1) O documento discute a tipicidade do crime de apropriação de ICMS previsto no artigo 2o, inciso II, da Lei 8.137/90. 2) Sustenta que o ICMS é um tributo indireto cobrado do consumidor final e repassado ao Estado, não integrando a receita da empresa. 3) Defende que reconhecer a atipicidade desse crime prejudicará a livre concorrência e a recuperação de valores sonegados.
Protocolo Pisc Protocolo de Rede Intersetorial de Atenção à Pessoa Idosa em S...
ICMS não é custo mas valor cobrado do consumidor
1. COORDENADORIA DE RECURSOS CRIMINAIS
Recurso Especial n. 1.598.005/SC, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz;
Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.643.858/SC, Relatora: Ministra Maria
Thereza de Assis Moura;
Habeas Corpus n. 399.109/SC, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz.
MEMORIAIS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA
(Tipicidade do artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90)
Discute-se nos processos acima mencionados a tipicidade do artigo 2º,
II, da Lei n. 8.137/90, em relação ao não recolhimento (apropriação) do ICMS. A
defesa sustenta, em suma, que o tipo penal em questão, em razão da
interpretação que deve ser conferida aos vocábulos “descontado” e “cobrados”,
aplica-se somente à hipótese de substituição tributária. Todavia, essa tese não
deve prosperar, em resumo, porque:
1º) O ICMS, por natureza, é imposto cobrado do contribuinte final
para repasse ao Fisco Estadual e, assim, não pode ser considerado receita
da empresa, tanto que, conforme a orientação pacífica do STJ e STF, não
integra a base de cálculo do IR e do PIS/Cofins.
O ICMS é tributo indireto e que incide sobre o consumo, uma vez que
a pessoa que responde perante o ente tributante não é aquela que efetivamente
arca com o ônus financeiro do tributo. Em outras palavras, há transferência do
ônus do tributo do contribuinte de direito para o de fato, ou seja, quem
efetivamente paga o tributo é o consumidor final, ficando a cargo do empresário a
retenção do valor para repasse ao Fisco.
O que justifica a escolha, na legislação tributária, da sujeição passiva
dos integrantes da cadeia produtiva em detrimento do consumidor final é,
unicamente, a praticidade da medida. O ICMS, assim como o IVA – imposto sobre
valor adicionado -, é moldado para atingir o consumidor final, e não o comerciante
ou produtor.
Com efeito, o montante da carga tributária é sempre repassado
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diretamente e cobrado do consumidor final - tanto que destacado no
documento fiscal -, ou mesmo do adquirente da etapa seguinte da operação de
circulação (não cumulatividade do ICMS), independentemente da análise dos
custos da atividade econômica.
A distinção se dá, com os demais tributos, pela simples correlação em
que o impacto da alteração da alíquota do ICMS é automaticamente transferido
(cobrado) na etapa seguinte da operação. Tanto assim o é que o ICMS não
integra a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, por se
compreender que essa espécie de tributo (indireto) não pode ser
considerada renda, mas sim valor retido para posterior entrega ao Fisco.
Esse mesmo posicionamento quanto ao ICMS foi adotado pelo
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 574.706/PR, que tramitou
no regime da repercussão geral, ao afastar a possibilidade de que seu valor
econômico possa integrar a base de cálculo da COFINS e do PIS. Extrai-se do
voto do Ministro Celso de Mello (página 11): “[...] Irrecusável, Senhora Presidente,
tal como assinalado por Vossa Excelência, que o valor pertinente ao ICMS é
repassado ao Estado-membro (ou ao Distrito Federal), dele não sendo titular a
empresa, pelo fato, juridicamente relevante, de tal ingresso não se qualificar como
receita que pertença, por direito próprio, à empresa contribuinte. [...]”
A questão aqui é até mesmo de lógica sistêmica: se o imposto, de
fato, não pode ser considerado como cobrado para repasse ao fisco, e sim
meramente como integrante do custo da mercadoria – como sustenta a
Ministra Maria Thereza Assis de Moura –, então seu valor deveria ser
considerado renda da atividade empresarial para todos os efeitos, já que
integraria o custo do produto (assim, com incidência do IR, Pis e COFINS, o
que não é o caso!).
Nessa linha, a operação de destaque no documento fiscal tem,
justamente, a finalidade de demonstrar ao contribuinte de fato o valor que
lhe é cobrado pelo contribuinte de direito, para posterior repasse ao fisco.
Esse sistema ocorre com clareza no ICMS e no ISS (quando este opera na via
indireta, obviamente), diferentemente dos demais tributos e contribuições, em que
o valor respectivo pode até servir de base para composição do preço, porém não é
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destacado e cobrado diretamente do consumidor final.
2º) A interpretação do dispositivo legal, inclusive sob o aspecto
histórico, não permite a conclusão que ele se aplica somente aos casos de
substituição tributária.
A redação do inciso II do artigo 2º da Lei n. 8.137/90 é clara ao dispor
que constitui crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal,
valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de
sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.”
A partir do preceito primário da norma, pode-se depreender que a
tipicidade objetiva prevê os seguintes elementos: a) “deixar de recolher” (não
pagar); b) “no prazo legal” (no prazo estabelecido pela legislação tributária); c)
“valor de tributo ou de contribuição social” (no caso específico, ICMS); d)
“descontado ou cobrado, pelo sujeito passivo da obrigação tributária”; e) que
deveria recolher aos cofres públicos (existência da obrigação legal de recolher o
tributo ao Estado).
O legislador não estabeleceu e não pretendeu que o sujeito passivo do
crime em questão fosse apenas o substituto tributário. Se essa fosse a sua
pretensão, a redação do tipo penal seria: “deixar de recolher, no prazo legal, valor
de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de
substituto tributário (ou na qualidade de responsável tributário) e que deveria
recolher aos cofres públicos.”
Para que incida o tipo penal basta que o sujeito ativo do ilícito, na
qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conceito que é extraído
do artigo 121 do CTN, repasse ao contribuinte de fato o ônus financeiro do
tributo, o que, como já explicitado, ocorre no caso do ICMS.
Não há dúvida, pois, que a conduta do comerciante (contribuinte –
sujeito passivo da obrigação tributária), que deixa de recolher ao Fisco, no prazo
legal, o imposto cobrado do consumidor final, adequa-se ao tipo penal descrito no
artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90.
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3º) O reconhecimento da atipicidade atingirá sobremaneira o livre
exercício da atividade empresarial, em especial a livre concorrência,
inviabilizando a cobrança civil de valores sonegados e a apuração de crimes
de lavagem de dinheiro.
O tipo penal não pune o mero inadimplemento, mas a conduta do
empresário, imbuído de má-fé, que se apropria do valor do tributo que foi cobrado
do consumidor e que deveria ter sido repassado ao Fisco. Daí surge a
necessidade de alcançar a pessoa física do empresário. Em outras palavras, a
norma sanciona aquele que logra o consumidor - ao repassar-lhe o ônus do tributo
- e se apropria de valores que deveriam ser repassados ao erário com a finalidade
de subsidiar as políticas públicas necessárias à consecução do Estado
Democrático.
Uma empresa que postergue sucessivamente o recolhimento do ICMS
cobrado do consumidor final, deixando de repassá-lo ao Fisco, sempre estará em
vantagem concorrencial, chegando a eliminar por completo as demais empresas
que atuem com regularidade no segmento (ou pior, forçando-as a agir de idêntica
maneira).
Ora, é extremamente vantajoso o “planejamento tributário” do não
recolhimento do ICMS. Incidindo numa alíquota do imposto de 17%, pode-se
utilizar um preço 10% menor que o dá concorrência e ainda assim ter um lucro –
com o ilícito – maior de 7% do que aquela, já sabendo de antemão que o imposto
não será repassado ao Fisco. Enquanto o sonegador procrastinar a execução
fiscal – única medida que existirá se afastada a persecução penal – poderá
continuar operando livremente, por 5, talvez 10 anos, até que eventualmente se
recupere algum valor, se é que existente e não desviado ou colocado em nome de
parentes ou terceiros. E nesse período de operação continuada, ou quebrará a
concorrência, ou causará o chamado efeito espiral, forçando as demais empresas
do setor a adotarem prática similar para sobreviver no mercado.
É imperioso que se destaque, nesse ponto, que não é incomum
empresas constituídas exclusivamente para essa finalidade, em que o imposto
não é recolhido e posteriormente extraído da atividade empresarial por operações
irregulares, o que inviabiliza a cobrança civil dos valores. Não é a hipótese dos
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processos em análise, mas inúmeros casos investigados, de valores muito mais
significativos (em SC, por exemplo, tem-se “inadimplentes” que acumulam,
sozinhos, prejuízo na casa da centena do milhão de reais, em que já foram
descobertos bens em nomes de terceiros ilicitamente extraídos da regular
atividade econômica). Nesse caso, típicas operações de lavagem de dinheiro
serão desconstituídas, pois inexistindo crime antecedente (não tipificação da
conduta de não recolhimento do ICMS), nada poderá ser investigado; o Estado
ficará totalmente desprotegido da regular recuperação desses valores (destaca-se,
cobrados do consumidor final), a concorrência sujeita a esse uso nocivo da
atividade econômica e, o pior, a sociedade desprovida das políticas públicas que
poderiam ter sido implementadas com esses recursos, redundando em verdadeira
proteção deficiente aos bens jurídicos tutelados (a arrecadação tributária e a livre
concorrência empresarial).
Por fim, é intuitivo que o empresário que hoje comete a fraude fiscal
(artigo 1º da Lei n. 8.137/90), deixará de fazê-lo, uma vez que será mais benéfico
declarar o imposto e deixar de recolhê-lo. Adotando esse proceder, não ficará
sujeito à responsabilização criminal e, em razão da utilização de artimanhas
espúrias, o seu patrimônio não será atingido pela execução fiscal.
4º) O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a conduta do
comerciante que deixa de recolher, no prazo legal, o ICMS cobrado, na
qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, do consumidor, é
formalmente típica e constitucional.
No julgamento da Extensão da Extradição n. 1.139, a Primeira Turma
reconheceu a correspondência de tipos penais entre a apropriação do ICMS,
previsto na legislação brasileira, e a apropriação do IVA (Imposto sobre o
Consumo português), como se vê de trecho da ementa:
Crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a
Segurança Social, previstos nos artigos 105, nº 1, e artigo 107, nº 1, da
Lei Portuguesa nº 15/2001, que correspondem, respectivamente, aos
crimes do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, e do art. 168-A do Código
Penal, da legislação brasileira.
Do corpo do julgado se extrai a equivalência de tipos:
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Ainda segundo o pedido de extensão de extradição, o demandado, na
condição de dirigente da empresa, teria retido, liquidado, mas não
entregue ao Erário Português o tributo IVA (Imposto sobre Valor
Agregado) nos meses de abril e de setembro a dezembro de 2001 e
ainda no mês de dezembro de 2002, no montante total de 60.746 euros
(fl. 439). Como se verifica na manifestação do Ministério Público
Português e na decisão do Tribunal de Bragança (fls. 456), foi
reconhecida, posteriormente, quanto ao crime relativo à falta do
recolhimento do IVA, a extinção da punibilidade, salvo em relação às
prestações devidas em outubro e novembro de 2001. A extinção da
punibilidade decorre de preceito legal que descriminaliza “as condutas
relativas à não entrega das prestações tributárias de valor igual ou inferior
a 7.500,00 euros” (fl. 456). [...]
Como se depreende da descrição fática e dos tipos penais, os crimes
encontram correspondentes no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, quanto à
falta de recolhimento do tributo, e no art. 168-A do Código Penal, quanto
à falta de recolhimento da contribuição previdenciária [...]. (grifou-se)
No mesmo sentido, em fato análogo ao discutido nos processos aqui
tratados, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 999.425/SC, que
tramitou sob o regime da repercussão geral, reconheceu que o não recolhimento
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) cobrado do consumidor final
e não repassado ao Fisco se amolda ao preceito primário descrito no artigo 2º,
inciso II, da Lei n. 8.137/90 e que essa conduta não configura mero
inadimplemento, nem mesmo a sanção configura prisão civil por dívida. A base
fática que norteou a decisão do Supremo é absolutamente a mesma em tela.
5º) O Conselho Nacional do Ministério Público, em sua edição do
Prêmio 2017, escolheu o Programa de Combate à Sonegação Fiscal do
MPSC como o vencedor na categoria eficiência funcional.
Essa eficiência decorre não apenas na esfera punitivista das ações,
mas sim, e muito mais, de seu viés conciliador e resolutivo, que permitiu ao
MPSC, de 2013 a 2016, recuperar cerca de R$ 316 milhões em tributos
sonegados, e garantir o futuro retorno de valores, mediante parcelamentos
tributários, com saldo de 550 milhões. Significativa parcela desses valores,
destaca-se, se refere a valores declarados e não recolhidos, aproximadamente
75% do total. Não fosse a viabilidade da persecução penal, esses valores, arrisca-
se dizer, jamais seriam recuperados, em razão não apenas do falido sistema de
execução fiscal, mas, principalmente, da limitação da legislação civil para
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localização de patrimônio e sócios ocultos.
Por todas essas razões, seja pela origem da norma, por sua adequada
interpretação típica, por sua importância no aspecto econômico, pela proteção
integral das finanças estaduais e municipais, pela preservação do sistema
financeiro pátrio e da livre concorrência e, por último, por se tratar de efetiva última
ratio na defesa de bem jurídico tão relevante, entende o Ministério Público do
Estado da Santa Catarina pelo reconhecimento da tipicidade plena da conduta de
não recolhimento/apropriação indébita do ICMS no artigo 2º, II, da Lei n.
8.137/1990.
Florianópolis, 22 de março de 2017.
Jorge Orofino da Luz Fontes
Procurador de Justiça
Coordenador de Recursos Criminais
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