Este artigo tem como intuito apresentar os embasamentos filosóficos e metodológicos da psicoterapia fenomenológico existencial: a filosofia existencialista e o método fenomenológico, destacando sua particularidade no modo de encarar a existência humana e de proceder o processo psicoterapêutico. O existencialismo oferece um olhar sobre a condição humana enquanto algo não definido, livre e responsável por suas escolhas, e em constante transformação, que se constitui em seu existir concreto por meio de sua experiência singular, no mundo, em constante relação com as pessoas, objetos, espaços e consigo mesmo. A atitude fenomenológica dispõe uma abertura para as singularidades da existência em seus modos próprios de se manifestar, buscando compreender as distintas características, interesses e desinteresses de cada indivíduo, evitando pressuposições ou conceitos prévios sobre a pessoa, captando o modo como esta se revela a cada encontro.
Escrito por Bruno Carrasco, professor de psicologia e filosofia.
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2020.
Fundamentos da Psicoterapia Fenomenológico Existencial - Bruno Carrasco
1. Fundamentos da psicoterapia fenomenológico existencial
Bruno Carrasco
Resumo:
Este artigo tem como intuito apresentar os embasamentos filosóficos e metodológicos da
psicoterapia fenomenológico existencial: a filosofia existencialista e o método
fenomenológico, destacando sua particularidade no modo de encarar a existência humana e
de proceder o processo psicoterapêutico. O existencialismo oferece um olhar sobre a
condição humana enquanto algo não definido, livre e responsável por suas escolhas, e em
constante transformação, que se constitui em seu existir concreto por meio de sua
experiência singular, no mundo, em constante relação com as pessoas, objetos, espaços e
consigo mesmo. A atitude fenomenológica dispõe uma abertura para as singularidades da
existência em seus modos próprios de se manifestar, buscando compreender as distintas
características, interesses e desinteresses de cada indivíduo, evitando pressuposições ou
conceitos prévios sobre a pessoa, captando o modo como esta se revela a cada encontro.
Palavras-chave: Psicoterapia, Existencialismo, Fenomenologia, Psicologia.
Introdução
O presente trabalho pretende oferecer uma breve introdução sobre os fundamentos
filosóficos da psicoterapia fenomenológico existencial, expondo seus norteamentos teóricos,
iniciando com a filosofia existencialista e seu entendimento sobre a existência humana, e o
método fenomenológico, que indica atitudes e disposições para se aproximar da existência
em seus distintos modos de se expressar.
Existencialismo é uma filosofia contemporânea que encara a existência a partir de sua
manifestação concreta, singular e afetiva, entendendo o ser humano livre para fazer escolhas
e responsável por elas, sempre aberto a novas possibilidades. A fenomenologia se apresenta
como uma atitude para se aproximar das singularidades, do modo como cada um se
apresenta.
O intuito desta pesquisa é explorar os pressupostos filosóficos e as teorias que servem
de embasamento para a prática da psicoterapia fenomenológico existencial. Pretende-se,
portanto, apresentar algumas questões do existencialismo e da fenomenologia com relação
2. ao entendimento de ser humano, e sobre o modo como proceder a análise da existência
humana, de acordo com estas vertentes.
A psicoterapia fenomenológico existencial dispõe uma maneira específica de encarar a
existência humana, entendendo esta como um processo e não como algo fixo, mas sempre
aberto à transformações, sendo constantemente afetada pela relação com as outras pessoas,
objetos e espaços, aberta a novos entendimentos de mundo e de si. O método
fenomenológico possibilita uma aproximação das singularidades e da relação afetiva da
pessoa com o mundo, com os outros e consigo mesma, compreendendo seus modos de ser e
suas vivências no mundo.
Este trabalho se inicia com a descrição dos fundamentos teóricos, filosóficos e
conceituais da psicoterapia fenomenológico existencial, com a pretensão de oferecer uma
introdução sobre esta vertente de psicoterapia, que por ser pouco conhecida, acaba sendo
erroneamente confundida com outras tendências como a Abordagem Centrada na Pessoa, de
Carl Rogers, a Gestalt-Terapia, de Fritz Perls, ou a Psicoterapia Existencial Humanista, de Rollo
May.
Para a pesquisa foram utilizados alguns dos livros mais destacados publicados sobre
existencialismo e fenomenologia, juntamente com artigos sobre os temas abordados. Essa
necessidade de voltar aos fundamentos possui justamente o intuito de oferecer um breve
entendimento introdutório sobre as bases para que se possa compreender melhor sua
proposta psicoterapêutica na prática.
1. Existencialismo
O termo ‘existencialismo’ é resultante da soma da palavra ‘existência’ com o sufixo
‘ismo’. Segundo Penha (2014, p.11), a palavra ‘existência’ é uma derivação do verbo existir,
que se origina do latim existere, cujo significado corresponde a “sair de uma casa, um
domínio, um esconderijo. Mas precisamente: existência, na origem, é sinônimo de mostrar-se,
exibir-se, movimento para fora”.
O existencialismo enquanto vertente de filosofia possui influências de diversos
filósofos, entre eles Sören Kierkegaard (1813-1855), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin
Heidegger (1889-1976), e outros que contrariam boa parte das bases da filosofia ocidental
desde a Antiguidade até a Idade Moderna. Porém, foi por meio do filósofo francês Jean-Paul
Sartre (1905-1980) que esta filosofia se tornou popular. Sartre se assumiu enquanto
existencialista e destacou o existencialismo como uma filosofia do engajamento e da ação,
evidenciando a responsabilidade de cada pessoa por sua existência.
3. Reynolds (2014) destaca entre os temas fundamentais tratados pelos existencialistas: a
liberdade, a morte, a finitude, a experiência fenomenológica, a angústia, a náusea, o tédio, a
autenticidade e a responsabilidade. Segundo ele, eventos como a Segunda Guerra Mundial e
a ocupação alemã na França, possibilitaram um maior questionamento sobre questões como
a liberdade, a responsabilidade e a morte. Segundo Penha (2014), o existencialismo foi a
corrente filosófica mais discutida entre as décadas de 1940 e 1950.
No livro ‘O existencialismo é um humanismo’, Sartre cita sua célebre frase “a existência
precede a essência” (2014, p.18), argumentando que este é o primeiro princípio do
existencialismo, complementando que “o homem nada é além do que ele se faz” (2014, p.19).
Segundo ele, não há nenhuma definição prévia sobre o ser humano com relação aos seus
modos de ser, de se relacionar e de se colocar no mundo. Cada pessoa se constrói na prática
da vida concreta, na relação com outras pessoas e por meio das escolhas que faz.
Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o homem existe primeiro, se
encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é
definível, é porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será
aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um Deus para concebê-la. (SARTRE,
2014, p.19)
O conceito essência, segundo a tradição filosófica, refere-se àquilo que seria
previamente determinado, que caracterizaria algo ou um ser antes mesmo de sua existência
concreta. Neste sentido, a existência seria resultante desta essência. A filosofia existencialista
se contrapõe a esta vertente essencialista, entendendo a existência como resultante da
própria existência concreta, e não de uma essência.
Foulquié (1975) apresenta o existencialismo partindo de sua diferença para com o
essencialismo. Para ele, até o século XIX o pensamento essencialista prevalecia, e a filosofia
não questionava o primado da essência sobre a existência, ou seja, partiam do entendimento
de que toda existência era fruto de uma essência previamente definida.
Seja no mundo das ideias de Platão, como nas categorias em Aristóteles, ambos no
século IV a.C., nas essências da escolástica, na segunda metade da Idade Média, e nas ideias
inatas de René Descartes, no século XVII, todas estas filosofias priorizavam as essências em
detrimento da existência.
Uma tendência muito presente na filosofia ocidental, desde Aristóteles, que inclusive
foi utilizada pela ciência moderna, é olhar para as coisas partindo das categorias que são
estabelecidas sobre elas de acordo com suas semelhanças com relação a outras coisas, e que
inclusive as discrimina por suas diferenças. Essa tendência de encarar as coisas partindo de
suas categorias prévias, ao invés das experiências sobre as coisas, nos dificultou a captação
das distintas particularidades sobre o que percebemos, ou seja, de suas distinções e
singularidades.
4. O existencialismo surge, pois, como uma teoria que afirma o primado ou a prioridade da existência. Mas
em relação a que afirma este primado ou prioridade? Em relação à essência. (FOULQUIÉ, 1975, 7p.)
Para a filosofia essencialista, a essência corresponderia a algo universal contendo
todas as características de um ser, enquanto que a existência seria apenas uma disposição
para transformar em ato tal essência, portanto uma mera efetivação das essências prévias. O
existencialismo, pelo contrário, considera a existência como prioridade, ao invés da essência.
Neste sentido, a existência não é uma efetivação de uma essência previamente definida, mas
uma condição que constitui justamente os modos de ser e as características mais próprias de
cada pessoa, na relação com as outras pessoas e com o mundo.
Como indica a própria palavra, o existencialismo caracteriza-se sobretudo pela tendência de colocar o
acento na existência. O existencialista desinteressa-se das essências, dos possíveis, das noções abstratas:
situa-se nas antípodas do espírito matemático; seu interesse dirige-se ao que existe, ou melhor, à
existência daquilo que existe. (FOULQUIÉ, 1975, 37p.)
Segundo Foulquié (1975), o existencialismo também se coloca contrário ao
racionalismo e ao positivismo, que priorizaram a razão e a objetividade, respectivamente, em
detrimento da experiência. Contrariando essas teorias sobre a existência humana, a filosofia
existencialista parte do entendimento de que é impossível fixar regras prévias para a
existência e para os modos de ser de cada indivíduo, buscando olhar para as diferenças ao
invés das teorias ou generalizações.
No existencialismo, a existência é concebida como um privilégio do ser humano, não
sendo algo pronto ou previamente determinado, tal como entendiam os filósofos
essencialistas, mas como um constante vir-a-ser, em permanente transformação. Por não ser
definida previamente, a existência humana é livre para fazer escolhas, pois para existir
precisamos, necessariamente, escolher. Não escolhemos como e onde nascer, mas podemos
escolher o que fazer diante das circunstâncias em que estamos inseridos. É por meio da
relação que estabelecemos com os lugares, com os objetos e com as pessoas, juntamente
com as escolhas que fazemos, que constituímos nosso modo de existir.
(...) eu sou bonito ou feio, filho de proletário ou de ilustre ascendência, chove ou faz calor… diante destes
fatos sou impotente. Mas sou senhor de minha atitude à respeito destas maneiras de ser, independentes
de mim: posso orgulhar-me ou envergonhar-me delas, aceitá-las ou insurgir-me contra elas. Eu não as
escolho, mas escolho a forma como as considero, ou, no dizer dos existencialistas, eu as assumo.
(FOULQUIÉ, 1975, 46p.)
Essa liberdade de fazer escolhas, segundo o entendimento existencialista, não consiste
em vivenciar momentos do modo como desejamos ou esperamos, mas escolher o que fazer
diante das distintas situações e adversidades que atravessamos.
Para a filosofia existencialista, todos somos livres para fazer escolhas e direcionar a
nossa existência a todo momento, de acordo com nossas condições e possibilidades. Porém,
5. não temos nenhuma garantia sobre o que pode acontecer por conta de um caminho que
escolhemos seguir, de modo que toda escolha é um risco, e isso nos gera uma sensação de
angústia.
Por não termos uma essência que nos defina ou que nos constitua previamente,
somos nós os únicos responsáveis pelas escolhas que fazemos. Isso nos torna responsáveis
por nossa existência, pela pessoa que nos tornamos. A cada escolha que fazemos, a cada
momento que escolhemos, estamos escolhendo a nós mesmos, a pessoa que estamos sendo.
Mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira
decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre
ele a responsabilidade total por sua existência. (SARTRE, 2014, 20p.)
Toda pessoa pode, em certo sentido, e de acordo com suas condições e circunstâncias
externas, escolher o que fazer de si mesma, a todo momento de sua existência. O que não é
possível, segundo Sartre (2014), é não escolher. É neste sentido que ele declara que “o
homem está condenado a ser livre” (Sartre, 2014, 24p.), ou seja, a liberdade não é uma opção,
mas uma condição da existência humana. Enquanto condição implica em estarmos sempre
escolhendo o que vamos fazer de nossa existência.
Como não há uma essência prévia que determine nossa existência e nossos modos de
viver, não há também nenhum sentido previamente estabelecido sobre como viver a vida.
Essa constatação pode parecer angustiante, mas é também libertadora. Para o
existencialismo, o sentido da vida pode ser acolhido, abraçado ou criado.
Sem a orientação de regras universais de moralidade, da natureza humana ou de um Deus cognoscível,
que emitiu certos mandamentos indiscutíveis (e várias teologias podem acordar com isso), devemos dotar
o mundo de significado e somente nós podemos fazer isso. Devemos realizar este ato de fé: criar o
significado em que buscamos viver. (REYNOLDS, 2014, 17p.)
A escolha que cada um faz sobre sua existência é acompanhada, segundo Kierkegaard,
pelo temor e por uma falta de tranquilidade, pois apesar de todas as nossas avaliações e
deduções racionais sobre o que iremos escolher, nunca teremos certeza de que uma de
nossas escolhas será como desejamos ou esperamos, ou mesmo que será melhor do que
aquela que não escolhemos. Neste sentido, toda escolha que fizermos será sempre um risco,
e cada escolha implica na negação das outras possibilidades de escolha.
Tanto em Kierkegaard quanto em Sartre, a angústia consiste numa espécie de medo
de si, do que pode ser feito diante de uma escolha, e da dificuldade de se escolher, ao
perceber-se o único responsável por sua escolha, portanto também responsável por sua
existência.
2. Fenomenologia
6.
O termo ‘fenomenologia’ foi utilizado por diversos autores, com intenções distintas.
Etimologicamente significa o estudo ou a ciência dos fenômenos, sendo os fenômenos aquilo
que aparece.
Do modo como hoje entendemos, essa temática começa a aparecer entre o final do
século XIX e início do século XX, com o filósofo e matemático alemão Edmund Husserl
(1859-1938), sendo continuada e transformada por filósofos como Martin Heidegger
(1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), entre outros.
Apesar de autores anteriores a Husserl terem utilizado este termo, como Hegel
(1770-1831) ou Kant (1724-1804), é com Husserl que a fenomenologia segue um novo
caminho, que irá influenciar a filosofia, a psicologia e o modo de se fazer ciências humanas no
século XX em diante, entendendo que “o sentido do ser e o do fenômeno não podem ser
dissociados” (Dartigues, 2008, 11p.).
Partindo de um questionamento sobre a ciência positivista e a filosofia idealista,
criticando o uso do método das ciências naturais na psicologia e nas ciências humanas, a
fenomenologia aparece como um contraponto e uma nova perspectiva de se fazer ciência,
contrariando o entendimento objetivista e as teorizações metafísicas, propondo encarar as
coisas tal como aparecem, retornando ao mundo da vida.
Entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas deve, pois, existir uma
terceira via, aquela que antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade ou, como diz
Husserl, das “coisas mesmas”. (DARTIGUES, 2008, 18p.)
A fenomenologia é uma atitude que busca encarar o fenômeno do modo como este se
mostra por si mesmo, libertado de seus encobrimentos, teorizações e interpretações.
Trata-se de um método que busca descrever os fenômenos do modo como são percebidos e
experimentados, ao invés de estabelecer teorias ou categorias sobre o que se mostra.
Se apresenta, portanto, como um método de acesso à experiência, que não pretende
encontrar razões metafísicas ou descrever as coisas de maneira objetiva, mas se aproximar
do modo como sentimos e apreendemos o mundo. Para Cerbone (2012, 20p.), a
fenomenologia “está precisamente ocupada com os modos pelos quais as coisas aparecem
ou se manifestam para nós, com a forma e estrutura da manifestação”. Trata-se, portanto, de
uma busca da compreensão das coisas como são captadas, do modo como são captadas.
A fenomenologia tem por objeto as coisas que se manifestam ou se mostram, tais como se manifestam os
fenômenos; neste sentido, as coisas constituem aquilo que é rigorosamente dado, aquilo que eu encontro
e que é, para mim, originalmente presente. (...) É a filosofia do inacabamento, do devir, do movimento
constante, onde o vivido aparece e é sempre ponto de partida para se chegar a algo. (LIMA, 2014, 12-13p.)
O método fenomenológico é um esforço para ir de encontro com as experiências sem
estar permeado pelas especulações teóricas ou pressuposições sobre elas. Por conta disso,
7. não parte da generalização teórica nem da abstração, mas busca reconhecer e valorizar as
singularidades daquilo que é percebido, observando a existência partindo de sua
manifestação singular.
Esta atitude é utilizada em distintas abordagens de psicologia que possuem como foco
a subjetividade e as emoções, como a Psicoterapia Existencial, a Abordagem Centrada na
Pessoa, a Gestalt-Terapia, entre outras. Ao contrário das abordagens objetivas e
interpretativas, busca-se aproximar da pessoa atendida do modo como ela experimenta suas
vivências.
Trata-se, na verdade, de um “retorno”, um caminho de volta, em que o “fim” nada mais é do que o
começo: “de volta às coisas mesmas”, para citar a tão famosa expressão husserliana. A fenomenologia é,
portanto, o caminho de volta às coisas mesmas, ao mundo da experiência vivida ou Lebenswelt
(mundo-da-vida). (STRUCHINER, 2007, 242p.)
Uma das críticas da fenomenologia está relacionada ao uso dos métodos das ciências
naturais para os estudos das ciências humanas. A fenomenologia constata que quando
olhamos para um objeto qualquer, como uma pintura, o que vemos não são as moléculas e
ondas de luz que atingem a nossa retina, tal como entende a ciência positivista. Nós
estabelecemos uma relação com este objeto, uma consciência intencional, de modo que nos
abrimos para a percepção deste e o experimentamos como belo ou feio, interessante ou
desinteressante, alegre ou triste, expressivo ou morno, entre tantas outras possíveis
experiências que emergem dessa relação. Ou seja, nossa captação de mundo não se trata de
uma mera relação objetiva, mas também afetiva e valorativa.
Esta percepção é intencional, pois resulta da relação entre a nossa consciência, do
modo como se direciona para um objeto, e o objeto, do modo como se apresenta a nossa
consciência. Porém, nunca captamos um objeto em sua totalidade, o observamos sempre
partindo de um ângulo, de modo que há muitos ângulos e variações possíveis, que podem
alterar a nossa percepção das coisas e do mundo.
A consciência é sempre intencional, está constantemente voltada para um objeto, enquanto este é
sempre objeto para uma consciência; há entre ambos uma correlação essencial, que só se dá na intuição
originária da vivência. A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; ela é que unifica
a consciência e o objeto, o sujeito e o mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de que o
mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo
que tem uma significação para ele. (FORGHIERI, 2019, 15p.)
O filósofo e psicólogo alemão Franz Brentano (1838-1917) influenciou a fenomenologia
de Edmund Husserl, especialmente com o seu entendimento sobre a intencionalidade da
consciência. De acordo com Brentano, “todos os processos psíquicos seriam marcados pela
intencionalidade, ou seja, estariam sempre dirigidos para um objeto” (Penna, 2001, 18p.). A
experiência que tenho com algo é apenas uma aparição possível deste algo.
8. O interesse da fenomenologia não é sobre a consciência ou sobre o objeto, mas sobre
a correlação entre ambos, que surge da relação entre a consciência e o objeto, deixando de
lado qualquer intenção de formular hipóteses ou estabelecer inferências sobre o que é
percebido, de modo a permitir que o que é percebido se mostre em seu modo de aparecer.
(...) os filósofos tradicionais costumavam começar por teorias ou axiomas abstratos, mas os
fenomenólogos alemães iam direto à vida como a viviam a cada momento. Deixavam de lado quase tudo
o que vinha alimentando a filosofia desde Platão: enigmas sobre a realidade das coisas ou sobre a
possibilidade de conhecermos com certeza alguma coisa sobre elas. Esses fenomenólogos alemães, em
vez disso, ressaltavam que qualquer filósofo que faça tais perguntas já está inserido num mundo cheio de
coisas — ou, pelo menos, cheio de aparências de coisas ou “fenômenos” (da palavra grega que significa
“coisas que aparecem”). Então por que não se concentrar nesse encontro com os fenômenos e ignorar o
resto? Não é necessário abandonar para sempre os velhos enigmas, mas eles podem ser postos entre
parênteses, por assim dizer, para que os filósofos possam lidar com assuntos mais terrenos. (BAKEWELL,
2017, 10p.)
Para proceder com o método fenomenológico, é preciso praticar a redução, ou a
'epoché', termo grego que significa abstenção ou suspensão do juízo, de modo que colocamos
todas as nossas suposições, hipóteses ou imaginações entre parênteses. Isso não significa
eliminar as pressuposições, mas deixá-las de lado, para se abrir ao que se apresenta.
A redução fenomenológica consiste em focar a atenção não nas coisas, mas na
experiência que estabelecemos com as coisas, se aproximando dos fenômenos tal como se
apresentam à consciência, despindo-se de abstrações, ideias feitas, teorias e hábitos. Neste
sentido, fenômeno é tudo aquilo que se apresenta à consciência, seja este um objeto, uma
situação, uma imagem ou uma lembrança, real ou imaginada.
O que é, então, uma xícara de café? Posso definir a bebida em termos da química e da botânica da planta,
acrescentar resumidamente como os grãos são cultivados e exportados, como são moídos, como a água
quente passa pelo pó e então esse líquido é vertido num recipiente de determinado formato, para ser
apresentado a um integrante da espécie humana que o ingere oralmente. Posso analisar o efeito da
cafeína no corpo ou abordar o comércio internacional do café. Posso encher uma enciclopédia com esses
fatos e ainda assim estarei longe de dizer o que é esta xícara de café em particular, à minha frente. Por
outro lado, se procedo ao inverso e invoco um leque de associações puramente pessoais e sentimentais.
(...) essa xícara de café é um aroma rico, ao mesmo tempo agreste e perfumado; é o movimento indolente
de uma voluta de vapor erguendo-se de sua superfície. Quando o levo à boca, é um líquido que se move
placidamente e um peso dentro da xícara de bordas grossas em minha mão. É um calor que se aproxima,
então um intenso sabor carregado em minha língua, começando com um impacto levemente austero e
então se distendendo num calor reconfortante, que se espalha da xícara para meu corpo, trazendo a
promessa de um estado duradouro de alerta e revigoramento. A promessa, as sensações antecipadas, o
cheiro, a cor e o sabor fazem, todos eles, parte do café como fenômeno. Todos emergem ao serem
experimentados. (BAKEWELL, 2017, 46p.)
A fenomenologia nos possibilita tratar de qualquer objeto enquanto experiência
subjetiva, do modo como é sentida e captada por uma consciência, voltando-se, portanto,
para as vivências de uma pessoa. De acordo com Dartigues (2008), os fenômenos ocorrem
9. para nós enquanto experiências que se dão por meio dos sentidos, as vivências sempre estão
dotadas de sentido, e o sentido do fenômeno pode ser percebido por meio da análise
intencional.
O princípio da intencionalidade é que a consciência é sempre “consciência de alguma coisa”, que ela só é
consciência estando dirigida a um objeto (sentido intentio). Por sua vez, o objeto só pode ser definido em
sua relação à consciência, ele é sempre objeto-para-um-sujeito. (DARTIGUES, 2008, 22p.)
Por meio da análise intencional, podemos retornar às "coisas mesmas", ao estágio
pré-reflexivo, antepredicativo, à nossas percepções, afetos e vivências que são
experimentados antes de quaisquer elaborações e teorizações sobre eles. É este estágio
anterior e originário que interessa à fenomenologia, possibilitando restabelecer os sentidos
da pessoa, retomando a si mesma em meio a confusão de suposições ideais e racionais sobre
si mesma.
Essa análise parte das coisas tal como são percebidas enquanto vivências para a
pessoa que as experimenta. Os objetos percebidos nunca são "objetos em si", com valores
em si próprios, independente dos indivíduos que os percebem, mas são sempre "objetos para
uma consciência", pois sempre aparecem enquanto objeto que é percebido, pensado,
rememorado, imaginado, entre tantas outras possibilidades.
A consciência e o objeto não são duas instâncias separadas, mas estão em constante
relação, e essa relação estabelece o que entendemos por "real", sendo uma possibilidade
captada por meio da correlação entre a consciência e o objeto. A análise fenomenológica
busca a compreensão dessa correlação, que constitui o "real", e que se apresenta de
diferentes maneiras em cada sujeito e circunstância.
A tarefa efetiva da fenomenologia será, pois, analisar as vivências intencionais da consciência para
perceber como aí se produz o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global que se chama
mundo. (DARTIGUES, 2008, 22p.)
O método fenomenológico consiste em retornar a uma experiência anterior à teórica e
aos conceitos, indo em direção à experiência intencional e originária, retomando toda a
riqueza das vivências que foram descartadas pela objetividade científica, da conceituação e da
interpretação metafísica.
3. Psicoterapia Fenomenológico Existencial
10. A psicoterapia fenomenológico existencial é uma abordagem de psicoterapia que
utiliza como embasamento teórico o existencialismo e como método a fenomenologia, tendo
o intuito de proporcionar uma maior aproximação da pessoa com seus sentimentos,
percepções e valores, visando sua autonomia psicológica.
De acordo com Teixeira (2006), não há apenas uma abordagem de psicoterapia que
utiliza como base o existencialismo e a fenomenologia, mas diversas, entre elas a Psicoterapia
Experiencial, a Psicoterapia Vivencial, a Daseinsanalyse, a Logoterapia, a Psicoterapia
Existencial-Humanista, a Psicoterapia Existencial, entre outras.
Essas distintas vertentes de psicoterapia não se apresentam com o objetivo de “curar”
as “perturbações mentais”, tal como é a proposta do modelo médico-científico tradicional,
mas possuem como intuito “facilitar o encontro do indivíduo com a autenticidade da sua
existência, de forma a assumi-la e projectá-la mais livremente no mundo” (Teixeira, 2006,
289p.), onde o foco principal é a existência da pessoa e não suas “perturbações”.
Os sofrimentos emocionais trazidos pelas pessoas que procuram a psicoterapia são
entendidos enquanto resultantes de “dificuldades do indivíduo em fazer escolhas mais
autênticas e significativas” (Teixeira, 2006, 289p.). Por conta disso, o processo
psicoterapêutico enfatiza a compreensão dos afetos da pessoa, para que esta possa se
aproximar da realidade de sua experiência e existência, de modo a fazer escolhas mais
significativas para sua vida.
A psicoterapia fenomenológico existencial busca promover o reconhecimento e a
valorização da responsabilidade de cada indivíduo na construção de sua existência,
favorecendo sua autonomia e a ampliação da possibilidade de fazer escolhas. Trata-se de um
processo de se perceber e se reconhecer, com vistas a tornar-se mais responsável, lidando
com suas dificuldades e assumindo sua existência, indo de encontro com o que é realmente
significativo para si, se responsabilizando por suas escolhas e abrindo-se a novas
possibilidades.
Em síntese, trata-se de facilitar ao indivíduo o desenvolvimento de maior autenticidade em relação a si
próprio, uma maior abertura das suas perspectivas sobre si próprio e o mundo e, ainda, de ajudar a
clarificar como é que poderá agir no futuro de uma forma mais significativa. O centro é a
responsabilidade da liberdade de escolha do indivíduo. A palavra-chave é a construção, uma vez que se
trata de desafiar o indivíduo a ser o construtor da sua existência. (TEIXEIRA, 2006, 294p.)
Algumas das características desta psicoterapia são a abertura para receber a pessoa
tal como se mostra, a constatação da liberdade para se fazer escolhas e a valorização da
autenticidade e singularidade de cada indivíduo, que corresponde em receber a pessoa tal
como ela se apresenta, sem buscar explicações racionais, objetivas ou interpretativas sobre
seus próprios modos de se apresentar, se aproximando de seu modo de existir, livre de
suposições, deixando que se mostre tal como percebe e sente sua existência.
11. Para o psicoterapeuta, é necessário uma postura de abertura com relação ao outro, de
modo a captá-lo em seus afetos e desafetos, suas vivências e seus sentidos, enfim, se
aproximando da totalidade de suas experiências, inclusive da relação que estabelece com sua
história de vida. Por meio dessa abertura, é possível desvelar suas características existenciais,
compreendendo seu papel nas decisões e escolhas de sua vida, promovendo uma maior
autonomia consigo mesmo e com os outros.
Estes pressupostos existencialistas tornam-se fundamentais na construção da postura do psicólogo e dos
objetivos de um processo diagnóstico. Dentro dessa abordagem, o psicólogo não tenta explicar e
enquadrar a pessoa examinada em categorizações e parâmetros arbitrariamente teorizados, pois ele
acredita que a vivência dessa pessoa é sua própria explicação, sendo ela a melhor interprete de si mesma.
(TENÓRIO, 2003, 41p.)
É por meio da aproximação da pessoa atendida, do modo como esta se sente e se
mostra que o psicoterapeuta poderá proporcionar uma maior aceitação de si mesma,
incentivando a liberdade de ser e fazer escolhas autênticas, possibilitando assim uma
abertura a novas maneiras para lidar com a vida e com suas questões.
Segundo Tenório (2003), o enfoque fenomenológico existencial está embasado numa
compreensão de ser humano livre e aberto às possibilidades, responsável por suas escolhas e
capaz de se inventar e cuidar de sua existência, sendo essas concepções referidas a autores
como Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, José Ortega e Martin Buber, entre
outros.
A pessoa, no processo diagnóstico, deve ser apreendida como sendo um fenômeno único e, como tal,
respeitada em sua totalidade; não deve, portanto, ser avaliada segundo normas e padrões de
comportamento preestabelecidos, numa total revelia a sua própria existência. Seu nível de crescimento
ou de maturidade deve ser dimensionado por meio dos projetos de vida por ela própria idealizados e de
acordo com seu próprio mundo e contexto existencial. (TENÓRIO, 2003, 41p.)
Deste modo, a psicoterapia fenomenológico existencial não trabalha com classificação
de modos de ser em “doenças” ou “patologias”, pois encara a existência de maneira singular,
não atuando para uma ou outra doença, mas buscando captar a existência como um todo,
em seus distintos modos de ser, de se expressar, em suas dificuldades e em suas
possibilidades.
Trata-se de um processo que possibilita uma revisão sobre suas escolhas e seus
modos de existir, de modo a assumir sua existência como protagonista de sua história,
encontrando novos meios para lidar com dificuldades e se abrindo a novas experiências.
Considerações finais
12. Neste trabalho foi possível constatar que a filosofia existencialista somada à atitude
fenomenológica na psicoterapia possibilita um processo muito valioso para se reconhecer as
singularidades, os afetos e desafetos da pessoa em atendimento. Diferente dos modelos
tradicionais de psicoterapia, esta não busca resolver um “problema” ou interpretar os
significados “ocultos”, mas permitir que a existência se apresente do modo como cada um se
sente e experimenta a vida.
Trata-se de uma alternativa às tendências mais convencionais e presentes no cenário
da psicologia na atualidade, tais como as abordagens psicanalíticas e comportamentais,
oferecendo uma compreensão mais aberta e aprofundada sobre a singularidade e as
questões existenciais de cada indivíduo, possibilitando uma maior compreensão de si e
autonomia, aumentando o potencial de escolha sobre sua própria vida.
Por fim, a psicoterapia fenomenológico existencial entende que grande parte das
dificuldades emocionais se desenvolvem por conta de uma relação inautêntica consigo
mesmo e com os outros. Por isso, sua prática pretende possibilitar o contato da pessoa com
sua própria existência de maneira mais autêntica e própria, alinhada com seus afetos, livre
para fazer escolhas e ir de encontro ou criar o que faça sentido para si, a cada momento.
Para tanto, o psicoterapeuta necessita de um grande preparo teórico e experiência
prática para se dedicar a este modo de fazer psicoterapia, que não é nada simples, pois parte
muito mais da filosofia do que da técnica científica. Além de conhecer os pressupostos,
demanda uma postura de abertura para os distintos modos de ser de cada pessoa.
Referências:
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Objetiva, 2017.
CERBONE, David. Fenomenologia. Tradução: Caesar Souza. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia? Tradução: Maria José de Almeida. 10ª ed. São
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FOULQUIÉ, Paul. O Existencialismo. Tradução: J. Guinsburg. 3ª ed. São Paulo: DIFEL, 1975.
LIMA, Antônio Balbino, org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e
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PENHA, João da. O que é Existencialismo. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2014.
PENNA, Antonio. Introdução à psicologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001.
REYNOLDS, Jack. Existencialismo. Tradução: Caesar Souza. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução: João Kreuch. 4ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.
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