2. Eu, Etiqueta
Em minha calça está grudado um
nome
que não é meu de batismo ou de
cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de
bebida
que jamais pus na boca, nesta
vida.
Em minha camiseta, a marca de
cigarro
que não fumo, até hoje não
fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus
pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa
idade.
Meu lenço, meu relógio, meu
chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e
pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e
sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos
sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
3. ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio
itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a
compromete.
4. Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de
escolher,
minhas idiossincrasias tão
pessoais,
tão minhas que no rosto se
espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou
tecido,
sou gravado de forma
universal,
saio da estamparia, não de
casa,
da vitrina me tiram,
recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo
de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão
orgulhoso
de ser não eu, mas artigo
industrial,
peço que meu nome
retifiquem.
Já não me convém o título
de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
5. Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
• Como se tomasse consciência, ou tivesse uma
epifania, este eu-lírico percebe que as suas roupas
referenciam produtos que ele nunca experimentou e
aos quais talvez nem tivesse acesso. Ou seja, acaba
promovendo coisas que nem sequer conhecesse, só
porque são valorizadas socialmente.
• Olhando em volta, vai enumerando produtos que o
rodeiam, que usa diariamente, e que possuem uma
etiqueta ou uma marca. Os versos parecem sublinhar
que o sistema capitalista influencia os aspetos mais
triviais da nossa rotina.
6. • Apelando aos desejos de cada um,
a propaganda chega por todos os lados, com
"mensagens, / letras falantes, / gritos visuais"
que confundem os indivíduos e capturam a sua
atenção.
• Perante tudo isso, como se demonstrasse algum
espanto, o sujeito verifica que virou um "homem-
anúncio itinerante" para seguir as tendências dos
seus pares.
7. Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade
• Para se enquadrar, ele descobre que acabou perdendo a si
mesmo. Em nome de futilidades e convenções que apenas se
focam nas aparências, foi se desligando do seu jeito de ser, da
sua alma.
• Este eu-lírico, que pode representar cidadãos do mundo inteiro
e de várias épocas, reflete sobre os modos como caímos nas
armadilhas do consumismo.
• Sem repararmos, contribuímos para este sistema, porque
sentimos a necessidade de provar o nosso valor ou sucesso
através da ostentação de bens materiais.
8. Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
• Com um tom sarcástico, o sujeito reforça que compactuamos com
esse esquema mesmo quando não somos beneficiados por ele, só
para nos sentirmos integrados.
• Deslumbradas pelos objetos, muitas pessoas esquecem de cuidar
da própria essência, algo que "moda ou suborno algum" deveria
comprometer ou colocar em jogo.
• Assim, o eu-lírico questiona o que aconteceu com ele e também
com esta forma coletiva de agir e pensar, que exibe prioridades
totalmente invertidas.
• Perdido num movimento contínuo de padronização, verifica que
deixou de ter espírito crítico, ficou igual a todo o mundo, sem
"gosto e capacidade de escolher"
9. Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
• Desprovido de um sentido de individualidade,
ou de identidade, este sujeito termina a
composição anunciando que tinha se
transformado em "coisa".
• Esta seria, então, a vitória absoluta do
capitalismo: o ser humano que vira produto,
que encara a si mesmo como um mero objeto
10.
11. E AGORA, JOSÉ?
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
12. • E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
• Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
13. Análise do poema
• Análise do poema
• Tipo de verso: livre
• Número e tipo de estrofes: 6 estrofes irregulares
• Número de versos: 67 versos
• O poema José é construído em versos livres (ou irregulares), isto é, em
versos que não utilizam metrificação e também dispensam a rima.
• José é uma representação artística do sentimento de solidão e falta de
rumo que experimenta o homem moderno.
• Logo na abertura da primeira estrofe, é colocado o bordão “E agora
José?”, que será repetido várias vezes e representa, de uma só vez, a
necessidade de tomar uma decisão e a hesitação quanto a como fazê-lo.
• Em seguida, Drummond apresenta os argumentos de “a festa acabou”, “a
luz apagou”, “o povo sumiu”, “a noite esfriou”, como a querer dizer que
aquilo que era bom já não existe, ou que momentos de alegria já se
foram.
14. • Ainda na primeira estrofe, vemos que Drummond
substitui “José” por “você”, deixando claro sua
intenção de representar um sujeito coletivo
através de “José” e, mais especificamente,
representar o próprio leitor.
• “E agora, você?” é um verso que intima o leitor a se
envolver pessoalmente no drama de José, no
drama de não saber escolher e encontrar-se diante
de uma situação que exige uma escolha.
15. • A medida que progredimos no poema e a mesma
questão vai se repetindo uma e outra vez, vamos
ficando com a sensação de que a angústia inicial
toma contornos de desespero, que é realçado
pela ideia de que, apesar de precisar agir, “José”
não pode fazê-lo.
16. • Assim, vemos que Drummond carrega versos
aparentemente simples com um peso existencial
incomum.
• O poema leva-nos a refletir sobre o nosso papel no
mundo, o sentido de nossa vida, o que faremos quando
o hoje tornar-se passado, e questiona-nos de um ponto
de vista intimista, parecendo nos dizer que a questão
precisa ser respondida e ninguém pode respondê-la por
nós.