- res que aparecem na relac¸˜ao que estabelece com o seu paciente, `a luz dos existenci´arios sob os quais podem ser subsumidos de forma global. Isso exige, antes de mais, da parte daquele que emprega a Daseinsanalyse m´edica ter a capacidade de compreender o seu pr´oprio ser homem e o do seu paciente, como Dasein, e n˜ao apenas como homem no sentido tradicional deste termo, quer dizer, como animal racional. 3. Mas, a par da Daseinsanalyse m´edica propriamente dita, po- demos ainda dar a este termo um terceiro sentido, segundo o qual designa o conjunto de uma poss´ıvel disciplina que tem por objec- tivo expor de maneira coerente os fen´omenos existenciais a que podemos assistir no Dasein socio-hist´orico e individual, no sentido de uma antropologia ˆontica que tenha recebido a marca da anal´ıtica do Dasein. Trata-se, pois, de uma antropologia existencial que in- terpreta os fen´omenos existenciais do Dasein a partir do horizonte da anal´ıtica existencial do Dasein e que substitui a antropologia tra- www.lusosofia.net
  • 11. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 9 dicional, fundada sobre a interpretac¸˜ao do homem como animal ra- cional. Uma tal antropologia conforme `a anal´ıtica existencial pode ser, ela mesma, dividida em antropologia da normalidade e em pa- tologia daseinanal´ıtica. Heidegger precisa que a elaborac¸˜ao de uma tal “Daseinsanalyse” antropol´ogica n˜ao pode consistir numa sim- ples clarificac¸˜ao dos fen´omenos considerados, mas deve tamb´em ser constantemente orientada com relac¸˜ao `a existˆencia hist´orica concreta do homem de hoje em dia, quer dizer, do homem das so- ciedades industriais. A Daseinsanalyse m´edica apoia-se sobre os elementos forne- cidos pela Daseinsanalyse antropol´ogica, mas enquanto pr´atica te- rapˆeutica n˜ao se confunde com esta ´ultima, que tem uma tarefa propriamente cient´ıfica, correspondendo `a Daseinsanalyse no pri- meiro sentido, `a qual Heidegger d´a um alcance apenas ˆontico. No seu exame cr´ıtico da Daseinsanalyse psiqui´atrica de Binswan- ger, Heidegger sublinha a importˆancia da compreens˜ao do ser como base e trac¸o fundamental do Dasein. Todos os existenci´arios s˜ao caracteres deste ´ultimo, j´a que o que Binswanger reteve de Ser e Tempo foi o ser-no-mundo, sem reparar que este existencial ´e ele mesmo fundado sobre a compreens˜ao do ser: n˜ao compreendeu, portanto, que n˜ao ´e o ser-no-mundo que ´e a condic¸˜ao do Dasein, mas antes o contr´ario. O que significa, aos olhos de Heidegger, que a sua Daseinsanalyse n˜ao ´e verdadeiramente uma an´alise existen- cial, mas uma interpretac¸˜ao existencial do Dasein de facto. A distˆancia que se cavou entre Binswanger e Freud, n˜ao obs- tante o di´alogo mantido at´e `a morte do ´ultimo, e mais ainda com Boss, que rejeita a ideia de inconsciente ps´ıquico e o fosso que se- para a psican´alise ortodoxa fundada sobre a metaf´ısica freudiana e a Daseinsanalyse, que se apoia sobre a anal´ıtica existencial de Hei- degger, estiveram na origem da institucionalizac¸˜ao do pensamento daseinsanal´ıtico. Em 1971, foi criado em Z¨urich o “Instituto Da- seinsanal´ıtico de Psicoterapia e de Psicosom´atica, Fundac¸˜ao Me- www.lusosofia.net
  • 12. i i i i i i i i 10 Franc¸oise Dastur dard Boss”, cujo director foi, at´e ao ´ultimo ano, o Professor Gion Condrau, doutor em medicina e em filosofia, e autor de v´arias obras versando sobre a Daseinsanalyse, das quais se destaca uma apare- cida em 1992, sobre Sigmund Freud e Martin Heidegger. Em 1973 foi criada a Associac¸˜ao Internacional de Daseinsanalyse, que com- preende um certo n´umero de organizac¸˜oes filiadas na Europa e na Am´erica, entre as quais a Escola Francesa de Daseinsanalyse, fun- dada em 1993 por fil´osofos e psiquiatras. A fundac¸˜ao da Escola Francesa de Daseinsanalyse tem a sua origem numa renovac¸˜ao recente da corrente de psiquiatria feno- menol´ogica que, em expans˜ao nos anos sessenta, em particular por causa do “retorno a Husserl” caracter´ıstico dos ´ultimos trabalhos de Binswanger, ficou adormecida, sobretudo em Franc¸a, nos anos se- tenta e oitenta, que foram fortemente marcados pela dominac¸˜ao da psican´alise lacaniana. Esta corrente permaneceu viva na B´elgica e na Suic¸a, e n˜ao desapareceu totalmente em Franc¸a, onde foi repre- sentada pela Escola de Marselha, dirigida pelo psiquiatra Arthur Tatossian (1929 – 1995), a quem foi consagrado um dossier, em 1996, nos n´umeros 5 e 6 de Arte de Compreender. Autor, em 1979, de uma obra fundamental sobre “A fenomenologia das psicoses”, Arthur Tatossian foi em Franc¸a a figura mais representativa da cor- rente da psiquiatria fenomenol´ogica, e s˜ao certamente os seus alu- nos (os psiquiatras Jean-Michel Azorin e Jean Naudin) que, com o seu apoio, tornaram poss´ıvel a criac¸˜ao da Escola Francesa de Da- seinsanalyse. Foi por sua instigac¸˜ao que teve lugar, em Junho de 1997, em Marselha, o segundo Col´oquio Internacional de Psiquia- tria e de Filosofia, no qual participaram numerosos representantes, vindos do mundo inteiro, da Daseinsanalyse e cujas actas aparece- ram num n´umero de A Evoluc¸˜ao Psiqui´atrica. Em Junho de 1999 foi organizado em Nice, pelos psiquiatras ligados `a Daseinsanalyse – o professor D. Pringuey e o Doutor F.-S Kohl –, um terceiro Con- gresso internacional de Filosofia e Psiquiatria sobre o tema “Esqui- www.lusosofia.net
  • 13. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 11 zofrenia e Identidade”, cujas actas apareceram no princ´ıpio do ano 2000. ´E necess´ario, por fim, sublinhar, que o interesse pela psiquiatria fenomenol´ogica e a Daseinsanalyse foi mantido vivo em Franc¸a grac¸as aos trabalhos do fil´osofo e fenomen´ologo Henry Maldiney, que reuniu em 1991, em Pensar o Homem e a Loucura, uma parte dos numerosos textos que consagrou `a psiquiatria fenomenol´ogica e `a Daseinsanalyse. Entre as figuras marcantes da psiquiatria fenomenol´ogica que foram profundamente influenciadas pela an´alise existencial de Hei- degger, ´e mister citar os nomes de Tellenbach, Blankenburg e Ki- mura. Hubertus Tellenbach (1914-1994) foi, de 1972 a 1979, o di- rector do departamento de psicopatologia cl´ınica da Cl´ınica Psi- qui´atrica de Heidelberg. Tellenbach cita muito frequentemente Heidegger e a corrente de pensamento a que ele se liga, como Blankenburg e van Baeyer, com os quais forma o grupo de Hei- delberg, combinando as contribuic¸˜oes de Husserl e de Heidegger e o recurso `a filosofia para esclarecer a experiˆencia cl´ınica. Con- sagrou em 1960 uma obra fundamental `a Melancolia na qual des- creveu o Typus melancholicus, quer dizer, o tipo de personalidade caracterizado por uma ligac¸˜ao forte e hipertrofiada ao sentido do dever, que, por ocasi˜ao de uma situac¸˜ao patog´enica (mudanc¸a de casa, promoc¸˜ao, doenc¸a, casamento, nascimento, luto, etc.) pode transformar-se em doente melanc´olico. Uma outra das suas obras, Gosto e Atmosfera, tem tamb´em uma traduc¸˜ao em francˆes. Um dossier foi-lhe consagrado depois da sua morte em Arte de Com- preender, n.o 4, 1996. Wolfgang Blankenburg, nascido em 1928, estuda medicina em Friburgo e filosofia com Heidegger. Esteve em contacto estreito com Binswanger e fez parte do grupo de Heidelberg. Foi nomeado em 1979 professor de psiquiatria e director da Cl´ınica universit´aria de Marburgo. Entre os seus numerosos trabalhos, um lugar especial www.lusosofia.net
  • 14. i i i i i i i i 12 Franc¸oise Dastur deve ser atribu´ıdo ao seu estudo sobre a esquizofrenia, “A perda da evidˆencia natural”, surgido em 1971, situando-se, `a vez, no encalce de Husserl e de Heidegger. Kimura Bin, nascido em 1931, psiquiatra japonˆes tradutor de Binswanger, de Tellenbach e de Blakenburg, esteve por dois per´ıodos na Alemanha, em Munique e Heidelberg, onde foi em 1969 profes- sor associado, e inscreve-se, tamb´em ele, na corrente do grupo de pensadores de Heidelberg. O que podemos nomear de “fenome- nologia do si” de Kimura desenvolve-se em estreita relac¸˜ao com as an´alises heideggerianas da temporalidade do Dasein, mas deixa um lugar importante `as noc¸˜oes propriamente japonesas de a¨ıda (dimens˜ao interpessoal) e de Jikaku (auto-apercepc¸˜ao). Os seus Ensaios de psicopatologia fenomenol´ogica foram traduzidos em francˆes em 1992 por um aluno de H. Maldiney. Bibliografia Textos fundamentais Ludwig BINSWANGER, Le Rˆeve et L’existence, prefaciado por M. Foucault, Descl´ee de Brouwer, Paris, 1954. Ludwig BINSWANGER, Analyse existencielle et psychanalyse freudienne, Discours, parcours et Freud, Traduzido por R. Lewin- ter e prefaciado por P. F´edida, Tel, Gallimard, 1970. Ludwig BINSWANGER, Introduction `a l’analyse existentielle, E. de Minuit, Paris, 1971 (volume que re´une uma s´erie de con- ferˆencias, traduzidas por J. Verneaux e R. Kuhn, prefaciado por R. Kuhn e H. Maldiney.) Ludwig BINSWANGER, Melancholie et Manie, ´Etudes ph´eno- m´enologiques, traduzido por J.- M. Azorin e Y. Totoyan, PUF, Pa- ris, 1987. www.lusosofia.net
  • 15. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 13 Ludwig BINSWANGER, Le Cas Suzanne Urban, traduzido por J. Verneaux, Ed. G´erard Montfort, 27800, Brionne, 1988. Ludwig BINSWANGER, Delire, Contributions `a son ´etude ph´e- nom´enologique et daseinsanalytique, traduzido por J. – M. Azorin e Y. Totoyan, Mil˜ao, Grenoble, 1993. Ludwig BINSWANGER, Henrik Ibsen, et le probl´eme de l’auto- r´ealisation en art, traduzido por M. Dupuis, com um posf´acio de H. Maldiney, De Boeck Universit´e, Bruxelas, 1996. Ludwig BINSWANGER, Le probl´eme de l’espace en psycho- pathologie, traduzido e prefaciado por C. Gros Azorin, PUM, Tou- louse, 1998. Wolfgang BLAKENBURG, L aperte de l’´evidence naturelle, traduzido por J. – M. Azorin e Y. Tatoyan, PUF, Paris, 1991. Medard BOSS, Introduction `a la m´edecine psychosomatique, PUF, Paris, 1959. Medard BOSS, Un psychiatre en Inde, Fayard, Paris, 1971. Medard BOSS, “Il m’est venu en rˆeve”, Essais th´eoriques et pratiques sur l’activit´e onirique, traduzido por C. Berner e P. Da- vid, PUF, Paris, 1989. Sigmund FREUD-Ludwig BINSWANGER, Correspondance 1908 - 1938, Calmann-L´evy, Paris, 1995. Martin HEIDEGGER, Zollikoner Seminare, Vittorio Kloster- mann, Frankfurt a. M., 1987, (Protocolos, conversas, cartas, pu- blicados por Medard Boss, traduc¸˜ao francesa de Caroline GROS- AZORIN em preparac¸˜ao). KIMURA Bin, ´Ecrits de psychopathologie Ph´enom´enologiques, traduzido por J. Bouderlique, com um posf´acio de H. Maldiney, PUF, Paris, 1992. Henry MALDINEY, Penser l’homme et la folie a la lumi´ere de l’analyse existentielle et de l’analyse du destin, Mil˜ao, Grenoble, 1991. Jean NAUDIN, Ph´enom´enologie et psychiatrie, Les voix et la chose, PUM, Toulouse, 1997. www.lusosofia.net
  • 16. i i i i i i i i 14 Franc¸oise Dastur Arthur TATOSSIAN, La ph´enom´enologie des psychoses, 1979, segunda edic¸˜ao: n´umero fora da s´erie da revista L’Art du compren- dre, Julho, 1997. Hubertus TELLENBACH, La m´elancolie, PUF, Paris, 1979. Hubertus TELLENBACH, Gaˆut et atmosph´ere, PUF, Paris, 1983. Textos colectivos Figures de la subjectivit´e, Approches ph´enom´enologiques et psychiatriques, estudos reunidos por Jean-Franc¸ois COURTINE, Edic¸˜ao do CNRS, 1992, contendo os textos de H. TELLENBACH, H. MALDINEY, A. TATOSSIAN e artigos de J. BENOIST, F. DASTUR e E. ESCOUBAS, sobre Medard Boss e Martin Heideg- ger. Ph´enom´enologie et Psychanalyse, ´Etranges relations, Ed. de Jean-Claude Beaune, Champ Vallon, Seyssel, 1998 (artigos de G. CHARBONNEAU sobre “Antropologia fenomenol´ogica e feno- menologia psiqui´atrica”, de F. DASTUR sobre “Fenomenologia e metapsicologia”, de J. NAUDIN sobre “A psicoterapia dos esqui- zofr´enicos”, inter alia). Psychiatrie et existence (d´ecadas de Cerisy, Setembro 1989). Textos reunidos por Pierre F´EDIDA e Jacques SCHOTTE, Mil˜ao, Grenoble, 1991. Revistas L’´evolution psychiatrique, n´umero de Junho de 1997 consa- grado `a publicac¸˜ao das actas do II Col´oquio Internacional de Psi- quiatria e de Filosofia de Marselha, intitulado Vuln´erabilit´e et Des- tin: Ph´enom´enologie de la psychiatrie. L’Art du Comprendre, revista fundada em Marc¸o de 1994 pelo psiquiatra Georges CHARBONNEAU. O dossier central do n´umero www.lusosofia.net
  • 17. i i i i i i i i O que ´e a Daseinsanalyse? 15 8, aparecido em Fevereiro de 1999, trata do inconsciente fenome- nol´ogico. A Escola Francesa de “Daseinsanalyse” foi criada em Outu- bro de 1993, sobre o impulso dado pelo Col´oquio Europeu de Fe- nomenologia Cl´ınica, organizado por iniciativa do Doutor P. Jonckhe- ere, da Universidade Cat´olica de Lovaina, e do Professor R. Brisart, da Faculdade Universit´aria de St. Louis, que teve lugar em Marc¸o de 1993, em Bruxelas. Presidida por Franc¸oise DASTUR, profes- sora no Departamento de Filosofia da Universidade de Nice, conta entre os seus membros fil´osofos, psiquiatras, psic´ologos e psico- terapeutas. Sob a responsabilidade da sua presidˆencia, tem lugar, desde o Outono de 1993, um duplo semin´ario mensal de psicologia fenomenol´ogica e de psiquiatria fenomenol´ogica. Este semin´ario tem lugar num S´abado em cada mˆes, da parte da tarde, na Sor- bonne. www.lusosofia.net