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Ficha Técnica
Título original: Contos Escolhidos de Guy de Maupassant
Tradução: Pedro Tamen
Capa: Joana Tordo
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Boléo
ISBN: 978-989-23-1047-3
Publicações Dom Quixote
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
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Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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O tradutor desta selecção de contos de Guy de Maupassant deseja
deixar aqui claramente expresso o seu profundo agradecimento a
Miguel Viqueira, que não apenas lhe inspirou a ideia de traduzir de
novo este grande autor hoje quase esquecido em Portugal, como ainda
colaborou de uma maneira dedicada, activa e decisiva na escolha dos
textos e na organização interna do presente volume.
I
CONTOS MUNDANOS, AMOROSOS,
ERÓTICOS E GALANTES
A Casa Tellier
1.
Iam lá todas as noites, por volta das onze, simplesmente como quem vai ao café.
Eram seis ou oito os que ali se encontravam, sempre os mesmos, não uns pândegos quaisquer, mas
homens respeitáveis, comerciantes e gente nova da cidade; e tomavam o seu licor fazendo algumas
brincadeiras travessas às raparigas, ou então conversavam gravemente com a Madame, que toda a
gente respeitava.
E depois saíam para se irem deitar antes da meia-noite. Às vezes os jovens ficavam.
Era uma casa de família, pequenina, pintada de amarelo, na esquina de uma rua por trás da igreja de
Santo Estêvão; e das janelas avistava-se a doca cheia de navios a descarregar, o grande brejo
salgado a que chamavam «A Retenção» e, lá atrás, a costa da Virgem com a sua velha capela
enegrecida.
A Madame, oriunda de uma boa família de camponeses do departamento do Eure, aceitara aquela
profissão exactamente como poderia ter sido modista ou fanqueira. O preconceito desonroso ligado à
prostituição, tão violento e vivaz nas cidades, não existe nas terras de província normandas. O
camponês diz: «É um bom ofício»; e destina ao filho a gestão de um harém de raparigas do mesmo
modo que lhe daria a gerir um internato de meninas.
De resto, aquela casa viera por herança de um velho tio seu proprietário. O Senhor e a Madame,
em tempos estalajadeiros nos arredores de Yvetot, haviam imediatamente liquidado o seu negócio,
por considerarem que o de Fécamp lhes seria mais vantajoso; e tinham chegado um belo dia para
assumir a direcção da empresa que estava periclitando na ausência dos patrões.
Eram boas pessoas, que desde logo conquistaram a estima do pessoal e dos vizinhos.
O Senhor morreu de uma congestão passados dois anos. Como a sua nova profissão lhe
proporcionava uma vida de indolência e imobilidade, engordara muito e a saúde liquidara-o.
A Madame, depois de enviuvar, era desejada em vão por todos os frequentadores habituais do
estabelecimento; mas tinha a fama de ser absolutamente honesta, e nem sequer as suas pensionistas
haviam descoberto fosse o que fosse.
Era alta, cheia de carnes, elegante. A pele, empalidecida na obscuridade daquela casa sempre
fechada, brilhava como que untada por um verniz gorduroso. Rodeava-lhe a testa um esguio enfeite
de cabelos travessos, o que lhe dava um aspecto juvenil que destoava da maturidade das suas formas.
Invariavelmente alegre e de expressão franca, era dada a gracejos, com uma tonalidade comedida
que as suas novas ocupações ainda não lhe tinham feito perder. As palavras feias chocavam-na
sempre um pouco; e, quando um rapaz mal educado chamava pelo nome próprio o estabelecimento
que dirigia, zangava-se, revoltada. Tinha, enfim, uma alma delicada e, embora tratasse as suas
mulheres como amigas, não se cansava de repetir que «não era da mesma laia».
Às vezes, durante a semana, saía num carro de aluguer com uma parte do seu grupo; e iam folgar na
relva à beira de um regato que corre nas terras de Valmont. Havia então pensionistas que
desapareciam fugidas, correrias loucas, brincadeiras infantis, toda uma alegria de reclusas
inebriadas pelo ar livre. Comiam enchidos deitadas na relva bebendo cidra, e voltavam ao
entardecer com um delicioso cansaço, com uma doce comoção; e no carro beijavam a Madame que
era tão boa mãe, cheia de mansidão e complacência.
A casa tinha duas entradas. Na esquina da rua havia uma espécie de café de ruim aparência, que
abria à noite para a gente do povo e para os marinheiros. Duas das pessoas encarregadas do
comércio específico do local eram particularmente destinadas às necessidades daquela parte da
clientela. Com a ajuda do criado, chamado Frédéric, um loirinho imberbe e forte como um boi,
serviam os quartilhos de vinho e as litradas nas mesas desengonçadas de mármore, e, com os braços
à roda do pescoço dos bebedores, sentadas de viés nas pernas deles, encorajavam-nos a consumir.
As três outras damas (elas eram ao todo cinco) formavam uma espécie de aristocracia, e
permaneciam reservadas ao grupo do primeiro andar, a não ser quando precisavam delas lá em baixo
e o andar de cima estava vazio.
O salão de Júpiter, onde se reuniam os burgueses do lugar, era forrado a papel azul e enfeitado com
um grande desenho que representava Leda estendida debaixo de um cisne. Chegava-se até lá através
de uma escada de caracol que terminava numa porta estreita, de aparência humilde, que dava para a
rua, e por cima da qual brilhava toda a noite, atrás de uma grade, uma pequena lanterna daquelas que
se acendem ainda em certas cidades aos pés das Nossas Senhoras encastradas nas paredes.
O prédio, húmido e velho, cheirava ligeiramente a mofo. De vez em quando perpassava pelos
corredores um hálito de água-de-colónia, ou então uma porta entreaberta lá em baixo fazia ressoar
por toda a casa, como a explosão de uma trovoada, os gritos popularunchos dos homens das mesas
do rés-do-chão, e provocava nas caras dos senhores do primeiro andar um esgar de inquietação e
repugnância.
A Madame, íntima dos seus amigos clientes, não saía da sala, e interessava-se pelos boatos que
corriam na cidade e que através deles lhe chegavam. A sua conversa séria contrastava com as frases
incoerentes das três mulheres; ela era como que uma pausa na jovialidade brejeira dos senhores
barrigudos que todas as noites se entregavam àquele honesto e medíocre deboche de beberem um
cálice de licor na companhia de mulheres públicas.
As três damas do primeiro andar chamavam-se Fernanda, Rafaela e Rosa Pileca.
Como o pessoal era pouco, tinha-se procurado que cada uma delas fosse uma espécie de amostra,
de um resumo do tipo feminino, para que todos os consumidores pudessem encontrar ali, ao menos
aproximadamente, a realização do seu ideal.
A Fernanda representava a loiraça, muito alta, quase obesa, mole, rapariga do campo cujas sardas
se recusavam a desaparecer, e cujo cabelo amarelo-desbotado, encurtado, claro e sem cor, que
parecia cânhamo penteado, mal lhe cobria o crânio.
A Rafaela, uma marselhesa, prostituta dos portos de mar, representava o papel indispensável da
bela judia, magra, com as maçãs do rosto cobertas de vermelhão. Os cabelos pretos, postos a brilhar
com medula de boi, encaracolavam-se-lhe nas têmporas. Os olhos teriam sido bonitos se o direito
não tivesse a marca de uma catarata. O nariz arqueado descaía sobre uma queixada proeminente,
onde dois dentes novos, de cima, contrastavam com os de baixo, que, com o tempo, tinham tomado
uma coloração escura como a das madeiras antigas.
A Rosa Pileca, uma bolinha de carne toda ela barriga com umas pernas minúsculas, cantava de
manhã até à noite, numa voz rouca, umas cantigas ora licenciosas ora sentimentais, contava histórias
intermináveis e insignificantes, só parava de falar para comer e de comer para falar, e andava sempre
de um lado para o outro, ágil como um esquilo apesar da gordura e da exiguidade das patas; e o seu
riso, uma cascata de gritos agudos, estalava constantemente, por aqui e por ali, num quarto, no sótão,
no café, por toda a parte, a propósito de tudo e de nada.
As duas mulheres do rés-do-chão, a Luísa, apelidada de Cocote, e a Flora, chamada Baloiço por
coxear um bocado, uma sempre vestida de Liberdade com uma faixa tricolor à cintura, e a outra de
espanhola de fantasia com cequins de cobre que lhe dançavam no cabelo cor de cenoura a cada um
dos seus passos desiguais, dir-se-iam serventes de cozinha mascaradas para um carnaval.
Semelhantes a todas as mulheres do povo, nem mais feias nem mais bonitas, verdadeiras criadas de
estalagem, eram designadas no porto pela alcunha de «as duas Chancas».
Reinava entre estas cinco mulheres uma paz ciumenta, mas raramente perturbada, graças à
sabedoria conciliadora da Madame e ao seu inesgotável bom humor.
O estabelecimento, único naquela pequena cidade, era muito frequentado. A Madame soubera
infundir-lhe uma apropriada elegância: mostrava-se tão amável, tão obsequiosa para com toda a
gente, e o seu bom coração era tão bem conhecido que era rodeada de uma espécie de consideração.
Os frequentadores habituais eram capazes de fazer tudo por ela e sentiam-se triunfantes quando ela
lhes demonstrava uma amizade mais evidente; e quando durante o dia se encontravam nos seus locais
de trabalho diziam uns para os outros: «Até logo à noite, onde a gente sabe», como quem diz: «No
café, não é verdade? Depois do jantar.»
Enfim, a casa Tellier era um refúgio, e raramente alguém faltava ao encontro quotidiano.
Ora aconteceu que uma noite, em fins de Maio, o primeiro a chegar, o senhor Poulin, negociante de
madeiras e antigo presidente da Câmara, deparou com a porta fechada. O lanternim, atrás da sua
grade, não brilhava e não saía qualquer ruído da casa, que parecia morta. Bateu à porta, primeiro
devagarinho e depois com mais força, mas não respondeu ninguém. Tornou então a subir a rua em
passinhos curtos e, ao chegar à praça do Mercado, encontrou o senhor Duvert, o armador, que se
dirigia para o mesmo lugar. V
oltaram lá juntos sem melhor êxito. Mas um grande barulho estalou de
repente muito perto deles, e, dando a volta à casa, viram um ajuntamento de marinheiros ingleses e
franceses que davam murros nas portadas fechadas do café.
Os dois burgueses puseram-se imediatamente em fuga para não se verem comprometidos; mas foram
detidos por um leve «pssst»: era o senhor Tournevau, o da salga de peixe, que, tendo-os reconhecido,
estava a chamá-los. Contaram-lhe o que se passava, o que ainda mais o afectou a ele, que, casado,
pai de família e muito vigiado, só lá ia aos sábados «securitatis causa», dizia ele, aludindo assim a
uma medida de polícia sanitária cujas periódicas sequências o doutor Borde, seu amigo, lhe havia
revelado. Aquela era justamente a noite dele, e ia assim ficar privado uma semana inteira.
Os três homens deram uma grande volta até ao cais, e encontraram no caminho o jovem senhor
Philippe, filho do banqueiro, um frequentador habitual, e o senhor Pimpesse, recebedor dos
impostos. Regressaram então todos juntos pela rua «dos Judeus» para fazerem uma última tentativa.
Mas os marinheiros exasperados cercavam a casa, atiravam pedras, berravam; e os cinco clientes do
primeiro andar, arrepiando caminho o mais depressa possível, puseram-se a vaguear pelas ruas.
Encontraram então o senhor Dupuis, agente de seguros, e depois o senhor Vasse, juiz do tribunal do
comércio; e assim principiou um longo passeio que começou por levá-los até ao molhe. Sentaram-se
alinhados no parapeito de granito e ficaram-se a contemplar a ondulação. A espuma na crista das
ondas criava na sombra umas brancuras luminosas que se extinguiam logo mal apareciam, e o ruído
monótono do mar quebrando-se contra as rochas prolongava-se na noite ao longo de toda a falésia. Já
os tristes viandantes estavam ali há algum tempo quando o senhor Tournevau declarou: «É triste.»
«Lá isso é», continuou o senhor Pimpesse; e lá se foram em passinhos miúdos.
Percorrida a rua que segue pela base da falésia e a que chamam «Debaixo da Mata», voltaram pela
ponte de pranchas para a «Retenção», passaram junto da linha férrea e foram desembocar de novo na
praça do Mercado, onde de repente começou uma discussão entre o recebedor dos impostos, o
senhor Pimpesse, e o negociante de sal, o senhor Tournevau, a propósito de um cogumelo comestível
que um deles afirmava ter encontrado ali perto.
Os espíritos estavam azedados pelo tédio, e teriam certamente chegado a vias de facto se os outros
não se tivessem interposto. O senhor Pimpesse, furioso, retirou-se; e logo estalou nova altercação
entre o antigo presidente da Câmara, o senhor Poulin, e o agente de seguros, o senhor Dupuis, acerca
dos vencimentos do recebedor dos impostos e dos benefícios que podia obter. As afirmações
injuriosas choviam de ambos os lados, quando estoirou uma tempestade de gritos formidáveis, e o
bando dos marinheiros, cansados de esperar em vão diante de uma casa fechada, entrou na praça.
Vinham agarrados uns aos outros pelos braços, dois a dois, formando uma longa procissão, e
vociferavam furiosamente. O grupo dos burgueses escondeu-se debaixo de um portal, e a horda aos
uivos desapareceu na direcção da abadia. Ainda durante muito tempo se ficou ouvindo o clamor que
diminuía como um temporal que se afasta; e voltou o silêncio.
O senhor Poulin e o senhor Dupuis, irritados um com o outro, foram-se embora, cada um para o seu
lado, sem se cumprimentarem.
Os outros quatro continuaram a andar e tornaram a descer instintivamente na direcção do
estabelecimento Tellier. Continuava fechado, mudo, impenetrável. Um bêbado, tranquilo e obstinado,
dava pancadinhas na frontaria do café, e depois interrompia-se para chamar a meia-voz pelo criado
Frédéric. Vendo que não lhe respondiam, decidiu sentar-se no degrau da porta e aguardar os
acontecimentos.
Os burgueses iam retirar-se quando o bando tumultuoso dos homens do porto reapareceu ao fim da
rua. Os marinheiros franceses berravam A Marselhesa, os ingleses o Rule Britannia. Todos
arremeteram contra as paredes, e depois a vaga de brutamontes retomou o seu percurso para o cais,
onde estalou uma batalha entre os marítimos das duas nações. Durante a briga, um inglês ficou com
um braço partido e um francês com o nariz rachado.
O bêbado, que tinha ficado diante da porta, chorava agora como choram os bêbados ou as crianças
contrariadas.
Por fim, os burgueses dispersaram.
A pouco e pouco a calma regressou à cidade perturbada. De praça em praça ainda de vez em
quando se erguia um ruído de vozes que depois se extinguia ao longe.
Apenas um homem continuava a deambular, o senhor Tournevau, o negociante de sal, desolado por
ter de esperar até ao sábado seguinte; estava à espera de um acaso qualquer, porque não compreendia
aquilo, exasperado por a polícia deixar fechar assim um estabelecimento de utilidade pública que lhe
cabe vigiar e ter à sua guarda.
V
oltou lá, colado às paredes, em busca de uma razão; e descobriu que havia um letreiro colado na
frontaria. Apressou-se a acender um fósforo e leu estas palavras traçadas numa letra grande e
desigual: «Fechado por motivo de primeira comunhão.»
Então afastou-se, percebendo assim que era assunto arrumado.
O bêbado estava agora a dormir, estendido ao comprido e atravessado na porta pouco hospitaleira.
E no dia seguinte todos os clientes habituais, um após outro, acharam maneira de passar na rua com
papéis debaixo do braço por uma questão de aparência; e, numa olhadela furtiva, todos liam o
misterioso aviso: «Fechado por motivo de primeira comunhão.»
2.
Acontecia que a Madame tinha um irmão estabelecido como marceneiro na sua terra natal, Virville,
no Eure. No tempo em que a Madame era ainda estalajadeira em Yvetot fora ela que levara à pia
baptismal a filha daquele irmão, a que deu o nome de Constance, Constance Rivet, pois ela própria
era Rivet pelo lado do pai. O marceneiro, que sabia que a irmã estava numa boa situação, não a
perdia de vista, embora não se encontrassem muitas vezes, ambos retidos que estavam pelas
respectivas ocupações e, além disso, por viverem longe um do outro. Mas, como a menina ia
completar doze anos e nesse ano fazia a sua primeira comunhão, ele aproveitou a oportunidade para
promover uma aproximação, e escreveu à irmã que contava com ela para a cerimónia. Os velhos pais
tinham morrido e ela não podia recusar aquilo à afilhada: aceitou. O irmão, que se chamava Joseph,
esperava que, valendo-se destas atenções, talvez conseguisse um testamento a favor da pequena, já
que a Madame não tinha filhos.
A profissão da irmã não bulia de modo algum com os seus escrúpulos e, aliás, ninguém lá da terra
sabia de nada. Ao falar dela dizia-se apenas: «A senhora Tellier é uma burguesa de Fécamp», o que
dava a entender que estava em condições de viver dos rendimentos. De Fécamp até Virville distavam
pelo menos vinte léguas; e vinte léguas de terra são, para camponeses, mais difíceis de percorrer que
o Oceano para um civilizado. O povo de Virville nunca tinha ido além de Ruão; e nada atraía as
gentes de Fécamp a uma aldeola de quinhentos fogos, perdida no meio das planícies e que pertencia a
outro departamento. Enfim, não se sabia de nada.
Mas, ao aproximar-se a época da comunhão, a Madame sentiu um grande embaraço. Não tinha
nenhuma patroa substituta e não lhe agradava nada deixar a casa, mesmo por um dia. Todas as
rivalidades entre as damas lá de cima e as lá de baixo iriam infalivelmente estalar; além disso, o
Frédéric havia de embebedar-se de certeza, e quando estava bêbado importunava as pessoas por tudo
e por nada. Acabou por se decidir a levar consigo toda a sua gente, excepto o criado, a quem deu
férias até dali a dois dias.
Consultado o irmão, este não levantou qualquer objecção, e encarregou-se de arranjar alojamento
para todo o grupo por uma noite. E assim, no sábado de manhã, o comboio expresso das oito
transportava a Madame e as suas companheiras numa carruagem de segunda classe.
Até Beuzeville foram sozinhas e palraram como pegas. Mas nessa estação entrou um casal. O
homem, um velho camponês que envergava uma bata azul com gola plissada, mangas largas apertadas
nos pulsos e adornadas de um bordadinho branco, de cabeça coberta por um antiquado chapéu alto
cujo pêlo ruço parecia eriçado, trazia numa das mãos um imenso chapéu-de-chuva verde, e na outra
um grande cesto donde espreitavam as cabeças assustadas de três patos. A mulher, hirta na sua
roupagem rústica, tinha cara de galinha, com um nariz afilado como um bico. Sentou-se de frente para
o seu homem e deixou-se ficar sem se mexer, impressionada por se encontrar rodeada de uma tão
bela companhia.
Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de
seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho, ofuscante,
fulgurante. A Fernanda ofegava num vestido escocês cujo corpete, atado com todas as forças das
companheiras, lhe soerguia o peito em riscos de se desmoronar numa dupla cúpula sempre agitada
que parecia líquida debaixo do tecido.
A Rafaela, com um penteado emplumado a fingir um ninho cheio de passarinhos, usava um vestido
lilás, semeado de lantejoulas de ouro, uma coisa como que oriental que calhava bem com a sua cara
de judia. A Rosa Pileca, de saia cor-de-rosa com amplos folhos, tinha o aspecto de uma menininha
excessivamente gorda, de uma anã obesa; e as duas Chancas pareciam ter escolhido de propósito uns
adornos estranhos por entre velhas cortinas de janela, as velhas cortinas com ramagens do tempo da
Restauração.
Mal deixaram de estar sozinhas no compartimento, as senhoras assumiram um comportamento sério,
e puseram-se a falar de coisas elevadas para criarem boa opinião a seu respeito. Mas em Bolbec
apareceu um sujeito de suíças loiras, com anéis e uma corrente de ouro, que arrumou na rede por
cima da sua cabeça vários pacotes embrulhados em oleado. Tinha um ar trocista e de boa pessoa.
Cumprimentou, sorriu e perguntou com todo o à-vontade: «Estas senhoras vão mudar de quartel?» A
pergunta lançou no grupo uma confusão embaraçada. Por fim a Madame recuperou a presença de
espírito e respondeu secamente, para vingar a honra do pelotão: «O senhor podia ser mais bem
educado!» Ele desculpou-se: «Perdão, eu queria dizer de convento.» A Madame, como não
encontrou nada para responder, ou talvez por achar a rectificação suficiente, fez um cumprimento
digno franzindo os lábios.
Então o senhor, que estava sentado entre a Rosa Pileca e o velho camponês, pôs-se a piscar o olho
aos três patos cujas cabeças espreitavam do grande cesto; e depois, quando sentiu que o seu público
já estava cativado, começou a fazer festas aos animais debaixo do bico, dirigindo-lhes frases
engraçadas para alegrar a companhia: «Com que então deixámos o nosso charco!, quáquá!, quáquá!,
quáquá!, para conhecermos o belo espeto, não é?, quáquá!, quáquá!, quáquá!» Os infelizes animais
reviravam o pescoço para evitar os seus afagos, faziam terríveis esforços para saírem da sua prisão
de vime; e depois, de repente, os três em conjunto, soltaram um lamentoso grito de aflição: – Quáquá!
quáquá! quáquá! Houve então uma explosão de gargalhadas entre as mulheres. Elas debruçavam-se,
empurravam-se umas às outras para espreitar; estavam loucamente interessadas nos patos; e o senhor
redobrava de graciosidade, de espírito e de carícias.
A Rosa meteu-se no assunto e, debruçando-se por sobre as pernas do seu vizinho, beijou os três
animais no nariz. E logo todas as mulheres os quiseram beijar também; e o senhor sentava as
senhoras nos seus joelhos, fazia-as dar saltos, beliscava-as; não tardou e estava a tratá-las por tu.
Os dois camponeses, ainda mais desorientados que os patos, arregalavam uns olhos de possessos
sem se atreverem a fazer qualquer movimento, e os seus velhos rostos enrugados não mostravam
qualquer sorriso, nem qualquer sobressalto.
Então o cavalheiro, que era caixeiro-viajante, ofereceu por brincadeira uns suspensórios às
senhoras e abriu um dos seus embrulhos. Era um ardil, porque o pacote continha ligas de mulher.
Havia-as de seda azul, de seda cor-de-rosa, de seda encarnada, de seda roxa, de seda cor de malva,
de seda cor de papoila, com anéis de metal formados por dois amores enlaçados e dourados. As
raparigas soltaram gritos de alegria, e depois puseram-se a examinar as amostras, possuídas de novo
pela gravidade natural de qualquer mulher quando mexe num objecto de toilette. Consultavam-se
umas às outras com os olhos ou com palavras segredadas, respondiam do mesmo modo, e a Madame
manuseava com desejo um par de ligas alaranjadas, mais largas, mais imponentes que as outras:
verdadeiras ligas de patroa.
O cavalheiro esperava, e ao mesmo tempo ia alimentando uma ideia: «Vamos lá, minhas gatinhas, é
preciso prová-las», disse ele. Soltou-se uma tempestade de exclamações; e elas apertavam as saias
entre as pernas como se temessem violências. Ele, tranquilamente, esperava a sua hora. Declarou:
«Se não querem, torno a embrulhar.» E depois, com toda a esperteza: «Ofereço um par, à escolha, às
que fizerem a experiência.» Mas elas não queriam, muito dignas, muito direitas. Porém, as duas
Chancas pareciam tão infelizes que ele repetiu-lhes a proposta. Sobretudo a Flora Baloiço, torturada
pelo desejo, hesitava visivelmente. Ele pressionou-a: «Vá lá, menina, um pouco de coragem; olha
este par lilás, que vai bem com a tua toilette.» Então ela decidiu-se e, erguendo o vestido, pôs à
mostra uma perna forte de vaqueira, dificilmente apertada numa meia grosseira. O cavalheiro,
baixando-se, prendeu a liga primeiro abaixo do joelho e depois acima; e titilava suavemente a
rapariga para a obrigar a soltar uns gritinhos com bruscos estremecimentos. Quando acabou, deu o
par lilás e perguntou: «Quem se segue?» Todas juntas gritaram: «Eu! Eu!» Ele começou pela Rosa
Pileca, que pôs à mostra uma coisa informe, toda redonda, sem tornozelo, uma verdadeira «perna
chouriço», como dizia a Rafaela. A Fernanda foi cumprimentada pelo caixeiro-viajante,
entusiasmado pelas suas poderosas colunas. As magras tíbias da bela Judia não tiveram tanto êxito.
A Luísa Cocote, de brincadeira, lançou a saia por cima da cabeça do cavalheiro; e a Madame viu-se
obrigada a intervir para acabar com aquela farsa pouco própria. Por fim, a própria Madame estendeu
a perna, uma bela perna normanda, gorda e musculada; e o caixeiro-viajante, surpreendido e
encantado, tirou galantemente o chapéu para saudar aquela supina barriga da perna como um
verdadeiro cavalheiro francês.
Os dois camponeses, hirtos de pasmo, olhavam de lado, pelo canto do olho; e pareciam-se tão
absolutamente com frangos que o homem das suíças loiras, levantando-se, lhes gritou em pleno nariz:
«Cocorocó!» O que de novo desencadeou um furacão de galhofa.
Os velhos desceram em Motteville, eles e o seu cesto, os seus patos e o seu guarda-chuva; e ouviu-
se a mulher dizer para o homem enquanto se afastavam: «São mais mulheres da vida que vão para
aquela maldita Paris!»
O divertido vendedor ambulante desceu também em Ruão, depois de se ter revelado tão grosseiro
que a Madame se viu obrigada a pô-lo severamente no seu lugar. E acrescentou à laia de moral: «É
para sabermos que não se deve falar com a primeira pessoa que nos aparece.»
Em Oissel mudaram de comboio e encontraram-se numa das estações seguintes com o senhor
Joseph Rivet que as esperava numa grande carreta cheia de cadeiras e puxada por um cavalo branco.
O marceneiro beijou delicadamente todas aquelas senhoras e ajudou-as a subir para o carro. Três
sentaram-se em três cadeiras ao fundo; a Rafaela, a Madame e o irmão nas três cadeiras da frente, e
a Rosa, como não tinha lugar, acoitou-se como pôde nos joelhos da grandalhona Fernanda; e lá se
puseram todos a caminho. Mas logo o trote sacudido do garrano agitou o carro tão terrivelmente que
as cadeiras começaram a dançar atirando as passageiras ao ar, para a direita e para a esquerda, com
movimentos de fantoches, caretas de susto, gritos de pavor de repente cortados por um sacão mais
forte. Aferravam-se aos lados do veículo; os chapéus caíam-lhes para as costas, para o nariz ou para
os ombros; e o cavalo branco continuava, de cabeça estendida e cauda direita, uma pequena cauda de
rato sem pêlo com que açoitava as nádegas de vez em quando. Joseph Rivet, com um pé estendido
sobre o varal e a outra perna dobrada debaixo do corpo, de cotovelos erguidos, segurava as rédeas, e
da garganta escapava-se-lhe a todo o momento uma espécie de cacarejo que, fazendo erguer as
orelhas ao garrano, lhe acelerava o passo.
Os campos verdes estendiam-se de ambos os lados da estrada. As colzas em flor formavam aqui e
além uma grande toalha amarela ondulante donde se erguia um saudável e poderoso aroma, um aroma
penetrante e doce, que o vento transportava até muito longe. Nos pés de centeio já crescidos as
cinerárias mostravam as cabecinhas azuladas que as mulheres queriam colher, mas o senhor Rivet
recusou-se a parar. Além disto, por vezes, aparecia um campo inteiro que parecia regado de sangue,
de tal modo estava invadido de papoilas. E no meio daquelas planícies assim coloridas pelas flores
da terra, a carreta, que parecia também transportar um ramo de flores de tão ardentes cores, passava
levada pelo trote do cavalo branco, desaparecia atrás das grandes árvores de uma herdade para
reaparecer no fim das ramarias e de novo passear através das culturas amarelas e verdes,
sarapintadas de vermelho ou de azul: uma deslumbrante carrada de mulheres correndo debaixo do
sol.
Batia uma hora quando chegaram diante da porta do marceneiro.
Estavam moídas de cansaço e pálidas de fome, porque não tinham comido nada desde a partida de
casa. A senhora Rivet precipitou-se, ajudou-as a descer uma a uma, beijando-as logo que chegavam
ao chão; e não parava de beijocar a cunhada, cujas boas graças queria conquistar. Comeram na
oficina, donde tinham retirado os bancos de trabalho para o jantar do dia seguinte.
Uma boa omeleta seguida de uma linguiça grelhada, tudo regado com uma boa cidra cheia de picos,
devolveu a alegria a toda a gente. Rivet, para brindar, bebera um copo, e a mulher servia, fazia a
cozinha, trazia os pratos, retirava-os, murmurando ao ouvido de cada uma das visitas: «Não lhe falta
nada?» Montes de tábuas encostadas às paredes e pilhas de aparas varridas para os cantos
espalhavam um perfume de madeira aplainada, um cheiro a marcenaria, aquele hálito resinoso que
penetra até ao fundo dos pulmões.
Queriam ver a pequena, mas ela estava na igreja e só devia regressar à tarde.
Então todo o grupo saiu para dar uma volta pela terra.
Era uma aldeia muito pequena, atravessada por uma estrada principal. Numa dezena de casas
arrumadas ao longo dessa via única alojavam-se os comerciantes do sítio, o açougueiro, o merceeiro,
o marceneiro, o dono do botequim, o sapateiro e o padeiro. A igreja, na extremidade dessa espécie
de rua, era rodeada por um estreito cemitério; e quatro tílias desmesuradas, plantadas diante do
portal, cobriam-na inteiramente de sombra. Era feita de pederneira talhada, sem qualquer espécie de
estilo, e encimada por um campanário de ardósia. A seguir à igreja recomeçava o campo, cortado
aqui e além por maciços de árvores que escondiam as herdades.
Rivet, por uma questão de cerimónia, e embora vestido de operário, tinha dado o braço à irmã, que
levava a passear majestosamente. A mulher, muito comovida com o vestido com fios dourados da
Rafaela, colocara-se entre esta e a Fernanda. A rechonchuda Rosa ia trotando lá atrás com a Luísa
Cocote e a Flora Baloiço, que coxeava extenuada.
Os habitantes vinham às portas, as crianças paravam de brincar, uma cortina soerguida deixava
entrever uma cabeça com um gorro de chita; uma velha de muletas e quase cega persignou-se como à
passagem de uma procissão; e todos seguiam longamente com o olhar todas aquelas belas raparigas
da cidade que tinham vindo de tão longe para a primeira comunhão da pequena do Joseph Rivet. Uma
imensa consideração ressaltava sobre o marceneiro.
Ao passarem diante da igreja ouviram cânticos de crianças; um canto gritado para o céu por umas
vozinhas agudas; mas a Madame não deixou que entrassem para não perturbarem os querubins.
Depois de uma volta pelo campo, e da enumeração das principais propriedades, do rendimento da
terra e da produção do gado, Joseph Rivet reconduziu o seu rebanho de mulheres e instalou-se na sua
casa.
O espaço era muito escasso, e elas tinham sido repartidas aos pares pelos diversos quartos.
Rivet, desta vez, dormiria na oficina, em cima das aparas; a mulher partilharia a cama com a
cunhada e, no quarto ao lado, a Fernanda e a Rafaela descansariam juntas. A Luísa e a Flora estavam
instaladas na cozinha em cima de um colchão estendido no chão; e a Rosa ocupava sozinha um
pequeno cubículo escuro por cima da escada, junto da entrada de um exíguo sótão onde nessa noite
dormiria a comungante.
Quando a menina regressou caiu-lhe em cima uma chuva de beijos; todas as mulheres queriam
amimá-la, com aquela necessidade de expansão terna, aquele hábito profissional de meiguices que na
carruagem do comboio as levara a todas a beijar os patinhos. Todas a fizeram sentar ao colo, lhe
mexeram nos finos cabelos loiros, a apertaram nos seus braços em impulsos de afecto veemente e
espontâneo. A criança, tão ajuizada, intimamente penetrada de piedade, como que fechada pela
absolvição, deixava que lhe fizessem tudo, paciente e recolhida.
Como o dia fora difícil para toda a gente, deitaram-se logo a seguir ao jantar. Aquele ilimitado
silêncio dos campos que quase parece religioso envolvia a pequena aldeia, um silêncio tranquilo,
penetrante, e amplo até aos astros. As raparigas, acostumadas aos serões tumultuosos da casa
pública, sentiam-se comovidas por aquele mudo repouso do campo adormecido. Sentiam arrepios,
não de frio, mas arrepios de solidão oriundos do coração inquieto e perturbado.
Mal se meteram na cama, duas a duas, abraçaram-se como para se defenderem daquela invasão do
calmo e profundo sono da terra. Mas a Rosa Pileca, sozinha no seu cubículo escuro, e pouco
habituada a dormir de braços vazios, sentiu-se invadida por uma emoção vaga e penosa. Revirava-se
na cama sem conseguir conciliar o sono, quando ouviu atrás do tabique de madeira a que encostava a
cabeça uns débeis soluços, como os de uma criança a chorar. Assustada, chamou em voz baixa, e
respondeu-lhe uma vozinha entrecortada. Era a rapariguinha que, tendo sempre dormido no quarto da
mãe, tinha medo no seu estreito desvão.
A Rosa, encantada, levantou-se e, devagarinho, para não acordar ninguém, foi procurar a criança.
Trouxe-a para a sua cama quentinha, apertou-a contra o peito beijando-a, acalentou-a, envolveu-a na
sua ternura de exageradas manifestações, e depois, ela própria mais calma, adormeceu. E até ser dia
a comungante dormiu com a testa encostada ao seio nu da prostituta.
Às cinco da manhã, à hora do Angelus, o pequeno sino da igreja repicando com toda a sua animação
despertou as senhoras que habitualmente dormiam toda a manhã, seu único repouso das fadigas
nocturnas. Os camponeses da aldeia já estavam a pé. As mulheres da terra andavam apressadamente
de porta em porta, conversando animadamente, transportando cuidadosamente vestidos curtos de
musselina engomados como se fossem de cartão, ou círios imensos, com um nó de seda franjada de
dourado a meio, e sulcos de cera a indicar o lugar da mão. O sol já alto luzia num céu bem azul que
conservava no horizonte uma coloração um tanto rosada, como se fosse um vestígio enfraquecido da
aurora. Diante das suas casas passeavam-se famílias de galinhas; e, aqui e além, um galo negro de
pescoço luzidio erguia a cabeça coberta de púrpura, batia as asas e soltava ao vento o seu canto de
cobre repetido pelos outros galos.
Chegavam carros das comunas próximas, que descarregavam junto das portas as altas normandas de
vestidos escuros, com o lenço cruzado no peito e preso por uma jóia de prata secular. Os homens
tinham envergado a bata azul por cima da sobrecasaca nova ou do velho fato de tecido verde com as
duas abas cruzadas.
Quando os cavalos foram para a cavalariça, viu-se assim ao longo da rua principal uma dupla linha
de carripanas rústicas, charrettes, cabriolés, tilburys, carros de bancos corridos, viaturas de todas
as formas e idades, caídas de nariz ou com a traseira no chão e os varais erguidos para o céu.
Em casa do marceneiro vivia-se uma actividade de colmeia. As senhoras, de corpete e saia, com o
cabelo caído sobre as costas, uns cabelos magros e curtos que se diriam baços e corroídos pela
idade, tratavam de vestir a menina.
A pequena, de pé em cima de uma mesa, não se mexia, enquanto a senhora Tellier dirigia os
movimentos do seu batalhão volante. Lavaram-na, pentearam-na, arranjaram-lhe o cabelo, vestiram-
na e, servindo-se de uma multidão de alfinetes, orientaram as pregas do vestido, apertaram-lhe a
cintura larga de mais, organizaram a elegância da toilette. A seguir, terminada esta operação,
sentaram a paciente recomendando-lhe que não se movesse mais, e o bando agitado das mulheres
correu a preparar-se também.
A pequena igreja recomeçava os toques. O seu tilintar frágil de sino pobre erguia-se para se perder
nos céus, como se fosse uma voz demasiado fraca logo afogada no imenso azul.
Os comungantes saíam das portas, encaminhavam-se para o edifício comunal onde se alojavam as
duas escolas e a câmara, e que se situava numa das extremidades da povoação, enquanto a «casa de
Deus» ocupava a outra ponta.
Os pais, com roupas de festa, com caras de embaraço e com aqueles movimentos desajeitados dos
corpos sempre dobrados sobre o trabalho, seguiam os respectivos rebentos. As raparigas
desapareciam numa nuvem de tule nevado que parecia de natas batidas, enquanto os rapazinhos, que
pareciam embriões de criados de café, com as cabeças untadas de brilhantina, caminhavam de pernas
afastadas para não sujarem os calções pretos.
Era uma glória para uma família quando um grande número de parentes vindos de longe rodeava a
criança: por isso o triunfo do marceneiro foi completo. O regimento Tellier, com a patroa à cabeça,
ia atrás de Constance; e com o pai a dar o braço à irmã, a mãe caminhando ao lado da Rafaela, a
Fernanda com a Rosa e as duas Chancas juntas, o bando desdobrava-se majestosamente como um
estado-maior em uniforme de gala.
O efeito na aldeia foi fulminante.
Na escola, as meninas arrumaram-se seguindo a touca da freirinha, e os rapazes o chapéu do
professor, um belo homem que representava; e partiram atacando o princípio de um cântico.
As crianças masculinas à cabeça estendiam as suas duas filas entre duas enfiadas de carros
desatrelados, e as raparigas seguiam a mesma ordem; e como todos os habitantes, por uma questão de
consideração, tinham deixado passar primeiro as senhoras da cidade, estas chegavam imediatamente
a seguir às meninas, prolongando ainda mais a dupla linha da procissão, três à esquerda e três à
direita, com as suas toilettes espaventosas como um estralejar de fogo-de-artifício.
A sua entrada na igreja pôs a população em delírio. As pessoas apertavam-se umas contra as outras,
viravam-se para trás, empurravam-se para ver melhor. E havia devotas que falavam quase em voz
alta, estupefactas com o espectáculo daquelas senhoras mais agaloadas que as casulas do coro. O
presidente da Câmara ofereceu o seu banco, o primeiro banco à direita a seguir ao coro, e a senhora
Tellier foi lá sentar-se juntamente com a cunhada, a Fernanda e a Rafaela. A Rosa Pileca e as duas
Chancas ocuparam o segundo banco na companhia do marceneiro.
O coro da igreja estava cheio de crianças de joelhos, raparigas de um lado e rapazes do outro, e os
longos círios que seguravam nas mãos pareciam lanças inclinadas em todos os sentidos.
Diante da estante do coro, três homens de pé cantavam em plena voz. Prolongavam indefinidamente
as sílabas do latim sonoro, eternizando os Amen com a-a indefinidos, que o serpentão mantinha com
a sua nota monótona infinitamente sustentada, mugida pelo instrumento de cobre de vasta goela. A
voz pontiaguda de uma criança dava a réplica, e de vez em quando um padre sentado numa estala e
com um barrete quadrado na cabeça erguia-se, atabalhoava qualquer coisa e sentava-se outra vez,
enquanto os três cantores recomeçavam, de olhos fitos no grande livro de cantochão aberto à sua
frente e transportado pelas asas abertas de uma águia de madeira montada num eixo.
Depois, fez-se silêncio. Toda a assistência, num só movimento, se ajoelhou, e surgiu o oficiante,
velho, venerável, de cabelos brancos, inclinado sobre o cálice que trazia na mão esquerda. À sua
frente caminhavam dois acólitos de toga vermelha, e atrás surgiu uma multidão de cantores de
grossos sapatorros que se alinharam de ambos os lados do coro.
Tilintou uma campainha no meio do pesado silêncio. Começava o ofício divino. O sacerdote
circulava lentamente diante do tabernáculo de ouro, fazia genuflexões, salmodiava de voz quebrada,
tremelicante de velhice, as orações preparatórias. Mal ele se calava, todos os cantores e o serpentão
soltavam-se a uma só voz, e havia homens que cantavam também na igreja, numa voz menos forte,
mais humilde, como devem cantar os assistentes.
De repente jorrou para o céu o Kyrie eleison, impulsionado por todos os peitos e por todos os
corações. Até da abóbada antiga, sacudida por esta explosão de gritos, caíram grãos de poeira e
fragmentos de madeira roída de caruncho. O sol que iluminava as ardósias do tecto transformava a
pequena igreja numa fornalha; e uma grande emoção, uma expectativa ansiosa, a aproximação do
inefável mistério, apertavam o coração das crianças e formavam um nó na garganta das mães.
O sacerdote, que se sentara por alguns momentos, tornou a subir para o altar e, de cabeça
descoberta, apenas coberta pelos seus cabelos prateados, com gestos trementes, aproximava-se do
acto sobrenatural.
Virou-se para os fiéis e, de mãos estendidas para eles, pronunciou: «Orate, fratres», «Orai, meus
irmãos.» Rezavam todos. O velho prior balbuciava agora baixinho as palavras misteriosas e
supremas; a campainha tilintava repetidamente; a multidão prosternada chamava por Deus; as
crianças desfaleciam numa ansiedade desmesurada.
Foi então que a Rosa, de cabeça entre as mãos, se lembrou subitamente da sua mãezinha, da igreja
da sua aldeia, da sua primeira comunhão. Julgou-se regressada àquele dia, quando era tão pequenina,
enfiadinha no seu vestido branco, e desatou a chorar. A princípio chorou baixinho; as lágrimas lentas
saíam-lhe das pálpebras, mas depois, com as recordações, a sua emoção aumentou e, de pescoço
intumescido, com o peito a bater, soluçou. Puxara do lenço, enxugava os olhos, tapava o nariz e a
boca para não gritar; mas foi em vão: saía-lhe da garganta uma espécie de estertor, e dois outros
suspiros profundos, dilacerantes, lhe responderam: porque as suas duas vizinhas, curvadas junto
dela, a Luísa e a Flora, apertadas pelas mesmas memórias longínquas, igualmente gemiam com
torrentes de lágrimas.
Mas como as lágrimas são contagiosas, a Madame, por sua vez, não tardou a sentir as pálpebras
húmidas, e, virando-se para a cunhada, viu que todo o seu banco estava também a chorar.
O sacerdote criava o corpo de Deus. As crianças já não eram capazes de pensar, atiradas por sobre
as lajes por uma devoção ardente; e na igreja, de lugar em lugar, uma mulher, uma mãe, uma irmã,
tomada pela estranha simpatia das emoções pungentes, e transtornada também por aquelas belas
senhoras ajoelhadas que eram sacudidas por frémitos e soluços, inundava o lenço de chita aos
quadrados e, com a mão esquerda, apertava violentamente o coração aos saltos.
Tal como a fagulha que espalha o fogo num campo maduro, as lágrimas da Rosa e das suas
companheiras invadiram num instante toda a multidão. Homens, mulheres, velhos, rapagões com
blusas novas, em breve todos desatavam a soluçar, e sobre as respectivas cabeças parecia planar
algo de sobre-humano, uma alma derramada, o sopro prodigioso de um ser invisível e todo-
poderoso.
Então, no coração da igreja, retiniu um pequeno toque: a freirinha, batendo no seu livrinho, dava o
sinal da comunhão; e as crianças, tiritando de divina febre, aproximaram-se da sagrada mesa.
Estava uma fila inteira ajoelhada. O velho prior, segurando na mão o cibório dourado, passava
diante deles oferecendo-lhes entre dois dedos a hóstia sagrada, o corpo de Cristo, a redenção do
mundo. Abriam a boca com espasmos, com trejeitos nervosos, de olhos fechados e palidez no rosto;
e a longa toalha estendida debaixo dos seus queixos estremecia como água corrente.
De repente passou pela igreja uma espécie de loucura, um rumor de multidão em delírio, uma
tempestade de soluços com gritos abafados. Passou como aqueles golpes de vento que inclinam as
florestas; e o padre permanecia de pé, imóvel, com uma hóstia na mão, paralisado pela emoção,
dizendo de si para si: «É Deus, é Deus que está entre nós, que manifesta a sua presença, que desce
pela minha voz ao seu povo ajoelhado.» E balbuciava orações atordoadas, sem atinar com as
palavras, orações da alma, num furioso ímpeto para o céu.
Acabou de dar a comunhão numa tal exaltação de fé que as pernas lhe desfaleciam debaixo do
corpo, e quando ele próprio bebeu o sangue do seu Senhor, abismou-se num acto de agradecimento
desvairado.
Atrás dele, o povo acalmava-se a pouco e pouco. Os cantores, promovidos à dignidade da
sobrepeliz branca, recomeçavam numa voz menos segura, ainda húmida; e o serpentão parecia
também ele enrouquecido como se o próprio instrumento tivesse chorado.
Então o padre, erguendo as mãos, fez-lhes sinal para se calarem, e passando entre as duas filas de
comungantes perdidos em êxtases de felicidade, aproximou-se da grade do coro.
A assembleia tinha-se sentado com um ruído de cadeiras, e agora toda a gente se assoava com
força. Mal deram pelo prior fizeram silêncio e ele começou a falar num tom muito baixo, hesitante,
velado: «Meus queridos irmãos, minhas queridas irmãs, meus meninos, do fundo do coração vos
agradeço: acabais de me dar a maior alegria da minha vida. Senti que Deus descia sobre nós ao meu
chamamento. Ele veio, estava ali, presente, Ele que enchia as vossas almas, que fazia transbordar os
vossos olhos. Eu sou o mais velho sacerdote da diocese, mas sou também, hoje, o mais feliz.
Aconteceu um milagre no meio de nós, um verdadeiro, um grande, um sublime milagre. Ao mesmo
tempo que Jesus Cristo penetrava pela primeira vez no corpo destas crianças, o Espírito Santo, o
pássaro celestial, o sopro de Deus, desceu sobre vós, apoderou-se de vós, agarrou-vos, curvados que
estáveis como caniços dobrados pela brisa.»
Depois, numa voz mais clara, voltando-se para os dois bancos onde se achavam as convidadas do
marceneiro: «Obrigado sobretudo a vós, minhas queridas irmãs, que viestes de tão longe, e cuja
presença no meio de nós, cuja fé visível, cuja piedade tão viva foram para todos um salutar exemplo.
Vós sois a edificação da minha paróquia; a vossa emoção aqueceu os nossos corações; se não fôsseis
vós, talvez este grande dia não tivesse tido este carácter verdadeiramente divino. Às vezes basta uma
só ovelha de escol para decidir o Senhor a descer sobre o rebanho.»
A voz faltava-lhe. Acrescentou: «É a graça que vos desejo. Assim seja.» E tornou a subir para o
altar para terminar o ofício.
Agora toda a gente tinha pressa de sair. Até as crianças se agitavam, cansadas de uma tão longa
tensão espiritual. Além disso, tinham fome, e os pais iam saindo a pouco e pouco sem esperar pelo
último evangelho, para terminar os preparativos da refeição.
Houve barafunda à saída, uma barafunda ruidosa, uma algazarra de vozes berrantes onde cantava o
sotaque normando. A população formava duas filas e, quando apareceram as crianças, cada família
correu para a sua.
Constance viu-se agarrada, rodeada, beijada por todo o grupo de mulheres. A Rosa, sobretudo, não
se cansava de a abraçar. Por fim, pegou-lhe numa das mãos e a senhora Tellier apoderou-se da outra;
a Rafaela e a Fernanda soergueram a comprida saia de musselina para não a deixarem arrastar pelo
pó; a Luísa e a Flora fechavam a marcha com a senhora Rivet; e a criança, recolhida, inteiramente
penetrada pelo Deus que levava dentro de si, pôs-se a caminho no meio daquela escolta de honra.
O festim era servido na oficina em cima de longas tábuas apoiadas em travessas.
Pela porta aberta, que dava para a rua, entrava toda a alegria da aldeia. Havia festa por toda a
parte. Através de todas as janelas viam-se mesas compridas de gente endomingada e das casas saíam
gritos com uma pontinha de pinga. Os camponeses, em mangas de camisa, bebiam copos cheios de
cidra pura e no meio de cada grupo distinguiam-se duas crianças, aqui duas meninas, além dois
rapazes, comendo numa das duas famílias.
Às vezes, sob o pesado calor do meio-dia, um carro de bancos corridos atravessava a terra ao trote
saltitante de um velho garrano, e o homem de bata que o conduzia lançava um olhar invejoso a toda
aquela comezaina ostentada.
Em casa do marceneiro a jovialidade mantinha um certo ar de reserva, um resto da emoção da
manhã. Só Rivet começava a ficar toldado e bebia de mais. A senhora Tellier via as horas a todo o
momento, visto que para não fechar dois dias seguidos era preciso apanhar o comboio das 3h55, que
as poria em Fécamp à tardinha.
O marceneiro fazia todos os esforços para desviar as atenções
e ficar com a sua gente até ao dia seguinte; mas a Madame não se deixava distrair e nunca brincava
em negócios.
Logo que tomaram o café, ordenou às suas hóspedes que se preparassem depressa; e depois,
virando-se para o irmão, disse: «Quanto a ti, vais mandar aparelhar imediatamente»; e ela própria foi
terminar os seus últimos preparativos.
Quando tornou a descer, a cunhada estava à sua espera para lhe falar da pequena; e desenrolou-se
uma longa conversa em que nada ficou resolvido. A camponesa desfazia-se em delicadezas,
falsamente enternecida, e a senhora Tellier, que tinha a criança sentada nos seus joelhos, não se
comprometia com nada, prometia vagamente; haviam de tratar dela, tinham tempo, aliás haviam de
tornar a ver-se.
Entretanto o carro não chegava e as mulheres não desciam. Ouviam-se até lá em cima grandes
gargalhadas, empurrões, gritos soltos, bater de palmas. Então, enquanto a mulher do marceneiro se
dirigia à cavalariça para ver se o carro estava pronto, a Madame acabou por subir.
Rivet, muito bêbado e meio despido, tentava, mas em vão, violentar a Rosa, que desfalecia de riso.
As duas Chancas seguravam-no pelos braços e tentavam acalmá-lo, chocadas com aquela cena
depois da cerimónia da manhã; mas a Rafaela e a Fernanda excitavam-no, torcendo-se de riso,
agarradas uma à outra; e soltavam gritos agudos perante cada um dos esforços inúteis do bêbado. O
homem, furioso, de cara afogueada, todo esgargalado, sacudindo em esforços violentos as duas
mulheres que o agarravam, puxava com todas as suas forças a saia da Rosa, balbuciando:
«Porcalhona, então não queres?» Mas a Madame, indignada, precipitou-se, segurou os ombros do
irmão e empurrou-o com tanta violência que este foi esbarrar contra a parede.
Um minuto depois ouviram-no no pátio a despejar água sobre a cabeça; e quando reapareceu na
tipóia já tinha acalmado.
V
oltaram a fazer o caminho da véspera, e o cavalinho branco tornou a partir no seu andamento vivo
e dançante.
Sob o sol ardente, revelava-se a alegria adormecida durante a refeição. As raparigas divertiam-se
agora com os solavancos da carripana, até empurravam as cadeiras das vizinhas, desatavam a rir a
todo o instante, aliás animadas pelas vãs tentativas de Rivet.
Uma luz louca enchia os campos, uma luz que cintilava nos olhos; e as rodas levantavam dois sulcos
de poeira que esvoaçavam longamente atrás do carro na estrada principal.
De repente, a Fernanda, que gostava de música, pediu à Rosa que cantasse; e esta começou
galhardamente o Padre Gordo de Meudon. Mas logo a Madame a obrigou a calar-se, por achar
aquela canção pouco conveniente para aquele dia. E acrescentou: «Canta antes qualquer coisa do
Béranger.» Então a Rosa, depois de alguns segundos de hesitação, fez a sua escolha e com a voz
desgastada começou A Avó:
A minha avó no seu dia de anos
Tinha bem bebido depois da prova
E pôs-se a cantar com voz de soprano:
Quantos namorados me amaram em nova!
Ai que saudade
Do braço roliço,
Da minha beldade,
Do gozo e do viço!
E o coro das raparigas, dirigido pela própria Madame, repetiu:
Ai que saudade
Do braço roliço,
Da minha beldade,
Do gozo e do viço!
«Bem achada!», declarou Rivet, ateado pela cadência; e a Rosa continuou imediatamente:
Ai mãezinha, não tinha juízo!
— Não, só aos quinze ganhei o descaro
e então conheci o meu paraíso
e passava as noites em claro.
Berraram todos juntos o refrão; e Rivet batia o pé no varal, batia o compasso com as rédeas nas
costas do garrano branco que, como se ele próprio fosse levado pelo entusiasmo do ritmo, passou ao
galope, um galope tempestuoso, que precipitou as senhoras em montes umas por cima das outras no
fundo do carro.
Endireitaram-se a rir como loucas. E a canção continuou, vociferada até mais não através dos
campos, sob o céu ardente, no meio das culturas a amadurecer, ao ritmo enraivecido do cavalicoque
que se embalava agora de cada vez que voltava o refrão e que de todas as vezes fazia os seus cem
metros de galope para grande alegria dos passageiros.
Aqui e além, um ou outro trabalhador que partia pedras endireitava-se e espreitava através da sua
máscara de arame aquela carripana excitada e aos berros arrastada no meio do pó.
Quando desceram diante da estação, o marceneiro enterneceu-se: «É uma pena irem-se já embora,
muito a gente se tinha divertido!»
A Madame respondeu-lhe sensatamente: «Tudo tem o seu tempo, não podemos divertir-nos
sempre.» Então uma ideia iluminou o espírito de Rivet: «Olha», disse ele, «vou eu ver-vos a Fécamp
no mês que vem.» E olhou para a Rosa com um ar manhoso, com olhos brilhantes e brejeiros.
«Vamos», concluiu a Madame, «há que ter juízo; tu vens se quiseres, mas não para fazer asneiras.»
Ele não respondeu, e como se ouvia o comboio a apitar, começou imediatamente a beijar toda a
gente. Quando chegou a vez da Rosa, obstinou-se em encontrar-lhe a boca, que ela, a rir por trás dos
lábios fechados, lhe furtava de todas as vezes num rápido movimento para os lados. Ele segurava-a
nos braços, mas não era capaz de conseguir o que queria, incomodado pelo grande chicote que
conservara na mão e que, nos seus esforços, agitava desesperadamente atrás das costas da rapariga.
«Passageiros para Ruão, embarquem!», gritou o empregado. Elas subiram.
Soou uma aguda apitadela, imediatamente repetida pelo assobio poderoso da máquina, que cuspiu
ruidosamente o seu primeiro jacto de vapor enquanto as rodas começavam a rodar um pouco com
visível esforço.
Rivet, deixando o interior da estação, correu para a barreira para ver a Rosa mais uma vez; e
quando a carruagem cheia daquela mercadoria humana passava à sua frente, desatou a fazer estalar o
seu chicote aos saltos e cantando com todas as suas forças:
Ai que saudade
Do braço roliço,
Da minha beldade,
Do gozo e do viço!
E ficou-se a contemplar um lenço branco que alguém agitava.
3.
Dormiram durante toda a viagem, dormiram o sono pacífico das consciências satisfeitas; e quando
regressavam, renovadas, retemperadas para o trabalho de cada noite, a Madame não pôde deixar de
dizer: «Tanto faz, já estava farta daquela casa.»
Cearam rapidamente e, depois de tornarem a vestir o fato de combate, esperaram pelos clientes
habituais; e o lanternim aceso, o lanternim de Nossa Senhora, indicava a quem passasse que o
rebanho regressara ao aprisco.
Num abrir e fechar de olhos a notícia espalhou-se, não se sabe como, não se sabe através de quem.
O senhor Philippe, o filho do banqueiro, levou mesmo a sua complacência ao extremo de prevenir
por portador o senhor Tournevau, preso pela família.
O negociante de sal tinha precisamente vários primos a jantar, como todos os domingos, e estavam
a tomar o café quando apareceu um homem com uma carta na mão. O senhor Tournevau, muito
comovido, rasgou o sobrescrito e empalideceu: só lá estavam dentro estas palavras escritas a lápis:
«Recuperado o carregamento de bacalhau; navio entrou no porto; bom negócio para si. Venha
depressa.»
Ele remexeu nas algibeiras, deu vinte cêntimos ao portador e, corando de repente até às orelhas,
disse: «Tenho de sair.» Então estendeu à mulher o bilhete lacónico e misterioso. Tocou a campainha
e quando a criada apareceu pediu: «O meu sobretudo, depressa, depressa, e o meu chapéu.» Mal
chegou à rua desatou a correr assobiando uma cançoneta e o caminho pareceu-lhe duas vezes mais
comprido, de viva que era a sua impaciência.
O estabelecimento Tellier tinha um ar de festa. No rés-do-chão as vozes turbulentas dos homens do
porto faziam uma algazarra ensurdecedora. A Luísa e a Flora não sabiam a quem responder, ora
bebiam com um, ora bebiam com outro, mereciam mais que nunca a alcunha de «as duas Chancas».
Chamavam-nas de todos os lados ao mesmo tempo; já não davam conta do recado, e a noite
anunciava-se-lhes muito trabalhosa.
O cenáculo do primeiro andar já estava cheio às nove horas. O senhor Vasse, o juiz do tribunal do
comércio, o apaixonado por excelência, mas platónico, da Madame, conversava baixinho com ela a
um canto; e sorriam ambos como se estivessem prestes a firmar um acordo. O senhor Poulin, o antigo
presidente da Câmara, tinha a Rosa encavalitada nas suas pernas; e ela, juntinha a ele nariz com
nariz, passeava as mãos curtas pelas suíças brancas do homenzinho. Um pedacinho de coxa à mostra
aparecia sob a saia arregaçada de seda amarela, cortando o tecido preto das calças dele, e as meias
encarnadas estavam apertadas por umas ligas azuis, presente do caixeiro-viajante.
A enorme Fernanda, estendida no sofá, tinha ambos os pés assentes na barriga do senhor Pimpesse,
o recebedor dos impostos, e o tronco recostado no colete do jovem senhor Philippe, cujo pescoço
rodeava com a mão direita, enquanto na esquerda segurava um cigarro.
A Rafaela parecia estar em negociações com o senhor Dupuis, o agente de seguros, e acabou a
conversa com estas palavras: «Sim, querido, esta noite, para mim está bem.» E a seguir, dando
sozinha um passo de valsa rápido pelo salão, gritou: «Esta noite, tudo o que quiserem.»
A porta abriu-se de repente e apareceu o senhor Tournevau. Estalaram gritos entusiastas: «Viva o
Tournevau!» E a Rafaela, que continuava a valsar, foi-lhe cair no peito.
Ele agarrou-a num amplexo formidável e, sem dizer palavra, levantando-a do chão como uma pena,
atravessou o salão, chegou à porta do fundo e, por entre aplausos, desapareceu na escada que dava
acesso aos quartos com o seu fardo vivo.
A Rosa, que estava inflamando o antigo presidente da Câmara, beijando-o sucessivamente e
puxando-lhe pelas duas suíças ao mesmo tempo para lhe manter a cabeça direita, aproveitou o
exemplo: «Vá, faz como ele», disse ela. Então o homenzinho levantou-se e, recompondo o colete, foi
atrás da rapariga remexendo na algibeira onde lhe dormia o dinheiro.
A Fernanda e a Madame ficaram sozinhas com os quatro homens, e o senhor Philippe exclamou:
«Eu pago champanhe: senhora Tellier, mande buscar três garrafas.» Então a Fernanda, abraçando-o
com força perguntou-lhe ao ouvido: «Põe-nos a dançar, vá lá, não te importas?» Ele levantou-se e,
sentando-se diante da espineta secular adormecida a um canto, fez sair uma valsa do ventre
gemebundo da máquina, uma valsa rouca, lacrimejante. A corpulenta rapariga enlaçou o recebedor
dos impostos, a Madame abandonou-se nos braços do senhor Vasse; e os dois pares rodopiaram
trocando beijinhos. O senhor Vasse, que em tempos dançara em bailes da sociedade, fazia
habilidades, e a Madame olhava para ele com olhos cativados,
com aqueles olhos que respondem «sim», um «sim» mais discreto e mais delicioso que uma palavra!
O Frédéric trouxe o champanhe. Saltou a primeira rolha e o senhor Philippe tocou o arranque de
uma quadrilha.
Os quatro dançarinos marcharam-na à maneira mundana, conforme às regras, com dignidade,
ademanes, inclinações e saudações.
E depois começaram a beber. Então o senhor Tournevau reapareceu, satisfeito, aliviado, radioso.
Exclamou: «Não sei o que tem a Rafaela, mas esta noite está perfeita.» E então, como lhe estendiam
um copo, esvaziou-o de um trago ao mesmo tempo que murmurava: «Arre, não há luxo como este!»
O senhor Philippe iniciou imediatamente uma polca agitada, e o senhor Tournevau saltou com a
bela judia, que segurava no ar, sem deixar que os pés lhe tocassem no chão. O senhor Pimpesse e o
senhor Vasse tinham-se lançado num novo entusiasmo. De vez em quando um dos pares detinha-se
junto da lareira para emborcar uma taça de vinho espumoso; e aquela dança ameaçava eternizar-se,
quando a Rosa entreabriu a porta com uma vela na mão. Estava despenteada, de chinelas, em camisa,
muito animada, muito vermelha: «Quero dançar», gritou. A Rafaela perguntou: «E o teu velho?» A
Rosa desmanchou-se a rir: «Ele? Já está a dormir. Dorme logo.» Agarrou-se ao senhor Dupuis, que
ficara desocupado no divã, e a polca recomeçou.
Mas as garrafas estavam vazias: «Eu pago uma», declarou o senhor Tournevau. «Eu também»,
anunciou o senhor Vasse. «E eu também», concluiu o senhor Dupuis. Então toda a gente bateu palmas.
Estava tudo a organizar-se, estava a tornar-se um verdadeiro baile. De vez em quando, até, a Luísa
e a Flora subiam às pressas, davam rapidamente uma voltinha de valsa, enquanto os respectivos
clientes, lá em baixo, se impacientavam; e depois regressavam a correr ao seu café, com o coração
inchado de nostalgias.
À meia-noite ainda se dançava. Por vezes uma das raparigas desaparecia, e quando a procuravam
para fazer par percebia-se de repente que também faltava um dos homens.
«Então donde vem você?», perguntou graciosamente o senhor Philippe, precisamente no momento
em que o senhor Pimpesse regressava com a Fernanda. «Venho de ver dormir o senhor Poulin»,
respondeu o recebedor dos impostos. A frase fez um enorme êxito; e todos, cada um por sua vez,
subiam para ir ver dormir o senhor Poulin com uma ou outra das meninas, que nessa noite se
mostraram de uma complacência inconcebível. A Madame fechava os olhos: e tinha pelos cantos
longas conversas privadas com o senhor Vasse, como que para resolver os últimos pormenores de
um negócio já feito.
Por fim, à uma da manhã, os dois homens casados, o senhor Tournevau e o senhor Pimpesse,
declararam que se retiravam e quiseram pagar a conta. Só fizeram a conta ao champanhe e, mais
ainda, a seis francos a garrafa em vez de dez, que era o preço habitual. E quando eles se espantaram
com aquela generosidade, a Madame, radiosa, respondeu-lhes:
«Nem todos os dias são de festa.»
(Maio de 1881)
Uma Aventura Parisiense
Haverá na mulher sentimento mais vivo que a curiosidade? Ah!, saber, conhecer, chegar àquilo que
se sonhou! Do que seria ela capaz para o conseguir! Uma mulher, quando a sua curiosidade
impaciente desperta, será capaz de cometer todas as loucuras, todas as imprudências, todas as
audácias, não recuará diante de nada. Falo das mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas daquele
espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos
secretos estão cheios: um, de inquietação feminina sempre agitada; outro, de manha colorida de boa-
fé, daquela astúcia dos devotos, sofisticada e temível; e o último, por fim, de canalhice encantadora,
de refinado embuste, de deliciosa perfídia, de todas aquelas perversas qualidades que levam ao
suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que deixam os outros encantados.
Esta cuja aventura pretendo contar era uma pobre provinciana, até então insipidamente honesta. A
sua vida, aparentemente calma, decorria no lar, entre um marido muito ocupado e dois filhos, que ela
educava como mulher irrepreensível que era. Mas o seu coração fremia de uma insaciada
curiosidade, de uma sofreguidão de desconhecido. Pensava em Paris incessantemente e lia
avidamente os jornais mundanos. A descrição das festas, das toilettes, das alegrias, punha-lhe os
desejos a ferver; mas o que sobretudo misteriosamente a perturbava eram os ecos cheios de
subentendidos, os véus mal soerguidos em frases hábeis, e que deixam entrever horizontes de
prazeres culposos e devastadores.
Lá de longe, via Paris numa apoteose de luxo magnífico e corrupto. E durante as longas noites de
sonhos, embalada pelo ressonar compassado do marido que dormia a seu lado, deitada de costas,
com um lenço na cabeça, pensava naqueles homens conhecidos cujos nomes aparecem nas primeiras
páginas dos jornais como sendo grandes estrelas num céu escuro; e imaginava a vida entontecedora
que levavam, com constantes deboches, orgias à antiga assustadoramente voluptuosas e refinamentos
de sensualidade tão complicados que nem sequer era capaz de imaginá-los.
Os bulevares pareciam-lhe ser uma espécie de abismo das paixões humanas; e todas as suas casas
tinham de certeza lá dentro prodigiosos mistérios de amor.
Ela, porém, sentia-se envelhecer. Envelhecia sem nada ter conhecido da vida, a não ser aquelas
ocupações regulares, odiosamente monótonas e banais que constituem, segundo se diz, a felicidade
do lar. Era bonita ainda, conservada naquela existência tranquila como um fruto de Inverno num
armário fechado; mas roída, devastada, transtornada por secretos ardores. Perguntava a si mesma se
haveria de morrer sem ter conhecido todas aquelas exaltações de embriaguez condenatória, sem se
ter lançado inteirinha uma vez, ao menos uma só vez, naquela onda de volúpias parisienses.
Com uma longa perseverança, preparou uma viagem a Paris, inventou um pretexto, fez-se convidada
por uns parentes, e, como o marido não podia acompanhá-la, foi sozinha.
Mal chegou, foi capaz de imaginar razões que, se fosse preciso, lhe permitiriam ausentar-se dois
dias ou, antes, duas noites, na melhor das hipóteses, por ter encontrado, dizia ela, uns amigos que
viviam no campo perto da cidade.
E procurou. Percorreu os bulevares sem ver nada, a não ser o vício errante e numerado. Sondou
com os próprios olhos os grandes cafés, leu atentamente a pequena correspondência do Figaro que
lhe surgia em cada manhã como um toque a rebate, uma chamada ao amor.
E nunca nada a punha na pista daquelas grandes orgias de artistas e de actrizes; nada lhe revelava
os templos daqueles deboches que imaginava fechados por uma palavra mágica como a caverna das
Mil e Uma Noites e aquelas catacumbas de Roma, onde se oficiavam em segredo os mistérios de
uma religião perseguida.
Os parentes, pequenos burgueses, não podiam dar-lhe a conhecer nenhum daqueles homens
conhecidos cujos nomes lhe zumbiam na cabeça; e, desesperada, pensava já em não pensar mais
nisso, quando o acaso veio em seu auxílio.
Um dia, descia ela a rua da Chaussée-d’Antin, parou a contemplar uma loja cheia daqueles bibelôs
japoneses tão coloridos que põem nos olhos uma espécie de alegria. Estava examinando os pequenos
marfins cómicos, os grandes vasos de esmaltes flamejantes, os estranhos bronzes, e eis que ouviu, no
interior da loja, o patrão que, com grandes reverências, mostrava a um senhor gordo e baixo, de
cabeça calva e queixo cinzento, um enorme mono barrigudo, peça única, dizia ele.
E a cada frase do comerciante, o nome do amador, um nome célebre, soava como um toque de
clarim. Os outros clientes, mulheres novas, senhores elegantes, contemplavam com uma olhadela
furtiva e rápida, com um olhar conveniente e manifestamente respeitoso, o famoso escritor que, por
seu lado, contemplava apaixonadamente o mono de porcelana. Eram tão feios um como o outro, feios
como dois irmãos saídos da mesma costela.
O comerciante dizia: «Por ser para si, senhor Jean Varin, deixo-o por mil francos; é precisamente o
que ele me custa. Para qualquer outra pessoa seriam mil e quinhentos; mas eu tenho consideração
pela minha clientela de artistas e faço-lhe preços especiais. Vêm todos à minha casa, senhor Jean
Varin. Ainda ontem o senhor Busnach me comprou uma grande taça antiga. No outro dia vendi dois
tocheiros como estes (são ou não são uma beleza?) ao senhor Alexandre Dumas. Olhe, essa peça que
aí tem, se o senhor Zola a visse já estaria vendida, senhor Varin.» O escritor, muito perplexo,
hesitava, solicitado pelo objecto, mas a pensar no montante de dinheiro; e dava tanta atenção aos
olhares como se estivesse sozinho num deserto.
Ela tinha entrado temerosa, de olhos descaradamente postos nele, e nem sequer perguntava a si
mesma se era belo, elegante ou jovem. Era Jean Varin em pessoa. Jean Varin!
Depois de uma longa luta, de uma dolorosa hesitação, ele poisou o vaso em cima de uma mesa.
«Não, é caro de mais.»
O comerciante redobrava de eloquência. «Oh, senhor Jean Varin, caro de mais? Isto vale à vontade
uns dois mil francos!»
O homem de letras replicou tristemente sem deixar de olhar para o homenzinho de olhos de esmalte:
«Não digo que não; mas é caro de mais para mim.»
Então, ela, tomada de uma audácia enlouquecida, avançou: «Para mim, quanto vale este
bonequinho?»
O comerciante, surpreendido, replicou:
«Mil e quinhentos francos, minha senhora.»
«Fico com ele.»
O escritor, que até então nem sequer tinha dado por ela, virou-se de repente e olhou-a dos pés à
cabeça com olhos semicerrados de observador; depois, com olhos de conhecedor, observou-a
minuciosamente.
Era encantadora, animada, estava de súbito iluminada por aquela chama que até então estava
adormecida dentro dela. E além disso uma mulher que compra assim um bibelô por mil e quinhentos
francos não é uma qualquer.
Ela teve então um gesto de sedutora delicadeza: virando-se para ele, com a voz a tremer, disse-lhe:
«Desculpe, cavalheiro, eu fui decerto um pouco precipitada; provavelmente o senhor ainda não tinha
dito a sua última palavra.»
Ele inclinou-se: «Já a tinha dito, minha senhora.»
E logo ela, muito emocionada: «Enfim, meu caro senhor, hoje ou mais tarde, se lhe convier mudar
de opinião, este bibelô é seu. Eu só o comprei porque ele lhe tinha agradado.»
Ele sorriu, visivelmente lisonjeado. «Quer dizer que me conhece?», disse.
Então ela falou-lhe da sua admiração, citou-lhe as obras, foi eloquente.
Para conversar, ele tinha-se encostado a um móvel, enquanto mergulhava nela os seus olhos
penetrantes. Procurava adivinhá-la.
De vez em quando, o lojista, satisfeito por ter na mão aquela publicidade viva, como tinham entrado
novos clientes gritava na outra extremidade da loja: «Ora veja-me isto, senhor Jean Varin, não é
belo?» Então todas as cabeças se endireitavam, e ela estremecia de prazer por ser vista assim a
conversar intimamente com um ilustre personagem.
Finalmente inebriada, foi então capaz de uma audácia suprema, como a dos generais que vão
proceder ao assalto. «Caro senhor, disse ela, dê-me um grande, um grande prazer. Permita-me que
lhe ofereça este mono como recordação de uma mulher que o admira apaixonadamente e que o senhor
conheceu apenas durante dez minutos.»
Ele recusou. Ela insistia. Ele resistiu, muito divertido, rindo com vontade.
Ela, obstinada, disse-lhe: «Muito bem! Vou entregá-lo já em sua casa; onde é que mora?»
Ele recusou-se a dar-lhe a morada; mas ela ficou a conhecê-la porque a pediu ao lojista e, uma vez
paga a compra, escapuliu-se e foi direita a um trem de praça. O escritor correu para a alcançar, pois
não queria expor-se a receber aquele presente que não saberia a quem atribuir. Apanhou-a quando
ela ia a subir para a tipóia e precipitou-se, quase caiu por cima dela, empurrado pelo carro que
começava a andar; e então sentou-se a seu lado, muito aborrecido.
Por mais que ele pedisse, que insistisse, ela mostrou-se intratável. Quando iam a chegar diante da
porta, ela apresentou as suas condições: «Aceito não lhe entregar isto se o senhor cumprir hoje todas
as minhas vontades.»
A coisa pareceu-lhe tão cómica que ele aceitou.
Ela perguntou: «Habitualmente que é que faz a esta hora?»
Depois de alguma hesitação ele respondeu: «Ando a passear.»
Então, em voz resoluta, ela ordenou ao cocheiro: «Para o Bosque!»
E partiram para lá.
Ele foi obrigado a indicar-lhe os nomes de todas as mulheres conhecidas, sobretudo as devassas,
com pormenores íntimos acerca delas, da sua vida, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus vícios.
Caiu a tarde. «Que faz o senhor todos os dias a esta hora?», disse ela.
Ele respondeu a rir: «Tomo absinto.»
Então, com uma expressão séria, ela acrescentou: «Então, meu caro senhor, vamos tomar absinto.»
Entraram num grande café do bulevar que ele frequentava e onde foi encontrar confrades.
Apresentou-lhos a todos. Ela estava louca de alegria. E na sua cabeça ressoavam incessantemente
estas palavras: «Até que enfim! Até que enfim!»
O tempo passava e ela perguntou: «São horas do seu jantar?»
Ele respondeu: «Pois são, minha senhora.»
«Então, caro senhor, vamos jantar.»
E à saída do café Bignon: «E à noite, que é que faz?», perguntou ela.
Ele olhou-a fixamente: «Depende. Às vezes vou ao teatro.»
«Muito bem, vamos ao teatro.»
Entraram no Vaudeville, com entradas de favor graças a ele, e, glória suprema, toda a sala a viu ao
lado dele, sentada no balcão.
Quando o espectáculo acabou ele beijou-lhe galantemente a mão: «Resta-me, minha senhora,
agradecer-lhe este dia delicioso…» Ela interrompeu-o: «A estas horas que é que faz todas as
noites?»
«Ora… bem… volto para casa.»
Ela desatou a rir, num riso que tremia.
«Pois bem, caro senhor, vamos para sua casa.»
E não falaram mais. Ela estremecia de vez em quando, sacudida dos pés à cabeça, com vontade de
fugir e vontade de ficar, mas no fundo do coração com um muito firme desejo de ir até ao fim.
Na escada, agarrava-se ao corrimão, de tão viva que era a emoção que sentia; e ele subia à frente,
ofegante, com um fósforo aceso na mão.
Quando chegou ao quarto ela despiu-se muito depressa e deslizou para dentro da cama sem dizer
palavra; e ficou à espera, encolhida contra a parede.
Mas era uma mulher simples, tanto quanto o pode ser a esposa legítima de um notário da província,
e ele mais exigente que um paxá de três caudatários. Não se entenderam em nada.
Então ele adormeceu. A noite passou-se, apenas perturbada pelo tiquetaque do relógio, enquanto
ela, imóvel, pensava nas noites conjugais; e sob os raios amarelados de uma lanterna chinesa olhava,
pesarosa, para aquele homenzinho de costas, ao seu lado, redondinho, cuja barriga soerguia o lençol
como uma bola cheia de gás. Ressonava com o ruído de um tubo de órgão, fungava prolongadamente,
com estrangulamentos cómicos. Os seus vinte cabelos aproveitavam o repouso para se arrepiarem
esquisitamente, fartos da sua longa permanência imóvel por cima da cabeça nua cujos estragos era
sua obrigação tapar. E de um canto da boca entreaberta escorria-lhe um fio de saliva.
A aurora insinuou por fim um pouco de luz do dia por entre os cortinados corridos. Ela levantou-se,
vestiu-se sem ruído e já tinha a porta meio aberta quando fez ranger a fechadura e ele acordou
a esfregar os olhos.
Deixou-se ficar alguns segundos até recuperar completamente a consciência, e depois, quando
recordou toda a aventura, perguntou: «Então, vai-se embora?»
Ela permanecia de pé, confusa. Balbuciou: «Pois, já é de manhã.»
Ele sentou-se na cama: «Bem, disse, é a minha vez de ter qualquer coisa a pedir-lhe.»
Ela não respondia. Ele continuou: «Meu Deus, a senhora desde ontem que me deixa espantado. Seja
franca, confesse-me porque é que fez isto tudo; é que eu não estou a perceber nada.»
Ela aproximou-se devagarinho, a corar como uma virgem. «Eu quis conhecer… o… o vício… e,
pois é… bem… não tem graça nenhuma.»
Fugiu, desceu a escada, precipitou-se para a rua.
O exército dos varredores varria. Varriam os passeios, as calçadas, empurrando todas as
imundícies para a valeta. Com o mesmo gesto regular, com um gesto de ceifeiros nos prados,
empurravam as lamas em semicírculo à sua frente; e, de rua em rua, ela ia deparando com eles como
fantoches montados, caminhando automaticamente movidos pela mesma mola.
E pareceu-lhe que também nela acabavam de varrer qualquer coisa, de empurrar para a valeta, para
o esgoto, os seus sonhos excessivamente exaltados.
Voltou a casa ofegante, gelada, guardando apenas na cabeça a sensação daquele gesto das vassouras
que limpam Paris de manhãzinha.
E, mal chegou ao seu quarto, caiu em soluços.
(Dezembro de 1881)
A Ferrugem
Ele tivera durante toda a sua vida uma só paixão inesgotável:
a caça. Caçava todos os dias, desde manhã até ao entardecer, com furioso entusiasmo. Caçava de
Inverno e de Verão, tanto na Primavera como no Outono, no brejo, quando os regulamentos não
deixavam caçar na planície e nas matas; caçava a tiro, com galgos, com cão de parar, com cão de
correr, à espera, com espelho, com furão. Só sabia falar de caça, sonhava com a caça, repetia
constantemente: «Que infeliz deve ser quem não gosta de caça!»
Tinha agora uns cinquenta anos bem medidos, estava bem de saúde, bem conservado embora calvo,
um nadinha gordo mas vigoroso; e rapava toda a parte de cima da boca para pôr os lábios bem à
mostra e conservar livre o desenho da boca, para poder tocar a trompa de caça com maior facilidade.
Na região apenas o designavam pelo nome próprio: senhor Hector. O seu nome completo era barão
Hector Gontran de Coutelier.
Vivia no meio das matas num pequeno solar que herdara e, embora conhecesse toda a nobreza do
departamento e se encontrasse com todos os respectivos representantes masculinos nas caçadas,
apenas frequentava com assiduidade uma família: os Courville, uns vizinhos amáveis, aliados da sua
família havia séculos.
Nessa casa era recebido com todas as atenções, era amado, era apaparicado, e costumava dizer:
«Se eu não fosse caçador, gostaria de nunca vos abandonar.» O senhor de Courville era seu amigo e
colega desde a infância. Fidalgo agricultor, vivia tranquilamente com a mulher, com a filha e com o
genro, o senhor de Darnetot, que não fazia nada a pretexto de se entregar a estudos históricos.
O barão de Coutelier ia muitas vezes jantar a casa daqueles amigos, sobretudo para lhes contar os
tiros da sua espingarda. Tinha longas histórias de cães e de furões, dos quais falava como de
personagens importantes que tivesse conhecido bem. Revelava-lhes os pensamentos, as intenções,
analisava-os, explicava-os: «Quando o Médor viu que a galinhola o obrigava a correr tanto, pensou
lá com ele: “Espera aí, espertalhona, que a gente já vai ver quem se fica a rir.” Então, fazendo-me
sinal com a cabeça para me ir colocar na esquina do campo de trevo, pôs-se a farejar de viés, com
grande ruído, remexendo as ervas para empurrar a caça para a esquina donde já não poderia escapar.
Tudo aconteceu como ele tinha previsto: a galinhola, de repente, deu consigo na borda do campo.
Não podia avançar sem ficar a descoberto. E pensou: “Fui apanhada, que maçada!”, e agachou-se.
Então o Médor ficou parado a olhar para mim; eu fiz-lhe um sinal e ele avança – Brrru! – a galinhola
desata a voar – meto a arma à cara – pã! – e ela cai; e o Médor, ao trazê-la, abanava o rabo a dizer-
me: “Esta partida está ganha ou não, senhor Hector?”»
Courville, Darnetot e as duas mulheres riam loucamente destas histórias pitorescas em que o barão
punha toda a sua alma. Animava-se, agitava os braços, gesticulava com o corpo todo e, quando
contava a morte da caça, ria um riso formidável e no fim perguntava sempre: «Não é boa, esta?»
Se se falava de outra coisa deixava de ouvir e sentava-se sozinho a cantarolar fanfarras. E também,
mal se fazia um silêncio entre duas frases, naqueles momentos de bruscas acalmias que entrecortam o
rumor das palavras, ouvia-se de repente uma canção de caça: Taratátá, eu já vou lá! – que o barão
entoava inchando as bochechas como se tivesse a trompa na boca.
Jamais vivera senão para a caça e envelhecia sem o pressentir nem dar por isso. De repente, teve
um ataque de reumatismo e ficou dois meses de cama. Quase morreu de tristeza e de tédio. Como não
tinha criada e quem cozinhava para ele era um velho servidor, não conseguia nem cataplasmas
quentes, nem pequenos cuidados, nem nada do que os doentes necessitam. O seu moço de cavalos foi
o seu enfermeiro, e era um escudeiro que se aborrecia tanto como o patrão, dormindo de dia e de
noite num cadeirão, enquanto o barão praguejava e se exasperava entre lençóis.
As senhoras de Courville iam visitá-lo de vez em quando, e essas eram para ele horas de calma e
de bem-estar. Elas preparavam-lhe a tisana, cuidavam do lume da lareira, serviam-lhe delicadamente
o almoço, na beira da cama, e quando elas se despediam ele murmurava: «Meu Deus! Deviam mesmo
vir viver para aqui.» E elas riam-se com vontade.
Como estava melhor e recomeçava a caçar no brejo, foi uma noite jantar a casa dos amigos; mas já
não tinha o mesmo entusiasmo nem a mesma jovialidade. Era torturado incessantemente por uma
ideia, o receio de ser de novo assaltado pelas dores antes da abertura. Quando estava a despedir-se,
enquanto as mulheres o embrulhavam num xaile e lhe atavam um lenço à roda do pescoço, e ele
deixava que o fizessem pela primeira vez na sua vida, murmurou num tom decidido: «Se aquilo me
voltar, sou um homem tramado.»
Quando ele saiu a senhora de Darnetot disse à mãe: «O que era preciso era casar o barão.»
Toda a gente ergueu os braços ao alto. Como é que ainda não tinham pensado nisso? Passaram o
serão a procurar entre as viúvas que conheciam, e a escolha fixou-se numa mulher de quarenta anos,
ainda bonita, bastante rica, de belo humor e boa saúde, que era a senhora Berthe Vilers.
Convidaram-na a passar um mês no solar. Ela vivia uma vida aborrecida. E veio. Era animada e
jovial; o senhor de Coutelier agradou-lhe imediatamente. Divertia-se com ele como com um
brinquedo vivo, e passava horas inteiras a interrogar-se sorrateiramente acerca dos sentimentos dos
coelhos e das maquinações das raposas. Distinguia gravemente as maneiras de ver diferentes dos
diversos animais, e atribuía-lhes planos e raciocínios subtis tal como aos homens que conhecia.
A atenção que ela lhe prestava encantou-o e, uma tarde, para lhe demonstrar a sua estima, pediu-lhe
que viesse caçar, convite que nunca havia feito a uma mulher. O convite pareceu tão esquisito que ela
aceitou. Foi uma festa equipá-la: toda a gente colaborou, lhe ofereceu qualquer coisa e ela apareceu
vestida à maneira de amazona, com botas, calções de homem, uma saia curta, um colete de veludo
muito apertado no pescoço e um boné de criado dos cães.
O barão parecia comovido como se fosse dar o seu primeiro tiro. Explicou-lhe minuciosamente a
direcção do vento, as diversas paradas dos cães, a maneira de atirar à caça graúda; depois
empurrou-a para um campo, seguindo-a passo a passo com a solicitude de uma ama que vê o seu
bebé andar pela primeira vez.
O Médor encontrou, rastejou, parou, ergueu a pata. O barão, atrás da sua aluna, tremia como varas
verdes. Balbuciava: «Cuidado, atenção, são per… são per… são perdizes.»
Ainda não acabara quando se levantou do chão um grande barulho – brrr, brrr, brrr – e um bando de
grandes pássaros subiu no ar batendo as asas.
A senhora Vilers, estonteada, fechou os olhos, disparou os dois tiros, recuou um passo sob o coice
da espingarda, e depois, quando retomou o sangue-frio, viu o barão dançando como um louco e o
Médor trazendo duas perdizes na boca.
A partir daquele dia o senhor de Coutelier ficou apaixonado por ela.
Dizia, arregalando os olhos: «Que mulher aquela!», e vinha agora todas as tardes para falar sobre
caça. Um dia, o senhor de Courville, que ia levá-lo a casa e o ouvia extasiar-se com a sua nova
amiga, perguntou-lhe de súbito: «Porque é que não se casa com ela?» O barão ficou embaraçado:
«Eu? eu? casar-me com ela?… Mas… a verdade é que…» E calou-se. Depois, apertando
precipitadamente a mão do seu companheiro, murmurou: «Até à próxima, meu amigo», e desapareceu
na noite a passos largos.
Passou três dias sem voltar. Quando tornou a aparecer estava empalidecido pelas suas cogitações, e
mais grave que de costume. Puxando de parte o senhor de Courville, disse-lhe: «O senhor teve uma
ideia extraordinária. Trate de prepará-la para me aceitar. Que raio, uma mulher como aquela até
parece feita para mim. Havemos de caçar juntos durante todo o ano.»
O senhor de Courville, que tinha a certeza de que ele não seria recusado, respondeu: «Faça já o
pedido, meu caro. Quer que eu me encarregue disso?» Mas o barão ficou de repente perturbado; e
disse balbuciando: «Não… não… Primeiro tenho de fazer uma viagenzinha… até Paris. Logo que
voltar respondo-lhe em definitivo.» Não lhe conseguiram arrancar mais esclarecimentos, e ele partiu
no dia seguinte.
A viagem durou muito tempo. Passou-se uma semana, duas semanas, três semanas. O senhor de
Coutelier não tornara a aparecer. Os Courville, espantados e inquietos, não sabiam que haviam de
dizer à amiga, que tinham prevenido da diligência do barão. De dois em dois dias mandavam alguém
a casa do barão em busca de notícias; nenhum dos empregados as tinha recebido.
Ora, uma noite, estava a senhora Vilers a cantar acompanhando-se ao piano, quando uma criada
apareceu, com grandes mistérios, e procurou o senhor de Courville dizendo-lhe baixinho que estava
ali um senhor à sua procura. Era o barão, mudado, envelhecido, com roupa de viagem. Mal viu o seu
velho amigo pegou-lhe nas mãos e com uma voz um tanto fatigada disse-lhe: «Acabo de chegar, meu
caro, e vim a correr a sua casa, já não posso mais.» Depois hesitou, visivelmente embaraçado:
«Queria dizer-lhe… imediatamente… que aquele assunto… sabe… falhou.»
O senhor de Courville olhava para ele estupefacto: «Como assim? Falhou? Mas porquê?» «Ah, não
me faça perguntas, por favor, seria demasiado penoso para mim dizer, mas pode ter a certeza de que
me portei como… como um homem decente. Não posso… Não tenho o direito, percebe, não tenho o
direito de casar com aquela senhora. V
ou esperar que ela se vá embora para voltar a sua casa; seria
para mim excessivamente doloroso tornar a vê-la. Adeus.»
E escapuliu-se.
Toda a família se pôs a deliberar, a discutir, a supor mil e uma coisas. A conclusão foi que havia
um grande mistério escondido na vida do barão, que talvez ele tivesse filhos naturais, ou uma antiga
ligação. Enfim, o caso parecia grave e, para não entrarem em complicações difíceis, preveniram
habilmente a senhora Vilers, que regressou tão viúva como viera.
Passaram-se ainda mais três meses. Uma noite, depois de ter jantado abundantemente e titubeando
um pouco, o senhor de Coutelier, ao fumar o seu cachimbo da noite com o senhor de Courville, disse-
lhe: «Se soubesse as vezes que penso na sua amiga, teria pena de mim.»
O outro, que ficara um pouco melindrado pelo comportamento do barão naquela circunstância,
disse-lhe o que de verdade pensava: «Apre, meu caro, quem tem segredos na sua vida não avança
primeiro como você fez; porque, enfim, você podia com certeza prever o motivo do seu recuo.»
O barão, confuso, parou de fumar.
«Sim e não. Enfim, não podia acreditar no que aconteceu.»
O senhor de Courville, impaciente, continuou: «Tem que se prever tudo.»
Mas o senhor de Coutelier, perscrutando as trevas para ter a certeza de que não os escutavam,
continuou em voz baixa:
«Bem vejo que o magoei, e vou contar-lhe tudo para que me possa desculpar. Há vinte anos, meu
amigo, que eu só vivo para a caça. É só disso que gosto. Por isso, no momento de contrair deveres
para com aquela senhora, ocorreu-me um escrúpulo, um escrúpulo de consciência. Desde os tempos
em que perdi o hábito do… do… do amor, enfim, já não sabia se seria ainda capaz de… de… bem
sabe… Imagine! Faz agora dezasseis anos exactamente que… que… que pela última vez, está a
entender? Nesta terra não é fácil… não é fácil… percebe? E além disso eu tinha mais que fazer,
gosto mais de dar tiros. Em suma, no momento de me comprometer diante do presidente da Câmara e
do padre a…. a…. àquilo que sabe, tive medo. Disse cá para mim: Apre! e se… e se… e se eu
falhar? Um homem decente nunca falta aos seus compromissos e eu estava a assumir um
compromisso sagrado perante aquela pessoa. Enfim, para ficar de espírito descansado resolvi ir
passar oito dias a Paris.
«Passados oito dias nada, mas nada mesmo. E não foi por não ter experimentado. Peguei no que
havia de melhor de todos os géneros. Garanto-lhe que elas fizeram tudo o que puderam… Sim…
claro que não omitiram nada… Mas que quer, elas iam-se embora sempre…como tinham vindo…
como tinham vindo… como tinham vindo…
«Esperei então quinze dias, três semanas, sempre à espera. Comi nos restaurantes um data de coisas
apimentadas, que me estragaram o estômago, e… e… e nada… sempre nada.
«Como está a compreender, naquelas circunstâncias, perante esta verificação, eu não podia fazer
outra coisa senão… retirar-me. Foi o que fiz.»
O senhor de Courville torcia-se para não desatar a rir. Apertou gravemente as mãos do barão
dizendo-lhe: «Lamento», e acompanhou-o até meio do caminho da casa dele. Depois, quando se
encontrou a sós com a mulher contou-lhe tudo, a sufocar de riso. Mas a senhora de Courville não se
ria: ouvia com toda a atenção e, quando o marido acabou, respondeu com grande seriedade: «O
barão é um pateta, meu caro; tinha medo, e pronto. V
ou escrever à Berthe a dizer-lhe que volte, e que
volte depressa.»
E como o senhor de Courville objectava com a longa e inútil experiência do amigo, ela replicou:
«Ora, em quem ama a sua mulher, está a entender, essa coisa… acaba sempre por voltar.»
E o senhor de Courville não respondeu nada, também ele um pouco confuso.
(Setembro de 1882)
Uma Artimanha
Conversavam ao canto da lareira, o velho médico e a jovem doente. Ela estava apenas um pouco
adoentada, com aqueles incómodos femininos de que as mulheres bonitas sofrem muitas vezes: um
pouco de anemia, nervos, e um nadinha de fadiga, daquela fadiga sentida às vezes pelos recém-
casados ao fim do primeiro mês de união, quando fizeram um casamento de amor.
Ela estava estendida no seu canapé e conversava: «Não, doutor, nunca serei capaz de entender que
uma mulher engane o marido. Até admito que não o ame, que não cumpra as suas promessas, os seus
juramentos! Mas como há-de atrever-se a entregar-se a outro homem? Como esconder isso aos olhos
de todos? Como ser capaz de amar na mentira e na traição?»
O médico sorria.
«Quanto a isso, é fácil. Garanto-lhe que ninguém pensa muito em todas essas subtilezas quando
surge o desejo de ceder. Tenho até a certeza de que uma mulher só está madura para o amor
verdadeiro depois de ter passado por todas as promiscuidades e por todos os dissabores do
casamento, o qual, segundo um homem ilustre, é apenas um intercâmbio de maus humores durante o
dia e de maus odores durante a noite. Nada mais verdadeiro. Uma mulher só pode amar
apaixonadamente depois de ter sido casada. Se a pudesse comparar a uma casa, diria que ela só é
habitável depois de um marido lhe ter afagado os estuques.
«Quanto à dissimulação, todas as mulheres a têm para dar e vender nessas ocasiões. As mais
simples são maravilhosas, e desenvencilham-se genialmente dos casos mais difíceis.»
Mas a jovem senhora parecia incrédula…
«Não, doutor, só depois de tudo passado é que nos damos conta do que devíamos ter feito em
ocasiões perigosas, e não há dúvida de que as mulheres são ainda mais inclinadas a perder a cabeça
que os homens.»
O médico ergueu os braços.
«Depois de tudo passado, diz a senhora? Nós, homens, só temos a inspiração depois de tudo
passado. Mas a senhora!… Olhe, vou contar-lhe uma pequena história que aconteceu com uma das
minhas clientes por quem eu era capaz de pôr as mãos no fogo, como se costuma dizer.
«Passou-se o caso numa cidade da província.
«Uma noite, estava eu a dormir profundamente com aquele peso do primeiro sono tão difícil de
perturbar, quando me pareceu, num sonho confuso, que os sinos da cidade estavam a tocar a fogo.
«De repente acordei: era a minha campainha, a campainha da rua, que tocava desesperadamente.
Como o meu criado parecia não responder, também eu puxei o cordão que tinha pendurado na cama,
e logo as portas começaram a bater e ouviram-se passos a perturbar o silêncio da casa adormecida; a
seguir apareceu o Jean com uma carta na mão que dizia: “A senhora Lelièvre pede insistentemente ao
doutor Siméon que passe por casa dela imediatamente.”
«Reflecti durante alguns segundos. Pensava: crise de nervos, vapores, coisa e tal, cansado estou eu.
E respondi: “O doutor Siméon, muito adoentado, pede à senhora Lelièvre o favor de chamar o seu
confrade Bonnet.”
«Entreguei o bilhete dentro de um sobrescrito e tornei a adormecer.
«Cerca de meia hora mais tarde, tocou outra vez a campainha da porta da rua e o Jean veio dizer-
me: “Está ali alguém, um homem ou uma mulher (não sei ao certo, por estar tão embuçado) que
queria falar com urgência com o senhor. Diz que está em jogo a vida de duas pessoas.”
«Endireitei-me. “Mande entrar.”
«Esperei sentado na cama.
«Surgiu uma espécie de fantasma negro e, logo que o Jean se retirou, descobriu-se. Era a senhora
Berthe Lelièvre, uma mulher ainda muito nova, casada três anos antes com um grande comerciante da
cidade, conhecido por se ter casado com a mais bonita mulher da província.
«Estava horrivelmente pálida, com aquelas crispações no rosto das pessoas que perderam a cabeça,
e as mãos tremiam-lhe; por duas vezes tentou falar mas nenhum som lhe saiu da boca. Por fim,
balbuciou: “Depressa, depressa…. depressa, doutor… Venha. O meu… o meu amante está morto no
meu quarto…”
«Deteve-se, sufocada, e depois continuou: “O meu marido vai… vai voltar do círculo…”
«Saltei da cama e pus-me de pé, sem sequer pensar que estava de camisa de noite, e vesti-me em
poucos segundos. Depois perguntei: “Foi a senhora que veio cá há pouco?” Ela, de pé como uma
estátua, petrificada pela angústia, murmurou: “Não… foi a minha criada… ela sabe…” E depois de
um longo silêncio: “Eu fiquei… fiquei ao pé dele.” E dos seus lábios saiu uma espécie de horrível
grito de dor até que, passada uma sufocação que a fez soltar um estertor, chorou, chorou
perdidamente com soluços e espasmos durante um minuto ou dois; depois, de súbito, as lágrimas
pararam, extinguiram-se como se secassem desde dentro por acção do fogo e, agora tragicamente
calma, disse: “Vamos depressa!”
«Eu estava pronto mas exclamei: “Apre, esqueci-me de mandar aparelhar o cupê!” Ela respondeu:
“Eu tenho um, tenho o dele, que estava à espera.” Embuçou-se até aos cabelos. E partimos.
«Quando ficou ao meu lado no escuro do carro, agarrou-me de repente na mão e, esmagando-a entre
os seus dedos finos, balbuciou com tremores na voz, tremores vindos de um coração dilacerado:
“Ah, se soubesse, se soubesse como eu sofro! Eu amava-o, amava-o perdidamente, como uma
insensata, desde há seis meses.”
«Eu perguntei: “Em sua casa o pessoal está acordado?” Ela respondeu: “Não, ninguém, excepto a
Rosa, que sabe tudo.”
«Parámos diante da porta dela; com efeito, na casa toda a gente estava a dormir. Entrámos sem
ruído com um gazua: e eis-nos a subir a escada na ponta dos pés. A criada, desorientada, estava
sentada no chão no alto da escada, com uma vela acesa ao lado, porque não se atrevia a ficar ao pé
do morto.
«E entrei no quarto. Estava totalmente em desordem, como depois de uma luta. A cama amarrotada,
pisada, desfeita, permanecia aberta, parecia esperar; um dos lençóis estava descaído até ao tapete;
toalhas molhadas, que tinham posto nas têmporas do jovem, jaziam no chão ao lado de uma pequena
bacia e de um copo. E um singular cheiro a vinagre de cozinha misturado com relentos de perfume
Lubin vinha da porta, repugnante.
«O cadáver estava estendido ao comprido, de costas, no meio do quarto.
«Aproximei-me; examinei-o; apalpei-o; abri-lhe os olhos; tacteei-lhe as mãos e depois, virando-me
para as duas mulheres que tiritavam como se estivessem geladas, disse-lhes: “Ajudem-me a levá-lo
para a cama.” E deitámo-lo suavemente. Auscultei-lhe então o coração e coloquei-lhe um espelho
diante da boca; e a seguir murmurei: “Acabou-se, temos de o vestir depressa.” Foi horrível de ver.
«Eu pegava-lhe nos membros um a um, como se de um enorme boneco se tratasse, e estendia-os
para as roupas que as mulheres traziam. Passámos às peúgas, às cuecas, ao calção, ao colete, e
depois ao fato, no qual tivemos muita dificuldade em fazer entrar os braços.
«Quando se tratou de abotoar as botinas, as duas mulheres puseram-se de joelhos, enquanto eu lhes
dava luz; mas como os pés estavam um pouco inchados, foi assustadoramente difícil. Como não
tinham encontrado a abotoadeira, usaram os respectivos ganchos de cabelo.
«Mal terminou a horrível toilette, examinei a nossa obra e disse: “Era preciso dar-lhe uma
penteadela.” A criada foi buscar o pente e a escova da patroa; mas, como estava a tremer e, em
movimentos involuntários, arrancava os cabelos compridos e embaraçados, a senhora Lelièvre
apoderou-se violentamente do pente e reajustou-lhe devagarinho o cabelo, como se o acariciasse.
Refez a risca, escovou a barba, e depois enrolou lentamente o bigode com o dedo, tal como por certo
costumava fazer em familiaridades amorosas.
«E de repente, largando o que tinha na mão, ela agarrou a cabeça inerte do amante e contemplou
longamente, desesperadamente, aquele rosto morto que já não lhe sorria; depois, deixando-se cair
sobre ele, apertou-o com toda a força nos seus braços, beijando-o ardentemente. Os beijos dela
caíam como pancadas na boca fechada dele, nos seus olhos apagados, nas suas fontes, na testa.
Depois, aproximando-se do ouvido, como se ele pudesse ainda ouvi-la, como que para balbuciar a
palavra que torna os abraços mais ardentes, repetiu dez vezes seguidas numa voz dilacerada: “Adeus,
meu querido.”
«Mas o relógio bateu a meia-noite.
«Tive um sobressalto: “Que maçada, meia-noite, a estas horas fecha o círculo. Vamos, minha
senhora, força.”
«Ela endireitou-se. Dei as minhas ordens: “Vamos levá-lo para o salão.” Pegámos nele os três e,
erguendo-o, sentei-o num canapé, e acendi depois os candelabros.
«A porta da rua abriu-se e tornou a fechar-se pesadamente. Era já ele. Exclamei: “Rosa, depressa,
traga-me as toalhas e a bacia, e refaça a cama, despache-se, por amor de Deus! É o senhor Lelièvre
que regressa.”
«Ouvi os passos que subiam, que se aproximavam. Umas mãos na sombra tacteavam as paredes.
Então chamei: “Por aqui, meu caro, tivemos um acidente.”
«E o marido estupefacto apareceu no limiar, com um charuto na boca. Perguntou: “Que é? Que se
passa? Que é isso?”
«Caminhei na sua direcção: “Meu bom amigo, vem encontrar-nos num difícil embaraço. Eu tinha
ficado até tarde a conversar aqui com a sua mulher e este nosso amigo que me tinha trazido no carro
dele. E eis que ele de repente cai no chão, e há duas horas que, apesar dos nossos esforços, continua
sem sentidos. Não quis chamar estranhos. Por isso ajude-me a levá-lo para baixo, porque posso
tratá-lo melhor em casa dele.”
«O marido surpreendido, mas sem desconfiar, tirou o chapéu;
e depois agarrou o seu rival, agora inofensivo, por debaixo dos braços. Eu agarrei-o pelas pernas,
como um cavalo entre dois varais, e lá fomos nós a descer a escada, agora alumiados pela mulher.
«Quando chegámos diante da porta, endireitei o cadáver e falei com ele, animando-o para enganar o
cocheiro: “Vá, meu bom amigo, isso não é nada; já está a sentir-se melhor, não é? Coragem, vá lá, um
pouco de coragem, mais um pequeno esforço e pronto.”
«Como sentia que ele ia estatelar-se, que me deslizava entre as mãos, dei-lhe uma grande palmada
nas costas que o atirou para a frente e o fez oscilar para dentro do carro; e depois subi eu atrás dele.
«O marido, inquieto, perguntava-me: “Acha que é grave?” Respondi: “Não”, e sorri, olhando para a
mulher. Ela enfiara o braço no do marido legítimo e mergulhava o olhar fixo no eixo às escuras do
cupê.
«Apertei as mãos deles e mandei seguir. Ao longo de todo o caminho o morto descaía-me sobre a
orelha direita.
«Quando chegámos a casa dele, anunciei que ele tinha perdido os sentidos pelo caminho. Ajudei a
fazê-lo subir até ao quarto. E depois verifiquei o óbito; representei toda uma nova comédia diante da
sua família atarantada. Por fim, voltei para a minha cama, sem deixar de praguejar contra os
apaixonados.»
O médico calou-se, sempre sorrindo.
Crispada, a jovem senhora perguntou:
«Porque é que me contou essa história pavorosa?»
Ele fez um cumprimento galante.
«Para lhe oferecer os meus serviços, se for necessário.»
(Setembro de 1882)
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  • 1.
  • 2. Ficha Técnica Título original: Contos Escolhidos de Guy de Maupassant Tradução: Pedro Tamen Capa: Joana Tordo Edição: Cecília Andrade Revisão: Clara Boléo ISBN: 978-989-23-1047-3 Publicações Dom Quixote [Uma chancela do grupo Leya] Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © Publicações Dom Quixote, 2011 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.dquixote.leya.com www.leya.pt
  • 3. O tradutor desta selecção de contos de Guy de Maupassant deseja deixar aqui claramente expresso o seu profundo agradecimento a Miguel Viqueira, que não apenas lhe inspirou a ideia de traduzir de novo este grande autor hoje quase esquecido em Portugal, como ainda colaborou de uma maneira dedicada, activa e decisiva na escolha dos textos e na organização interna do presente volume.
  • 5. A Casa Tellier 1. Iam lá todas as noites, por volta das onze, simplesmente como quem vai ao café. Eram seis ou oito os que ali se encontravam, sempre os mesmos, não uns pândegos quaisquer, mas homens respeitáveis, comerciantes e gente nova da cidade; e tomavam o seu licor fazendo algumas brincadeiras travessas às raparigas, ou então conversavam gravemente com a Madame, que toda a gente respeitava. E depois saíam para se irem deitar antes da meia-noite. Às vezes os jovens ficavam. Era uma casa de família, pequenina, pintada de amarelo, na esquina de uma rua por trás da igreja de Santo Estêvão; e das janelas avistava-se a doca cheia de navios a descarregar, o grande brejo salgado a que chamavam «A Retenção» e, lá atrás, a costa da Virgem com a sua velha capela enegrecida. A Madame, oriunda de uma boa família de camponeses do departamento do Eure, aceitara aquela profissão exactamente como poderia ter sido modista ou fanqueira. O preconceito desonroso ligado à prostituição, tão violento e vivaz nas cidades, não existe nas terras de província normandas. O camponês diz: «É um bom ofício»; e destina ao filho a gestão de um harém de raparigas do mesmo modo que lhe daria a gerir um internato de meninas. De resto, aquela casa viera por herança de um velho tio seu proprietário. O Senhor e a Madame, em tempos estalajadeiros nos arredores de Yvetot, haviam imediatamente liquidado o seu negócio, por considerarem que o de Fécamp lhes seria mais vantajoso; e tinham chegado um belo dia para assumir a direcção da empresa que estava periclitando na ausência dos patrões. Eram boas pessoas, que desde logo conquistaram a estima do pessoal e dos vizinhos. O Senhor morreu de uma congestão passados dois anos. Como a sua nova profissão lhe proporcionava uma vida de indolência e imobilidade, engordara muito e a saúde liquidara-o. A Madame, depois de enviuvar, era desejada em vão por todos os frequentadores habituais do estabelecimento; mas tinha a fama de ser absolutamente honesta, e nem sequer as suas pensionistas haviam descoberto fosse o que fosse. Era alta, cheia de carnes, elegante. A pele, empalidecida na obscuridade daquela casa sempre fechada, brilhava como que untada por um verniz gorduroso. Rodeava-lhe a testa um esguio enfeite de cabelos travessos, o que lhe dava um aspecto juvenil que destoava da maturidade das suas formas. Invariavelmente alegre e de expressão franca, era dada a gracejos, com uma tonalidade comedida que as suas novas ocupações ainda não lhe tinham feito perder. As palavras feias chocavam-na sempre um pouco; e, quando um rapaz mal educado chamava pelo nome próprio o estabelecimento que dirigia, zangava-se, revoltada. Tinha, enfim, uma alma delicada e, embora tratasse as suas mulheres como amigas, não se cansava de repetir que «não era da mesma laia». Às vezes, durante a semana, saía num carro de aluguer com uma parte do seu grupo; e iam folgar na
  • 6. relva à beira de um regato que corre nas terras de Valmont. Havia então pensionistas que desapareciam fugidas, correrias loucas, brincadeiras infantis, toda uma alegria de reclusas inebriadas pelo ar livre. Comiam enchidos deitadas na relva bebendo cidra, e voltavam ao entardecer com um delicioso cansaço, com uma doce comoção; e no carro beijavam a Madame que era tão boa mãe, cheia de mansidão e complacência. A casa tinha duas entradas. Na esquina da rua havia uma espécie de café de ruim aparência, que abria à noite para a gente do povo e para os marinheiros. Duas das pessoas encarregadas do comércio específico do local eram particularmente destinadas às necessidades daquela parte da clientela. Com a ajuda do criado, chamado Frédéric, um loirinho imberbe e forte como um boi, serviam os quartilhos de vinho e as litradas nas mesas desengonçadas de mármore, e, com os braços à roda do pescoço dos bebedores, sentadas de viés nas pernas deles, encorajavam-nos a consumir. As três outras damas (elas eram ao todo cinco) formavam uma espécie de aristocracia, e permaneciam reservadas ao grupo do primeiro andar, a não ser quando precisavam delas lá em baixo e o andar de cima estava vazio. O salão de Júpiter, onde se reuniam os burgueses do lugar, era forrado a papel azul e enfeitado com um grande desenho que representava Leda estendida debaixo de um cisne. Chegava-se até lá através de uma escada de caracol que terminava numa porta estreita, de aparência humilde, que dava para a rua, e por cima da qual brilhava toda a noite, atrás de uma grade, uma pequena lanterna daquelas que se acendem ainda em certas cidades aos pés das Nossas Senhoras encastradas nas paredes. O prédio, húmido e velho, cheirava ligeiramente a mofo. De vez em quando perpassava pelos corredores um hálito de água-de-colónia, ou então uma porta entreaberta lá em baixo fazia ressoar por toda a casa, como a explosão de uma trovoada, os gritos popularunchos dos homens das mesas do rés-do-chão, e provocava nas caras dos senhores do primeiro andar um esgar de inquietação e repugnância. A Madame, íntima dos seus amigos clientes, não saía da sala, e interessava-se pelos boatos que corriam na cidade e que através deles lhe chegavam. A sua conversa séria contrastava com as frases incoerentes das três mulheres; ela era como que uma pausa na jovialidade brejeira dos senhores barrigudos que todas as noites se entregavam àquele honesto e medíocre deboche de beberem um cálice de licor na companhia de mulheres públicas. As três damas do primeiro andar chamavam-se Fernanda, Rafaela e Rosa Pileca. Como o pessoal era pouco, tinha-se procurado que cada uma delas fosse uma espécie de amostra, de um resumo do tipo feminino, para que todos os consumidores pudessem encontrar ali, ao menos aproximadamente, a realização do seu ideal. A Fernanda representava a loiraça, muito alta, quase obesa, mole, rapariga do campo cujas sardas se recusavam a desaparecer, e cujo cabelo amarelo-desbotado, encurtado, claro e sem cor, que parecia cânhamo penteado, mal lhe cobria o crânio. A Rafaela, uma marselhesa, prostituta dos portos de mar, representava o papel indispensável da bela judia, magra, com as maçãs do rosto cobertas de vermelhão. Os cabelos pretos, postos a brilhar com medula de boi, encaracolavam-se-lhe nas têmporas. Os olhos teriam sido bonitos se o direito não tivesse a marca de uma catarata. O nariz arqueado descaía sobre uma queixada proeminente,
  • 7. onde dois dentes novos, de cima, contrastavam com os de baixo, que, com o tempo, tinham tomado uma coloração escura como a das madeiras antigas. A Rosa Pileca, uma bolinha de carne toda ela barriga com umas pernas minúsculas, cantava de manhã até à noite, numa voz rouca, umas cantigas ora licenciosas ora sentimentais, contava histórias intermináveis e insignificantes, só parava de falar para comer e de comer para falar, e andava sempre de um lado para o outro, ágil como um esquilo apesar da gordura e da exiguidade das patas; e o seu riso, uma cascata de gritos agudos, estalava constantemente, por aqui e por ali, num quarto, no sótão, no café, por toda a parte, a propósito de tudo e de nada. As duas mulheres do rés-do-chão, a Luísa, apelidada de Cocote, e a Flora, chamada Baloiço por coxear um bocado, uma sempre vestida de Liberdade com uma faixa tricolor à cintura, e a outra de espanhola de fantasia com cequins de cobre que lhe dançavam no cabelo cor de cenoura a cada um dos seus passos desiguais, dir-se-iam serventes de cozinha mascaradas para um carnaval. Semelhantes a todas as mulheres do povo, nem mais feias nem mais bonitas, verdadeiras criadas de estalagem, eram designadas no porto pela alcunha de «as duas Chancas». Reinava entre estas cinco mulheres uma paz ciumenta, mas raramente perturbada, graças à sabedoria conciliadora da Madame e ao seu inesgotável bom humor. O estabelecimento, único naquela pequena cidade, era muito frequentado. A Madame soubera infundir-lhe uma apropriada elegância: mostrava-se tão amável, tão obsequiosa para com toda a gente, e o seu bom coração era tão bem conhecido que era rodeada de uma espécie de consideração. Os frequentadores habituais eram capazes de fazer tudo por ela e sentiam-se triunfantes quando ela lhes demonstrava uma amizade mais evidente; e quando durante o dia se encontravam nos seus locais de trabalho diziam uns para os outros: «Até logo à noite, onde a gente sabe», como quem diz: «No café, não é verdade? Depois do jantar.» Enfim, a casa Tellier era um refúgio, e raramente alguém faltava ao encontro quotidiano. Ora aconteceu que uma noite, em fins de Maio, o primeiro a chegar, o senhor Poulin, negociante de madeiras e antigo presidente da Câmara, deparou com a porta fechada. O lanternim, atrás da sua grade, não brilhava e não saía qualquer ruído da casa, que parecia morta. Bateu à porta, primeiro devagarinho e depois com mais força, mas não respondeu ninguém. Tornou então a subir a rua em passinhos curtos e, ao chegar à praça do Mercado, encontrou o senhor Duvert, o armador, que se dirigia para o mesmo lugar. V oltaram lá juntos sem melhor êxito. Mas um grande barulho estalou de repente muito perto deles, e, dando a volta à casa, viram um ajuntamento de marinheiros ingleses e franceses que davam murros nas portadas fechadas do café. Os dois burgueses puseram-se imediatamente em fuga para não se verem comprometidos; mas foram detidos por um leve «pssst»: era o senhor Tournevau, o da salga de peixe, que, tendo-os reconhecido, estava a chamá-los. Contaram-lhe o que se passava, o que ainda mais o afectou a ele, que, casado, pai de família e muito vigiado, só lá ia aos sábados «securitatis causa», dizia ele, aludindo assim a uma medida de polícia sanitária cujas periódicas sequências o doutor Borde, seu amigo, lhe havia revelado. Aquela era justamente a noite dele, e ia assim ficar privado uma semana inteira. Os três homens deram uma grande volta até ao cais, e encontraram no caminho o jovem senhor Philippe, filho do banqueiro, um frequentador habitual, e o senhor Pimpesse, recebedor dos
  • 8. impostos. Regressaram então todos juntos pela rua «dos Judeus» para fazerem uma última tentativa. Mas os marinheiros exasperados cercavam a casa, atiravam pedras, berravam; e os cinco clientes do primeiro andar, arrepiando caminho o mais depressa possível, puseram-se a vaguear pelas ruas. Encontraram então o senhor Dupuis, agente de seguros, e depois o senhor Vasse, juiz do tribunal do comércio; e assim principiou um longo passeio que começou por levá-los até ao molhe. Sentaram-se alinhados no parapeito de granito e ficaram-se a contemplar a ondulação. A espuma na crista das ondas criava na sombra umas brancuras luminosas que se extinguiam logo mal apareciam, e o ruído monótono do mar quebrando-se contra as rochas prolongava-se na noite ao longo de toda a falésia. Já os tristes viandantes estavam ali há algum tempo quando o senhor Tournevau declarou: «É triste.» «Lá isso é», continuou o senhor Pimpesse; e lá se foram em passinhos miúdos. Percorrida a rua que segue pela base da falésia e a que chamam «Debaixo da Mata», voltaram pela ponte de pranchas para a «Retenção», passaram junto da linha férrea e foram desembocar de novo na praça do Mercado, onde de repente começou uma discussão entre o recebedor dos impostos, o senhor Pimpesse, e o negociante de sal, o senhor Tournevau, a propósito de um cogumelo comestível que um deles afirmava ter encontrado ali perto. Os espíritos estavam azedados pelo tédio, e teriam certamente chegado a vias de facto se os outros não se tivessem interposto. O senhor Pimpesse, furioso, retirou-se; e logo estalou nova altercação entre o antigo presidente da Câmara, o senhor Poulin, e o agente de seguros, o senhor Dupuis, acerca dos vencimentos do recebedor dos impostos e dos benefícios que podia obter. As afirmações injuriosas choviam de ambos os lados, quando estoirou uma tempestade de gritos formidáveis, e o bando dos marinheiros, cansados de esperar em vão diante de uma casa fechada, entrou na praça. Vinham agarrados uns aos outros pelos braços, dois a dois, formando uma longa procissão, e vociferavam furiosamente. O grupo dos burgueses escondeu-se debaixo de um portal, e a horda aos uivos desapareceu na direcção da abadia. Ainda durante muito tempo se ficou ouvindo o clamor que diminuía como um temporal que se afasta; e voltou o silêncio. O senhor Poulin e o senhor Dupuis, irritados um com o outro, foram-se embora, cada um para o seu lado, sem se cumprimentarem. Os outros quatro continuaram a andar e tornaram a descer instintivamente na direcção do estabelecimento Tellier. Continuava fechado, mudo, impenetrável. Um bêbado, tranquilo e obstinado, dava pancadinhas na frontaria do café, e depois interrompia-se para chamar a meia-voz pelo criado Frédéric. Vendo que não lhe respondiam, decidiu sentar-se no degrau da porta e aguardar os acontecimentos. Os burgueses iam retirar-se quando o bando tumultuoso dos homens do porto reapareceu ao fim da rua. Os marinheiros franceses berravam A Marselhesa, os ingleses o Rule Britannia. Todos arremeteram contra as paredes, e depois a vaga de brutamontes retomou o seu percurso para o cais, onde estalou uma batalha entre os marítimos das duas nações. Durante a briga, um inglês ficou com um braço partido e um francês com o nariz rachado. O bêbado, que tinha ficado diante da porta, chorava agora como choram os bêbados ou as crianças contrariadas. Por fim, os burgueses dispersaram.
  • 9. A pouco e pouco a calma regressou à cidade perturbada. De praça em praça ainda de vez em quando se erguia um ruído de vozes que depois se extinguia ao longe. Apenas um homem continuava a deambular, o senhor Tournevau, o negociante de sal, desolado por ter de esperar até ao sábado seguinte; estava à espera de um acaso qualquer, porque não compreendia aquilo, exasperado por a polícia deixar fechar assim um estabelecimento de utilidade pública que lhe cabe vigiar e ter à sua guarda. V oltou lá, colado às paredes, em busca de uma razão; e descobriu que havia um letreiro colado na frontaria. Apressou-se a acender um fósforo e leu estas palavras traçadas numa letra grande e desigual: «Fechado por motivo de primeira comunhão.» Então afastou-se, percebendo assim que era assunto arrumado. O bêbado estava agora a dormir, estendido ao comprido e atravessado na porta pouco hospitaleira. E no dia seguinte todos os clientes habituais, um após outro, acharam maneira de passar na rua com papéis debaixo do braço por uma questão de aparência; e, numa olhadela furtiva, todos liam o misterioso aviso: «Fechado por motivo de primeira comunhão.» 2. Acontecia que a Madame tinha um irmão estabelecido como marceneiro na sua terra natal, Virville, no Eure. No tempo em que a Madame era ainda estalajadeira em Yvetot fora ela que levara à pia baptismal a filha daquele irmão, a que deu o nome de Constance, Constance Rivet, pois ela própria era Rivet pelo lado do pai. O marceneiro, que sabia que a irmã estava numa boa situação, não a perdia de vista, embora não se encontrassem muitas vezes, ambos retidos que estavam pelas respectivas ocupações e, além disso, por viverem longe um do outro. Mas, como a menina ia completar doze anos e nesse ano fazia a sua primeira comunhão, ele aproveitou a oportunidade para promover uma aproximação, e escreveu à irmã que contava com ela para a cerimónia. Os velhos pais tinham morrido e ela não podia recusar aquilo à afilhada: aceitou. O irmão, que se chamava Joseph, esperava que, valendo-se destas atenções, talvez conseguisse um testamento a favor da pequena, já que a Madame não tinha filhos. A profissão da irmã não bulia de modo algum com os seus escrúpulos e, aliás, ninguém lá da terra sabia de nada. Ao falar dela dizia-se apenas: «A senhora Tellier é uma burguesa de Fécamp», o que dava a entender que estava em condições de viver dos rendimentos. De Fécamp até Virville distavam pelo menos vinte léguas; e vinte léguas de terra são, para camponeses, mais difíceis de percorrer que o Oceano para um civilizado. O povo de Virville nunca tinha ido além de Ruão; e nada atraía as gentes de Fécamp a uma aldeola de quinhentos fogos, perdida no meio das planícies e que pertencia a outro departamento. Enfim, não se sabia de nada. Mas, ao aproximar-se a época da comunhão, a Madame sentiu um grande embaraço. Não tinha nenhuma patroa substituta e não lhe agradava nada deixar a casa, mesmo por um dia. Todas as rivalidades entre as damas lá de cima e as lá de baixo iriam infalivelmente estalar; além disso, o Frédéric havia de embebedar-se de certeza, e quando estava bêbado importunava as pessoas por tudo
  • 10. e por nada. Acabou por se decidir a levar consigo toda a sua gente, excepto o criado, a quem deu férias até dali a dois dias. Consultado o irmão, este não levantou qualquer objecção, e encarregou-se de arranjar alojamento para todo o grupo por uma noite. E assim, no sábado de manhã, o comboio expresso das oito transportava a Madame e as suas companheiras numa carruagem de segunda classe. Até Beuzeville foram sozinhas e palraram como pegas. Mas nessa estação entrou um casal. O homem, um velho camponês que envergava uma bata azul com gola plissada, mangas largas apertadas nos pulsos e adornadas de um bordadinho branco, de cabeça coberta por um antiquado chapéu alto cujo pêlo ruço parecia eriçado, trazia numa das mãos um imenso chapéu-de-chuva verde, e na outra um grande cesto donde espreitavam as cabeças assustadas de três patos. A mulher, hirta na sua roupagem rústica, tinha cara de galinha, com um nariz afilado como um bico. Sentou-se de frente para o seu homem e deixou-se ficar sem se mexer, impressionada por se encontrar rodeada de uma tão bela companhia. Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho, ofuscante, fulgurante. A Fernanda ofegava num vestido escocês cujo corpete, atado com todas as forças das companheiras, lhe soerguia o peito em riscos de se desmoronar numa dupla cúpula sempre agitada que parecia líquida debaixo do tecido. A Rafaela, com um penteado emplumado a fingir um ninho cheio de passarinhos, usava um vestido lilás, semeado de lantejoulas de ouro, uma coisa como que oriental que calhava bem com a sua cara de judia. A Rosa Pileca, de saia cor-de-rosa com amplos folhos, tinha o aspecto de uma menininha excessivamente gorda, de uma anã obesa; e as duas Chancas pareciam ter escolhido de propósito uns adornos estranhos por entre velhas cortinas de janela, as velhas cortinas com ramagens do tempo da Restauração. Mal deixaram de estar sozinhas no compartimento, as senhoras assumiram um comportamento sério, e puseram-se a falar de coisas elevadas para criarem boa opinião a seu respeito. Mas em Bolbec apareceu um sujeito de suíças loiras, com anéis e uma corrente de ouro, que arrumou na rede por cima da sua cabeça vários pacotes embrulhados em oleado. Tinha um ar trocista e de boa pessoa. Cumprimentou, sorriu e perguntou com todo o à-vontade: «Estas senhoras vão mudar de quartel?» A pergunta lançou no grupo uma confusão embaraçada. Por fim a Madame recuperou a presença de espírito e respondeu secamente, para vingar a honra do pelotão: «O senhor podia ser mais bem educado!» Ele desculpou-se: «Perdão, eu queria dizer de convento.» A Madame, como não encontrou nada para responder, ou talvez por achar a rectificação suficiente, fez um cumprimento digno franzindo os lábios. Então o senhor, que estava sentado entre a Rosa Pileca e o velho camponês, pôs-se a piscar o olho aos três patos cujas cabeças espreitavam do grande cesto; e depois, quando sentiu que o seu público já estava cativado, começou a fazer festas aos animais debaixo do bico, dirigindo-lhes frases engraçadas para alegrar a companhia: «Com que então deixámos o nosso charco!, quáquá!, quáquá!, quáquá!, para conhecermos o belo espeto, não é?, quáquá!, quáquá!, quáquá!» Os infelizes animais reviravam o pescoço para evitar os seus afagos, faziam terríveis esforços para saírem da sua prisão
  • 11. de vime; e depois, de repente, os três em conjunto, soltaram um lamentoso grito de aflição: – Quáquá! quáquá! quáquá! Houve então uma explosão de gargalhadas entre as mulheres. Elas debruçavam-se, empurravam-se umas às outras para espreitar; estavam loucamente interessadas nos patos; e o senhor redobrava de graciosidade, de espírito e de carícias. A Rosa meteu-se no assunto e, debruçando-se por sobre as pernas do seu vizinho, beijou os três animais no nariz. E logo todas as mulheres os quiseram beijar também; e o senhor sentava as senhoras nos seus joelhos, fazia-as dar saltos, beliscava-as; não tardou e estava a tratá-las por tu. Os dois camponeses, ainda mais desorientados que os patos, arregalavam uns olhos de possessos sem se atreverem a fazer qualquer movimento, e os seus velhos rostos enrugados não mostravam qualquer sorriso, nem qualquer sobressalto. Então o cavalheiro, que era caixeiro-viajante, ofereceu por brincadeira uns suspensórios às senhoras e abriu um dos seus embrulhos. Era um ardil, porque o pacote continha ligas de mulher. Havia-as de seda azul, de seda cor-de-rosa, de seda encarnada, de seda roxa, de seda cor de malva, de seda cor de papoila, com anéis de metal formados por dois amores enlaçados e dourados. As raparigas soltaram gritos de alegria, e depois puseram-se a examinar as amostras, possuídas de novo pela gravidade natural de qualquer mulher quando mexe num objecto de toilette. Consultavam-se umas às outras com os olhos ou com palavras segredadas, respondiam do mesmo modo, e a Madame manuseava com desejo um par de ligas alaranjadas, mais largas, mais imponentes que as outras: verdadeiras ligas de patroa. O cavalheiro esperava, e ao mesmo tempo ia alimentando uma ideia: «Vamos lá, minhas gatinhas, é preciso prová-las», disse ele. Soltou-se uma tempestade de exclamações; e elas apertavam as saias entre as pernas como se temessem violências. Ele, tranquilamente, esperava a sua hora. Declarou: «Se não querem, torno a embrulhar.» E depois, com toda a esperteza: «Ofereço um par, à escolha, às que fizerem a experiência.» Mas elas não queriam, muito dignas, muito direitas. Porém, as duas Chancas pareciam tão infelizes que ele repetiu-lhes a proposta. Sobretudo a Flora Baloiço, torturada pelo desejo, hesitava visivelmente. Ele pressionou-a: «Vá lá, menina, um pouco de coragem; olha este par lilás, que vai bem com a tua toilette.» Então ela decidiu-se e, erguendo o vestido, pôs à mostra uma perna forte de vaqueira, dificilmente apertada numa meia grosseira. O cavalheiro, baixando-se, prendeu a liga primeiro abaixo do joelho e depois acima; e titilava suavemente a rapariga para a obrigar a soltar uns gritinhos com bruscos estremecimentos. Quando acabou, deu o par lilás e perguntou: «Quem se segue?» Todas juntas gritaram: «Eu! Eu!» Ele começou pela Rosa Pileca, que pôs à mostra uma coisa informe, toda redonda, sem tornozelo, uma verdadeira «perna chouriço», como dizia a Rafaela. A Fernanda foi cumprimentada pelo caixeiro-viajante, entusiasmado pelas suas poderosas colunas. As magras tíbias da bela Judia não tiveram tanto êxito. A Luísa Cocote, de brincadeira, lançou a saia por cima da cabeça do cavalheiro; e a Madame viu-se obrigada a intervir para acabar com aquela farsa pouco própria. Por fim, a própria Madame estendeu a perna, uma bela perna normanda, gorda e musculada; e o caixeiro-viajante, surpreendido e encantado, tirou galantemente o chapéu para saudar aquela supina barriga da perna como um verdadeiro cavalheiro francês. Os dois camponeses, hirtos de pasmo, olhavam de lado, pelo canto do olho; e pareciam-se tão
  • 12. absolutamente com frangos que o homem das suíças loiras, levantando-se, lhes gritou em pleno nariz: «Cocorocó!» O que de novo desencadeou um furacão de galhofa. Os velhos desceram em Motteville, eles e o seu cesto, os seus patos e o seu guarda-chuva; e ouviu- se a mulher dizer para o homem enquanto se afastavam: «São mais mulheres da vida que vão para aquela maldita Paris!» O divertido vendedor ambulante desceu também em Ruão, depois de se ter revelado tão grosseiro que a Madame se viu obrigada a pô-lo severamente no seu lugar. E acrescentou à laia de moral: «É para sabermos que não se deve falar com a primeira pessoa que nos aparece.» Em Oissel mudaram de comboio e encontraram-se numa das estações seguintes com o senhor Joseph Rivet que as esperava numa grande carreta cheia de cadeiras e puxada por um cavalo branco. O marceneiro beijou delicadamente todas aquelas senhoras e ajudou-as a subir para o carro. Três sentaram-se em três cadeiras ao fundo; a Rafaela, a Madame e o irmão nas três cadeiras da frente, e a Rosa, como não tinha lugar, acoitou-se como pôde nos joelhos da grandalhona Fernanda; e lá se puseram todos a caminho. Mas logo o trote sacudido do garrano agitou o carro tão terrivelmente que as cadeiras começaram a dançar atirando as passageiras ao ar, para a direita e para a esquerda, com movimentos de fantoches, caretas de susto, gritos de pavor de repente cortados por um sacão mais forte. Aferravam-se aos lados do veículo; os chapéus caíam-lhes para as costas, para o nariz ou para os ombros; e o cavalo branco continuava, de cabeça estendida e cauda direita, uma pequena cauda de rato sem pêlo com que açoitava as nádegas de vez em quando. Joseph Rivet, com um pé estendido sobre o varal e a outra perna dobrada debaixo do corpo, de cotovelos erguidos, segurava as rédeas, e da garganta escapava-se-lhe a todo o momento uma espécie de cacarejo que, fazendo erguer as orelhas ao garrano, lhe acelerava o passo. Os campos verdes estendiam-se de ambos os lados da estrada. As colzas em flor formavam aqui e além uma grande toalha amarela ondulante donde se erguia um saudável e poderoso aroma, um aroma penetrante e doce, que o vento transportava até muito longe. Nos pés de centeio já crescidos as cinerárias mostravam as cabecinhas azuladas que as mulheres queriam colher, mas o senhor Rivet recusou-se a parar. Além disto, por vezes, aparecia um campo inteiro que parecia regado de sangue, de tal modo estava invadido de papoilas. E no meio daquelas planícies assim coloridas pelas flores da terra, a carreta, que parecia também transportar um ramo de flores de tão ardentes cores, passava levada pelo trote do cavalo branco, desaparecia atrás das grandes árvores de uma herdade para reaparecer no fim das ramarias e de novo passear através das culturas amarelas e verdes, sarapintadas de vermelho ou de azul: uma deslumbrante carrada de mulheres correndo debaixo do sol. Batia uma hora quando chegaram diante da porta do marceneiro. Estavam moídas de cansaço e pálidas de fome, porque não tinham comido nada desde a partida de casa. A senhora Rivet precipitou-se, ajudou-as a descer uma a uma, beijando-as logo que chegavam ao chão; e não parava de beijocar a cunhada, cujas boas graças queria conquistar. Comeram na oficina, donde tinham retirado os bancos de trabalho para o jantar do dia seguinte. Uma boa omeleta seguida de uma linguiça grelhada, tudo regado com uma boa cidra cheia de picos, devolveu a alegria a toda a gente. Rivet, para brindar, bebera um copo, e a mulher servia, fazia a
  • 13. cozinha, trazia os pratos, retirava-os, murmurando ao ouvido de cada uma das visitas: «Não lhe falta nada?» Montes de tábuas encostadas às paredes e pilhas de aparas varridas para os cantos espalhavam um perfume de madeira aplainada, um cheiro a marcenaria, aquele hálito resinoso que penetra até ao fundo dos pulmões. Queriam ver a pequena, mas ela estava na igreja e só devia regressar à tarde. Então todo o grupo saiu para dar uma volta pela terra. Era uma aldeia muito pequena, atravessada por uma estrada principal. Numa dezena de casas arrumadas ao longo dessa via única alojavam-se os comerciantes do sítio, o açougueiro, o merceeiro, o marceneiro, o dono do botequim, o sapateiro e o padeiro. A igreja, na extremidade dessa espécie de rua, era rodeada por um estreito cemitério; e quatro tílias desmesuradas, plantadas diante do portal, cobriam-na inteiramente de sombra. Era feita de pederneira talhada, sem qualquer espécie de estilo, e encimada por um campanário de ardósia. A seguir à igreja recomeçava o campo, cortado aqui e além por maciços de árvores que escondiam as herdades. Rivet, por uma questão de cerimónia, e embora vestido de operário, tinha dado o braço à irmã, que levava a passear majestosamente. A mulher, muito comovida com o vestido com fios dourados da Rafaela, colocara-se entre esta e a Fernanda. A rechonchuda Rosa ia trotando lá atrás com a Luísa Cocote e a Flora Baloiço, que coxeava extenuada. Os habitantes vinham às portas, as crianças paravam de brincar, uma cortina soerguida deixava entrever uma cabeça com um gorro de chita; uma velha de muletas e quase cega persignou-se como à passagem de uma procissão; e todos seguiam longamente com o olhar todas aquelas belas raparigas da cidade que tinham vindo de tão longe para a primeira comunhão da pequena do Joseph Rivet. Uma imensa consideração ressaltava sobre o marceneiro. Ao passarem diante da igreja ouviram cânticos de crianças; um canto gritado para o céu por umas vozinhas agudas; mas a Madame não deixou que entrassem para não perturbarem os querubins. Depois de uma volta pelo campo, e da enumeração das principais propriedades, do rendimento da terra e da produção do gado, Joseph Rivet reconduziu o seu rebanho de mulheres e instalou-se na sua casa. O espaço era muito escasso, e elas tinham sido repartidas aos pares pelos diversos quartos. Rivet, desta vez, dormiria na oficina, em cima das aparas; a mulher partilharia a cama com a cunhada e, no quarto ao lado, a Fernanda e a Rafaela descansariam juntas. A Luísa e a Flora estavam instaladas na cozinha em cima de um colchão estendido no chão; e a Rosa ocupava sozinha um pequeno cubículo escuro por cima da escada, junto da entrada de um exíguo sótão onde nessa noite dormiria a comungante. Quando a menina regressou caiu-lhe em cima uma chuva de beijos; todas as mulheres queriam amimá-la, com aquela necessidade de expansão terna, aquele hábito profissional de meiguices que na carruagem do comboio as levara a todas a beijar os patinhos. Todas a fizeram sentar ao colo, lhe mexeram nos finos cabelos loiros, a apertaram nos seus braços em impulsos de afecto veemente e espontâneo. A criança, tão ajuizada, intimamente penetrada de piedade, como que fechada pela absolvição, deixava que lhe fizessem tudo, paciente e recolhida. Como o dia fora difícil para toda a gente, deitaram-se logo a seguir ao jantar. Aquele ilimitado
  • 14. silêncio dos campos que quase parece religioso envolvia a pequena aldeia, um silêncio tranquilo, penetrante, e amplo até aos astros. As raparigas, acostumadas aos serões tumultuosos da casa pública, sentiam-se comovidas por aquele mudo repouso do campo adormecido. Sentiam arrepios, não de frio, mas arrepios de solidão oriundos do coração inquieto e perturbado. Mal se meteram na cama, duas a duas, abraçaram-se como para se defenderem daquela invasão do calmo e profundo sono da terra. Mas a Rosa Pileca, sozinha no seu cubículo escuro, e pouco habituada a dormir de braços vazios, sentiu-se invadida por uma emoção vaga e penosa. Revirava-se na cama sem conseguir conciliar o sono, quando ouviu atrás do tabique de madeira a que encostava a cabeça uns débeis soluços, como os de uma criança a chorar. Assustada, chamou em voz baixa, e respondeu-lhe uma vozinha entrecortada. Era a rapariguinha que, tendo sempre dormido no quarto da mãe, tinha medo no seu estreito desvão. A Rosa, encantada, levantou-se e, devagarinho, para não acordar ninguém, foi procurar a criança. Trouxe-a para a sua cama quentinha, apertou-a contra o peito beijando-a, acalentou-a, envolveu-a na sua ternura de exageradas manifestações, e depois, ela própria mais calma, adormeceu. E até ser dia a comungante dormiu com a testa encostada ao seio nu da prostituta. Às cinco da manhã, à hora do Angelus, o pequeno sino da igreja repicando com toda a sua animação despertou as senhoras que habitualmente dormiam toda a manhã, seu único repouso das fadigas nocturnas. Os camponeses da aldeia já estavam a pé. As mulheres da terra andavam apressadamente de porta em porta, conversando animadamente, transportando cuidadosamente vestidos curtos de musselina engomados como se fossem de cartão, ou círios imensos, com um nó de seda franjada de dourado a meio, e sulcos de cera a indicar o lugar da mão. O sol já alto luzia num céu bem azul que conservava no horizonte uma coloração um tanto rosada, como se fosse um vestígio enfraquecido da aurora. Diante das suas casas passeavam-se famílias de galinhas; e, aqui e além, um galo negro de pescoço luzidio erguia a cabeça coberta de púrpura, batia as asas e soltava ao vento o seu canto de cobre repetido pelos outros galos. Chegavam carros das comunas próximas, que descarregavam junto das portas as altas normandas de vestidos escuros, com o lenço cruzado no peito e preso por uma jóia de prata secular. Os homens tinham envergado a bata azul por cima da sobrecasaca nova ou do velho fato de tecido verde com as duas abas cruzadas. Quando os cavalos foram para a cavalariça, viu-se assim ao longo da rua principal uma dupla linha de carripanas rústicas, charrettes, cabriolés, tilburys, carros de bancos corridos, viaturas de todas as formas e idades, caídas de nariz ou com a traseira no chão e os varais erguidos para o céu. Em casa do marceneiro vivia-se uma actividade de colmeia. As senhoras, de corpete e saia, com o cabelo caído sobre as costas, uns cabelos magros e curtos que se diriam baços e corroídos pela idade, tratavam de vestir a menina. A pequena, de pé em cima de uma mesa, não se mexia, enquanto a senhora Tellier dirigia os movimentos do seu batalhão volante. Lavaram-na, pentearam-na, arranjaram-lhe o cabelo, vestiram- na e, servindo-se de uma multidão de alfinetes, orientaram as pregas do vestido, apertaram-lhe a cintura larga de mais, organizaram a elegância da toilette. A seguir, terminada esta operação, sentaram a paciente recomendando-lhe que não se movesse mais, e o bando agitado das mulheres
  • 15. correu a preparar-se também. A pequena igreja recomeçava os toques. O seu tilintar frágil de sino pobre erguia-se para se perder nos céus, como se fosse uma voz demasiado fraca logo afogada no imenso azul. Os comungantes saíam das portas, encaminhavam-se para o edifício comunal onde se alojavam as duas escolas e a câmara, e que se situava numa das extremidades da povoação, enquanto a «casa de Deus» ocupava a outra ponta. Os pais, com roupas de festa, com caras de embaraço e com aqueles movimentos desajeitados dos corpos sempre dobrados sobre o trabalho, seguiam os respectivos rebentos. As raparigas desapareciam numa nuvem de tule nevado que parecia de natas batidas, enquanto os rapazinhos, que pareciam embriões de criados de café, com as cabeças untadas de brilhantina, caminhavam de pernas afastadas para não sujarem os calções pretos. Era uma glória para uma família quando um grande número de parentes vindos de longe rodeava a criança: por isso o triunfo do marceneiro foi completo. O regimento Tellier, com a patroa à cabeça, ia atrás de Constance; e com o pai a dar o braço à irmã, a mãe caminhando ao lado da Rafaela, a Fernanda com a Rosa e as duas Chancas juntas, o bando desdobrava-se majestosamente como um estado-maior em uniforme de gala. O efeito na aldeia foi fulminante. Na escola, as meninas arrumaram-se seguindo a touca da freirinha, e os rapazes o chapéu do professor, um belo homem que representava; e partiram atacando o princípio de um cântico. As crianças masculinas à cabeça estendiam as suas duas filas entre duas enfiadas de carros desatrelados, e as raparigas seguiam a mesma ordem; e como todos os habitantes, por uma questão de consideração, tinham deixado passar primeiro as senhoras da cidade, estas chegavam imediatamente a seguir às meninas, prolongando ainda mais a dupla linha da procissão, três à esquerda e três à direita, com as suas toilettes espaventosas como um estralejar de fogo-de-artifício. A sua entrada na igreja pôs a população em delírio. As pessoas apertavam-se umas contra as outras, viravam-se para trás, empurravam-se para ver melhor. E havia devotas que falavam quase em voz alta, estupefactas com o espectáculo daquelas senhoras mais agaloadas que as casulas do coro. O presidente da Câmara ofereceu o seu banco, o primeiro banco à direita a seguir ao coro, e a senhora Tellier foi lá sentar-se juntamente com a cunhada, a Fernanda e a Rafaela. A Rosa Pileca e as duas Chancas ocuparam o segundo banco na companhia do marceneiro. O coro da igreja estava cheio de crianças de joelhos, raparigas de um lado e rapazes do outro, e os longos círios que seguravam nas mãos pareciam lanças inclinadas em todos os sentidos. Diante da estante do coro, três homens de pé cantavam em plena voz. Prolongavam indefinidamente as sílabas do latim sonoro, eternizando os Amen com a-a indefinidos, que o serpentão mantinha com a sua nota monótona infinitamente sustentada, mugida pelo instrumento de cobre de vasta goela. A voz pontiaguda de uma criança dava a réplica, e de vez em quando um padre sentado numa estala e com um barrete quadrado na cabeça erguia-se, atabalhoava qualquer coisa e sentava-se outra vez, enquanto os três cantores recomeçavam, de olhos fitos no grande livro de cantochão aberto à sua frente e transportado pelas asas abertas de uma águia de madeira montada num eixo. Depois, fez-se silêncio. Toda a assistência, num só movimento, se ajoelhou, e surgiu o oficiante,
  • 16. velho, venerável, de cabelos brancos, inclinado sobre o cálice que trazia na mão esquerda. À sua frente caminhavam dois acólitos de toga vermelha, e atrás surgiu uma multidão de cantores de grossos sapatorros que se alinharam de ambos os lados do coro. Tilintou uma campainha no meio do pesado silêncio. Começava o ofício divino. O sacerdote circulava lentamente diante do tabernáculo de ouro, fazia genuflexões, salmodiava de voz quebrada, tremelicante de velhice, as orações preparatórias. Mal ele se calava, todos os cantores e o serpentão soltavam-se a uma só voz, e havia homens que cantavam também na igreja, numa voz menos forte, mais humilde, como devem cantar os assistentes. De repente jorrou para o céu o Kyrie eleison, impulsionado por todos os peitos e por todos os corações. Até da abóbada antiga, sacudida por esta explosão de gritos, caíram grãos de poeira e fragmentos de madeira roída de caruncho. O sol que iluminava as ardósias do tecto transformava a pequena igreja numa fornalha; e uma grande emoção, uma expectativa ansiosa, a aproximação do inefável mistério, apertavam o coração das crianças e formavam um nó na garganta das mães. O sacerdote, que se sentara por alguns momentos, tornou a subir para o altar e, de cabeça descoberta, apenas coberta pelos seus cabelos prateados, com gestos trementes, aproximava-se do acto sobrenatural. Virou-se para os fiéis e, de mãos estendidas para eles, pronunciou: «Orate, fratres», «Orai, meus irmãos.» Rezavam todos. O velho prior balbuciava agora baixinho as palavras misteriosas e supremas; a campainha tilintava repetidamente; a multidão prosternada chamava por Deus; as crianças desfaleciam numa ansiedade desmesurada. Foi então que a Rosa, de cabeça entre as mãos, se lembrou subitamente da sua mãezinha, da igreja da sua aldeia, da sua primeira comunhão. Julgou-se regressada àquele dia, quando era tão pequenina, enfiadinha no seu vestido branco, e desatou a chorar. A princípio chorou baixinho; as lágrimas lentas saíam-lhe das pálpebras, mas depois, com as recordações, a sua emoção aumentou e, de pescoço intumescido, com o peito a bater, soluçou. Puxara do lenço, enxugava os olhos, tapava o nariz e a boca para não gritar; mas foi em vão: saía-lhe da garganta uma espécie de estertor, e dois outros suspiros profundos, dilacerantes, lhe responderam: porque as suas duas vizinhas, curvadas junto dela, a Luísa e a Flora, apertadas pelas mesmas memórias longínquas, igualmente gemiam com torrentes de lágrimas. Mas como as lágrimas são contagiosas, a Madame, por sua vez, não tardou a sentir as pálpebras húmidas, e, virando-se para a cunhada, viu que todo o seu banco estava também a chorar. O sacerdote criava o corpo de Deus. As crianças já não eram capazes de pensar, atiradas por sobre as lajes por uma devoção ardente; e na igreja, de lugar em lugar, uma mulher, uma mãe, uma irmã, tomada pela estranha simpatia das emoções pungentes, e transtornada também por aquelas belas senhoras ajoelhadas que eram sacudidas por frémitos e soluços, inundava o lenço de chita aos quadrados e, com a mão esquerda, apertava violentamente o coração aos saltos. Tal como a fagulha que espalha o fogo num campo maduro, as lágrimas da Rosa e das suas companheiras invadiram num instante toda a multidão. Homens, mulheres, velhos, rapagões com blusas novas, em breve todos desatavam a soluçar, e sobre as respectivas cabeças parecia planar algo de sobre-humano, uma alma derramada, o sopro prodigioso de um ser invisível e todo-
  • 17. poderoso. Então, no coração da igreja, retiniu um pequeno toque: a freirinha, batendo no seu livrinho, dava o sinal da comunhão; e as crianças, tiritando de divina febre, aproximaram-se da sagrada mesa. Estava uma fila inteira ajoelhada. O velho prior, segurando na mão o cibório dourado, passava diante deles oferecendo-lhes entre dois dedos a hóstia sagrada, o corpo de Cristo, a redenção do mundo. Abriam a boca com espasmos, com trejeitos nervosos, de olhos fechados e palidez no rosto; e a longa toalha estendida debaixo dos seus queixos estremecia como água corrente. De repente passou pela igreja uma espécie de loucura, um rumor de multidão em delírio, uma tempestade de soluços com gritos abafados. Passou como aqueles golpes de vento que inclinam as florestas; e o padre permanecia de pé, imóvel, com uma hóstia na mão, paralisado pela emoção, dizendo de si para si: «É Deus, é Deus que está entre nós, que manifesta a sua presença, que desce pela minha voz ao seu povo ajoelhado.» E balbuciava orações atordoadas, sem atinar com as palavras, orações da alma, num furioso ímpeto para o céu. Acabou de dar a comunhão numa tal exaltação de fé que as pernas lhe desfaleciam debaixo do corpo, e quando ele próprio bebeu o sangue do seu Senhor, abismou-se num acto de agradecimento desvairado. Atrás dele, o povo acalmava-se a pouco e pouco. Os cantores, promovidos à dignidade da sobrepeliz branca, recomeçavam numa voz menos segura, ainda húmida; e o serpentão parecia também ele enrouquecido como se o próprio instrumento tivesse chorado. Então o padre, erguendo as mãos, fez-lhes sinal para se calarem, e passando entre as duas filas de comungantes perdidos em êxtases de felicidade, aproximou-se da grade do coro. A assembleia tinha-se sentado com um ruído de cadeiras, e agora toda a gente se assoava com força. Mal deram pelo prior fizeram silêncio e ele começou a falar num tom muito baixo, hesitante, velado: «Meus queridos irmãos, minhas queridas irmãs, meus meninos, do fundo do coração vos agradeço: acabais de me dar a maior alegria da minha vida. Senti que Deus descia sobre nós ao meu chamamento. Ele veio, estava ali, presente, Ele que enchia as vossas almas, que fazia transbordar os vossos olhos. Eu sou o mais velho sacerdote da diocese, mas sou também, hoje, o mais feliz. Aconteceu um milagre no meio de nós, um verdadeiro, um grande, um sublime milagre. Ao mesmo tempo que Jesus Cristo penetrava pela primeira vez no corpo destas crianças, o Espírito Santo, o pássaro celestial, o sopro de Deus, desceu sobre vós, apoderou-se de vós, agarrou-vos, curvados que estáveis como caniços dobrados pela brisa.» Depois, numa voz mais clara, voltando-se para os dois bancos onde se achavam as convidadas do marceneiro: «Obrigado sobretudo a vós, minhas queridas irmãs, que viestes de tão longe, e cuja presença no meio de nós, cuja fé visível, cuja piedade tão viva foram para todos um salutar exemplo. Vós sois a edificação da minha paróquia; a vossa emoção aqueceu os nossos corações; se não fôsseis vós, talvez este grande dia não tivesse tido este carácter verdadeiramente divino. Às vezes basta uma só ovelha de escol para decidir o Senhor a descer sobre o rebanho.» A voz faltava-lhe. Acrescentou: «É a graça que vos desejo. Assim seja.» E tornou a subir para o altar para terminar o ofício. Agora toda a gente tinha pressa de sair. Até as crianças se agitavam, cansadas de uma tão longa
  • 18. tensão espiritual. Além disso, tinham fome, e os pais iam saindo a pouco e pouco sem esperar pelo último evangelho, para terminar os preparativos da refeição. Houve barafunda à saída, uma barafunda ruidosa, uma algazarra de vozes berrantes onde cantava o sotaque normando. A população formava duas filas e, quando apareceram as crianças, cada família correu para a sua. Constance viu-se agarrada, rodeada, beijada por todo o grupo de mulheres. A Rosa, sobretudo, não se cansava de a abraçar. Por fim, pegou-lhe numa das mãos e a senhora Tellier apoderou-se da outra; a Rafaela e a Fernanda soergueram a comprida saia de musselina para não a deixarem arrastar pelo pó; a Luísa e a Flora fechavam a marcha com a senhora Rivet; e a criança, recolhida, inteiramente penetrada pelo Deus que levava dentro de si, pôs-se a caminho no meio daquela escolta de honra. O festim era servido na oficina em cima de longas tábuas apoiadas em travessas. Pela porta aberta, que dava para a rua, entrava toda a alegria da aldeia. Havia festa por toda a parte. Através de todas as janelas viam-se mesas compridas de gente endomingada e das casas saíam gritos com uma pontinha de pinga. Os camponeses, em mangas de camisa, bebiam copos cheios de cidra pura e no meio de cada grupo distinguiam-se duas crianças, aqui duas meninas, além dois rapazes, comendo numa das duas famílias. Às vezes, sob o pesado calor do meio-dia, um carro de bancos corridos atravessava a terra ao trote saltitante de um velho garrano, e o homem de bata que o conduzia lançava um olhar invejoso a toda aquela comezaina ostentada. Em casa do marceneiro a jovialidade mantinha um certo ar de reserva, um resto da emoção da manhã. Só Rivet começava a ficar toldado e bebia de mais. A senhora Tellier via as horas a todo o momento, visto que para não fechar dois dias seguidos era preciso apanhar o comboio das 3h55, que as poria em Fécamp à tardinha. O marceneiro fazia todos os esforços para desviar as atenções e ficar com a sua gente até ao dia seguinte; mas a Madame não se deixava distrair e nunca brincava em negócios. Logo que tomaram o café, ordenou às suas hóspedes que se preparassem depressa; e depois, virando-se para o irmão, disse: «Quanto a ti, vais mandar aparelhar imediatamente»; e ela própria foi terminar os seus últimos preparativos. Quando tornou a descer, a cunhada estava à sua espera para lhe falar da pequena; e desenrolou-se uma longa conversa em que nada ficou resolvido. A camponesa desfazia-se em delicadezas, falsamente enternecida, e a senhora Tellier, que tinha a criança sentada nos seus joelhos, não se comprometia com nada, prometia vagamente; haviam de tratar dela, tinham tempo, aliás haviam de tornar a ver-se. Entretanto o carro não chegava e as mulheres não desciam. Ouviam-se até lá em cima grandes gargalhadas, empurrões, gritos soltos, bater de palmas. Então, enquanto a mulher do marceneiro se dirigia à cavalariça para ver se o carro estava pronto, a Madame acabou por subir. Rivet, muito bêbado e meio despido, tentava, mas em vão, violentar a Rosa, que desfalecia de riso. As duas Chancas seguravam-no pelos braços e tentavam acalmá-lo, chocadas com aquela cena depois da cerimónia da manhã; mas a Rafaela e a Fernanda excitavam-no, torcendo-se de riso,
  • 19. agarradas uma à outra; e soltavam gritos agudos perante cada um dos esforços inúteis do bêbado. O homem, furioso, de cara afogueada, todo esgargalado, sacudindo em esforços violentos as duas mulheres que o agarravam, puxava com todas as suas forças a saia da Rosa, balbuciando: «Porcalhona, então não queres?» Mas a Madame, indignada, precipitou-se, segurou os ombros do irmão e empurrou-o com tanta violência que este foi esbarrar contra a parede. Um minuto depois ouviram-no no pátio a despejar água sobre a cabeça; e quando reapareceu na tipóia já tinha acalmado. V oltaram a fazer o caminho da véspera, e o cavalinho branco tornou a partir no seu andamento vivo e dançante. Sob o sol ardente, revelava-se a alegria adormecida durante a refeição. As raparigas divertiam-se agora com os solavancos da carripana, até empurravam as cadeiras das vizinhas, desatavam a rir a todo o instante, aliás animadas pelas vãs tentativas de Rivet. Uma luz louca enchia os campos, uma luz que cintilava nos olhos; e as rodas levantavam dois sulcos de poeira que esvoaçavam longamente atrás do carro na estrada principal. De repente, a Fernanda, que gostava de música, pediu à Rosa que cantasse; e esta começou galhardamente o Padre Gordo de Meudon. Mas logo a Madame a obrigou a calar-se, por achar aquela canção pouco conveniente para aquele dia. E acrescentou: «Canta antes qualquer coisa do Béranger.» Então a Rosa, depois de alguns segundos de hesitação, fez a sua escolha e com a voz desgastada começou A Avó: A minha avó no seu dia de anos Tinha bem bebido depois da prova E pôs-se a cantar com voz de soprano: Quantos namorados me amaram em nova! Ai que saudade Do braço roliço, Da minha beldade, Do gozo e do viço! E o coro das raparigas, dirigido pela própria Madame, repetiu: Ai que saudade Do braço roliço, Da minha beldade, Do gozo e do viço! «Bem achada!», declarou Rivet, ateado pela cadência; e a Rosa continuou imediatamente: Ai mãezinha, não tinha juízo! — Não, só aos quinze ganhei o descaro e então conheci o meu paraíso e passava as noites em claro.
  • 20. Berraram todos juntos o refrão; e Rivet batia o pé no varal, batia o compasso com as rédeas nas costas do garrano branco que, como se ele próprio fosse levado pelo entusiasmo do ritmo, passou ao galope, um galope tempestuoso, que precipitou as senhoras em montes umas por cima das outras no fundo do carro. Endireitaram-se a rir como loucas. E a canção continuou, vociferada até mais não através dos campos, sob o céu ardente, no meio das culturas a amadurecer, ao ritmo enraivecido do cavalicoque que se embalava agora de cada vez que voltava o refrão e que de todas as vezes fazia os seus cem metros de galope para grande alegria dos passageiros. Aqui e além, um ou outro trabalhador que partia pedras endireitava-se e espreitava através da sua máscara de arame aquela carripana excitada e aos berros arrastada no meio do pó. Quando desceram diante da estação, o marceneiro enterneceu-se: «É uma pena irem-se já embora, muito a gente se tinha divertido!» A Madame respondeu-lhe sensatamente: «Tudo tem o seu tempo, não podemos divertir-nos sempre.» Então uma ideia iluminou o espírito de Rivet: «Olha», disse ele, «vou eu ver-vos a Fécamp no mês que vem.» E olhou para a Rosa com um ar manhoso, com olhos brilhantes e brejeiros. «Vamos», concluiu a Madame, «há que ter juízo; tu vens se quiseres, mas não para fazer asneiras.» Ele não respondeu, e como se ouvia o comboio a apitar, começou imediatamente a beijar toda a gente. Quando chegou a vez da Rosa, obstinou-se em encontrar-lhe a boca, que ela, a rir por trás dos lábios fechados, lhe furtava de todas as vezes num rápido movimento para os lados. Ele segurava-a nos braços, mas não era capaz de conseguir o que queria, incomodado pelo grande chicote que conservara na mão e que, nos seus esforços, agitava desesperadamente atrás das costas da rapariga. «Passageiros para Ruão, embarquem!», gritou o empregado. Elas subiram. Soou uma aguda apitadela, imediatamente repetida pelo assobio poderoso da máquina, que cuspiu ruidosamente o seu primeiro jacto de vapor enquanto as rodas começavam a rodar um pouco com visível esforço. Rivet, deixando o interior da estação, correu para a barreira para ver a Rosa mais uma vez; e quando a carruagem cheia daquela mercadoria humana passava à sua frente, desatou a fazer estalar o seu chicote aos saltos e cantando com todas as suas forças: Ai que saudade Do braço roliço, Da minha beldade, Do gozo e do viço! E ficou-se a contemplar um lenço branco que alguém agitava. 3. Dormiram durante toda a viagem, dormiram o sono pacífico das consciências satisfeitas; e quando regressavam, renovadas, retemperadas para o trabalho de cada noite, a Madame não pôde deixar de
  • 21. dizer: «Tanto faz, já estava farta daquela casa.» Cearam rapidamente e, depois de tornarem a vestir o fato de combate, esperaram pelos clientes habituais; e o lanternim aceso, o lanternim de Nossa Senhora, indicava a quem passasse que o rebanho regressara ao aprisco. Num abrir e fechar de olhos a notícia espalhou-se, não se sabe como, não se sabe através de quem. O senhor Philippe, o filho do banqueiro, levou mesmo a sua complacência ao extremo de prevenir por portador o senhor Tournevau, preso pela família. O negociante de sal tinha precisamente vários primos a jantar, como todos os domingos, e estavam a tomar o café quando apareceu um homem com uma carta na mão. O senhor Tournevau, muito comovido, rasgou o sobrescrito e empalideceu: só lá estavam dentro estas palavras escritas a lápis: «Recuperado o carregamento de bacalhau; navio entrou no porto; bom negócio para si. Venha depressa.» Ele remexeu nas algibeiras, deu vinte cêntimos ao portador e, corando de repente até às orelhas, disse: «Tenho de sair.» Então estendeu à mulher o bilhete lacónico e misterioso. Tocou a campainha e quando a criada apareceu pediu: «O meu sobretudo, depressa, depressa, e o meu chapéu.» Mal chegou à rua desatou a correr assobiando uma cançoneta e o caminho pareceu-lhe duas vezes mais comprido, de viva que era a sua impaciência. O estabelecimento Tellier tinha um ar de festa. No rés-do-chão as vozes turbulentas dos homens do porto faziam uma algazarra ensurdecedora. A Luísa e a Flora não sabiam a quem responder, ora bebiam com um, ora bebiam com outro, mereciam mais que nunca a alcunha de «as duas Chancas». Chamavam-nas de todos os lados ao mesmo tempo; já não davam conta do recado, e a noite anunciava-se-lhes muito trabalhosa. O cenáculo do primeiro andar já estava cheio às nove horas. O senhor Vasse, o juiz do tribunal do comércio, o apaixonado por excelência, mas platónico, da Madame, conversava baixinho com ela a um canto; e sorriam ambos como se estivessem prestes a firmar um acordo. O senhor Poulin, o antigo presidente da Câmara, tinha a Rosa encavalitada nas suas pernas; e ela, juntinha a ele nariz com nariz, passeava as mãos curtas pelas suíças brancas do homenzinho. Um pedacinho de coxa à mostra aparecia sob a saia arregaçada de seda amarela, cortando o tecido preto das calças dele, e as meias encarnadas estavam apertadas por umas ligas azuis, presente do caixeiro-viajante. A enorme Fernanda, estendida no sofá, tinha ambos os pés assentes na barriga do senhor Pimpesse, o recebedor dos impostos, e o tronco recostado no colete do jovem senhor Philippe, cujo pescoço rodeava com a mão direita, enquanto na esquerda segurava um cigarro. A Rafaela parecia estar em negociações com o senhor Dupuis, o agente de seguros, e acabou a conversa com estas palavras: «Sim, querido, esta noite, para mim está bem.» E a seguir, dando sozinha um passo de valsa rápido pelo salão, gritou: «Esta noite, tudo o que quiserem.» A porta abriu-se de repente e apareceu o senhor Tournevau. Estalaram gritos entusiastas: «Viva o Tournevau!» E a Rafaela, que continuava a valsar, foi-lhe cair no peito. Ele agarrou-a num amplexo formidável e, sem dizer palavra, levantando-a do chão como uma pena, atravessou o salão, chegou à porta do fundo e, por entre aplausos, desapareceu na escada que dava acesso aos quartos com o seu fardo vivo.
  • 22. A Rosa, que estava inflamando o antigo presidente da Câmara, beijando-o sucessivamente e puxando-lhe pelas duas suíças ao mesmo tempo para lhe manter a cabeça direita, aproveitou o exemplo: «Vá, faz como ele», disse ela. Então o homenzinho levantou-se e, recompondo o colete, foi atrás da rapariga remexendo na algibeira onde lhe dormia o dinheiro. A Fernanda e a Madame ficaram sozinhas com os quatro homens, e o senhor Philippe exclamou: «Eu pago champanhe: senhora Tellier, mande buscar três garrafas.» Então a Fernanda, abraçando-o com força perguntou-lhe ao ouvido: «Põe-nos a dançar, vá lá, não te importas?» Ele levantou-se e, sentando-se diante da espineta secular adormecida a um canto, fez sair uma valsa do ventre gemebundo da máquina, uma valsa rouca, lacrimejante. A corpulenta rapariga enlaçou o recebedor dos impostos, a Madame abandonou-se nos braços do senhor Vasse; e os dois pares rodopiaram trocando beijinhos. O senhor Vasse, que em tempos dançara em bailes da sociedade, fazia habilidades, e a Madame olhava para ele com olhos cativados, com aqueles olhos que respondem «sim», um «sim» mais discreto e mais delicioso que uma palavra! O Frédéric trouxe o champanhe. Saltou a primeira rolha e o senhor Philippe tocou o arranque de uma quadrilha. Os quatro dançarinos marcharam-na à maneira mundana, conforme às regras, com dignidade, ademanes, inclinações e saudações. E depois começaram a beber. Então o senhor Tournevau reapareceu, satisfeito, aliviado, radioso. Exclamou: «Não sei o que tem a Rafaela, mas esta noite está perfeita.» E então, como lhe estendiam um copo, esvaziou-o de um trago ao mesmo tempo que murmurava: «Arre, não há luxo como este!» O senhor Philippe iniciou imediatamente uma polca agitada, e o senhor Tournevau saltou com a bela judia, que segurava no ar, sem deixar que os pés lhe tocassem no chão. O senhor Pimpesse e o senhor Vasse tinham-se lançado num novo entusiasmo. De vez em quando um dos pares detinha-se junto da lareira para emborcar uma taça de vinho espumoso; e aquela dança ameaçava eternizar-se, quando a Rosa entreabriu a porta com uma vela na mão. Estava despenteada, de chinelas, em camisa, muito animada, muito vermelha: «Quero dançar», gritou. A Rafaela perguntou: «E o teu velho?» A Rosa desmanchou-se a rir: «Ele? Já está a dormir. Dorme logo.» Agarrou-se ao senhor Dupuis, que ficara desocupado no divã, e a polca recomeçou. Mas as garrafas estavam vazias: «Eu pago uma», declarou o senhor Tournevau. «Eu também», anunciou o senhor Vasse. «E eu também», concluiu o senhor Dupuis. Então toda a gente bateu palmas. Estava tudo a organizar-se, estava a tornar-se um verdadeiro baile. De vez em quando, até, a Luísa e a Flora subiam às pressas, davam rapidamente uma voltinha de valsa, enquanto os respectivos clientes, lá em baixo, se impacientavam; e depois regressavam a correr ao seu café, com o coração inchado de nostalgias. À meia-noite ainda se dançava. Por vezes uma das raparigas desaparecia, e quando a procuravam para fazer par percebia-se de repente que também faltava um dos homens. «Então donde vem você?», perguntou graciosamente o senhor Philippe, precisamente no momento em que o senhor Pimpesse regressava com a Fernanda. «Venho de ver dormir o senhor Poulin», respondeu o recebedor dos impostos. A frase fez um enorme êxito; e todos, cada um por sua vez, subiam para ir ver dormir o senhor Poulin com uma ou outra das meninas, que nessa noite se
  • 23. mostraram de uma complacência inconcebível. A Madame fechava os olhos: e tinha pelos cantos longas conversas privadas com o senhor Vasse, como que para resolver os últimos pormenores de um negócio já feito. Por fim, à uma da manhã, os dois homens casados, o senhor Tournevau e o senhor Pimpesse, declararam que se retiravam e quiseram pagar a conta. Só fizeram a conta ao champanhe e, mais ainda, a seis francos a garrafa em vez de dez, que era o preço habitual. E quando eles se espantaram com aquela generosidade, a Madame, radiosa, respondeu-lhes: «Nem todos os dias são de festa.» (Maio de 1881)
  • 24. Uma Aventura Parisiense Haverá na mulher sentimento mais vivo que a curiosidade? Ah!, saber, conhecer, chegar àquilo que se sonhou! Do que seria ela capaz para o conseguir! Uma mulher, quando a sua curiosidade impaciente desperta, será capaz de cometer todas as loucuras, todas as imprudências, todas as audácias, não recuará diante de nada. Falo das mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas daquele espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos estão cheios: um, de inquietação feminina sempre agitada; outro, de manha colorida de boa- fé, daquela astúcia dos devotos, sofisticada e temível; e o último, por fim, de canalhice encantadora, de refinado embuste, de deliciosa perfídia, de todas aquelas perversas qualidades que levam ao suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que deixam os outros encantados. Esta cuja aventura pretendo contar era uma pobre provinciana, até então insipidamente honesta. A sua vida, aparentemente calma, decorria no lar, entre um marido muito ocupado e dois filhos, que ela educava como mulher irrepreensível que era. Mas o seu coração fremia de uma insaciada curiosidade, de uma sofreguidão de desconhecido. Pensava em Paris incessantemente e lia avidamente os jornais mundanos. A descrição das festas, das toilettes, das alegrias, punha-lhe os desejos a ferver; mas o que sobretudo misteriosamente a perturbava eram os ecos cheios de subentendidos, os véus mal soerguidos em frases hábeis, e que deixam entrever horizontes de prazeres culposos e devastadores. Lá de longe, via Paris numa apoteose de luxo magnífico e corrupto. E durante as longas noites de sonhos, embalada pelo ressonar compassado do marido que dormia a seu lado, deitada de costas, com um lenço na cabeça, pensava naqueles homens conhecidos cujos nomes aparecem nas primeiras páginas dos jornais como sendo grandes estrelas num céu escuro; e imaginava a vida entontecedora que levavam, com constantes deboches, orgias à antiga assustadoramente voluptuosas e refinamentos de sensualidade tão complicados que nem sequer era capaz de imaginá-los. Os bulevares pareciam-lhe ser uma espécie de abismo das paixões humanas; e todas as suas casas tinham de certeza lá dentro prodigiosos mistérios de amor. Ela, porém, sentia-se envelhecer. Envelhecia sem nada ter conhecido da vida, a não ser aquelas ocupações regulares, odiosamente monótonas e banais que constituem, segundo se diz, a felicidade do lar. Era bonita ainda, conservada naquela existência tranquila como um fruto de Inverno num armário fechado; mas roída, devastada, transtornada por secretos ardores. Perguntava a si mesma se haveria de morrer sem ter conhecido todas aquelas exaltações de embriaguez condenatória, sem se ter lançado inteirinha uma vez, ao menos uma só vez, naquela onda de volúpias parisienses. Com uma longa perseverança, preparou uma viagem a Paris, inventou um pretexto, fez-se convidada por uns parentes, e, como o marido não podia acompanhá-la, foi sozinha. Mal chegou, foi capaz de imaginar razões que, se fosse preciso, lhe permitiriam ausentar-se dois dias ou, antes, duas noites, na melhor das hipóteses, por ter encontrado, dizia ela, uns amigos que viviam no campo perto da cidade.
  • 25. E procurou. Percorreu os bulevares sem ver nada, a não ser o vício errante e numerado. Sondou com os próprios olhos os grandes cafés, leu atentamente a pequena correspondência do Figaro que lhe surgia em cada manhã como um toque a rebate, uma chamada ao amor. E nunca nada a punha na pista daquelas grandes orgias de artistas e de actrizes; nada lhe revelava os templos daqueles deboches que imaginava fechados por uma palavra mágica como a caverna das Mil e Uma Noites e aquelas catacumbas de Roma, onde se oficiavam em segredo os mistérios de uma religião perseguida. Os parentes, pequenos burgueses, não podiam dar-lhe a conhecer nenhum daqueles homens conhecidos cujos nomes lhe zumbiam na cabeça; e, desesperada, pensava já em não pensar mais nisso, quando o acaso veio em seu auxílio. Um dia, descia ela a rua da Chaussée-d’Antin, parou a contemplar uma loja cheia daqueles bibelôs japoneses tão coloridos que põem nos olhos uma espécie de alegria. Estava examinando os pequenos marfins cómicos, os grandes vasos de esmaltes flamejantes, os estranhos bronzes, e eis que ouviu, no interior da loja, o patrão que, com grandes reverências, mostrava a um senhor gordo e baixo, de cabeça calva e queixo cinzento, um enorme mono barrigudo, peça única, dizia ele. E a cada frase do comerciante, o nome do amador, um nome célebre, soava como um toque de clarim. Os outros clientes, mulheres novas, senhores elegantes, contemplavam com uma olhadela furtiva e rápida, com um olhar conveniente e manifestamente respeitoso, o famoso escritor que, por seu lado, contemplava apaixonadamente o mono de porcelana. Eram tão feios um como o outro, feios como dois irmãos saídos da mesma costela. O comerciante dizia: «Por ser para si, senhor Jean Varin, deixo-o por mil francos; é precisamente o que ele me custa. Para qualquer outra pessoa seriam mil e quinhentos; mas eu tenho consideração pela minha clientela de artistas e faço-lhe preços especiais. Vêm todos à minha casa, senhor Jean Varin. Ainda ontem o senhor Busnach me comprou uma grande taça antiga. No outro dia vendi dois tocheiros como estes (são ou não são uma beleza?) ao senhor Alexandre Dumas. Olhe, essa peça que aí tem, se o senhor Zola a visse já estaria vendida, senhor Varin.» O escritor, muito perplexo, hesitava, solicitado pelo objecto, mas a pensar no montante de dinheiro; e dava tanta atenção aos olhares como se estivesse sozinho num deserto. Ela tinha entrado temerosa, de olhos descaradamente postos nele, e nem sequer perguntava a si mesma se era belo, elegante ou jovem. Era Jean Varin em pessoa. Jean Varin! Depois de uma longa luta, de uma dolorosa hesitação, ele poisou o vaso em cima de uma mesa. «Não, é caro de mais.» O comerciante redobrava de eloquência. «Oh, senhor Jean Varin, caro de mais? Isto vale à vontade uns dois mil francos!» O homem de letras replicou tristemente sem deixar de olhar para o homenzinho de olhos de esmalte: «Não digo que não; mas é caro de mais para mim.» Então, ela, tomada de uma audácia enlouquecida, avançou: «Para mim, quanto vale este bonequinho?» O comerciante, surpreendido, replicou: «Mil e quinhentos francos, minha senhora.»
  • 26. «Fico com ele.» O escritor, que até então nem sequer tinha dado por ela, virou-se de repente e olhou-a dos pés à cabeça com olhos semicerrados de observador; depois, com olhos de conhecedor, observou-a minuciosamente. Era encantadora, animada, estava de súbito iluminada por aquela chama que até então estava adormecida dentro dela. E além disso uma mulher que compra assim um bibelô por mil e quinhentos francos não é uma qualquer. Ela teve então um gesto de sedutora delicadeza: virando-se para ele, com a voz a tremer, disse-lhe: «Desculpe, cavalheiro, eu fui decerto um pouco precipitada; provavelmente o senhor ainda não tinha dito a sua última palavra.» Ele inclinou-se: «Já a tinha dito, minha senhora.» E logo ela, muito emocionada: «Enfim, meu caro senhor, hoje ou mais tarde, se lhe convier mudar de opinião, este bibelô é seu. Eu só o comprei porque ele lhe tinha agradado.» Ele sorriu, visivelmente lisonjeado. «Quer dizer que me conhece?», disse. Então ela falou-lhe da sua admiração, citou-lhe as obras, foi eloquente. Para conversar, ele tinha-se encostado a um móvel, enquanto mergulhava nela os seus olhos penetrantes. Procurava adivinhá-la. De vez em quando, o lojista, satisfeito por ter na mão aquela publicidade viva, como tinham entrado novos clientes gritava na outra extremidade da loja: «Ora veja-me isto, senhor Jean Varin, não é belo?» Então todas as cabeças se endireitavam, e ela estremecia de prazer por ser vista assim a conversar intimamente com um ilustre personagem. Finalmente inebriada, foi então capaz de uma audácia suprema, como a dos generais que vão proceder ao assalto. «Caro senhor, disse ela, dê-me um grande, um grande prazer. Permita-me que lhe ofereça este mono como recordação de uma mulher que o admira apaixonadamente e que o senhor conheceu apenas durante dez minutos.» Ele recusou. Ela insistia. Ele resistiu, muito divertido, rindo com vontade. Ela, obstinada, disse-lhe: «Muito bem! Vou entregá-lo já em sua casa; onde é que mora?» Ele recusou-se a dar-lhe a morada; mas ela ficou a conhecê-la porque a pediu ao lojista e, uma vez paga a compra, escapuliu-se e foi direita a um trem de praça. O escritor correu para a alcançar, pois não queria expor-se a receber aquele presente que não saberia a quem atribuir. Apanhou-a quando ela ia a subir para a tipóia e precipitou-se, quase caiu por cima dela, empurrado pelo carro que começava a andar; e então sentou-se a seu lado, muito aborrecido. Por mais que ele pedisse, que insistisse, ela mostrou-se intratável. Quando iam a chegar diante da porta, ela apresentou as suas condições: «Aceito não lhe entregar isto se o senhor cumprir hoje todas as minhas vontades.» A coisa pareceu-lhe tão cómica que ele aceitou. Ela perguntou: «Habitualmente que é que faz a esta hora?» Depois de alguma hesitação ele respondeu: «Ando a passear.» Então, em voz resoluta, ela ordenou ao cocheiro: «Para o Bosque!» E partiram para lá.
  • 27. Ele foi obrigado a indicar-lhe os nomes de todas as mulheres conhecidas, sobretudo as devassas, com pormenores íntimos acerca delas, da sua vida, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus vícios. Caiu a tarde. «Que faz o senhor todos os dias a esta hora?», disse ela. Ele respondeu a rir: «Tomo absinto.» Então, com uma expressão séria, ela acrescentou: «Então, meu caro senhor, vamos tomar absinto.» Entraram num grande café do bulevar que ele frequentava e onde foi encontrar confrades. Apresentou-lhos a todos. Ela estava louca de alegria. E na sua cabeça ressoavam incessantemente estas palavras: «Até que enfim! Até que enfim!» O tempo passava e ela perguntou: «São horas do seu jantar?» Ele respondeu: «Pois são, minha senhora.» «Então, caro senhor, vamos jantar.» E à saída do café Bignon: «E à noite, que é que faz?», perguntou ela. Ele olhou-a fixamente: «Depende. Às vezes vou ao teatro.» «Muito bem, vamos ao teatro.» Entraram no Vaudeville, com entradas de favor graças a ele, e, glória suprema, toda a sala a viu ao lado dele, sentada no balcão. Quando o espectáculo acabou ele beijou-lhe galantemente a mão: «Resta-me, minha senhora, agradecer-lhe este dia delicioso…» Ela interrompeu-o: «A estas horas que é que faz todas as noites?» «Ora… bem… volto para casa.» Ela desatou a rir, num riso que tremia. «Pois bem, caro senhor, vamos para sua casa.» E não falaram mais. Ela estremecia de vez em quando, sacudida dos pés à cabeça, com vontade de fugir e vontade de ficar, mas no fundo do coração com um muito firme desejo de ir até ao fim. Na escada, agarrava-se ao corrimão, de tão viva que era a emoção que sentia; e ele subia à frente, ofegante, com um fósforo aceso na mão. Quando chegou ao quarto ela despiu-se muito depressa e deslizou para dentro da cama sem dizer palavra; e ficou à espera, encolhida contra a parede. Mas era uma mulher simples, tanto quanto o pode ser a esposa legítima de um notário da província, e ele mais exigente que um paxá de três caudatários. Não se entenderam em nada. Então ele adormeceu. A noite passou-se, apenas perturbada pelo tiquetaque do relógio, enquanto ela, imóvel, pensava nas noites conjugais; e sob os raios amarelados de uma lanterna chinesa olhava, pesarosa, para aquele homenzinho de costas, ao seu lado, redondinho, cuja barriga soerguia o lençol como uma bola cheia de gás. Ressonava com o ruído de um tubo de órgão, fungava prolongadamente, com estrangulamentos cómicos. Os seus vinte cabelos aproveitavam o repouso para se arrepiarem esquisitamente, fartos da sua longa permanência imóvel por cima da cabeça nua cujos estragos era sua obrigação tapar. E de um canto da boca entreaberta escorria-lhe um fio de saliva. A aurora insinuou por fim um pouco de luz do dia por entre os cortinados corridos. Ela levantou-se, vestiu-se sem ruído e já tinha a porta meio aberta quando fez ranger a fechadura e ele acordou a esfregar os olhos.
  • 28. Deixou-se ficar alguns segundos até recuperar completamente a consciência, e depois, quando recordou toda a aventura, perguntou: «Então, vai-se embora?» Ela permanecia de pé, confusa. Balbuciou: «Pois, já é de manhã.» Ele sentou-se na cama: «Bem, disse, é a minha vez de ter qualquer coisa a pedir-lhe.» Ela não respondia. Ele continuou: «Meu Deus, a senhora desde ontem que me deixa espantado. Seja franca, confesse-me porque é que fez isto tudo; é que eu não estou a perceber nada.» Ela aproximou-se devagarinho, a corar como uma virgem. «Eu quis conhecer… o… o vício… e, pois é… bem… não tem graça nenhuma.» Fugiu, desceu a escada, precipitou-se para a rua. O exército dos varredores varria. Varriam os passeios, as calçadas, empurrando todas as imundícies para a valeta. Com o mesmo gesto regular, com um gesto de ceifeiros nos prados, empurravam as lamas em semicírculo à sua frente; e, de rua em rua, ela ia deparando com eles como fantoches montados, caminhando automaticamente movidos pela mesma mola. E pareceu-lhe que também nela acabavam de varrer qualquer coisa, de empurrar para a valeta, para o esgoto, os seus sonhos excessivamente exaltados. Voltou a casa ofegante, gelada, guardando apenas na cabeça a sensação daquele gesto das vassouras que limpam Paris de manhãzinha. E, mal chegou ao seu quarto, caiu em soluços. (Dezembro de 1881)
  • 29. A Ferrugem Ele tivera durante toda a sua vida uma só paixão inesgotável: a caça. Caçava todos os dias, desde manhã até ao entardecer, com furioso entusiasmo. Caçava de Inverno e de Verão, tanto na Primavera como no Outono, no brejo, quando os regulamentos não deixavam caçar na planície e nas matas; caçava a tiro, com galgos, com cão de parar, com cão de correr, à espera, com espelho, com furão. Só sabia falar de caça, sonhava com a caça, repetia constantemente: «Que infeliz deve ser quem não gosta de caça!» Tinha agora uns cinquenta anos bem medidos, estava bem de saúde, bem conservado embora calvo, um nadinha gordo mas vigoroso; e rapava toda a parte de cima da boca para pôr os lábios bem à mostra e conservar livre o desenho da boca, para poder tocar a trompa de caça com maior facilidade. Na região apenas o designavam pelo nome próprio: senhor Hector. O seu nome completo era barão Hector Gontran de Coutelier. Vivia no meio das matas num pequeno solar que herdara e, embora conhecesse toda a nobreza do departamento e se encontrasse com todos os respectivos representantes masculinos nas caçadas, apenas frequentava com assiduidade uma família: os Courville, uns vizinhos amáveis, aliados da sua família havia séculos. Nessa casa era recebido com todas as atenções, era amado, era apaparicado, e costumava dizer: «Se eu não fosse caçador, gostaria de nunca vos abandonar.» O senhor de Courville era seu amigo e colega desde a infância. Fidalgo agricultor, vivia tranquilamente com a mulher, com a filha e com o genro, o senhor de Darnetot, que não fazia nada a pretexto de se entregar a estudos históricos. O barão de Coutelier ia muitas vezes jantar a casa daqueles amigos, sobretudo para lhes contar os tiros da sua espingarda. Tinha longas histórias de cães e de furões, dos quais falava como de personagens importantes que tivesse conhecido bem. Revelava-lhes os pensamentos, as intenções, analisava-os, explicava-os: «Quando o Médor viu que a galinhola o obrigava a correr tanto, pensou lá com ele: “Espera aí, espertalhona, que a gente já vai ver quem se fica a rir.” Então, fazendo-me sinal com a cabeça para me ir colocar na esquina do campo de trevo, pôs-se a farejar de viés, com grande ruído, remexendo as ervas para empurrar a caça para a esquina donde já não poderia escapar. Tudo aconteceu como ele tinha previsto: a galinhola, de repente, deu consigo na borda do campo. Não podia avançar sem ficar a descoberto. E pensou: “Fui apanhada, que maçada!”, e agachou-se. Então o Médor ficou parado a olhar para mim; eu fiz-lhe um sinal e ele avança – Brrru! – a galinhola desata a voar – meto a arma à cara – pã! – e ela cai; e o Médor, ao trazê-la, abanava o rabo a dizer- me: “Esta partida está ganha ou não, senhor Hector?”» Courville, Darnetot e as duas mulheres riam loucamente destas histórias pitorescas em que o barão punha toda a sua alma. Animava-se, agitava os braços, gesticulava com o corpo todo e, quando contava a morte da caça, ria um riso formidável e no fim perguntava sempre: «Não é boa, esta?» Se se falava de outra coisa deixava de ouvir e sentava-se sozinho a cantarolar fanfarras. E também, mal se fazia um silêncio entre duas frases, naqueles momentos de bruscas acalmias que entrecortam o
  • 30. rumor das palavras, ouvia-se de repente uma canção de caça: Taratátá, eu já vou lá! – que o barão entoava inchando as bochechas como se tivesse a trompa na boca. Jamais vivera senão para a caça e envelhecia sem o pressentir nem dar por isso. De repente, teve um ataque de reumatismo e ficou dois meses de cama. Quase morreu de tristeza e de tédio. Como não tinha criada e quem cozinhava para ele era um velho servidor, não conseguia nem cataplasmas quentes, nem pequenos cuidados, nem nada do que os doentes necessitam. O seu moço de cavalos foi o seu enfermeiro, e era um escudeiro que se aborrecia tanto como o patrão, dormindo de dia e de noite num cadeirão, enquanto o barão praguejava e se exasperava entre lençóis. As senhoras de Courville iam visitá-lo de vez em quando, e essas eram para ele horas de calma e de bem-estar. Elas preparavam-lhe a tisana, cuidavam do lume da lareira, serviam-lhe delicadamente o almoço, na beira da cama, e quando elas se despediam ele murmurava: «Meu Deus! Deviam mesmo vir viver para aqui.» E elas riam-se com vontade. Como estava melhor e recomeçava a caçar no brejo, foi uma noite jantar a casa dos amigos; mas já não tinha o mesmo entusiasmo nem a mesma jovialidade. Era torturado incessantemente por uma ideia, o receio de ser de novo assaltado pelas dores antes da abertura. Quando estava a despedir-se, enquanto as mulheres o embrulhavam num xaile e lhe atavam um lenço à roda do pescoço, e ele deixava que o fizessem pela primeira vez na sua vida, murmurou num tom decidido: «Se aquilo me voltar, sou um homem tramado.» Quando ele saiu a senhora de Darnetot disse à mãe: «O que era preciso era casar o barão.» Toda a gente ergueu os braços ao alto. Como é que ainda não tinham pensado nisso? Passaram o serão a procurar entre as viúvas que conheciam, e a escolha fixou-se numa mulher de quarenta anos, ainda bonita, bastante rica, de belo humor e boa saúde, que era a senhora Berthe Vilers. Convidaram-na a passar um mês no solar. Ela vivia uma vida aborrecida. E veio. Era animada e jovial; o senhor de Coutelier agradou-lhe imediatamente. Divertia-se com ele como com um brinquedo vivo, e passava horas inteiras a interrogar-se sorrateiramente acerca dos sentimentos dos coelhos e das maquinações das raposas. Distinguia gravemente as maneiras de ver diferentes dos diversos animais, e atribuía-lhes planos e raciocínios subtis tal como aos homens que conhecia. A atenção que ela lhe prestava encantou-o e, uma tarde, para lhe demonstrar a sua estima, pediu-lhe que viesse caçar, convite que nunca havia feito a uma mulher. O convite pareceu tão esquisito que ela aceitou. Foi uma festa equipá-la: toda a gente colaborou, lhe ofereceu qualquer coisa e ela apareceu vestida à maneira de amazona, com botas, calções de homem, uma saia curta, um colete de veludo muito apertado no pescoço e um boné de criado dos cães. O barão parecia comovido como se fosse dar o seu primeiro tiro. Explicou-lhe minuciosamente a direcção do vento, as diversas paradas dos cães, a maneira de atirar à caça graúda; depois empurrou-a para um campo, seguindo-a passo a passo com a solicitude de uma ama que vê o seu bebé andar pela primeira vez. O Médor encontrou, rastejou, parou, ergueu a pata. O barão, atrás da sua aluna, tremia como varas verdes. Balbuciava: «Cuidado, atenção, são per… são per… são perdizes.» Ainda não acabara quando se levantou do chão um grande barulho – brrr, brrr, brrr – e um bando de grandes pássaros subiu no ar batendo as asas.
  • 31. A senhora Vilers, estonteada, fechou os olhos, disparou os dois tiros, recuou um passo sob o coice da espingarda, e depois, quando retomou o sangue-frio, viu o barão dançando como um louco e o Médor trazendo duas perdizes na boca. A partir daquele dia o senhor de Coutelier ficou apaixonado por ela. Dizia, arregalando os olhos: «Que mulher aquela!», e vinha agora todas as tardes para falar sobre caça. Um dia, o senhor de Courville, que ia levá-lo a casa e o ouvia extasiar-se com a sua nova amiga, perguntou-lhe de súbito: «Porque é que não se casa com ela?» O barão ficou embaraçado: «Eu? eu? casar-me com ela?… Mas… a verdade é que…» E calou-se. Depois, apertando precipitadamente a mão do seu companheiro, murmurou: «Até à próxima, meu amigo», e desapareceu na noite a passos largos. Passou três dias sem voltar. Quando tornou a aparecer estava empalidecido pelas suas cogitações, e mais grave que de costume. Puxando de parte o senhor de Courville, disse-lhe: «O senhor teve uma ideia extraordinária. Trate de prepará-la para me aceitar. Que raio, uma mulher como aquela até parece feita para mim. Havemos de caçar juntos durante todo o ano.» O senhor de Courville, que tinha a certeza de que ele não seria recusado, respondeu: «Faça já o pedido, meu caro. Quer que eu me encarregue disso?» Mas o barão ficou de repente perturbado; e disse balbuciando: «Não… não… Primeiro tenho de fazer uma viagenzinha… até Paris. Logo que voltar respondo-lhe em definitivo.» Não lhe conseguiram arrancar mais esclarecimentos, e ele partiu no dia seguinte. A viagem durou muito tempo. Passou-se uma semana, duas semanas, três semanas. O senhor de Coutelier não tornara a aparecer. Os Courville, espantados e inquietos, não sabiam que haviam de dizer à amiga, que tinham prevenido da diligência do barão. De dois em dois dias mandavam alguém a casa do barão em busca de notícias; nenhum dos empregados as tinha recebido. Ora, uma noite, estava a senhora Vilers a cantar acompanhando-se ao piano, quando uma criada apareceu, com grandes mistérios, e procurou o senhor de Courville dizendo-lhe baixinho que estava ali um senhor à sua procura. Era o barão, mudado, envelhecido, com roupa de viagem. Mal viu o seu velho amigo pegou-lhe nas mãos e com uma voz um tanto fatigada disse-lhe: «Acabo de chegar, meu caro, e vim a correr a sua casa, já não posso mais.» Depois hesitou, visivelmente embaraçado: «Queria dizer-lhe… imediatamente… que aquele assunto… sabe… falhou.» O senhor de Courville olhava para ele estupefacto: «Como assim? Falhou? Mas porquê?» «Ah, não me faça perguntas, por favor, seria demasiado penoso para mim dizer, mas pode ter a certeza de que me portei como… como um homem decente. Não posso… Não tenho o direito, percebe, não tenho o direito de casar com aquela senhora. V ou esperar que ela se vá embora para voltar a sua casa; seria para mim excessivamente doloroso tornar a vê-la. Adeus.» E escapuliu-se. Toda a família se pôs a deliberar, a discutir, a supor mil e uma coisas. A conclusão foi que havia um grande mistério escondido na vida do barão, que talvez ele tivesse filhos naturais, ou uma antiga ligação. Enfim, o caso parecia grave e, para não entrarem em complicações difíceis, preveniram habilmente a senhora Vilers, que regressou tão viúva como viera.
  • 32. Passaram-se ainda mais três meses. Uma noite, depois de ter jantado abundantemente e titubeando um pouco, o senhor de Coutelier, ao fumar o seu cachimbo da noite com o senhor de Courville, disse- lhe: «Se soubesse as vezes que penso na sua amiga, teria pena de mim.» O outro, que ficara um pouco melindrado pelo comportamento do barão naquela circunstância, disse-lhe o que de verdade pensava: «Apre, meu caro, quem tem segredos na sua vida não avança primeiro como você fez; porque, enfim, você podia com certeza prever o motivo do seu recuo.» O barão, confuso, parou de fumar. «Sim e não. Enfim, não podia acreditar no que aconteceu.» O senhor de Courville, impaciente, continuou: «Tem que se prever tudo.» Mas o senhor de Coutelier, perscrutando as trevas para ter a certeza de que não os escutavam, continuou em voz baixa: «Bem vejo que o magoei, e vou contar-lhe tudo para que me possa desculpar. Há vinte anos, meu amigo, que eu só vivo para a caça. É só disso que gosto. Por isso, no momento de contrair deveres para com aquela senhora, ocorreu-me um escrúpulo, um escrúpulo de consciência. Desde os tempos em que perdi o hábito do… do… do amor, enfim, já não sabia se seria ainda capaz de… de… bem sabe… Imagine! Faz agora dezasseis anos exactamente que… que… que pela última vez, está a entender? Nesta terra não é fácil… não é fácil… percebe? E além disso eu tinha mais que fazer, gosto mais de dar tiros. Em suma, no momento de me comprometer diante do presidente da Câmara e do padre a…. a…. àquilo que sabe, tive medo. Disse cá para mim: Apre! e se… e se… e se eu falhar? Um homem decente nunca falta aos seus compromissos e eu estava a assumir um compromisso sagrado perante aquela pessoa. Enfim, para ficar de espírito descansado resolvi ir passar oito dias a Paris. «Passados oito dias nada, mas nada mesmo. E não foi por não ter experimentado. Peguei no que havia de melhor de todos os géneros. Garanto-lhe que elas fizeram tudo o que puderam… Sim… claro que não omitiram nada… Mas que quer, elas iam-se embora sempre…como tinham vindo… como tinham vindo… como tinham vindo… «Esperei então quinze dias, três semanas, sempre à espera. Comi nos restaurantes um data de coisas apimentadas, que me estragaram o estômago, e… e… e nada… sempre nada. «Como está a compreender, naquelas circunstâncias, perante esta verificação, eu não podia fazer outra coisa senão… retirar-me. Foi o que fiz.» O senhor de Courville torcia-se para não desatar a rir. Apertou gravemente as mãos do barão dizendo-lhe: «Lamento», e acompanhou-o até meio do caminho da casa dele. Depois, quando se encontrou a sós com a mulher contou-lhe tudo, a sufocar de riso. Mas a senhora de Courville não se ria: ouvia com toda a atenção e, quando o marido acabou, respondeu com grande seriedade: «O barão é um pateta, meu caro; tinha medo, e pronto. V ou escrever à Berthe a dizer-lhe que volte, e que volte depressa.» E como o senhor de Courville objectava com a longa e inútil experiência do amigo, ela replicou: «Ora, em quem ama a sua mulher, está a entender, essa coisa… acaba sempre por voltar.» E o senhor de Courville não respondeu nada, também ele um pouco confuso.
  • 34. Uma Artimanha Conversavam ao canto da lareira, o velho médico e a jovem doente. Ela estava apenas um pouco adoentada, com aqueles incómodos femininos de que as mulheres bonitas sofrem muitas vezes: um pouco de anemia, nervos, e um nadinha de fadiga, daquela fadiga sentida às vezes pelos recém- casados ao fim do primeiro mês de união, quando fizeram um casamento de amor. Ela estava estendida no seu canapé e conversava: «Não, doutor, nunca serei capaz de entender que uma mulher engane o marido. Até admito que não o ame, que não cumpra as suas promessas, os seus juramentos! Mas como há-de atrever-se a entregar-se a outro homem? Como esconder isso aos olhos de todos? Como ser capaz de amar na mentira e na traição?» O médico sorria. «Quanto a isso, é fácil. Garanto-lhe que ninguém pensa muito em todas essas subtilezas quando surge o desejo de ceder. Tenho até a certeza de que uma mulher só está madura para o amor verdadeiro depois de ter passado por todas as promiscuidades e por todos os dissabores do casamento, o qual, segundo um homem ilustre, é apenas um intercâmbio de maus humores durante o dia e de maus odores durante a noite. Nada mais verdadeiro. Uma mulher só pode amar apaixonadamente depois de ter sido casada. Se a pudesse comparar a uma casa, diria que ela só é habitável depois de um marido lhe ter afagado os estuques. «Quanto à dissimulação, todas as mulheres a têm para dar e vender nessas ocasiões. As mais simples são maravilhosas, e desenvencilham-se genialmente dos casos mais difíceis.» Mas a jovem senhora parecia incrédula… «Não, doutor, só depois de tudo passado é que nos damos conta do que devíamos ter feito em ocasiões perigosas, e não há dúvida de que as mulheres são ainda mais inclinadas a perder a cabeça que os homens.» O médico ergueu os braços. «Depois de tudo passado, diz a senhora? Nós, homens, só temos a inspiração depois de tudo passado. Mas a senhora!… Olhe, vou contar-lhe uma pequena história que aconteceu com uma das minhas clientes por quem eu era capaz de pôr as mãos no fogo, como se costuma dizer. «Passou-se o caso numa cidade da província. «Uma noite, estava eu a dormir profundamente com aquele peso do primeiro sono tão difícil de perturbar, quando me pareceu, num sonho confuso, que os sinos da cidade estavam a tocar a fogo. «De repente acordei: era a minha campainha, a campainha da rua, que tocava desesperadamente. Como o meu criado parecia não responder, também eu puxei o cordão que tinha pendurado na cama, e logo as portas começaram a bater e ouviram-se passos a perturbar o silêncio da casa adormecida; a seguir apareceu o Jean com uma carta na mão que dizia: “A senhora Lelièvre pede insistentemente ao doutor Siméon que passe por casa dela imediatamente.” «Reflecti durante alguns segundos. Pensava: crise de nervos, vapores, coisa e tal, cansado estou eu. E respondi: “O doutor Siméon, muito adoentado, pede à senhora Lelièvre o favor de chamar o seu
  • 35. confrade Bonnet.” «Entreguei o bilhete dentro de um sobrescrito e tornei a adormecer. «Cerca de meia hora mais tarde, tocou outra vez a campainha da porta da rua e o Jean veio dizer- me: “Está ali alguém, um homem ou uma mulher (não sei ao certo, por estar tão embuçado) que queria falar com urgência com o senhor. Diz que está em jogo a vida de duas pessoas.” «Endireitei-me. “Mande entrar.” «Esperei sentado na cama. «Surgiu uma espécie de fantasma negro e, logo que o Jean se retirou, descobriu-se. Era a senhora Berthe Lelièvre, uma mulher ainda muito nova, casada três anos antes com um grande comerciante da cidade, conhecido por se ter casado com a mais bonita mulher da província. «Estava horrivelmente pálida, com aquelas crispações no rosto das pessoas que perderam a cabeça, e as mãos tremiam-lhe; por duas vezes tentou falar mas nenhum som lhe saiu da boca. Por fim, balbuciou: “Depressa, depressa…. depressa, doutor… Venha. O meu… o meu amante está morto no meu quarto…” «Deteve-se, sufocada, e depois continuou: “O meu marido vai… vai voltar do círculo…” «Saltei da cama e pus-me de pé, sem sequer pensar que estava de camisa de noite, e vesti-me em poucos segundos. Depois perguntei: “Foi a senhora que veio cá há pouco?” Ela, de pé como uma estátua, petrificada pela angústia, murmurou: “Não… foi a minha criada… ela sabe…” E depois de um longo silêncio: “Eu fiquei… fiquei ao pé dele.” E dos seus lábios saiu uma espécie de horrível grito de dor até que, passada uma sufocação que a fez soltar um estertor, chorou, chorou perdidamente com soluços e espasmos durante um minuto ou dois; depois, de súbito, as lágrimas pararam, extinguiram-se como se secassem desde dentro por acção do fogo e, agora tragicamente calma, disse: “Vamos depressa!” «Eu estava pronto mas exclamei: “Apre, esqueci-me de mandar aparelhar o cupê!” Ela respondeu: “Eu tenho um, tenho o dele, que estava à espera.” Embuçou-se até aos cabelos. E partimos. «Quando ficou ao meu lado no escuro do carro, agarrou-me de repente na mão e, esmagando-a entre os seus dedos finos, balbuciou com tremores na voz, tremores vindos de um coração dilacerado: “Ah, se soubesse, se soubesse como eu sofro! Eu amava-o, amava-o perdidamente, como uma insensata, desde há seis meses.” «Eu perguntei: “Em sua casa o pessoal está acordado?” Ela respondeu: “Não, ninguém, excepto a Rosa, que sabe tudo.” «Parámos diante da porta dela; com efeito, na casa toda a gente estava a dormir. Entrámos sem ruído com um gazua: e eis-nos a subir a escada na ponta dos pés. A criada, desorientada, estava sentada no chão no alto da escada, com uma vela acesa ao lado, porque não se atrevia a ficar ao pé do morto. «E entrei no quarto. Estava totalmente em desordem, como depois de uma luta. A cama amarrotada, pisada, desfeita, permanecia aberta, parecia esperar; um dos lençóis estava descaído até ao tapete; toalhas molhadas, que tinham posto nas têmporas do jovem, jaziam no chão ao lado de uma pequena bacia e de um copo. E um singular cheiro a vinagre de cozinha misturado com relentos de perfume Lubin vinha da porta, repugnante.
  • 36. «O cadáver estava estendido ao comprido, de costas, no meio do quarto. «Aproximei-me; examinei-o; apalpei-o; abri-lhe os olhos; tacteei-lhe as mãos e depois, virando-me para as duas mulheres que tiritavam como se estivessem geladas, disse-lhes: “Ajudem-me a levá-lo para a cama.” E deitámo-lo suavemente. Auscultei-lhe então o coração e coloquei-lhe um espelho diante da boca; e a seguir murmurei: “Acabou-se, temos de o vestir depressa.” Foi horrível de ver. «Eu pegava-lhe nos membros um a um, como se de um enorme boneco se tratasse, e estendia-os para as roupas que as mulheres traziam. Passámos às peúgas, às cuecas, ao calção, ao colete, e depois ao fato, no qual tivemos muita dificuldade em fazer entrar os braços. «Quando se tratou de abotoar as botinas, as duas mulheres puseram-se de joelhos, enquanto eu lhes dava luz; mas como os pés estavam um pouco inchados, foi assustadoramente difícil. Como não tinham encontrado a abotoadeira, usaram os respectivos ganchos de cabelo. «Mal terminou a horrível toilette, examinei a nossa obra e disse: “Era preciso dar-lhe uma penteadela.” A criada foi buscar o pente e a escova da patroa; mas, como estava a tremer e, em movimentos involuntários, arrancava os cabelos compridos e embaraçados, a senhora Lelièvre apoderou-se violentamente do pente e reajustou-lhe devagarinho o cabelo, como se o acariciasse. Refez a risca, escovou a barba, e depois enrolou lentamente o bigode com o dedo, tal como por certo costumava fazer em familiaridades amorosas. «E de repente, largando o que tinha na mão, ela agarrou a cabeça inerte do amante e contemplou longamente, desesperadamente, aquele rosto morto que já não lhe sorria; depois, deixando-se cair sobre ele, apertou-o com toda a força nos seus braços, beijando-o ardentemente. Os beijos dela caíam como pancadas na boca fechada dele, nos seus olhos apagados, nas suas fontes, na testa. Depois, aproximando-se do ouvido, como se ele pudesse ainda ouvi-la, como que para balbuciar a palavra que torna os abraços mais ardentes, repetiu dez vezes seguidas numa voz dilacerada: “Adeus, meu querido.” «Mas o relógio bateu a meia-noite. «Tive um sobressalto: “Que maçada, meia-noite, a estas horas fecha o círculo. Vamos, minha senhora, força.” «Ela endireitou-se. Dei as minhas ordens: “Vamos levá-lo para o salão.” Pegámos nele os três e, erguendo-o, sentei-o num canapé, e acendi depois os candelabros. «A porta da rua abriu-se e tornou a fechar-se pesadamente. Era já ele. Exclamei: “Rosa, depressa, traga-me as toalhas e a bacia, e refaça a cama, despache-se, por amor de Deus! É o senhor Lelièvre que regressa.” «Ouvi os passos que subiam, que se aproximavam. Umas mãos na sombra tacteavam as paredes. Então chamei: “Por aqui, meu caro, tivemos um acidente.” «E o marido estupefacto apareceu no limiar, com um charuto na boca. Perguntou: “Que é? Que se passa? Que é isso?” «Caminhei na sua direcção: “Meu bom amigo, vem encontrar-nos num difícil embaraço. Eu tinha ficado até tarde a conversar aqui com a sua mulher e este nosso amigo que me tinha trazido no carro dele. E eis que ele de repente cai no chão, e há duas horas que, apesar dos nossos esforços, continua sem sentidos. Não quis chamar estranhos. Por isso ajude-me a levá-lo para baixo, porque posso
  • 37. tratá-lo melhor em casa dele.” «O marido surpreendido, mas sem desconfiar, tirou o chapéu; e depois agarrou o seu rival, agora inofensivo, por debaixo dos braços. Eu agarrei-o pelas pernas, como um cavalo entre dois varais, e lá fomos nós a descer a escada, agora alumiados pela mulher. «Quando chegámos diante da porta, endireitei o cadáver e falei com ele, animando-o para enganar o cocheiro: “Vá, meu bom amigo, isso não é nada; já está a sentir-se melhor, não é? Coragem, vá lá, um pouco de coragem, mais um pequeno esforço e pronto.” «Como sentia que ele ia estatelar-se, que me deslizava entre as mãos, dei-lhe uma grande palmada nas costas que o atirou para a frente e o fez oscilar para dentro do carro; e depois subi eu atrás dele. «O marido, inquieto, perguntava-me: “Acha que é grave?” Respondi: “Não”, e sorri, olhando para a mulher. Ela enfiara o braço no do marido legítimo e mergulhava o olhar fixo no eixo às escuras do cupê. «Apertei as mãos deles e mandei seguir. Ao longo de todo o caminho o morto descaía-me sobre a orelha direita. «Quando chegámos a casa dele, anunciei que ele tinha perdido os sentidos pelo caminho. Ajudei a fazê-lo subir até ao quarto. E depois verifiquei o óbito; representei toda uma nova comédia diante da sua família atarantada. Por fim, voltei para a minha cama, sem deixar de praguejar contra os apaixonados.» O médico calou-se, sempre sorrindo. Crispada, a jovem senhora perguntou: «Porque é que me contou essa história pavorosa?» Ele fez um cumprimento galante. «Para lhe oferecer os meus serviços, se for necessário.» (Setembro de 1882)