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Consumo, logo existo
Ao visitar a admirável obra social do cantor Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o
contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um
pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O
eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.Vou
com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os
veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não,
obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados.
Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também
gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês,
respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".
FREI BETTO
O filósofo René Descartes (1596-1650) demonstra no livro “Discurso sobre o Método” a
questão da dúvida de nossos sentidos a respeito da existência. Ele considerou tudo falso a sua
volta. Até mesmo a existência de Deus foi questionada. Ele diz: “Duvidemos dos sentidos, uma
vez que eles freqüentemente nos enganam, pois, nunca tenho certeza de estar sonhando ou
de estar desperto!” , e conclui: “Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo
que o demônio queira sempre me enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso, resta a
certeza de que eu penso. Nenhum objeto de pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato
de duvidar é indubitável. Penso, cogito, logo existo, ergo sum". O que o atormentou foi saber
se existia ou não.Ao refletir sobre a frase do filósofo percebi que hoje em dia isso não faz parte
do nosso contexto social. Não se precisa pensar para existir. O mais importante é consumir. Ao
modificar a frase de “penso, logo existo” para “consumo, logo existo” a minha ideia fica clara.
Pelo menos é o que espero. Olho a minha volta e vejo o consumo, simplesmente, pelo prazer
de possuir o objeto de desejo. Quem não guarda no armário aquele utensílio usado apenas
uma vez? Acho que todos somos assim. É difícil controlar o impulso consumista. O que
predomina é o desejo e não a necessidade. É preciso consumir para existir. Será que estou
exagerando?Isso é mais comum entre os adolescentes. Eles adquirem produtos da moda, sem
ao menos se perguntarem se é útil ou não. Quem já não os ouviu conversando que
determinada roupa de grife está na moda, ou ainda que tal carro é melhor que aquele outro.
Possuir significa existir. Existir para os amigos e para a sociedade. Quem não possui não existe,
conseqüentemente, não é aceito no meio social. Já entre os adultos prevalece a
competividade para ver quem adquire o melhor objeto de desejo.
Estamos presenciando uma inversão de valores. Hoje é o produto que dita a nossa existência.
Sou o celular do momento, sou a roupa da moda, sou o último modelo de carro. Foi esquecida
a essência do ser humano em função da essência do objeto de consumo. A pessoa pode ter
tudo do que precisa para existir perante seus amigos, mas não vai mudar sua essência. Ela
permanece a mesma, com ou sem o objeto de consumo. Por acaso não seria uma questão de
perda de identidade? Aliás qual a sua verdadeira identidade? Que celular, que carro, que
roupas você usa?Descartes exemplificou usando um pedaço de cera retirada da colméia.
Colocando-a no fogo se perdem alguns atributos, mas não a essência. No fogo, o sabor, o odor
e a cor se modificam; mas ele continua sendo o mesmo. Coloque a melhor tinta, despeje o
melhor perfume e acrescente algo para lhe dar um sabor delicioso. O que teremos? Um
pedaço de cera. Não digo que somos bonecos de cera. Apenas ilustrei como o filósofo
demonstrou seu pensamento. Fora esse exemplo, ele fez outras conjecturas a respeito da sua
existência. As pessoas esqueceram da sua essência para a dos objetos de consumo. Se
pensassem antes de agir, minha frase não teria sentido. Quem pensa existe, e não consumir
para existir. Houve uma inversão de valores aqui.Li outro dia um artigo que tratava da
propaganda e da publicidade como as responsáveis pelo consumo exagerado. Discordo disso,
acredito que a culpa não seja somente delas. Como já mencionei. São as pessoas que não
pensam na hora de comprar. Uma parte da culpa é do consumidor. As agências de publicidade
apenas promover o produto. Se nós acreditamos a culpa é nossa. Você já comprou algum
produto por impulso, e depois se arrependeu? Eu já! A crítica aqui não é sobre o consumo.
Ela é sobre o que acarreta nas pessoas. As coisas são assim hoje porque quase todos precisam
se firmar numa sociedade onde predomina valores distorcidos. Foi esquecida a essência do ser
humano para a dos produtos de consumo. Agora preciso terminar por que vi uma propaganda
interessante de um novo modelo de celular. Consumo, logo existo! E você?

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  • 1. Consumo, logo existo Ao visitar a admirável obra social do cantor Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz". FREI BETTO O filósofo René Descartes (1596-1650) demonstra no livro “Discurso sobre o Método” a questão da dúvida de nossos sentidos a respeito da existência. Ele considerou tudo falso a sua volta. Até mesmo a existência de Deus foi questionada. Ele diz: “Duvidemos dos sentidos, uma vez que eles freqüentemente nos enganam, pois, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto!” , e conclui: “Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o demônio queira sempre me enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso, resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável. Penso, cogito, logo existo, ergo sum". O que o atormentou foi saber se existia ou não.Ao refletir sobre a frase do filósofo percebi que hoje em dia isso não faz parte do nosso contexto social. Não se precisa pensar para existir. O mais importante é consumir. Ao modificar a frase de “penso, logo existo” para “consumo, logo existo” a minha ideia fica clara. Pelo menos é o que espero. Olho a minha volta e vejo o consumo, simplesmente, pelo prazer de possuir o objeto de desejo. Quem não guarda no armário aquele utensílio usado apenas uma vez? Acho que todos somos assim. É difícil controlar o impulso consumista. O que predomina é o desejo e não a necessidade. É preciso consumir para existir. Será que estou exagerando?Isso é mais comum entre os adolescentes. Eles adquirem produtos da moda, sem ao menos se perguntarem se é útil ou não. Quem já não os ouviu conversando que determinada roupa de grife está na moda, ou ainda que tal carro é melhor que aquele outro. Possuir significa existir. Existir para os amigos e para a sociedade. Quem não possui não existe, conseqüentemente, não é aceito no meio social. Já entre os adultos prevalece a competividade para ver quem adquire o melhor objeto de desejo.
  • 2. Estamos presenciando uma inversão de valores. Hoje é o produto que dita a nossa existência. Sou o celular do momento, sou a roupa da moda, sou o último modelo de carro. Foi esquecida a essência do ser humano em função da essência do objeto de consumo. A pessoa pode ter tudo do que precisa para existir perante seus amigos, mas não vai mudar sua essência. Ela permanece a mesma, com ou sem o objeto de consumo. Por acaso não seria uma questão de perda de identidade? Aliás qual a sua verdadeira identidade? Que celular, que carro, que roupas você usa?Descartes exemplificou usando um pedaço de cera retirada da colméia. Colocando-a no fogo se perdem alguns atributos, mas não a essência. No fogo, o sabor, o odor e a cor se modificam; mas ele continua sendo o mesmo. Coloque a melhor tinta, despeje o melhor perfume e acrescente algo para lhe dar um sabor delicioso. O que teremos? Um pedaço de cera. Não digo que somos bonecos de cera. Apenas ilustrei como o filósofo demonstrou seu pensamento. Fora esse exemplo, ele fez outras conjecturas a respeito da sua existência. As pessoas esqueceram da sua essência para a dos objetos de consumo. Se pensassem antes de agir, minha frase não teria sentido. Quem pensa existe, e não consumir para existir. Houve uma inversão de valores aqui.Li outro dia um artigo que tratava da propaganda e da publicidade como as responsáveis pelo consumo exagerado. Discordo disso, acredito que a culpa não seja somente delas. Como já mencionei. São as pessoas que não pensam na hora de comprar. Uma parte da culpa é do consumidor. As agências de publicidade apenas promover o produto. Se nós acreditamos a culpa é nossa. Você já comprou algum produto por impulso, e depois se arrependeu? Eu já! A crítica aqui não é sobre o consumo. Ela é sobre o que acarreta nas pessoas. As coisas são assim hoje porque quase todos precisam se firmar numa sociedade onde predomina valores distorcidos. Foi esquecida a essência do ser humano para a dos produtos de consumo. Agora preciso terminar por que vi uma propaganda interessante de um novo modelo de celular. Consumo, logo existo! E você?