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HUBERTO ROHDEN
POR UM
IDEALO QUE POR ELE VIVI E SOFRI
EM MEIO SÉCULO
UNIVERSALISMO
Sumário
Advertência
Na terra dos pinheirais. Brasileiros e brasilidade.
Pela terra dos Inconfidentes. Chico Xavier.
O Cristo desconhecido.
Nas florestas Amazônicas. Condutores ou sedutores clericais?
Marajó, um mundo em gestação. Cristianismo em marcha.
Excursionando pela Europa. Audiência com o Papa em Castel-Gandolfo.
A sós em Gênova. Suas Majestades Britânicas em Paris.
De Roma, Paris e Berlim – aos sertões do Brasil.
Vozes da imprensa brasileira. Apreciação do meu Novo Testamento.
A campanha nacional pró-Evangelho cava a ruína da Cruzada.
Direção espiritual – ou tiranização clerical?
Pontos estratégicos pelo triunfo do Reino de Deus.
Sol entre nuvens.
Irene – e o Evangelho.
Fogo contra Paulo de Tarso.
Atentados contra Agostinho – nascituro.
Novo atentado contra Agostinho – recém-nascido
Sugestões para mentiras plausíveis ainda não inventas contra mim.
Meus livros todos condenados.
Salvação pelo Cristo – ou pelo clero?
“Credores de Deus”.
Uma legítima donquixotada do vigário de Angustura.
Carta aberta a numerosos amigos iludidos.
Desiludindo os amigos protestantes. O imperativo da consciência.
Preparativos de viagem para os Estados Unidos.
Ecos filosófico-espirituais dos Estados-Unidos. Einstein.
Como quem adormece...
Epitáfio de um batalhador apunhalado por seus colegas.
Apêndice. Porque Huberto Rohden deixou o clero.
O que é o Centro de Auto-Realização Alvorada.
Por Um Ideal
Este livro é um ato de coragem. É a declaração e a defesa de um ideal vivido.
Há vários anos esgotada, esta auto-biografia era insistentemente solicitada por
leitores e livreiros. Neste ano que antecede ao Ano do Centenário de
Nascimento de Huberto Rohden, resolvemos reeditá-la, já como parte do
programa comemorativo deste evento cultural.
O livro, em 2 volumes, com um total de mais de 400 páginas, totalmente
ilustrado, constitui o único texto autobiográfico de Rohden. Escrito em 1960/61,
descreve a história do “menino da roça, caçador de pássaros e borboletas”, a
partir de seus 12 anos, até 1952, época que assinalou sua volta dos Estados
Unidos, onde passara 6 anos como professor de Filosofia e Religiões
Comparadas na American University, de Washington, D.C. Nesse período
Rohden fundou em São Paulo o Centro de Auto-Realização Alvorada, um
movimento filosófico e espiritual de âmbito mundial.
Diz Rohden, na Introdução da obra: “Milhares de leitores conhecem os meus
livros sobre problemas de filosofia, religião, os mistérios da natureza, etc., e
muitos deles vivem a pedir que publique as minhas “memórias” – tanto mais
que muitos deles acompanharam, de perto ou de longe, o agitado drama de
idéias e ideais que fez de minha vida de escritor e conferencista uma estranha
epopéia cheia de altos e baixos, de luzes e sombras, de louvores e vitupérios.
Poucos homens do meu tempo e país foram tão ardentemente elogiados e tão
violentamente execrados como o autor desta autobiografia.”
Aqui, o autor narra, com impressionante concisão, sua estada de 14 meses na
Universidade de Princeton, quando mantinha diálogos com Einstein – em
alemão, certamente –, sobre problemas filosóficos e espirituais.
Mas, a essência do livro são as descrições das suas atividades como padre,
professor, pensador, conferencista e, principalmente, como escritor católico.
Seu conflito com algumas alas do clero brasileiro são dramaticamente
narradas, até o seu pedido oficial de afastamento da teologia romana. Rohden
vira-se diante da terrível alternativa: Cristo ou Clero!
Rohden é um vencedor. Hoje, brasileiros de todas as crenças religiosas, de
todos os partidos políticos, de todas as doutrinas filosóficas são assíduos
leitores de seus livros.
A Filosofia Univérsica – um novo modo de pensar o Universo –, sistematizada
por ele, começa a ser estudada e ensinada em várias escolas e faculdades do
país.
O professor Huberto Rohden faleceu em São Paulo, no dia 8 de outubro de
1981, aos 87 anos de idade. Suas últimas palavras foram “Eu vim para servir à
Humanidade.”
Tudo por um Ideal.
Advertência
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a
transição de uma existência para outra existência.
O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado.
Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa,
mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
Na terra dos pinheirais.
Brasileiros e
brasilidade.
Conhecia eu apenas de fama a cidade dos pinheirais. Certo romancista me
contara, embevecido, que Curitiba era a cidade dos homens e das mulheres de
tipo mais perfeito e estético do Brasil; que havia nessa capital 90% de gente
bonita.
Não tive ensejo para verificar a exatidão desse asserto, em primeiro lugar
porque não vi Curitiba com olhos de romancista e, em segundo, porque não
entrei em contato com 100 ou 90% da população.
Entretanto, tive ocasião de me convencer de que existem na capital
paranaense não apenas corpos esbeltos e rostos venustos, senão também
belos espíritos e corações bem formados. Sobretudo entre a mocidade
masculina encontrei tantas e tão sinceras amizades que até hoje, evocando a
minha primeira estada em Curitiba, sinto a alma cheia de comoção e de
saudades.
Realizei, nessa ocasião, uma série de conferências apologéticas na catedral,
às 20 horas. Além disto, todas as noites, às 22 horas, por espaço de meia hora,
falava ao microfone do Rádio Clube Paranaense, gentilmente cedido por seus
distintos diretores.
Quando, na primeira noite, fui à catedral, ia apreensivo, porque o silêncio era
absoluto, o que me fazia recear um fracasso geral. Em Curitiba, de população
fortemente mesclada, não encontraria auditória para as minhas palestras
filosófico-religiosas. Com imensa surpresa, encontrei o vasto recinto da
catedral literalmente repleto, no mais absoluto silêncio e numa compostura tal
que me pareciam espíritos angélicos em tácita adoração à Divindade. É tão
fácil falar a um auditório assim, onde o orador sente uma como que aura
simpática, um poderoso fluido que sobe lá de baixo e, concentrando num
ponto, se comunica à alma do pregador, enchendo-a de grandes idéias, de
ardor, de entusiasmo e de espontânea eloquência. No silêncio do meu cubículo
só posso preparar a conferência, selecionando o assunto, dispondo a sucessão
dos pontos e argumentos, fazendo, por assim dizer, o corpo inerte da futura
conferência; mas a alma, essa só lhe vem no momento em que me acho diante
dum auditório com os olhos fitos em mim e com o espírito ávido de luz. A
matéria-prima, parece-me, vem lá de baixo; eu apenas lhe dou forma, e, assim
modelada, a restituo aos meus inconscientes doadores. Eles me enviam a luz
solar branca, neutra, incolor, e eu faço passar essa luz pelo prisma de minha
alma, devolvendo-a, dispersa nos irisados cambiantes da faixa septicolor, aos
que me deram sem saber.
O iniciado nesse misterioso intercâmbio psíquico compreenderá o que quero
dizer, sem poder definir – o profano verá nestas palavras um vácuo ou um
absurdo.
Tem-se em Curitiba a impressão de estar numa cidade da Europa, sobretudo
no inverno, que também é bastante europeu. Não só o claro das fisionomias,
como também o modo de vestir e o ambiente social nos dá esta ilusão.
Entretanto, Curitiba é uma cidade genuinamente brasileira, por mais que se fale
do elemento e da mentalidade alienígena do Paraná.
Tenho verificado, nas minhas viagens posteriores por todos os Estados do
Brasil, que o nortista, ao ver sobrenomes alemães, italianos, poloneses, etc., e
ouvir falar no elevado coeficiente de estrangeiros dos Estados sulinos, forma,
geralmente, idéia inexata da brasilidade desses descendentes de europeus;
costuma generalizar certos abusos havidos, infelizmente, em uma ou outra
localidade de predominância estrangeira. Mas seria falso e injusto observar por
esse prisma a maior parte dos brasileiros sulinos cujo sobrenome termine em –
mann - ini - ski, ou outra desinência reveladora de origem não lusitana. O
conceito que o nortista forma da brasilidade é, não raro, bem mais estreito do
que o do sulista. Para muito nortista (nem para todos), brasileiro que não se
chame Silva, Silveira, Souza, Carvalho ou coisa análoga, não é brasileiro
integral. Para o sulista, brasileiro é todo homem que nasceu no Brasil e vive
identificado com o espírito da nossa pátria, a cuja grandeza quer servir com as
luzes da sua inteligência, a lealdade do seu coração e o vigor dos seus braços.
Pela terra dos
Inconfidentes.
Chico Xavier.
O ano 1936 foi consagrado, quase todo, a excursões apostólicas através do
território mineiro. Viajei muitíssimo, e, mesmo assim, não consegui visitar a
terça parte da terra imensa de Tiradentes.
Nos arredores de Belo Horizonte, pelo leste e sul do Estado, é relativamente
fácil viajar. Norte e oeste, dificílimo. O mineiro da gema é retraído, desconfiado;
mas, quando amigo, é-o de coração e sinceramente. De índole
tradicionalmente religiosa, dificilmente aceita inovações. Desconfia de idéias
novas, principalmente quando elas vêm importadas via Rio de Janeiro ou São
Paulo, essas Babilônias da civilização.
Perlustrei, nesse ano – feliz e infeliz – grande número de cidades e vilas, entre
elas: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont, Nova Lima,
Sete Lagoas, Pedro Leopoldo, Pará de Minas, Itaúna, Divinópolis, Bom
Despacho, Pitangui, Sabará, Itajubá, Pouso Alegre, Varginha, Três Corações,
Brazópolis, Oliveira, São João Del Rei, Curvelo, Diamantina, Lavras; mais tarde
também Guaxupé, São Sebastião do Paraíso, Passos, Uberaba, Uberlândia,
Araguari, Formiga, etc.
Pouco me demorei desta vez na “cidade-jardim”, porque lá voltaria antes do
Congresso Eucarístico Nacional, que seria em setembro do mesmo ano. Tanto
mais extensas e demoradas foram as minhas expedições por outros centros do
grande Estado central. Era necessário tomar contato com bom número de
cidades e organizar em cada um desses pontos uma representação
permanente da Cruzada da Boa Imprensa, uma espécie de porta-voz
disciplinado que veiculasse toda e qualquer ordem ou sugestão irradiada da
nossa central no Rio de Janeiro. Era necessário “planificar” o nosso
movimento. Ainda nesse tempo era eu um insigne idealista e cria possível
organizar uma obra desse vulto sem ser fulminado pelo flagelo da inevitável
celebridade e cair vítima do próprio apostolado, como tem acontecido a
milhares de outros – e como poderia eu pretender ser uma exceção da regra?
O idealismo é uma espécie de ilusão, mas uma ilusão necessária e fecunda;
porque sem uma boa dose de idealismo e ilusão nada se consegue neste
mundo. É o volante da máquina. Menos ainda podia eu convencer-me da
verdade profunda dessas palavras do divino Mestre: lnimici hominis domestici
ejus, os inimigos do homem são os seus companheiros de casa. Oficiais do
mesmo ofício, como dizemos nós. Pensava eu, nesse tempo, rezando pela
cartilha decorada, que os meus piores inimigos fossem os incrédulos, os ateus,
os maçons, os protestantes, os espíritas, os dissidentes em geral,
deslembrando de que Jesus não encontrou hostilidade da parte dos pagãos de
Roma nem dos hereges da Samaria, mas, sim, da parte da sinagoga, do
sinédrio, dos sacerdotes, escribas e doutores da lei, isto é, dos seus
correligionários. Não sabia eu, nesse tempo, que não havia apostolado sem
martírio. Sabia, sim, mas não queria que assim fosse – e o que o coração não
quer, isto a inteligência não compreende, ainda que seja claro como o sol do
meio-dia...
Aprendi mais tarde, à força de infinitas decepções, que as obras católicas,
como talvez toda obra espiritual, percorre, geralmente, três fases evolutivas:1 –
quando pequenina, incipiente, ninguém liga importância, todos a tratam com
desprezo e pouco caso, e em face do idealismo do seu autor só têm palavras
de compaixão; encolhendo os ombros, julgam-se de seu ver desculpar o
“coitado que não conhece o mundo”; 2 – quando a obra entra num estado de
franca prosperidade começam as invejas, os ciúmes, as malevolências e
maledicências, os ataques à socapa, as calúnias, as guerrilhas de emboscada
ou até guerras em campo raso: fulano é ambicioso, – assim dizem os invejosos
e despeitados – é mercantilista, é judeu, explorador; montou uma empresa
católica que rende tantos milhares de cruzeiros por mês (e lá vão números
astronômicos); errou a vocação; explora a credulidade e boa-fé do público, etc.;
3 – mais tarde, quando a obra parece ter adquirido estabilidade definitiva,
surgem as tentativas de encampamento e oficialização, aparecem os
medalhões de proa, os catolicões de fachada, os heróis de opa e tocha; falam
em presidente, tesoureiro, secretário, 2.º secretário, 3.º secretário, vice-
presidente, vice isto, vice aquilo; cada um, está visto, com o seu infalível
expediente burocrático, e – last not least – o seu pingue ordenado; numa
palavra, querem reduzir a obra, levantada com infinitos sacrifícios, a uma vaca
leiteira holandesa, que forneça tantos litros de ótimo leite por dia, 10, 20, 30,
sem que eles, os beneméritos burocratas, tenham outro trabalho senão o de
ordenhá-la periodicamente e lançar-lhe, de vez em quando, um punhado de
capim.
Assim é que o católico que queira prestar algo de notável em prol do reino de
Deus, se vê sempre entre as duas tenazes de um dilema: ou dar à sua obra um
cunho de rigorosa disciplina, cobrando pontualmente as assinaturas de jornais
e revistas e insistindo no pagamento exato de livros fornecidos – e neste caso,
é fora de dúvida, granjeará entre milhares de católicos a pecha de judeu,
mercantilista e explorador. Ou então se descuidará da parte administrativa,
confiando em belas palavras, votos de prosperidade, lindos discursos e
piedosos suspiros, e de vez em quando, num festival de Filhas de Maria ou
tômbola de Natal – e neste caso se verá acoimado de incompetente, por
gregos e troianos, e não tardará a ver ingloriamente morta e sepultada a sua
obra gloriosamente iniciada.
De resto, já nesse tempo, com o aparecimento de novas obras minhas e com
tantas conferências em igrejas e salões, já começava o flagelo da minha
celebridade literária, sombra fatídica e inseparável da luz. Zoilos e Iscariotes
por toda a parte, mas sempre ocultos nas trevas do anonimato, ou envoltos nos
véus coloridos de lindas frases... “Salve, Mestre!... Aquele a quem eu beijar,
esse é – prendei-o!”... Tenho pensado muito na sensatez dos escritores que só
aparecem com pseudônimo... Se não tivesse outros inconvenientes, e graves,
convinha que todo escritor católico, para evitar o flagelo mortífero da
celebridade, escolhesse um pseudônimo e guardasse absoluto sigilo sobre a
sua identidade, sempre lembrado de que nenhum pigmeu tolera ser eclipsado
por um homem maior que ele...
Mas, nesse ano de 1936, não queria eu crer nestas coisas tão tristes e
vergonhosas para o nosso decantado catolicismo. Por isso, com toda a
coragem, continuei as minhas fadigosas viagens, de trem, de caminhão, de
ônibus, de cidade em cidade, de vila em vila, organizando, planificando,
difundindo o reino de Deus.
* * *
Na cidadezinha de Pedro Leopoldo, encontrei-me casualmente com Chico
Xavier (Cândido Francisco Xavier), médium espírita, que ainda nesse tempo
não possuía a celebridade de hoje, nem recebera mensagens de Humberto de
Campos; mas já se falava com insistência nas suas virtudes mediúnicas.
Diziam que psicografava lindas poesias, assinando sempre com o nome dum
dos nossos célebres poetas, poesias absolutamente inéditas. Bastava
entregar-lhe uma folha de papel em branco e um lápis, fazê-lo cair em transe, e
o Chico, que em estado vígil era incapaz de escrever uma página de prosa
correta, escrevia vertiginosamente as mais lindas poesias, que revestiam
sempre o colorido característico e o estilo do respectivo autor que firmava a
peça. Precisamente um decênio antes, na Europa, havia eu assistido a
numerosas sessões de ocultismo com os melhores médiuns do velho
continente; durante longas horas, nas condições mais favoráveis, em sessões
rigorosamente científicas, com ou sem luz vermelha, com todos os recursos do
laboratório da Universidade, havia eu observado e estudado casos de
transporte de objetos, de levitação, de fenômenos luminosos, de golpes
enigmáticos, de telepatia, clarividência, transmissão de pensamentos – e de
todo este material arquitetara eu a minha “filosofia ocultista”. Por isso me
interessava um encontro com Chico Xavier, não por motivo de curiosidade
espetacular, mas por interesse científico em fenômenos que fogem à alçada
das leis por nós conhecidas, embora não ultrapassem, provavelmente, as
barreiras da ordem natural.
Foi difícil o planejado encontro, porque o rapaz trabalhava numa fazenda fora
da cidade e só regressava à noite, cansado. Finalmente, consegui avistar-me
com o Chico, mas só no ônibus: moço, moreno, esquivo, ar sonâmbulo,
taciturno, cabeleira à Castro Alves. Diziam-no muito piedoso. Tão arisco o
encontrei que não consegui, propriamente, entabular conversa com ele. De
resto, como ele talvez considerasse inimiga essa gente de veste talar, e não
podia adivinhar o meu interesse puramente científico por esses fenômenos, era
natural que se esquivasse, desconfiado.
Mais tarde, li o livro dele intitulado Parnaso de Além-Túmulo, e li também a
crítica que Humberto de Campos fez dessa obra, numa crônica epigrafada,
creio: “Poetas do outro mundo”. Humberto, como é sabido, não cria,
propriamente, na existência dum mundo futuro, espiritual, embora muitos dos
seus artigos se baseiem sobre esta crença. Ridicularizou o livro, que encerra
numerosas mensagens poéticas do além, psicografadas pelo dito médium.
Ora bem, morre Humberto de Campos – e entrou na dança! Quem manda
mensagens por intermédio de Chico Xavier é, de preferência, o nosso grande
escritor maranhense...
Como explicar estes casos?
Tudo fraude, truque e trapaça?
É esta a resposta dos ingênuos, dos inexperientes, dos que, antes de pensar,
já sabem o que deve ser pensado, porque têm o seu critério rigorosamente
pautado por um chavão ou uma forma pré-existente: o que se adapta a este
molde está certo, o que não entra está errado. São dignos de inveja, esses
felizardos, porque nunca se verão atormentados pelos angustiantes problemas
que a nós outros, inquietos bandeirantes da verdade, dilaceram o espírito e a
existência terrestre – nós, que não conseguimos suicidar o próprio Eu,
matriculando-nos na escola daquele mestre que soprava contra o sol e dizia
aos discípulos: “Apaguei o sol; crede e não abrais os olhos!”...
Quem são os autores dessas mensagens psicografadas? Pois o médium serve
apenas de veículo de pensamentos que, evidentemente, não brotam do seu
interior. Médicos, juristas, homens de ciência e absoluta seriedade isolaram
Chico Xavier e entregaram-lhe papel e lápis – e ele funciona da mesma forma
sob este rigoroso controle. Não prepara coisa alguma. Não reproduz poesias
existentes, mas produz peças literárias inéditas.
Quem são, pois, os verdadeiros autores dessas mensagens?
– É a alma do próprio médium – dizem os animistas.
– É o diabo – responde o católico, obediente à máxima tradicional de atribuir a
Deus ou ao diabo todas as coisas inexplicáveis.
– São os espíritos desses homens desencarnados – afirma o espírita.
Há anos, apareceu um livro sobre os segredos do espiritismo, e nesse volume
afirma o autor, católico e sacerdote, que o conteúdo dessa obra de divulgação
e polêmica é a “última palavra sobre o espiritismo”. Cheguei à última página – e
não consegui proferir ainda a primeira palavra sobre o espiritismo, apesar de
ter realizado séries de sessões com alguns dos melhores médiuns da Europa.
Conhecer a sua própria ignorância, já é o a b c da sabedoria.
Mas ignorar a sua própria ignorância, é completo analfabetismo.
“O homem, esse desconhecido” – ó Alexis Carrel, que grande verdade
disseste!
O Cristo desconhecido.
Nas cidades mineiras de Itaúna e Divinópolis reconciliei-me um tanto com a
mentalidade religiosa reinante, porque naquela encontrei um vigário muito
sensato, e nesta os franciscanos holandeses abraçaram em cheio os ideais da
Cruzada.
Tanto mais dolorosa, porém, foi a minha decepção em Bom Despacho,
paróquia administrada pelos padres premonstratenses belgas. A igreja matriz
achava-se em obras, sem janelas nem bancos, pelo que não me era possível
falar nesse local. Havia a sala do cinema disponível nessa noite. O empresário
cedeu prontamente o amplo local para as minhas conferências. Quando o
coadjutor da paróquia, que era também o diretor da Pia União das Filhas de
Maria, soube que eu desejava falar no cinema, desandou-me um olhar em que
ia um mundo de estranheza e de lástima, como se dissera: Esse homem é
pagão! Cinema é coisa do tinhoso!...
Daí a pouco, encontrei-me com um grupo de Filhas de Maria, que me
comunicaram, cheias de tristeza, que não podiam comparecer às minhas
conferências.
– Por que não?
– Porque vão ser no cinema.
– E que tem com isto?
– O nosso diretor não permite que ponhamos pé no cinema.
– Deve ser engano; pois não se trata de cinema. Ele proíbe, de certo, a
assistência a filmes, mas não a simples entrada na sala de espetáculos para
ouvir uma conferência sobre a imprensa e literatura católicas!
– Sim, senhor, ele proíbe a simples entrada nessa sala, seja qual for o fim.
– Será que as paredes do edifício têm pecado? Estarão contaminadas? Terão
feitiço?
Entretanto, as jovens tinham razão: o mal estava no próprio edifício do cinema,
no soalho, nas paredes, no teto, nas cadeiras – estava tudo endemoninhado.
Do contrário, seria incompreensível a atitude desse sacerdote.
Veio-me à lembrança o fato de ter Jesus falado regularmente no templo de
Jerusalém e nas sinagogas locais dos judeus, embora profligasse certas
doutrinas que os chefes espirituais davam como revelação de Deus – esses
“sepulcros caiados”, esses “guias cegos”, essa “raça de víboras”. Como é que
o Divino Mestre podia ignorar que as paredes do templo e das sinagogas
estavam profanadas pelo demônio? Veio-me à mente também o fato de ter o
apóstolo Paulo falado, por espaço de uns dois anos, cada semana, no ginásio
de esporte de um certo pagão Tirano, na cidade de Éfeso, sem ao menos
suspeitar que esse edifício pagão era de todo impróprio para proclamar a
gloriosa mensagem do reino de Deus. Felizmente, o apóstolo das gentes nada
sabia da teologia do coadjutor da paróquia de Bom Despacho, e foi por isto que
tão despachadamente aceitou o convite do gentio Tirano para difundir o
Evangelho num salão de ginástica.
Aliás, não só naquelas minhas viagens de antanho, mas até ao presente dia,
encontro por toda parte essa mesma mentalidade estreita e anticristã. Tenho
falado em salões pertencentes a igrejas Evangélicas, ao Espiritismo, à
Maçonaria, ao Rotary Clube, ao Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento, aos Rosacruzes, à Sociedade Teosófica; tenho conferenciado em
teatros, cinemas, clubes de diversos tipos, até em oficinas mecânicas – e toda
vez muitos dos que não fazem parte dessas sociedades torcem o nariz e
acham que isto é uma apostasia ou uma profanação da mensagem evangélica.
Essa tendência de querer roubar ao Cristianismo o seu caráter universal e
cósmico, e reduzi-lo a uma seita ou piedosa confraria, é antiquíssima. Toda vez
que falo num local pertencente a uma denominação protestante, consta por aí
fora que me filiei ao protestantismo; quando falo na Liga ou na Federação
Espírita, os dissidentes fazem constar que “virei espírita”; quando aceito um
convite da parte de uma loja maçônica, muitos sabem que “o Rohden entrou
para a maçonaria”. Em Washington eu falava muitas vezes na Self-Realization
Fellowship, centro espiritual de origem hindu, e mesmo naquela terra de
amplos horizontes não faltava quem visse nisso uma apostasia do cristianismo
para o paganismo.
Ultimamente, pessoas mais romanas que cristãs descobriram que eu sou da
“seita dos yoguis”. O que essas piedosas ignorantes entendem por yoga ou
yogui – só Deus o sabe. Saber a verdade sobre isto é, certamente, “heresia” ou
“apostasia da fé”.
É dificílimo ao homem profano emancipar-se do espírito sectário e
compreender que o Cristianismo não é uma seita, igreja ou denominação, mas
a realização universal e incondicional do amor a todos os homens, inspirada no
amor de Deus, a fraternidade humana baseada na paternidade de Deus.
Depois de longos debates, consegui que o vigário permitisse às Filhas de Maria
a assistência às minhas conferências, naquele cinema endemoninhado. Mas o
coadjutor, em sinal de protesto, saiu da cidade; e o vigário, durante a
conferência, foi sentar-se no confessionário para ouvir os pecados das beatas
ainda não suficientemente paganizadas para porem pé naquele maldito local
onde eu ia proclamar a mensagem do Evangelho do Cristo. Daí o mandei
buscar por uma comissão de pessoas gradas do lugar, e ele, por exceção,
atendeu ao nosso apelo. Sentou-se, com a comissão, no estrado de honra,
mas, bem se via, estava sobre brasas. Deve ter suado frio durante toda essa
hora e feito penitência por todos os pecados que, tão sem cerimônia, entraram
naquele inferno de Satanás.
Contaram-me que, não muito antes dessa data, o presidente da Sociedade de
São Vicente de Paula, de Pitangui, realizara, em Bom Despacho, uma
conferência sobre Beethoven, no dito cinema – e também desta vez tiveram as
almas piedosas proibição categórica de assistir à mesma, não só por causa do
local profano, mas também porque a conferência versava sobre um compositor
que, na sua adolescência, tinha tido alguns deslizes...
Se adotarmos esse critério de canário de gaiola, teremos de abster-nos de
ouvir conferências e sermões e de ler livros sobre Santo Agostinho, Inácio de
Loyola, Francisco Xavier, e quase todos os luminares do Cristianismo, porque
todos eles, sem excetuar o próprio apóstolo Paulo e seu colega Simão Pedro,
passaram por certos períodos evolutivos nada edificantes.
Em vez destas pieguices e melindres, não seria melhor mostrarmos ao público
a força regeneradora do Evangelho do Cristo, quando entra na vida de um
homem pecador e se apodera da alma dele?
Nas florestas
amazônicas. Condutores
ou sedutores clericais?
Havia uns quatro anos que andava perlustrando, por terra, mar e ar, todas as
latitudes e longitudes desses 8 1/2 milhões de quilômetros quadrados que se
chamam Brasil.
Em centenas de cidades e vilas já ardiam os faróis da boa imprensa,
espalhando pela redondeza a luz das grandes idéias e dos excelsos ideais do
Evangelho. Centenas de correspondentes – homens, senhoras, moças, até
crianças – e diversos milhares de auxiliares colaboravam comigo na grande
Cruzada da Boa Imprensa. O fogo sagrado alastrava magnificamente.
Incêndios de entusiasmo iluminavam os céus do Brasil. Cerca de 100.000
volumes saíam, anualmente, do escritório da Cruzada e voavam por todos os
recantos do país. Além das nossas edições próprias difundíamos, cada ano,
uns 200.000 exemplares de outras casas editoras de orientação católica. Era a
Cruzada, assim, uma poderosa central de difusão de literatura cristã e, ao
mesmo tempo, um centro de controle e orientação, uma entidade que
examinava e selecionava criteriosamente os livros, orientando constantemente
os interessados que pedissem informações sobre o espírito deste ou daquele
livro. Éramos uma verdadeira Inspetoria de Higiene Moral, sempre de perfeito
acordo com a autoridade eclesiástica, que era o cardeal Leme, então arcebispo
do Rio de Janeiro.
A minha saúde, embora férrea (meu pai nunca esteve doente e morreu só de
velhice com 91 anos; minha mãe com 80) cedia, aos poucos, a essa tremenda
ofensiva material e espiritual. Organizar e supervisionar uma empresa de
projeção nacional, arranjar os meios para custear as enormes despesas, viajar
6, 8 e até 10 meses por ano, e ainda escrever, muitas vezes de noite, dezenas
de obras – era bombardeio por demais pesado para os meus nervos.
Numa dessas viagens pelos sertões da Bahia, andei mais de uma semana com
sezões que, na hora do acesso febril, me escaldavam o sangue até 40 ou 41
graus. Engoli tantas cápsulas de quinina que, por fim, o remédio resultou pior
que a moléstia; fiquei com tal zuada nos ouvidos que mal ouvia a minha própria
voz, e a insônia, que me fora de todo desconhecida, se tornou minha
companheira de noites intermináveis. Quando então, após essa maré de
sezões ou febres palustres, vinha a ressaca, era tamanha a fraqueza que me
acometia e a vertigem que tudo fazia girar, que só com extremo esforço
conseguia manter-me em pé.
Entretanto, eu não me rendia. Não interrompia o itinerário traçado. Não ia para
a cama. Mesmo com 40 graus de febre ou mais, seguia avante, de trem, de
caminhão, de marinéti, de sopa1, por vezes de avião, e falava duas, três vezes
por dia. Gastei uma fortuna nessas viagens aéreas, caríssimas, sobretudo
pelos ínvios sertões do nordeste e pelas florestas do norte e nordeste. A
Cruzada rendia, não para mim – que nunca guardei um só cruzeiro – mas para
si mesma, para a sua maior expansão e prosperidade. Eu só conhecia a
providência divina, e não as previdências humanas. Só mais tarde, quando
apunhalado pelas costas pela cobiça e inveja de colegas, é que abri os olhos e
percebi a necessidade de arranjar alguns recursos para a subsistência
material.
1. Nomes que, no Norte, dão aos ônibus do interior.
O pensamento de que me aproximava cada vez mais da realização do meu
ideal de muitos anos me dava forças e alegria para prosseguir na luta,
enquanto me restasse um átomo de energias. Desde os dois Retiros
Espirituais, de 30 dias cada um, fiquei como que obsessionado por essa idéia,
de criar no Brasil uma poderosa entidade que, em todas as cidades, vilas e
freguesias do território nacional, irradiasse constantemente a luz divina do
Evangelho, essa luz e essa força do além que eu chegara a conhecer e a
experimentar em mim mesmo e ansiava por tornar conhecidas de meus
patrícios. Tinha eu a firme convicção de que a vida humana só vale pelos
ideais que a animam – “viver as suas idéias e morrer por seus ideais”, como
escrevi mais tarde, num dos meus livros.
À luz desse ideal, todos os sacrifícios me pareciam insignificantes. Dinheiro,
saúde, tempo, forças, conforto – tudo isto só tinha um valor relativo, como meio
para atingir esse fim superior.
O meu intuito imediato era elevar o número de agências permanentes da
Cruzada a mil – e nem possuíamos metade desse número. Mas eu me sentia
cheio de entusiasmo e esperança toda vez que mais uma agência se alinhasse
com as antigas, formando mais um farol para espargir o conhecimento e amor
de meu divino Senhor e Mestre.
* * *
Em meados de 1937 estava eu em Belém do Pará, que era então a extrema
baliza da Cruzada. Para além desse gigantesco estuário do rei dos rios não se
conhecia a nossa organização, não circulavam, senão esporadicamente, os
nossos livros. Belém veio a ser uma potência. Um jovem sacerdote barnabita,
carioca, inteligente, dinâmico, realizador, meteu ombros à tarefa de organizar o
serviço da difusão literária na metrópole paraense. Em breve se tornou esse
novo centro o número um do Brasil. Um grupo de jovens apóstolas levantou
completo cadastro da cidade, distribuindo grupos de propagandistas
permanentes por todas as zonas e bairros. Foi uma verdadeira ofensiva de
livros cristãos. Ofensiva que devia durar diversos anos, até o tempo em que a
Cruzada caiu assassinada pela invidia clericalis.
Que haveria para além desse extremo limite? Manaus?...
Manaus! O meu sangue de aventureiro não resistiu ao desejo de demandar a
capital longínqua das selvas tropicais...
Tive sorte. Chegara a Belém, levando excursionistas (professores e
professoras) brasileiros do centro e do sul, o vapor Jaceguai. Tirei passagem,
e, por espaço de cinco dias e cinco noites, fomos subindo a vasta torrente que
nasce na cordilheira dos Andes e morre no seio do Atlântico.
Devo dizer que o Amazonas foi para mim uma grande decepção. Não vi o
Amazonas de que lera e que trazia na imaginação. Navegávamos
constantemente, dia a dia, num canal de água barrenta. Como? Aquilo era o
célebre Amazonas? Cortávamos para a direita, para a esquerda, duas, três,
quatro vezes, e sempre
estávamos ainda num canal. Até Santarém, mais ou menos o Amazonas é um
enorme complexo de canais, rios, ilhas, paranás, igarapés, lagos, banhados,
canaviais, ilhotas semicriadas, seminascituras, bosques flutuantes – o Gênesis
antes do fiat definitivo. Tudo aquilo deve ser terra de aluvião que a cordilheira
dos Andes, em eras pré-históricas, despejou mar adentro, até formar aquelas
imensas planícies de terra e água. A monotonia é absoluta, fatigante. Cada
manhã, o mesmo panorama do dia anterior. O Amazonas só impressiona pela
grandiosidade, pelo incomensurável das suas extensões. As ribanceiras, ao
menos até Santarém, quase até Óbidos, são planas como uma mesa, sem
nenhuma elevação de vulto. Jacarés, às centenas, aos milhares, semi-
enterrados na lama tépida, só com os olhos e as salientes narinas de fora,
como um par de periscópios, encarnação da inércia, não se movem, nem
mesmo se dão de um tiro de revólver, porque a bala ricocheteia na terrível
couraça. Aqui e acolá, o corpo desgracioso de algum peixe-boi a comer
indolentemente o viçoso capim das margens, como se fosse capivara, não é
nem peixe nem boi, é um mamífero que se esqueceu da sua espécie e trocou a
terra firme pelo elemento líquido, sem conseguir virar peixe autêntico. Garças,
cegonhas, guarás, marrecos, sem conta, ao ponto de escurecerem o sol,
quando, aos milhares, erguem vôo. De longe em longe, a vivenda primitiva
duma família de silvícolas, construção tosca suspensa entre os troncos das
árvores, a salvo das enchentes.
* * *
Domingo à tarde, chegamos a Itacoatiara, pequena cidade sobre a margem
direita de quem sobe o rio. Como o nosso vapor parasse umas horas, saltei em
terra e dei um giro pela cidadezinha. Perguntei pela casa do vigário. É lá
adiante, à beira do rio, disseram umas moças em trajos domingueiros,
acrescentando: Mas, o nosso Vigário está quase a morrer...
– A morrer?
– Sim, voltou das matas, ontem. Deram-lhe umas febres. Também já é muito
velho, coitado...
Quando entrei na casa paupérrima, defrontei com uma rede suspensa numa
grande sala quadrada. Em torno da rede, algumas pessoas, e, estendido nela,
um homem entre 70 e 80 anos presumíveis. Cabelo branco; as barbas, quase
da mesma cor, havia tempo não conheciam navalha. O olhar febril, as faces
encovadas, cadavéricas...
Quando saudei o velho sacerdote – Pereira, se bem me lembro – um lampejo
de satisfação iluminou-lhe o semblante esmaecido.
– O sr. é padre? – perguntou com estranheza, esforçando os olhos por entre as
penumbras da sala.
– Sou, sim, senhor. Venho do Rio de Janeiro, em trânsito a Manaus.
– Ah! foi Deus que o mandou aqui! – exclamou o moribundo, agarrando-me a
mão e beijando-a efusivamente. Depois, com violento acesso de tosse e súbita
tontura, deixou-se cair na rede, da qual soerguera o corpo magríssimo.
Passado o acesso, prosseguiu: – Pois, foi Deus que aqui o trouxe... Vou
morrer, hoje ou amanhã... Vim das matas, ontem, onde passei uns meses,
visitando meus paroquianos... Distâncias enormes... Só de canoa, dias e noites
a fio... Muitos insetos venenosos... Depois, as febres palustres... Há uma
semana que ando doente, com impaludismo... Outras complicações... Sou
velho... A febre de 41 graus... Fui dado por morto... Há dias que não como... O
meu fim está próximo... Minha última confissão foi há muitos, muitos meses... É
impossível, por aqui... Não há um colega em toda a redondeza... Para ir à
paróquia próxima perco mais de uma semana...
Eram estas palavras proferidas a jato, com intermitências e grande esforço...
A um sinal do moribundo, todas as pessoas se retiraram. Sentei-me ao lado da
rede, num tamborete, com uma das mãos dele entre as minhas. Rezamos
juntos, naquela sugestiva penumbra, onde rondava a morte... Ajudei-o a fazer
exame de consciência... O velho lutador fez a sua confissão, a última da sua
vida terrestre, como ele pensava... A seguinte – só ante o trono de Deus, sem
confessor humano... Enquanto ele ralava, vagarosamente, sincera e
humildemente como uma criança, julgava eu ter diante de mim um daqueles
neo-comungantes da minha antiga paróquia da Laguna, em Santa Catarina,
para os quais escrevi o meu livrinho Mistério de Amor... O momento era
divinamente solene e terrífico... De repente, lembrei que não tinha jurisdição
eclesiástica, para a diocese de Manaus. Não precisa – disse o velhinho – Deus
também é bispo...
Terminada a confissão, a penitência, a ação de graças, conversamos mais à
vontade, e expliquei ao colega a finalidade da minha viagem.
– E aqui, na minha paróquia, não há representante da sua Cruzada?
– Ora, se eu nem sabia da existência de Itacoatiara...
– Pois faço questão de ter aqui uma representante da boa imprensa, antes que
feche os olhos para sempre. É uma necessidade. Este povo é bom, mas não
tem instrução religiosa. Alguns sabem ler... Ó Aparecida! vem cá, Aparecida!
Aproximou-se uma moça para receber ordens.
E o velhinho, ofegante, quase a agonizar, começou a explicar à Aparecida o
que ela tinha de fazer para iniciar a campanha do bom livro, no meio daquelas
selvas. Suava frio, de tanto esforço, esse herói moribundo.
– Deixe, padre, deixe que eu lhe explique! – intervim, ao ver o cansaço do
doente.
– Não, não! – replicou ele. Quando eu explico, minha sobrinha me atende. Ela
é muito dócil e piedosa.
E assim foi o velho explicando à jovem, com o último resto de suas forças, a
necessidade da campanha do livro religioso e o modo de realizar esse
importante apostolado.
E eu pensava em Paulo de Tarso a evangelizar os povos, mesmo do fundo do
leito de dores, mesmo à sombra do cárcere...
Há muitos desse heróis anônimos, no fundo das matas e dos sertões do Brasil.
Ninguém lhes canta as glórias. O seu nome não aparece, em letra de forma,
nas colunas dos jornais. As estações de rádio e televisão os desconhecem. O
“mundo civilizado” não sabe da sua existência. Entretanto, são esses os
brasileiros autênticos, os pioneiros da cultura, os bandeirantes da fé, os
guardas avançados do idealismo cristão. Apóstolos da sua missão, acabarão
necessariamente mártires do seu incompreendido heroísmo.
A Aparecida veio dar uma ótima representante da Cruzada em Itacoatiara. Não
era grande o movimento de livros, porque não eram muitos os alfabetizados,
mas cada livro era lido e relido com muita atenção e interesse, ao pé do fogo,
pelos que sabiam ler, escutados pelos que queriam ouvir.
Em face de episódios desses, minha alma criava vida nova, e a plantinha da
minha esperança, por vezes um tanto murcha, erguia a cabeça sonhando com
melhores dias para o nosso querido Brasil...
Padre Pereira, ou que nome tenhas: se ainda estás entre os vivos cá em baixo,
ou se já estás lá em cima no mundo dos sempre-vivos, daqui da minha humilde
tenda de trabalhos, envio-te um grande abraço de amigo irmão, e rogo-te que
infundas na alma dos teus colegas de sacerdócio algo do heroísmo e da
pureza de alma que iluminavam a tua vida terrestre.
No meio do fragor da campanha que, daí a poucos anos, algumas ordens
religiosas desencadearam contra mim e meu apostolado, pouco sentia eu por
mim mesmo, calejado como estou com tanto murro e pontapé; muito sentia por
todas as “Aparecidas”, diversas centenas, por esse Brasil afora. Como terão
elas sofrido com os horrores que boa parte do clero e do episcopado criou
dentro do catolicismo brasileiro, proibindo, execrando como “perniciosos à fé
católica” todos os meus livros, tão efusivamente aprovados e abençoados por
meu superior diocesano e tão avidamente lidos e assimilados pelas almas
desejosas de luz e forças divinas! Tremenda decepção deve essa campanha
satânica ter causado a essas almas simples, dedicadas, alheias a todas essas
paixões de que caiu vítima parte dos que deviam ser os guias espirituais dos
seus rebanhos – e de condutores que deviam ser se tornaram sedutores e
mercenários...
Não creio que todos os não-católicos ou anti-católicos em conjunto tenham
feito tanto mal ao catolicismo como esses sacerdotes que se revoltaram contra
a autoridade eclesiástica que aprovara os meus livros e mentiram ao povo
brasileiro, a fim de advogarem os interesses financeiros dos seus conventos e
das suas ordens e congregações...
Deus tenha piedade deles...
E piedade também das suas vítimas...
Marajó, um mundo em
gestação. Cristianismo
em marcha.
Encontrei em plena floresta amazônica uma cidade moderna, próspera,
confortável, estética. Encontrei um povo amigo, simpático, cristão. Encontrei
um mundo intelectual ávido de saber.
Realizei, no vasto Teatro Amazonas, uma semana de conferências,
patrocinadas pelo Dr. Álvaro Maia, então Interventor Federal nesse Estado.
Quando eu via upadas cada noite aquelas 3000 cadeiras e milhares de olhos
focalizados em mim, em intensa expectativa e profundo silêncio, sentia dentro
de mim uma como que onda psíquica que me sugestionava poderosamente e
me inspirava idéias melhores do que aquelas com que viera ao recinto. Eu via
a magnificência do reino de Deus a despontar em milhares de almas. Como
Tertuliano tinha razão em dizer que a “alma humana é cristã por sua própria
natureza”! As teologias, mais tarde, em tempos de decadente escolasticismo
intelectual e não espiritual, inventaram que a alma é, por sua natureza, inimiga
de Deus, anticristã, e que certas cerimônias e fórmulas litúrgicas a devam fazer
cristã: Essas teologias são, certamente, úteis a uma determinada classe
sacerdotal, mas são a negação radical da verdade expressa pelo divino Mestre:
“O reino de Deus está dentro de vós”. É que toda alma é divina, cristã por sua
íntima natureza, embora nem todas realizem e atualizem esse cristianismo
latente e potencial. Por isto é que veio o Cristo, ele, o Cristianismo plenamente
atualizado, para mostrar-nos como também nós podemos e devemos atualizar
em nós o nosso Cristianismo inato e ainda dormente. É este despertar do
Cristianismo dormente da alma que o Mestre chama o “renascimento pelo
espírito”. Tudo isto sentia eu poderosamente, em ocasiões como esta. Todo
orador ou conferencista espiritual sabe que as melhores idéias lhe vêm só
quando ele está diante dum auditório propício, com a necessária receptividade
para apanhar as invisíveis irradiações de que o orador se sabe emissor, e que
da antena sensível dos ouvintes são novamente refletidas sobre ele, surgindo
com redobrada clareza, veemência e entusiasmo. Esse intercâmbio de ondas
divinas e algo que ninguém pode descrever, mas que alguns podem sentir.
Isto, porém, não dispensa o orador do trabalho prévio da preparação do
assunto. Mas essa preparação prévia é apenas o elemento intelectual e
técnico; a inspiração é algo inteiramente diferente, é espiritual, cósmica. Um
grande escultor, em Paris, costumava dizer a seus discípulos: “Estudai com
perfeição as regras da técnica da arte – e, depois, esquecei-vos de toda
técnica e cedei à inspiração”. Do consórcio do consciente e do subconsciente,
do intelectual-técnico e do espiritual-cósmico, é que nascem as grandes obras
de arte de valor permanente.
Poucas vezes vi tanta sede de saber, tamanha avidez do intelecto e da alma,
como entre o povo de Manaus. Eu falava, isto é, palestrava sobre assuntos da
vida ética e espiritual do homem uma hora inteira. Na segunda ou terceira noite
veio ter comigo uma comissão perguntando se podia prolongar as minhas
palestras por uma hora e meia ou duas, porque era raro aparecer em Manaus
quem assim conversasse sobre assuntos de palpitante interesse. Daí por
diante falava eu, cada noite, das 20 às 22 horas, e ninguém se movia do lugar.
Por vezes, em cidades do litoral, antes de subir à tribuna, recebo do
encarregado da organização o discreto aviso: “Não passe de 30 minutos, por
favor, porque o povo não aguenta”. Semelhante injunção seria para desanimar
qualquer orador, se ele não soubesse por experiência que esse “aguentar” ou
“não aguentar” depende do modo como ele fala; por via de regra, os ouvintes
“aguentam” tudo, desde que o orador saiba falar-lhes de alma para alma, e não
apenas de cérebro a cérebro, ou de lábios a ouvidos. De resto, quando um
orador saca do bolso enorme maço de tiras de papel e começa a declamá-las,
uma por uma, com a costumada e insuportável entonação retórica e gestos
previamente ensaiados diante do espelho – neste caso, é claro, convida ele os
presentes a se ausentarem, ou, se porventura ficarem, a dormir em vez de
ouvir.
Comigo, nunca ninguém foi obrigado a “aguentar”. Os que ouviram alguma das
2000 conferências que, entre 1935 e 1940, realizei em cerca de 500 cidades e
vilas do Brasil, sabem que não uso de retórica artificial, não me arvoro em
orador de alto coturno, nem assumo ares dramáticos de conferencista ou
pregador, mas que me limito a expor, simples e sobriamente, em tom de
palestra, uma série de pensamentos que interessam a qualquer ser humano
ainda não adulterado em sua íntima natureza cristã. E isto não cansa a
ninguém. Todos acompanham espontaneamente o curso das idéias, quando
estas são o eco da sua própria alma e dizem explicitamente o que cada homem
já sabia implicitamente, embora não fosse capaz de externá-lo assim como o
orador o expõe. O que disse no capítulo “Locutores da Humanidade” do mais
lido de todos os meus livros, De Alma para Alma, é exatamente o que todo
escritor ou orador deve fazer, quando quer ser ouvido e lido com vivo interesse
e espontâneo entusiasmo. O autor, naturalmente, deve estar intimamente
convencido da verdade daquilo que diz; deve ter vivido, sofrido e gozado essa
verdade; do contrário, não poderá produzir convicção nos seus ouvintes ou
leitores, por mais perfeitas que sejam as suas frases e seus períodos clássicos.
Não é a palavra, mas sim a convicção que convence. “Convencer” é um
composto de “vencer”; eu estou convencido duma verdade quando sou por ela
vencido; e só posso convencer outros da mesma verdade se esta verdade que
me venceu, que me derrotou, que me domina como um senhor domina seu
servo, vence, derrota e domina soberanamente os meus ouvintes e leitores. A
absoluta sinceridade das nossas palavras é o requisito número um para
convencermos os outros daquilo que dizemos; eu devo ter vivido integralmente
aquilo que digo para fazer com que os outros o vivam também. O que decide é
o elemento invisível e imponderável, a íntima vivência daquilo de que as
palavras são apenas o elemento visível e ponderável.
Devido a essa falta de sinceridade, vigora entre nós o abominável costume, ou
vício, de o orador levar longo tempo para se desculpar perante o público,
frisando hipocritamente a sua “absoluta incompetência” e “reconhecida
incapacidade” (aqui, naturalmente, ele abre uma pausa, aparentemente para
tomar fôlego, na realidade, porém, para ouvir, das primeiras filas da platéia, o
dulcíssimo “não apoiado”, música inefável para a sua complacente vaidade).
Por que perder tempo para afirmar a sua incapacidade? Se ela de fato existe, é
supérfluo prová-la de antemão, o público o verificará dentro em breve.
De Manaus, mandei à sede da Cruzada, no Rio de Janeiro, uma mensagem
telegráfica, felicitando-a pela conquista dessa longínqua etapa, na gloriosa
marcha do Cristianismo dinâmico. Verdade é que existiam por conquistar
fronteiras mais distantes. No Acre mantínhamos diversos centros de difusão;
mas lá nunca estive pessoalmente. Quanto aos dois Estados do oeste, Goiás e
Mato-Grosso, deixara-os para tempos posteriores, que não vieram, porque a
invidia clericalis destruiu nossa obra apostólica antes do tempo.
Convidado por esse benemérito apóstolo leigo e sincero amigo, que era o Dr.
André Araújo, então Juiz de Menores, internei-me, com um grupo de amigos,
floresta adentro, até a linda cachoeira de Tarumã, e outra, cujo nome me fugiu.
Todos os meus leitores conhecem obras magníficas sobre a grandiosa
natureza tropical dessas regiões, e não esperarão de mim uma descrição das
selvas amazônicas e da estupenda exuberância e deslumbramento da sua flora
e fauna. De resto, que idéia poderia a silenciosa palidez de umas folhas de
papel inerte dar da exultante epopéia viva e vibrante da realidade objetiva?
Quem não viu com seus próprios olhos, e viveu com sua alma, essas
magnificências, nunca terá idéia exata do que seja, de fato, a Amazônia. Calor
perene, umidade abundante, solo fertilíssimo – eis os requisitos básicos para
esse eldorado do mundo vegetal e animal no clímax da sua expansão e
vitalidade. Aqui imperam ainda, em plena pujança, os longuíssimos períodos
pré-históricos da época mesozóica, quando as condições do globo terráqueo
se achavam empenhadas nessa dramática revolução que assinala a transição
da adolescência para a maturidade. A Amazônia é uma adolescente tropical
em luta pela adultez. Aqui, o livro do Gênesis continua aberto, em plena
evolução do segundo ou terceiro “dia da criação”... O fiat definitivo está ainda
por ser proferido...
No meio dessas selvas tropicais invadiu-me, novamente, o velho desejo de
estar a sós e de ficar a sós para sempre, com Deus e com minha alma – a voz
do meu estranho egoísmo místico. Por que será que o contato com a Natureza
virgem nos infunde essa profunda e benéfica quietude interior – quietude que
poderá, ao mesmo tempo, converter-se em malefício, num veneno inebriante?
Dizem os orientais que a Natureza (maya) “revela e vela” a Deus, e isto é
profundamente verdadeiro. Revela, manifesta, porque é obra de Deus – vela,
oculta, porque é incompleta essa revelação. Na Natureza infra-humana, Deus
aparece como um poder impersonal; na consciência humana, ele aparece
como um ser personal, que se revela pelo imperativo ético do dever moral.
Entretanto, Deus não é nem impersonal, como aparece na Natureza, nem
personal, como aparece na consciência humana – ele é suprapersonal, ou
melhor, onipersonal, como aparece na existência íntima dos grandes videntes e
místicos, quando, “arrebatados ao terceiro céu”, percebem “ditos indizíveis”.
“árreta rémata”, como diz Paulo de Tarso, depois de ultrapassar a zona do
impersonal e de personal e arribar às praias ignotas do onipersonal, cujo
conteúdo é “dito” à alma, mas não é “dizível” pelo intelecto ou pelos lábios
corpóreos. Deixar-se absorver e embriagar pelo fascínio impersonal da
Natureza é um perigo sutil, um veneno suavemente mortífero para o homem
suficientemente iniciado na onipersonalidade do mundo divino...
Quem jamais experimentou, no seu subconsciente, essa veemente sucção dos
misteriosos abismos da natureza infra-humana, sabe do perigo que há nessas
inebriantes melodias das tenebrosas Circes das profundezas e das fascinantes
Sereias de ilhas longínquas... E sabe também que esses demônios dos
abismos de mundos ignotos só se transformam em anjos de alturas celestes
depois que o homem ingressou na luz meridiana duma experiência vital do
Cristo e do reino de Deus dentro dele mesmo. Para esse homem cessou a
funesta sucção do vórtice rumo ao abismo; a Natureza se lhe tornou amiga e
aliada no seu caminho em demanda do Criador comum do homem e da
Natureza.
Tudo isto, e muito mais, era pensado em mim, na misteriosa semi-noite
meridiana que me envolvia, por entre os gigantescos troncos e as altíssimas
frondes dessa imensa catedral das selvas amazônicas, ao trovejante Te Deum
da cachoeira e às discretas melodias filigrânicas das aves e dos insetos em
derredor.
* * *
Terminada a semana de conferências, com a alma repleta de gratidão,
entusiasmo e experiências inéditas, meti-me no bojo de um aviãozinho
minúsculo, único que a Panair, nesse tempo, mantinha nessas zonas, a fim de
encurtar por 9/10 a distância entre Manaus e Belém. Dom Basílio, piedoso
bispo franciscano de Manaus, apesar de realmente pobre como o simpático
vagabundo de Assis, fez questão de pagar pelo menos metade da minha
passagem aérea – foi esta, aliás, a única vez que alguém, espontaneamente,
contribuiu para o custeio das enormes despesas que minhas contínuas
excursões reclamavam. E convém frisar esse gesto, tanto mais que, pouco
depois, a cobiça de
Ordens e Congregações religiosas estrangeiras (Dom Basílio era brasileiro)
iniciou a destruição da Cruzada. O bispo, na sua bondade e simplicidade,
acompanhou-me até ao aeroporto fluvial, e, quando me viu desaparecer no
fundo da ave metálica (entrava-se por um alçapão de cima), na qual cabiam
apenas cinco passageiros, exclamou: “Nem por nada embarcaria eu nessa
geringonça!”
E lá fomos, subindo, subindo, 3000 metros, deixando em baixo, muito longe, a
fita argêntea do rei dos rios, emoldurado no verde-escuro das matas a espraiar-
se por horizontes sem fim. Pouco a pouco, a fita argêntea, à medida que
recebia os contingentes dos seus grandes tributários da direita e da esquerda,
se alargava, se esfiapava caprichosamente, invadindo o interminável oceano
de verdor, abrangendo entre seus braços líquidos ilhas e ilhotas, algumas
ainda em estado embrionário. Tive a impressão de que a Amazônia foi
surpreendida pelo homem ainda em plena gestação; não estava, a bem dizer,
em condições de nascer para a civilização e ser normalmente habitada, a não
ser por algum homem pré-histórico. Só falta andarem por aí uns sauros, ou
cruzar os ares a sombra de alguma fantástica archeopterix para lhe dar perfeita
similitude com a fisionomia da época terciária, que precedeu ao advento do
chamado homo sapiens.
A ilha de Marajó, como soube mais tarde, e muitas das suas milhares de
colegas amazônicas, tem poucos trechos de solo realmente resistente. O resto
é um mingau, misto de terra e água, em todas as graduações de liquidez ou
solidez. Admirável a inteligência da flora marajoara! Como as plantas
aprenderam a adaptar-se a esse solo incerto, onde pouco valeria à árvore
possuir um único tronco, pois a primeira rajada violenta daria com ela em terra.
Certa espécie de figueira, abundante nessa ilha, que tem mais ou menos a
área da Suíça, sai dos banhados em forma duma haste delgada; desenvolve-
se com grande rapidez, porque o cardápio é dos melhores e mais suculentos
do mundo; estende horizontalmente os primeiros galhinhos; deita logo, de
todos os pontos dos galhos, uns fiozinhos verticais, raizinhas finas como
barbantes, em demanda do solo; mal atingida a terra pantanosa, engrossam os
flexíveis filamentos, enrijam, avolumam, dilatam-se, dando uns como cabos de
navio, e, por fim, acabam em verdadeiros troncos suplementares da árvore. E,
enquanto engrossam e se enterram no solo pantanoso, descem das alturas
desses galhos dezenas, centenas, milhares de novos fiozinhos vivos – até que,
por fim, toda a figueira se acha circundada duma verdadeira paliçada de
estípites, apoiada em centenas de troncos secundários, rodeando o tronco
primário, formando verdadeiras paredes vivas. Penetrei pelo raizame labiríntico
de uma dessas figueiras marajoaras, que media seguramente 50 metros de
diâmetro, e tive a impressão de me achar por entre os feixes de colunas
góticas, da catedral de Milão, Colônia ou Notre-Dame de Paris; muitas
centenas de colunas me cercavam e envolviam em misteriosa penumbra; o
bloco maciço dos troncos unidos devia ser de uns 20 metros de diâmetro; só
aqui e acolá se enxergava ainda alguma fresta, espécie de janelinha gótica por
entre as raízes solidamente aliadas e inseparavelmente unidas. Venha agora
quanto vendaval quiser – não conseguirá derribar essa árvore, que teve a
previdência de criar centenas de pontos de apoio no meio do terreno vacilante.
Quanto mais o nosso minúsculo aviãozinho se aproximava do estuário, tanto
mais perdia o Amazonas o seu caráter de torrente uniforme e assumia visos de
imensa planície feita de ilhas e lagos.
Tive convite insistente, em Manaus, para lá voltar no próximo ano, a fim de
pregar os sermões da Semana Santa, com todas as despesas pagas. Não
pude aceitar tão sedutora oferta, porque, nesse tempo, estaria eu em vésperas
de embarcar para a Europa, chefiando uma peregrinação brasileira que ia
representar o Brasil católico no Congresso Eucarístico Internacional de
Budapeste.
Não suspeitava eu o que, depois do meu regresso do Velho Mundo, ia
acontecer comigo e com minha Cruzada...
Brevemente, o leitor saberá...
Excursionando pela
Europa. Audiência
com o Papa em
Castel-Gandolfo.
Em fins de maio de 1938 ia celebrar-se, em Budapeste, o 360 Congresso
Eucarístico Internacional. Todo o mundo católico se faria representar.
E o Brasil? Não tomaria parte?
Nuvens sinistras acastelavam-se nos horizontes políticos do velho mundo. Os
jornais davam páginas inteiras sobre complicações internacionais, preparativos
bélicos, desenfreada corrida armamentista. A Alemanha, completamente
derrotada na primeira Guerra Mundial, realizava um dos maiores prodígios de
que há memória nos fastos da história humana. Sem colônias, sem exército,
sem marinha, tremendamente endividada, e, pior de tudo, minada de um
pessimismo sem precedentes, com guerras civis a todo momento, milhões de
desempregados, legiões de vagabundos – essa Alemanha ressuscitara
subitamente, em 1933, como que tocada por uma varinha mágica...
Ressuscitara e, em menos de 6 anos, se achava assaz forte para ameaçar o
mundo inteiro com as suas forças bélicas. Como explicar tão inaudita
metamorfose? A varinha mágica se chamava “fé” – fé no seu futuro, fé nas
possibilidades latentes, fé no seu grande destino na história da humanidade.
E quem despertara a fagulha latente dessa fé era um homem possesso de um
demonismo sinistro, que até ao presente dia é um dos tenebrosos mistérios do
gênero humano – Adolf Hitler. Reboou pela Alemanha derrotada e pessimista a
palavra estranha desse pretenso redentor – e milhões de vagabundos,
maltrapilhos e desempregados se transformaram, da noite para o dia, em
outros tantos soldados disciplinados ou dinâmicos operários das fábricas de
munição, impelidos mais pela fé e pelo entusiasmo nacional do que pela
esperança mercenária de vantagens materiais. Meninos, quase crianças, de 12
a 14 anos, pedem ao Fuehrer o insigne privilégio de serem admitidos no
exército, na marinha, na aeronáutica, prevendo a gloriosa possibilidade de
jogarem bombas destruidoras sobre Varsóvia, Londres, Paris, etc.
A guerra, como é sabido, deflagrou em setembro de 1939. Em princípios de
1938 andavam as nuvens prenhes de ameaças, e ninguém sabia quando
romperia a grande catástrofe...
Levar para além do Atlântico um grupo de peregrinos envolvia enorme
responsabilidade. O Brasil católico, pelo que se previa, não tomaria parte nesse
Congresso Eucarístico.
Foi então que minha Cruzada da Boa Imprensa, simples casa editora,
perpetrou – digamos assim – uma das suas mais arrojadas façanhas, quiçá a
mais arrojada de todas. Arrostar o impossível é terrivelmente inebriante... Pedi
permissão ao cardeal Leme para organizar uma excursão a Budapeste. Íamos
visitar também Roma e outros centro culturais da Europa. Dom Sebastião
Leme logo aprovou a minha idéia e mandou-me, em magnífica carta, a sua
bênção e seus votos de feliz êxito.
Mãos à obra! Os 10 ou 11 meses que então se seguiram foram de intensa
atividade em torno da idéia da excursão. O nosso escritório de casa editora
quase que se transformou numa agência de turismo internacional. O Brasil
inteiro ficou sabendo do nosso plano, aplaudido por muitos, incriminado por
não poucos. De mãos dadas com meu gerente-jornalista, elaborei o itinerário. A
excursão abrangeria, oficialmente, sete países: França, Itália, Áustria, Hungria,
Iugoslávia, Suíça, Alemanha, levando um total de três meses. Pronto o
itinerário, fomos ter com as grandes empresas de turismo, Exprinter, Waggon-
Lit Cook, e outras. Os orçamentos que de lá nos vieram nos pareceram
exorbitantes, embora, à luz dos preços de hoje, fossem “café pequeno”. Numa
dessas empresas a excursão, tudo incluído, custava Cr$ 12.000,00, na outra,
Cr$ 15.000,00 por pessoa, em classe turística, e um pouco mais em primeira
classe. Hoje custaria dez vezes mais. Mas nesse tempo, 12 e 15 contos eram
fortunas enormes.
Abrimos mão das empresas de turismo e viagens e resolvemos fazer tudo sem
intermediário algum dessa natureza.
Como?... Houve quem me julgasse louco varrido...
Entretanto, querer é poder! Afinal de contas, era simples questão de cálculo e
organização: preço da passagem marítima, em primeira e segunda classes,
tanto, com o costumado desconto para grupos maiores. Quanto às viagens
terrestres pela Europa, hospedagem, etc., entendi-me com um amigo em
Gênova, proprietário de confortáveis ônibus Fiat. Preços, tais e tais. Cheguei à
conclusão final de que o preço, por pessoa, seria de Cr$ 8.500,00 em classe
turística e de Cr$ 10.000,00 em primeira classe. Em terra, naturalmente, não
haveria diferença de preços.
Sobre esta base lançamos o prospecto definitivo.
Começou o período do trabalho mais insano. Centenas e centenas de pessoas
pediram informações sobre todos os pontos, possíveis e impossíveis – uma
professora sertaneja até quis saber o que se comia a bordo, se havia feijão
com arroz, etc.; do contrário ela não iria.
Finalmente, em fevereiro de 1938, tínhamos uns 300 candidatos certos –
quando veio o grande colapso! Colapso parcial, é verdade... Em março desse
ano resolveu Hitler anexar a Áustria ao Reich alemão – e quase 200 dos
nossos candidatos desistiram da viagem, na certeza de uma iminente guerra
européia ou, quem sabe, duma conflagração mundial... Nós, que estávamos
em contato permanente com os nossos consulados e embaixadas em Roma,
Paris, Londres, Berlim, Viena, Budapeste, etc., sabíamos que, segundo todas
as previsões dos entendidos, não haveria guerra em 1938; mas, como
convencer outros dessa nossa convicção, no extremo norte ou sul, leste ou
oeste do nosso imenso Brasil? Os jornais tinham de viver, e, por falta de
assunto melhor, exploravam amplamente a “iminência de uma guerra mundial”.
Ficamos com 120 excursionistas firmes e fiéis até o fim, entre eles 15
sacerdotes e um arcebispo, D. João Becker, de Porto Alegre. Mandamos
reservar passagens nos vapores Oceânia, italiano, e Kosciuszko, polonês,
sendo que este levaria os nossos peregrinos a Boulogne-sur-mer, norte da
França; aquele, a Nápoles. Em Milão haveria junção das duas turmas, em dia
marcado.
Dito e feito.
Embarcamos em fins de abril, nos dois transatlânticos, acompanhados das
carinhosas bênçãos do cardeal Leme e do Núncio Apostólico, sendo que este
último veio pessoalmente ao cais e a bordo trazer-nos os seus votos de boa
viagem e feliz regresso. Dom Sebastião Leme, doente no seu sítio em Itaipava,
fez-se representar por seu secretário particular, Monsenhor Melo, trazendo-me
de Sua Eminência uma das mais belas cartas que possuo.
Associei-me ao grupo maior, que seguia pelo Kosciuszko.
A nossa passagem pelo Recife foi uma apoteose. Daí seguimos mar em fora.
Flutuavam à nossa frente três esplêndidas bandeiras: o auri-verde pavilhão
nacional; a alvi-áurea bandeira pontifícia, e o simpático pendão da Cruzada,
com os dois lindos cometas a cruzarem-se sobre o globo azul, simbolizando as
luzes da razão e da fé a iluminar as almas e o mundo.
Paris, Lisieux, Lourdes – quantas impressões que a silenciosa palidez do papel
não pode receber nem refletir! Chegamos ao meio dos Pirineus, onde se
aninha a misteriosa Lourdes, no meio de tremendo aguaceiro; mas, assim
mesmo, na escuridão da noite que caía, serpenteava uma grande procissão de
tochas pelas encostas dos morros e por entre os rochedos, cantando
conhecido hino de Lourdes. No dia seguinte visitamos a “gruta milagrosa”, onde
uns 500 doentes deitados em macas, catres, esteiras, padiolas, suplicavam a
Deus e à Virgem o dom da saúde, clamando em todas as línguas do mundo,
erguendo os braços, fixando os olhos lacrimosos no nicho rochoso ao lado do
qual aparecera, repetidas vezes, em 1858, a formosa “dama” descrita por
Bernadete Soubirous, e onde brotara depois a fonte milagrosa, cujas águas
continuam a fluir. Alexis Carrel, o grande cientista francês, fez estudos e
investigações profundas sobre os inexplicáveis acontecimentos, que se vão
perpetuando há quase um século, mas não chegou a uma conclusão definitiva.
É sabido que a igreja romana apela para os fenômenos de Lourdes, sobretudo
as curas repentinas de moléstias incuráveis, como provas a favor das suas
doutrinas peculiares. Entretanto, a conclusão não procede; fenômenos
análogos ocorrem em qualquer outra religião, dentro e fora do Cristianismo.
Alexis Carrel chega à conclusão imparcial de que os ditos “milagres” nada têm
que ver com o que, comumente, se chama “fé”, no sentido dogmático-
eclesiástico, tanto assim que a imensa maioria das pessoas que, certamente
com grande fé, vão a Lourdes para serem curadas, voltam para casa doentes
como vieram; apenas diminuta porcentagem dos peregrinos é curada, e por
vezes pessoas cuja “fé religiosa” se acha em baixo nível; muitos deles
poderiam associar-se ao chefe da Sinagoga, Jairo, e dizer: “Creio, Senhor –
ajuda a minha incredulidade!” Há muitos crentes descrentes – como também
não faltam descrentes crentes... A teologia não resolve o caso. Nem sabemos,
a bem dizer, o que quer dizer fé. Carrel insinua que existe uma espécie de
Constituição Cósmica, que é infinita sanidade; o descontato com essa eterna
fonte de saúde é doença, o contato é saúde. Mas ninguém sabe qual o
processo que reintegra um organismo na vibração harmônica dessa eterna
fonte de sanidade.
Havia entre os nossos excursionistas um jovem, mais ou menos apático em
matéria de religião eclesiástica; a tuberculose lhe roera um dos pulmões e
estava destruindo lentamente o outro, como provam as radiografias tiradas e
arquivadas no Bureau des Constatations mantida pela ciência médica em
Lourdes, orou, diante da gruta, e nada aconteceu. Mas, durante a noite
próxima, foi completamente restabelecido o pulmão semi-roído pela
tuberculose e plenamente substituído o que fora destruído pela moléstia, como
demonstram novas radiografias.
A ciência e a teologia acham-se em face dum grande ponto de interrogação.
Evidentemente, existem forças no Universo que ultrapassam o nosso alcance e
que em determinadas circunstâncias atuam a favor de pessoas que
conseguem sintonizar as vibrações do seu organismo individual com as
vibrações do organismo universal da Constituição Cósmica. E essa
sintonização é realizada, muitas vezes, na zona noturna do nosso
subconsciente, mesmo durante o sono, ou num momento em que menos o
esperamos. A presença de um poderoso foco de sintonização, como era Jesus
de Nazaré, facilita grandemente a sintonização das vibrações do corpo
humano, como temos no Evangelho. “Podes crer que eu te possa fazer isto?” –
é esta a pergunta invariável que Jesus dirige aos doentes que o invocam, e só
depois que o enfermo sintoniza as suas pequenas vibrações com a grande
vibração do Taumaturgo é que acontece o “milagre”: “Creio, sim, senhor!”
“Então seja feito contigo conforme crês!”
O que é certo é que Lourdes é uma permanente refutação da concepção
materialista do universo. É cientificamente inegável que, por detrás dos
fenômenos perceptíveis do universo, existe uma realidade imperceptível aos
sentidos, fonte e causa daqueles. É cientificamente impossível identificar a
realidade do mundo com a sua perceptibilidade. Não podemos estabelecer a
equação empírica e infantil: realidade = perceptibilidade; temos de modificar a
equação do seguinte modo: realidade > perceptibilidade. O materialismo é por
demais primitivo, ingênuo, unilateral, fragmentário; não satisfaz a nenhum
homem capaz de raciocinar logicamente.
A ciência natural de hoje é unânime em reconhecer que os fenômenos da
natureza física não passam de uma espécie de sombras ou reflexos
secundários de uma realidade primária, maior, que está por detrás deles.
Assim, por exemplo, escreve Sir Arthur Stanley Eddington, no seu livro The
Nature of the World: “O conhecimento nítido de que a ciência física trata de um
mundo de sombras representa um dos mais significativos progressos. No
mundo físico assistimos a um drama de silhuetas de sombras: no original
shadowgraph, neologismo intraduzível. Tudo é simbólico... O mundo externo
acabou num mundo de sombras... Se quisermos remover as nossas ilusões
teremos de remover a substância (material), porquanto verificamos que a
substância é uma das nossas maiores ilusões”.
Sir James Jean, na sua obra The Mysterious Universe, escreve: “O curso do
nosso conhecimento vai rumo a uma realidade não-mecânica. O Universo
começa a apresentar-se-nos antes como um grande pensamento do que uma
grande máquina”.
Os dois livros revolucionários de Einstein, sobre a Relatividade e a Teoria do
Campo Unificado, este último publicado pouco antes da morte dele, confirmam
matematicamente a mesma verdade: que, por detrás dos fenômenos materiais
e visíveis, jaz uma realidade imaterial e invisível, e tanto mais real quanto
menos accessível aos nossos primitivos instrumentos sensoriais e intelectivos
de hoje.
É, certamente, nessa direção que uma humanidade futura, mais avançada no
terreno da razão espiritual, intuitiva, desvendará o segredo último do chamado
“milagre”.
* * *
Depois de fazermos junção, em Milão, com os nossos companheiros vindos via
Mediterrâneo, transpusemos a fronteira da Itália e da Áustria ou melhor, da ex-
Áustria, daquele tempo, porquanto acabava de ser anexada por Hitler à
“grande Alemanha”. Nas cidades por onde passávamos mal víamos as paredes
das casas, de tanta bandeira vermelha com a cruz gamada no centro. O
estribilho de Heil Hitler! era ouvido milhares de vezes por dia, até nos mais
primitivos botequins. A saudação fastidiosa era repetida à chegada e saída de
qualquer freguês.
* * *
Não vou entediar o leitor com a descrição das margens do Danúbio Azul – que
aliás só nos apareceu como verde-cinzento. Passamos mais duma semana na
pitoresca cidade de Budapeste. Na histórica Praça dos Heróis assistimos à
grande apoteose eucarística. Em Buenos Aires havia eu ouvido falar o então
cardeal Eugênio Pacelli com tamanho desembaraço como se nascera na terra
lendária do Cid. “Es de los nuestros!” diziam entusiasticamente os argentinos.
Em Budapeste subia ele à tribuna, como Legado Pontifício, com a mesma
segurança e firmeza e, sem usar tiras escritas, falava em magiar (húngaro)
uma hora inteira, com tamanha espontaneidade e fluência como se nunca em
sua vida falara outra língua. Não entendi uma só palavra dessa língua
estranha, mas os meus amigos húngaros vibravam de entusiasmo pelo
conteúdo dos discursos do futuro Papa Pio XII. Quando Núncio Apostólico em
Berlim manejava ele com a mesma mestria a língua de
Goethe, dirigindo o seu baixel com acerto por entre os recifes da mais moderna
terminologia técnica germânica. No Congresso Eucarístico de Dublin falava o
cardeal Pacelli o inglês como se fala às margens do Tâmisa. No alto do
Corcovado ouvi-o exprimir-se em nosso suave linguajar brasileiro; apenas a
curva traiçoeira do nosso “til” desafiava a flexibilidade glossológica do hábil
orador.
De Budapeste enviei, em nome da Cruzada da Boa Imprensa e da excursão,
uma mensagem radiofônica aos nossos amigos no Brasil.
Na Praça dos Heróis flutuavam as bandeiras de todas as nações, à exceção da
Alemanha e da Rússia. Hitler proibira os “arianos” de participarem do
Congresso Eucarístico e mandara fechar as fronteiras. Entretanto, como havia
milhares de alemães para além das divisas do Reich, não faltou quem
representasse os 20 milhões de católicos alemães. Faltava, porém, um orador
alemão, não porque não houvesse, mas porque seria politicamente perigoso ou
imprudente alguém assumir essa responsabilidade, em vista das possíveis
represálias que Hitler exerceria contra pessoas da família dele na Alemanha ou
na Áustria. Veio então ter comigo uma comissão enviada pela diretoria do
Congresso Eucarístico, solicitando convidasse, em nome do Congresso, a D.
João Becker, arcebispo de Porto Alegre, que se encontrava entre nossos
peregrinos e, como filho de alemães, falava bem a língua dos seus
antepassados germânicos. Foi o que fiz. D. João Becker improvisou uma
alocução vibrante, incisiva, sobre a liberdade da Igreja dentro do Estado. Não
tocou em assunto político, mas foi delirantemente aplaudido, tanto assim que
havia por toda parte maiores antipatias do que simpatias em face do Fuehrer,
embora ninguém ousasse externar publicamente os seus sentimentos, com
medo das consequências.
Em Viena, onde passamos alguns dias, pedi entrevista com o velho professor
Sigmund Freud. Infelizmente, estava o autor da Psicanálise doente e com
absoluta proibição médica de receber visitas. A anexação da Áustria ao Reich
não podia deixar de ter consequências funestas para ele, como teve para todos
os filhos de Israel.
Mais tarde, em Florença, tive interessante entrevista com Giovanni Papini.
Como eu passara em Nápoles um ano inteiro, pude sem dificuldade entreter-
me com ele em italiano, embora o autor de Storia di Cristo usasse, por vezes,
termos de gíria toscana cujo sentido eu antes adivinhava do que entendia.
Havia eu lido, num jornal do Rio, um artigo de Agripino Grieco sobre o físico de
Papini; dizia o conhecido crítico que a cara de Papini era tão feia que beirava
ao obsceno, estando quase, a reclamar uma folha de parra. Grata foi a minha
surpresa que, quando, naquele silencioso palacete à rua Gherazzi, semi-oculto
entre as árvores, me vi face a face com um homem alto, desempenado, cabeça
grande, testa larga – e nada monstruoso. Apenas quando falava percebia-se-
lhe a posição algo saliente e oblíqua dos dentes incisivos. Um dos seus olhos
estava quase totalmente extinto, e também o outro, injetado, ameaçava
apagar-se. Papini usava óculos com vidros da grossura de um dedo. Perguntei-
lhe por que não fora ao Congresso Eucarístico, em cujo programa figurava
como orador. Papini, com aquele sorriso-esgar todo seu deu uma resposta que
só pode ser entendida corretamente por quem leu o livro Un uomo finito (Um
homem acabado). Tive a impressão de que esse homem continuava
intimamente revoltado contra a sociedade, mesmo após a sua “conversão” ao
catolicismo. De resto, a sua História de Cristo, Vida de Santo Agostinho e,
sobretudo, a sua recente obra sobre o Diabo, mostram de sobejo a quantas
anda o “catolicismo” desse pensador solitário. Ofereceu-me um exemplar
autografado do seu livro Testimoni della Passione, como “ricordo di una visita
fiorentina”.
Em Roma, depois de visitarmos as nossas duas Embaixadas, a do Quirinal e a
do Vaticano, e a Bruno Mussolini (o duce estava ausente de Roma) apresentei
ao secretário do Vaticano a carta que levava do cardeal Leme, e foi-nos
marcada audiência com Pio XI em Castel-Gandolfo, casa de campo do Papa,
perto de Roma. Falou-nos em italiano, em termos tão simples que todos nós,
mesmo os que não conheciam a língua do país, entendemos tudo.
Depois, fomos visitar as sugestivas catacumbas, onde nossos irmãos de fé
cristã viveram e morreram tão gloriosamente. O Coliseu, as igrejas,
monumentos, bibliotecas, museus – quantas impressões para todos nós!...
Nápoles, Capri, Vesúvio – para mim, gratíssimas reminiscências de anos
passados...
A sós em Gênova.
Suas Majestades
Britânicas em Paris.
Em fins de junho chegamos a Gênova. Mais de dois meses havia eu vivido
numa espécie de alta tensão física e psíquica, porque era responsável pela
sorte daqueles 120 excursionistas confiados a meus cuidados, através de sete
países da Europa. Se algo de sinistro acontecesse a um deles, ou se rompesse
uma guerra no Velho Mundo, a minha situação seria horrorosa, por menos
culpado que eu fosse pessoalmente.
Finalmente, com a chegada ao porto de Gênova, estava virtualmente terminada
a minha difícil tarefa, porque, a partir desse ponto, segundo combinação prévia,
entregaria eu os nossos peregrinos ao sr. Italo Cavanna, que, nos esplêndidos
ônibus Fiat os conduziria pela Suíça e Alemanha até o porto de reembarque.
Quanto a mim mesmo, deixei-me ficar sozinho na lendária terra natal de
Cristóvão Colombo. Finalmente, a sós, depois de alguns meses de barulho,
lufa-lufa e cuidados exaustivos. Que coisa benéfica é poder estar
a sós! Sem responsabilidades, nem cuidados nem reclamações de cada dia e
cada hora! Abismei-me profunda e deliciosamente nessa imensa tranquilidade
de estar sozinho comigo... Fui dar uns giros pela cidade, avenidas, praças,
museus, campo-santo, sem destino certo, gozando em cheio inefável doçura
de estar sozinho comigo e com a natureza em derredor...
Reembarcaria no vapor Kosciuszko em Kiel, Alemanha oriental; mas até esse
dia faltava ainda um mês inteiro. Resolvi aproveitar esse mês, tratando dos
meus gostos pessoais, visitando centros culturais do meu interesse.
Passei uma noite tranquilamente benéfica em Gênova, e, na noite imediata, às
10 horas, tomei o trem noturno para Paris, onde cheguei na manhã seguinte.
Felizmente estava sozinho no meu coupé de segunda classe. Como o banco
era um sofá macio, transformei-o numa espécie de leito e deitei-me. Daí a
pouco aparece o chefe do trem – e eu esperava alguma trovoada pelo fato de
eu estar deitado sem ter comprado leito no trem-dormitório. O chefe do trem,
porém, não era do tipo dos trovejadores: abriu lentamente a porta do coupé,
acordou-me suavemente, picotou minha passagem, desculpou-se gentilmente
e fechou a porta com muito cuidado, sem se esquecer de apagar a luz e puxar
as cortinas da porta de vidro para que eu pudesse dormir mais
sossegadamente. Fiquei profundamente comovido com a delicadeza desse
funcionário ferroviário e refleti longamente sobre a espontânea bondade que,
por vezes, se oculta sob aparências vulgares e onde estamos habituados a
esperar aspereza e brutalidade. Outro funcionário, mais convencido da sua
excelsa dignidade e importância, teria apelado grosseiramente para o artigo tal,
parágrafo tal do Regulamento Ferroviário; ter-me-ia dado ordem categórica de
ficar sentado no banco em vez de deitar, e, tempos depois, teria voltado para
verificar se eu obedecera às suas ordens sacrossantas, ou cometia o horroroso
delito de dormir num coupé de segunda classe, com gravíssimo detrimento do
erário público ou da companhia ferroviária.
Entretanto... “o sopro sopra onde quer”...
* * *
Paris, 24 de junho, festa de São João Batista, o precursor do Cristo e mártir do
seu ideal. Só no dia 29 de julho partiria o meu vapor, do porto de Kiel. Teria,
pois, um mês inteiro para entrar na alma da cidade da luz. Instalei-me numa
modesta pensão, perto do magnífico Bois-de-Bologne, vasto bosque
amenizado de pitorescos lagos e ensombrado de verdes frondes. Reavivei o
meu francês e pus-me a sondar os mistérios dessa cidade-sonho.
No meio de tudo isto, me preocupava a idéia de terminar o meu livro Paulo de
Tarso, cujos originais dormiam tranquilamente no fundo da minha mala,
porque, havia meses, o barulho externo não me permitira o necessário silêncio
interno que a elaboração da obra me exigia. Passei horas e dias inteiros nas
grandes bibliotecas de Paris, lendo, pesquisando, a ver se algo de novo
encontraria sobre a fascinante personalidade daquele pequeno rabino e grande
apóstolo que pudesse aproveitar para o meu livro – esse livro que, daí a pouco,
ia pôr em polvorosa os arraiais sectários do Brasil clerical. Perlustrei também
as gigantescas livrarias. Encontrei-me com alguns dos corifeus da literatura
gaulesa. Toda tarde, ia ao museu do Louvre, ou ao esplêndido Palais des
Découvertes, à catedral de Notre-Dame, à igreja de Mont-Martre, de
Madeleine, às Tulherias, ao museu de Grevin, à magnífica Praça de la
Concorde, de l’Étoile, onde arde a pira permanente em homenagem ao soldado
desconhecido. Inúmeras vezes passei horas a fio no interior do Louvre, mas
não vi metade das suas maravilhas. Fascinava-me sobretudo o pavilhão
relativo à história e arqueologia do Egito, os sarcófagos milenares, a sugestiva
rigidez das suas múmias, a metafísica placidez daqueles rostos que ainda
pareciam aureolados da misteriosa luz do espírito que, um dia, os iluminara.
Mais uma vez, e com mais veemência do que nunca, tornou a estremecer-me
pela alma e pelos nervos a estranha afinidade que eu sentia dentro de mim
com essas venerandas figuras das margens do Nilo, que em seus olhos
abertos e sem pupilas pareciam ter algo da firmeza das pirâmides, do
enigmático da esfinge, da sabedoria de Ísis, do divino mistério da efígie velada
de Saís... Foi-me dito por quem julgava ser clarividente que eu, em milênios
idos, fora egípcio, ou beduíno, e quando esse tal viu as figuras de camelos e
beduínos que exornam as paredes do meu cubículo, viu-se corroborado nessa
sua asserção; um desses silenciosos nômades prostrado nas areias do deserto
em adoração a Alá, disse ele, era um dos meus parentes daquelas épocas
remotas...
* * *
No dia 19 de julho, chegaram a Paris Suas Majestades Britânicas. Lufa-lufa de
preparativos, semanas a fio. Bandeiras, arcos de triunfo por toda parte. Era
necessário que as duas grandes nações, a do continente e a das ilhas,
cimentassem rijamente a amizade destinada a resistir ao mais violento embate
hostil de que há memória na história da Europa. E resistiu até o presente dia,
embora se haja desdobrado sobre a França o luto nacional da derrota. Na alma
do povo e no espírito dos melhores elementos do próprio governo continua a
arder o fogo sagrado da mesma simpatia. No dia em que o sopro da liberdade
varrer essa espessa camada de cinzas obrigatórias, ver-se-á romper em vívida
chama a brasa latente...
Os três dias que Suas Majestades Britânicas passaram em Paris foram dias
atrapalhadíssimos para o povo em geral – esse povo que nada viu do rei Jorge
nem da rainha Elizabeth; pois, na cultíssima Europa, todo soberano tem de ser
eminentemente invisível, como um fantasma de outros mundos, para não ser
varado de balas ou punhais. Todas as grandes praças e avenidas da capital
estavam rigorosamente isoladas, interceptadas por dois cordões de soldados
de arma embalada. Metralhadoras em todas as esquinas. As sacadas e
plataformas de todos os edifícios que davam para as avenidas onde passariam
os ilustres visitantes, ocupadas pela força pública, a própria torre Eiffel não
ficara esquecida. É que não faltava em Paris quem aproveitasse a primeira
oportunidade para lançar uma bomba sobre a cabeça dos monarcas. Nos
bondes, nos ônibus, no Metrô (bondes subterrâneos), por toda parte ouvia eu
censuras abertas, por vezes violentas, ao governo francês pelo fato de gastar
milhões de francos para essa visita. Também, como podia a “Frente Popular”,
socialista, ver com bons olhos tamanha homenagem prestada a essas relíquias
do monarquismo medieval? Voilà! c’est pour monsieur George!... C’est pour
madame Elizabeth!” – dizia, desdenhosamente, um senhor, atrás de mim, num
bonde, mostrando ao companheiro um dos enormes arcos de triunfo erguido
em honra ao “senhor Jorge” e à “senhora Elizabeth”, como ele apelidava o
régio casal.
É incrível a liberdade de pensamento e de palavra que reina – ou reinava – na
França. Quem dissesse, em Berlim, a décima parte do que eu ouvi dizer em
Paris contra as medidas do governo, já estaria à sombra do xadrez, ou, mais
provavelmente, sete palmos debaixo da terra, com o coração e o crânio
varados de balas...
Não tivesse estalado na Palestina, precisamente nesse tempo, o sangrento
conflito entre judeus e árabes, teria eu embarcado a bordo do primeiro vapor
em demanda de Jaffa, para visitar a terra natal de Jesus Nazareno, e, depois,
internar-me pela Ásia Menor, seguindo parte do itinerário do seu maior
discípulo, cuja biografia estava terminando. Cilícia, Panfília, Pisídia, Galácia,
Éfeso; depois Atenas, Corinto, Filipes – que plano sedutor. Mas os insurrectos
da Palestina não respeitavam sequer salvo-conduto do governo britânico.
Somente carros blindados lhes incutiam respeito. Abandonei, por então, essa
minha idéia querida, na certeza de que em 1940, por ocasião do Congresso
Eucarístico Internacional de Nice, ia realizá-Ia. Entretanto, o homem põe e
Deus dispõe – e Hitler descompõe...
Frustrado este plano, retomei, em fins de julho, o meu itinerário, cruzando a
França, a Bélgica, passando uns dias em Berlim, onde a vida me custava
diariamente mais de 100 cruzeiros, mesmo nas condições mais modestas. Fui
a Hamburgo, onde a vida é mais democrática. Todas as tardes, ao pôr do sol,
dava o meu passeio solitário ao longo do grandioso e esplêndido porto, que, a
estas horas, deve estar reduzido pela RAF a uma imensa ruína...
Em Kiel, o maior porto militar da Alemanha, estive apenas dois dias,
contemplando, de longe, as gigantescas instalações de Krupp, filial das de
Essen; vendo boa parte da soberba esquadra germânica ancorada ao longo
das fortificações do cais ou no meio das águas tranquilas. Submarinos
descansavam à flor d’água ou manobravam misteriosamente. O ininterrupto
sussurro de flotilhas aéreas a cortar o céu estival – tudo isto parecia pressagiar
algo de sinistro, algo de trágico... Mais um ano e pouco – e romperia a
pavorosa conflagração...
Cortamos, pelo canal de Kiel, todo o pescoço da península cuja cabeça se
chama Dinamarca. Mas que vale uma cabeça sem pescoço?...
Mar do Norte... Canal da Mancha... Adeus, França! Adeus, Inglaterra!
Mais uns dias – e adeus, Europa, que te vais afundar num oceano de sangue,
de lágrimas e de lama!...
Mais uma semana – e adeus, Dacar!... Salve, imensidade azul do Atlântico!
De Roma, Paris e
Berlim – aos sertões
do Brasil.
Quando, em agosto de 1938, depois de uns quatro meses de ausência na
Velha Europa e sobre o dorso do Atlântico, cheguei ao Rio de Janeiro, achei a
nossa Pátria três vezes mais bela, mais humana e querida do que antes. A
vida, na capital da República, me fazia lembrar algo de suave e bucólico, assim
como roça, campo, natureza, sítio... a “cidade maravilhosa” afigurava-se-me
uma grande aldeia. Os homens me pareciam mais humanos do que na Europa.
Durante a minha ausência, saíra do prelo a segunda edição do meu Novo
Testamento – parto laborioso, mas o filhinho sempre nascera mais ou menos
viável e disposto a correr mundo – 10.000 exemplares encadernados, uma
fortuna e um pesadelo... Dívida pesadíssima nas oficinas gráficas... Ominosas
duplicatas que só me faziam lamentar uma coisa: não possuir forças de Josué
para fazer parar esse sol fatídico que, dia a dia, aproximava o prazo do
vencimento...
Eu, que andava com a cabeça cheia de planos ultra-espirituais e hiper-
intelectuais; eu, que vinha dos grandes focos da cultura milenária – não tive
outro remédio senão recair no odioso prosaísmo de todos os dias e afundar-me
novamente na preparação e no projeto de publicar a edição do Novo
Testamento. Do contrário, era falência certa, protesto de letra, desmoralização
pública.
No Rio não encontrei o meu jornalista português. De regresso do lindo passeio
à Europa, que eu lhe pagara integralmente, fora fazer 15 dias de “férias” no
sítio – descansar do descanso... Voltou, finalmente.
Daí a pouco, embarquei para o extremo norte, com alguns milhares de Novo
Testamento e outras edições da Cruzada.
Nesses anos, mais do que nunca, criei fama de “mercantilista”, “negociante”,
“judeu”, e, mais ainda de “protestante” pelo fato de dar importância aos
Evangelhos e querer difundi-los por esse Brasil afora.
Tomara que um desses displicentes censores fizesse uma só das viagens que
eu fiz às dezenas, pelo interior do nosso hinterland e pelas ínvias florestas do
norte! Creio que estaria curado radicalmente, e para sempre, da sua opinião.
Desta vez, de regresso de Roma, Viena, Budapeste, Paris e Berlim, afundei-me
bem em pleno sertão bruto – onde “meu boi morreu”... Comecei meu penoso
raid em Belém do Pará. Daí desci para São Luiz do Maranhão, Codó, Caxias.
Entre Caxias e Teresina (nesse tempo, só até Flores, defronte a Teresina), há
um trenzinho pré-histórico, cujo horário se resume nisto: “Sai quando quer e
chega quando pode” – com exceção dos dias em que nele viaja o secretário do
Ministério da Viação. De hora em hora, mais ou menos, tem de parar a fim de
apagar o fogo dos “bronzes” incandescentes e esperar o tempo necessário
para esfriarem. Nesses intervalos, os passageiros dão uns passeios pelas
caatingas circunvizinhas. Num desses passeios, enquanto os “bronzes”
esfriavam aos poucos, descobri, no oco duma árvore retorcida, um ninho de
abelhas, dessas pretas que não têm ferrão. Armado apenas dum bom canivete,
consegui abrir parcialmente a entrada do ninho, mas sem atingir o precioso
mel. Levei porém boa quantidade de cera preta e cheirosa. Como se vê, há
muito mal que vem para bem... Só mesmo um americano desumanizado podia
inventar aquela frase estúpida de que time is money. O tempo não é ouro nem
prata – o tempo é vida, e a vida é para ser vivida. A vida não vale pelo que
produz – vale pelo que é. Assim pensam todos os homens sensatos, entre eles
o próprio Jesus de Nazaré. Ninguém me prova que mais valeria a minha vida
se, em vez de furar mel de jataí no sertão maranhense enquanto esfriavam os
“bronzes”, eu tivesse acumulado montanhas de money num desses escuros e
infectos escritórios das nossas cidades onde agoniza a esfarrapada retaguarda
da vida humana... O mal foi apenas não ter eu atingido o mel, devido à
fragilidade do meu canivete – e por terem os “bronzes” do trem esfriado muito
depressa, obrigando-me a reembarcar no trenzinho pré-histórico...
Teresina é para mim uma das cidades mais simpáticas, certamente não por
causa do calor escaldante, mas por causa do espírito do povo e da avidez do
mundo intelectual. Desde o princípio, tenho encontrado na capital do Piauí
ótimos auditórios, quer na Faculdade de Direito e no Clube dos Diários, quer no
Teatro Sete de Setembro, no Ginásio ou no esplêndido salão da atual
Sociedade de Medicina. Os homens têm verdadeira fome e sede de ouvir. O
Colégio do Sagrado Coração de Jesus punha sempre à minha disposição um
grupo de “andorinhas”1 de asas fortes e sempre dispostas a voar pelas alturas
cerúleas do idealismo apostólico.
1. “Andorinhas” – Costumava dividir as moças em andorinhas e galinhas. Aquelas eram as que
estão dispostas a voar pelas excelsitudes dos trabalhos apostólicos, e me têm ajudado
imensamente na difusão das idéias e dos ideais do Cristianismo. Galinhas eram as que só
gostavam de ciscar nas areias profanas dos divertimentos e das vaidades naturais, sempre
com mil e uma desculpas para não erguer vôo – bem como galinhas pesadonas, que têm asas
para não voar...
Mandara eu para Teresina 50 exemplares do Novo Testamento – pediram mais
100. Nessa cidade que só tinham saída livros de alto intelectualismo, ao passo
que literatura piedosa e romântica só encontrava aceitação em certas rodas.
Terminado o meu trabalho de conferências e organização em Teresina, surgiu
para mim um problema. D. Hugo Bressane de Araújo, então bispo da Cidade
do Bonfim, no sertão da Bahia, pedira-me com insistência que fizesse
conferências na diocese dele. Tenha o leitor a bondade de tomar o mapa e
localizar Bonfim. Verá que entre Bonfim e Juazeiro da Bahia há uma estrada de
ferro. Defronte a Juazeiro, sobre a margem esquerda do rio São Francisco, no
sertão de Pernambuco, está situada Petrolina. De Teresina a Petrolina
tracemos uma linha reta, simbolizando uma viagem de poucos dias. Se, pelo
contrário, eu tomasse o vapor, teria de voltar primeiro a São Luís do Maranhão
(com os “bronzes” em fogo), esperar dias intermináveis por um vapor, rodear
todo o litoral do Maranhão até à Bahia, tomar o trem na cidade do Salvador e
daí a dois dias, mais ou menos vivo, chegar a Bonfim. Levaria mais duma
semana nessa viagem.
Resolvi, pois, ganhar tempo gastando forças e sacrificando comodidades. Tive
sorte. Apanhei um caminhão de carga que estava com viagem marcada para
Acauã, estaçãozinha sertaneja para lá de Petrolina, à qual a ligavam as
paralelas dum ramal ferroviário.
Quando descobri o dito caminhão, já estava a boléia tomada. O dono do
veículo teve a gentileza de colocar por detrás da boléia uma tábua solta e sem
encosto, já se vê, onde eu e mais dois companheiros de suplício fomos tomar
assento – para dois dias e duas noites...
E abalamos, lá pelas 5 horas da tarde, rumo ao sertão bruto...
O que vivi e sofri, nessas 40 e tantas horas, não se pode exprimir com
vocábulos humanos. Entre Teresina e Petrolina não há estrada de rodagem,
nem propriamente caminho algum que tão pomposo nome mereça. Nunca
andou enxada ou picareta por essas bandas virgens de cultura. O caminho é
feito de cada vez, à força de pneu e investidas de carro de assalto, derrubando
árvores, focinhando nos barrancos, rolando pelos declives, levantando poeira
pior que cortina de fumaça Iá na belicosa Europa, a tal ponto que muitas vezes
eu perdia de vista, por muito tempo, meu companheiro de tábua solta. Esta
mesma tábua, como que possessa de maus espíritos, salta, corcoveia,
escorrega, foge, ora para a direita, ora para a esquerda, já para a frente, já
para trás. O passageiro faz o possível para segurá-la e para manter o contato
entre a tábua e a respectiva parte almofadada do corpo, manobra essa nem
sempre fácil de realizar. Não creio que Deus, na sua imensa justiça e bondade,
deixe de perdoar todos os pecados aos que sofreram esse pavoroso
purgatório.
Aguentei uma noite e um dia na tábua endemoninhada. Na segunda noite, de
exausto e sonolento, deixei-me cair sobre a carga – uns sacos cheios não sei
de que – e consegui dormir com todos esses choques e solavancos; e
enquanto dormia, segurava-me institivamente com ambas as mãos nos sacos,
a fim de não ser jogado para fora do caminhão e desaparecer na escuridão das
caatingas.
Não encontramos água potável. Toda a água, nessa zona, é salobra, porque o
subsolo é salitroso. Eu, ainda que infenso a tudo que seja álcool, levava
comigo, por precaução, uma garrafa de caninha, para tirar o mau gosto a
certas águas e matar os micróbios e as amebas que nela habitassem. Sabia o
que é febre amebiana, porque, em outra ocasião, já me levara às portas da
morte. Não fossem os meus planos e as dívidas da Cruzada, teria eu gostado
de morrer nesses sertões. Seria a morte mais digna e bela para um
bandeirante da imprensa.
Era tempo de prolongada seca. Rolávamos em pleno saara. Só de longe em
longe víamos umas folhas verdes. Para o almoço e jantar procurávamos uma
“pensão” nos pequenos povoados que, aqui e acolá, interrompiam a imensa
monotonia. Carne de sol, feijão, arroz, farofa, paçoca – eis o nosso cardápio
habitual. Verdura – nem sombra. O sol mata tudo. Passei um dia sem comer,
porque não podia engolir essas comidas secas e insípidas.
O nosso condutor parava demais nos botequins. É vício do nortista tomar um
cafezinho em toda e qualquer bodeguinha que encontre à beira da estrada. Se
perdêssemos o trenzinho de Acauã a Petrolina, estávamos fritos. Sabe Deus
quando teríamos outro!
Nosso condutor não tomava juízo. Caninha, café, compadres, comadres –
eram os grandes inimigos do progresso. De resto, para aguentar 40 horas de
trabalho ininterrupto, só mesmo nervos de aço e músculos de cimento armado.
Eis senão quando assoma a estaçãozinha de Acauã – e no mesmo instante
ouvimos o apito estridente da partida do trem. Perdemos o trem! perdemos o
trem!
Qual nada! O nosso chauffeur embalou o seu carro de assalto e atirou-o
brutalmente para a frente, cortando o trilho da ferrovia – e parou. Parecia uma
tentativa de suicídio coletivo. Mas aquele caboclo sabia onde tinha o nariz.
Que havia de fazer o trenzinho senão parar? E parou mesmo, com a maior
naturalidade, assim como um ônibus quando se faz sinal.
Saltamos do caminhão para o trem – sem passagem, está visto. Estávamos
infinitamente sujos: 40 e tantas horas de chuva de poeira, misturada com muito
suor. De nós, propriamente, nada mais se via; éramos uma grossa camada de
barro, espécie de fantasmas. Olhos, ouvidos, boca, nariz – tudo encharcado.
Huberto Rohden   Por um Ideal
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Huberto Rohden Por um Ideal

  • 1. HUBERTO ROHDEN POR UM IDEALO QUE POR ELE VIVI E SOFRI EM MEIO SÉCULO UNIVERSALISMO
  • 2. Sumário Advertência Na terra dos pinheirais. Brasileiros e brasilidade. Pela terra dos Inconfidentes. Chico Xavier. O Cristo desconhecido. Nas florestas Amazônicas. Condutores ou sedutores clericais? Marajó, um mundo em gestação. Cristianismo em marcha. Excursionando pela Europa. Audiência com o Papa em Castel-Gandolfo. A sós em Gênova. Suas Majestades Britânicas em Paris. De Roma, Paris e Berlim – aos sertões do Brasil. Vozes da imprensa brasileira. Apreciação do meu Novo Testamento. A campanha nacional pró-Evangelho cava a ruína da Cruzada. Direção espiritual – ou tiranização clerical? Pontos estratégicos pelo triunfo do Reino de Deus. Sol entre nuvens. Irene – e o Evangelho. Fogo contra Paulo de Tarso. Atentados contra Agostinho – nascituro. Novo atentado contra Agostinho – recém-nascido Sugestões para mentiras plausíveis ainda não inventas contra mim. Meus livros todos condenados. Salvação pelo Cristo – ou pelo clero? “Credores de Deus”.
  • 3. Uma legítima donquixotada do vigário de Angustura. Carta aberta a numerosos amigos iludidos. Desiludindo os amigos protestantes. O imperativo da consciência. Preparativos de viagem para os Estados Unidos. Ecos filosófico-espirituais dos Estados-Unidos. Einstein. Como quem adormece... Epitáfio de um batalhador apunhalado por seus colegas. Apêndice. Porque Huberto Rohden deixou o clero. O que é o Centro de Auto-Realização Alvorada.
  • 4. Por Um Ideal Este livro é um ato de coragem. É a declaração e a defesa de um ideal vivido. Há vários anos esgotada, esta auto-biografia era insistentemente solicitada por leitores e livreiros. Neste ano que antecede ao Ano do Centenário de Nascimento de Huberto Rohden, resolvemos reeditá-la, já como parte do programa comemorativo deste evento cultural. O livro, em 2 volumes, com um total de mais de 400 páginas, totalmente ilustrado, constitui o único texto autobiográfico de Rohden. Escrito em 1960/61, descreve a história do “menino da roça, caçador de pássaros e borboletas”, a partir de seus 12 anos, até 1952, época que assinalou sua volta dos Estados Unidos, onde passara 6 anos como professor de Filosofia e Religiões Comparadas na American University, de Washington, D.C. Nesse período Rohden fundou em São Paulo o Centro de Auto-Realização Alvorada, um movimento filosófico e espiritual de âmbito mundial. Diz Rohden, na Introdução da obra: “Milhares de leitores conhecem os meus livros sobre problemas de filosofia, religião, os mistérios da natureza, etc., e muitos deles vivem a pedir que publique as minhas “memórias” – tanto mais que muitos deles acompanharam, de perto ou de longe, o agitado drama de idéias e ideais que fez de minha vida de escritor e conferencista uma estranha epopéia cheia de altos e baixos, de luzes e sombras, de louvores e vitupérios. Poucos homens do meu tempo e país foram tão ardentemente elogiados e tão violentamente execrados como o autor desta autobiografia.” Aqui, o autor narra, com impressionante concisão, sua estada de 14 meses na Universidade de Princeton, quando mantinha diálogos com Einstein – em alemão, certamente –, sobre problemas filosóficos e espirituais. Mas, a essência do livro são as descrições das suas atividades como padre, professor, pensador, conferencista e, principalmente, como escritor católico. Seu conflito com algumas alas do clero brasileiro são dramaticamente narradas, até o seu pedido oficial de afastamento da teologia romana. Rohden vira-se diante da terrível alternativa: Cristo ou Clero! Rohden é um vencedor. Hoje, brasileiros de todas as crenças religiosas, de todos os partidos políticos, de todas as doutrinas filosóficas são assíduos leitores de seus livros.
  • 5. A Filosofia Univérsica – um novo modo de pensar o Universo –, sistematizada por ele, começa a ser estudada e ensinada em várias escolas e faculdades do país. O professor Huberto Rohden faleceu em São Paulo, no dia 8 de outubro de 1981, aos 87 anos de idade. Suas últimas palavras foram “Eu vim para servir à Humanidade.” Tudo por um Ideal.
  • 6. Advertência A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
  • 7. Na terra dos pinheirais. Brasileiros e brasilidade. Conhecia eu apenas de fama a cidade dos pinheirais. Certo romancista me contara, embevecido, que Curitiba era a cidade dos homens e das mulheres de tipo mais perfeito e estético do Brasil; que havia nessa capital 90% de gente bonita. Não tive ensejo para verificar a exatidão desse asserto, em primeiro lugar porque não vi Curitiba com olhos de romancista e, em segundo, porque não entrei em contato com 100 ou 90% da população. Entretanto, tive ocasião de me convencer de que existem na capital paranaense não apenas corpos esbeltos e rostos venustos, senão também belos espíritos e corações bem formados. Sobretudo entre a mocidade masculina encontrei tantas e tão sinceras amizades que até hoje, evocando a minha primeira estada em Curitiba, sinto a alma cheia de comoção e de saudades. Realizei, nessa ocasião, uma série de conferências apologéticas na catedral, às 20 horas. Além disto, todas as noites, às 22 horas, por espaço de meia hora, falava ao microfone do Rádio Clube Paranaense, gentilmente cedido por seus distintos diretores. Quando, na primeira noite, fui à catedral, ia apreensivo, porque o silêncio era absoluto, o que me fazia recear um fracasso geral. Em Curitiba, de população fortemente mesclada, não encontraria auditória para as minhas palestras filosófico-religiosas. Com imensa surpresa, encontrei o vasto recinto da catedral literalmente repleto, no mais absoluto silêncio e numa compostura tal que me pareciam espíritos angélicos em tácita adoração à Divindade. É tão fácil falar a um auditório assim, onde o orador sente uma como que aura simpática, um poderoso fluido que sobe lá de baixo e, concentrando num ponto, se comunica à alma do pregador, enchendo-a de grandes idéias, de ardor, de entusiasmo e de espontânea eloquência. No silêncio do meu cubículo só posso preparar a conferência, selecionando o assunto, dispondo a sucessão
  • 8. dos pontos e argumentos, fazendo, por assim dizer, o corpo inerte da futura conferência; mas a alma, essa só lhe vem no momento em que me acho diante dum auditório com os olhos fitos em mim e com o espírito ávido de luz. A matéria-prima, parece-me, vem lá de baixo; eu apenas lhe dou forma, e, assim modelada, a restituo aos meus inconscientes doadores. Eles me enviam a luz solar branca, neutra, incolor, e eu faço passar essa luz pelo prisma de minha alma, devolvendo-a, dispersa nos irisados cambiantes da faixa septicolor, aos que me deram sem saber. O iniciado nesse misterioso intercâmbio psíquico compreenderá o que quero dizer, sem poder definir – o profano verá nestas palavras um vácuo ou um absurdo. Tem-se em Curitiba a impressão de estar numa cidade da Europa, sobretudo no inverno, que também é bastante europeu. Não só o claro das fisionomias, como também o modo de vestir e o ambiente social nos dá esta ilusão. Entretanto, Curitiba é uma cidade genuinamente brasileira, por mais que se fale do elemento e da mentalidade alienígena do Paraná. Tenho verificado, nas minhas viagens posteriores por todos os Estados do Brasil, que o nortista, ao ver sobrenomes alemães, italianos, poloneses, etc., e ouvir falar no elevado coeficiente de estrangeiros dos Estados sulinos, forma, geralmente, idéia inexata da brasilidade desses descendentes de europeus; costuma generalizar certos abusos havidos, infelizmente, em uma ou outra localidade de predominância estrangeira. Mas seria falso e injusto observar por esse prisma a maior parte dos brasileiros sulinos cujo sobrenome termine em – mann - ini - ski, ou outra desinência reveladora de origem não lusitana. O conceito que o nortista forma da brasilidade é, não raro, bem mais estreito do que o do sulista. Para muito nortista (nem para todos), brasileiro que não se chame Silva, Silveira, Souza, Carvalho ou coisa análoga, não é brasileiro integral. Para o sulista, brasileiro é todo homem que nasceu no Brasil e vive identificado com o espírito da nossa pátria, a cuja grandeza quer servir com as luzes da sua inteligência, a lealdade do seu coração e o vigor dos seus braços.
  • 9. Pela terra dos Inconfidentes. Chico Xavier. O ano 1936 foi consagrado, quase todo, a excursões apostólicas através do território mineiro. Viajei muitíssimo, e, mesmo assim, não consegui visitar a terça parte da terra imensa de Tiradentes. Nos arredores de Belo Horizonte, pelo leste e sul do Estado, é relativamente fácil viajar. Norte e oeste, dificílimo. O mineiro da gema é retraído, desconfiado; mas, quando amigo, é-o de coração e sinceramente. De índole tradicionalmente religiosa, dificilmente aceita inovações. Desconfia de idéias novas, principalmente quando elas vêm importadas via Rio de Janeiro ou São Paulo, essas Babilônias da civilização. Perlustrei, nesse ano – feliz e infeliz – grande número de cidades e vilas, entre elas: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont, Nova Lima, Sete Lagoas, Pedro Leopoldo, Pará de Minas, Itaúna, Divinópolis, Bom Despacho, Pitangui, Sabará, Itajubá, Pouso Alegre, Varginha, Três Corações, Brazópolis, Oliveira, São João Del Rei, Curvelo, Diamantina, Lavras; mais tarde também Guaxupé, São Sebastião do Paraíso, Passos, Uberaba, Uberlândia, Araguari, Formiga, etc. Pouco me demorei desta vez na “cidade-jardim”, porque lá voltaria antes do Congresso Eucarístico Nacional, que seria em setembro do mesmo ano. Tanto mais extensas e demoradas foram as minhas expedições por outros centros do grande Estado central. Era necessário tomar contato com bom número de cidades e organizar em cada um desses pontos uma representação permanente da Cruzada da Boa Imprensa, uma espécie de porta-voz disciplinado que veiculasse toda e qualquer ordem ou sugestão irradiada da nossa central no Rio de Janeiro. Era necessário “planificar” o nosso movimento. Ainda nesse tempo era eu um insigne idealista e cria possível organizar uma obra desse vulto sem ser fulminado pelo flagelo da inevitável celebridade e cair vítima do próprio apostolado, como tem acontecido a milhares de outros – e como poderia eu pretender ser uma exceção da regra? O idealismo é uma espécie de ilusão, mas uma ilusão necessária e fecunda;
  • 10. porque sem uma boa dose de idealismo e ilusão nada se consegue neste mundo. É o volante da máquina. Menos ainda podia eu convencer-me da verdade profunda dessas palavras do divino Mestre: lnimici hominis domestici ejus, os inimigos do homem são os seus companheiros de casa. Oficiais do mesmo ofício, como dizemos nós. Pensava eu, nesse tempo, rezando pela cartilha decorada, que os meus piores inimigos fossem os incrédulos, os ateus, os maçons, os protestantes, os espíritas, os dissidentes em geral, deslembrando de que Jesus não encontrou hostilidade da parte dos pagãos de Roma nem dos hereges da Samaria, mas, sim, da parte da sinagoga, do sinédrio, dos sacerdotes, escribas e doutores da lei, isto é, dos seus correligionários. Não sabia eu, nesse tempo, que não havia apostolado sem martírio. Sabia, sim, mas não queria que assim fosse – e o que o coração não quer, isto a inteligência não compreende, ainda que seja claro como o sol do meio-dia... Aprendi mais tarde, à força de infinitas decepções, que as obras católicas, como talvez toda obra espiritual, percorre, geralmente, três fases evolutivas:1 – quando pequenina, incipiente, ninguém liga importância, todos a tratam com desprezo e pouco caso, e em face do idealismo do seu autor só têm palavras de compaixão; encolhendo os ombros, julgam-se de seu ver desculpar o “coitado que não conhece o mundo”; 2 – quando a obra entra num estado de franca prosperidade começam as invejas, os ciúmes, as malevolências e maledicências, os ataques à socapa, as calúnias, as guerrilhas de emboscada ou até guerras em campo raso: fulano é ambicioso, – assim dizem os invejosos e despeitados – é mercantilista, é judeu, explorador; montou uma empresa católica que rende tantos milhares de cruzeiros por mês (e lá vão números astronômicos); errou a vocação; explora a credulidade e boa-fé do público, etc.; 3 – mais tarde, quando a obra parece ter adquirido estabilidade definitiva, surgem as tentativas de encampamento e oficialização, aparecem os medalhões de proa, os catolicões de fachada, os heróis de opa e tocha; falam em presidente, tesoureiro, secretário, 2.º secretário, 3.º secretário, vice- presidente, vice isto, vice aquilo; cada um, está visto, com o seu infalível expediente burocrático, e – last not least – o seu pingue ordenado; numa palavra, querem reduzir a obra, levantada com infinitos sacrifícios, a uma vaca leiteira holandesa, que forneça tantos litros de ótimo leite por dia, 10, 20, 30, sem que eles, os beneméritos burocratas, tenham outro trabalho senão o de ordenhá-la periodicamente e lançar-lhe, de vez em quando, um punhado de capim. Assim é que o católico que queira prestar algo de notável em prol do reino de Deus, se vê sempre entre as duas tenazes de um dilema: ou dar à sua obra um cunho de rigorosa disciplina, cobrando pontualmente as assinaturas de jornais e revistas e insistindo no pagamento exato de livros fornecidos – e neste caso, é fora de dúvida, granjeará entre milhares de católicos a pecha de judeu,
  • 11. mercantilista e explorador. Ou então se descuidará da parte administrativa, confiando em belas palavras, votos de prosperidade, lindos discursos e piedosos suspiros, e de vez em quando, num festival de Filhas de Maria ou tômbola de Natal – e neste caso se verá acoimado de incompetente, por gregos e troianos, e não tardará a ver ingloriamente morta e sepultada a sua obra gloriosamente iniciada. De resto, já nesse tempo, com o aparecimento de novas obras minhas e com tantas conferências em igrejas e salões, já começava o flagelo da minha celebridade literária, sombra fatídica e inseparável da luz. Zoilos e Iscariotes por toda a parte, mas sempre ocultos nas trevas do anonimato, ou envoltos nos véus coloridos de lindas frases... “Salve, Mestre!... Aquele a quem eu beijar, esse é – prendei-o!”... Tenho pensado muito na sensatez dos escritores que só aparecem com pseudônimo... Se não tivesse outros inconvenientes, e graves, convinha que todo escritor católico, para evitar o flagelo mortífero da celebridade, escolhesse um pseudônimo e guardasse absoluto sigilo sobre a sua identidade, sempre lembrado de que nenhum pigmeu tolera ser eclipsado por um homem maior que ele... Mas, nesse ano de 1936, não queria eu crer nestas coisas tão tristes e vergonhosas para o nosso decantado catolicismo. Por isso, com toda a coragem, continuei as minhas fadigosas viagens, de trem, de caminhão, de ônibus, de cidade em cidade, de vila em vila, organizando, planificando, difundindo o reino de Deus. * * * Na cidadezinha de Pedro Leopoldo, encontrei-me casualmente com Chico Xavier (Cândido Francisco Xavier), médium espírita, que ainda nesse tempo não possuía a celebridade de hoje, nem recebera mensagens de Humberto de Campos; mas já se falava com insistência nas suas virtudes mediúnicas. Diziam que psicografava lindas poesias, assinando sempre com o nome dum dos nossos célebres poetas, poesias absolutamente inéditas. Bastava entregar-lhe uma folha de papel em branco e um lápis, fazê-lo cair em transe, e o Chico, que em estado vígil era incapaz de escrever uma página de prosa correta, escrevia vertiginosamente as mais lindas poesias, que revestiam sempre o colorido característico e o estilo do respectivo autor que firmava a peça. Precisamente um decênio antes, na Europa, havia eu assistido a numerosas sessões de ocultismo com os melhores médiuns do velho continente; durante longas horas, nas condições mais favoráveis, em sessões rigorosamente científicas, com ou sem luz vermelha, com todos os recursos do laboratório da Universidade, havia eu observado e estudado casos de transporte de objetos, de levitação, de fenômenos luminosos, de golpes enigmáticos, de telepatia, clarividência, transmissão de pensamentos – e de todo este material arquitetara eu a minha “filosofia ocultista”. Por isso me
  • 12. interessava um encontro com Chico Xavier, não por motivo de curiosidade espetacular, mas por interesse científico em fenômenos que fogem à alçada das leis por nós conhecidas, embora não ultrapassem, provavelmente, as barreiras da ordem natural. Foi difícil o planejado encontro, porque o rapaz trabalhava numa fazenda fora da cidade e só regressava à noite, cansado. Finalmente, consegui avistar-me com o Chico, mas só no ônibus: moço, moreno, esquivo, ar sonâmbulo, taciturno, cabeleira à Castro Alves. Diziam-no muito piedoso. Tão arisco o encontrei que não consegui, propriamente, entabular conversa com ele. De resto, como ele talvez considerasse inimiga essa gente de veste talar, e não podia adivinhar o meu interesse puramente científico por esses fenômenos, era natural que se esquivasse, desconfiado. Mais tarde, li o livro dele intitulado Parnaso de Além-Túmulo, e li também a crítica que Humberto de Campos fez dessa obra, numa crônica epigrafada, creio: “Poetas do outro mundo”. Humberto, como é sabido, não cria, propriamente, na existência dum mundo futuro, espiritual, embora muitos dos seus artigos se baseiem sobre esta crença. Ridicularizou o livro, que encerra numerosas mensagens poéticas do além, psicografadas pelo dito médium. Ora bem, morre Humberto de Campos – e entrou na dança! Quem manda mensagens por intermédio de Chico Xavier é, de preferência, o nosso grande escritor maranhense... Como explicar estes casos? Tudo fraude, truque e trapaça? É esta a resposta dos ingênuos, dos inexperientes, dos que, antes de pensar, já sabem o que deve ser pensado, porque têm o seu critério rigorosamente pautado por um chavão ou uma forma pré-existente: o que se adapta a este molde está certo, o que não entra está errado. São dignos de inveja, esses felizardos, porque nunca se verão atormentados pelos angustiantes problemas que a nós outros, inquietos bandeirantes da verdade, dilaceram o espírito e a existência terrestre – nós, que não conseguimos suicidar o próprio Eu, matriculando-nos na escola daquele mestre que soprava contra o sol e dizia aos discípulos: “Apaguei o sol; crede e não abrais os olhos!”... Quem são os autores dessas mensagens psicografadas? Pois o médium serve apenas de veículo de pensamentos que, evidentemente, não brotam do seu interior. Médicos, juristas, homens de ciência e absoluta seriedade isolaram Chico Xavier e entregaram-lhe papel e lápis – e ele funciona da mesma forma sob este rigoroso controle. Não prepara coisa alguma. Não reproduz poesias existentes, mas produz peças literárias inéditas. Quem são, pois, os verdadeiros autores dessas mensagens?
  • 13. – É a alma do próprio médium – dizem os animistas. – É o diabo – responde o católico, obediente à máxima tradicional de atribuir a Deus ou ao diabo todas as coisas inexplicáveis. – São os espíritos desses homens desencarnados – afirma o espírita. Há anos, apareceu um livro sobre os segredos do espiritismo, e nesse volume afirma o autor, católico e sacerdote, que o conteúdo dessa obra de divulgação e polêmica é a “última palavra sobre o espiritismo”. Cheguei à última página – e não consegui proferir ainda a primeira palavra sobre o espiritismo, apesar de ter realizado séries de sessões com alguns dos melhores médiuns da Europa. Conhecer a sua própria ignorância, já é o a b c da sabedoria. Mas ignorar a sua própria ignorância, é completo analfabetismo. “O homem, esse desconhecido” – ó Alexis Carrel, que grande verdade disseste!
  • 14. O Cristo desconhecido. Nas cidades mineiras de Itaúna e Divinópolis reconciliei-me um tanto com a mentalidade religiosa reinante, porque naquela encontrei um vigário muito sensato, e nesta os franciscanos holandeses abraçaram em cheio os ideais da Cruzada. Tanto mais dolorosa, porém, foi a minha decepção em Bom Despacho, paróquia administrada pelos padres premonstratenses belgas. A igreja matriz achava-se em obras, sem janelas nem bancos, pelo que não me era possível falar nesse local. Havia a sala do cinema disponível nessa noite. O empresário cedeu prontamente o amplo local para as minhas conferências. Quando o coadjutor da paróquia, que era também o diretor da Pia União das Filhas de Maria, soube que eu desejava falar no cinema, desandou-me um olhar em que ia um mundo de estranheza e de lástima, como se dissera: Esse homem é pagão! Cinema é coisa do tinhoso!... Daí a pouco, encontrei-me com um grupo de Filhas de Maria, que me comunicaram, cheias de tristeza, que não podiam comparecer às minhas conferências. – Por que não? – Porque vão ser no cinema. – E que tem com isto? – O nosso diretor não permite que ponhamos pé no cinema. – Deve ser engano; pois não se trata de cinema. Ele proíbe, de certo, a assistência a filmes, mas não a simples entrada na sala de espetáculos para ouvir uma conferência sobre a imprensa e literatura católicas! – Sim, senhor, ele proíbe a simples entrada nessa sala, seja qual for o fim. – Será que as paredes do edifício têm pecado? Estarão contaminadas? Terão feitiço? Entretanto, as jovens tinham razão: o mal estava no próprio edifício do cinema, no soalho, nas paredes, no teto, nas cadeiras – estava tudo endemoninhado. Do contrário, seria incompreensível a atitude desse sacerdote.
  • 15. Veio-me à lembrança o fato de ter Jesus falado regularmente no templo de Jerusalém e nas sinagogas locais dos judeus, embora profligasse certas doutrinas que os chefes espirituais davam como revelação de Deus – esses “sepulcros caiados”, esses “guias cegos”, essa “raça de víboras”. Como é que o Divino Mestre podia ignorar que as paredes do templo e das sinagogas estavam profanadas pelo demônio? Veio-me à mente também o fato de ter o apóstolo Paulo falado, por espaço de uns dois anos, cada semana, no ginásio de esporte de um certo pagão Tirano, na cidade de Éfeso, sem ao menos suspeitar que esse edifício pagão era de todo impróprio para proclamar a gloriosa mensagem do reino de Deus. Felizmente, o apóstolo das gentes nada sabia da teologia do coadjutor da paróquia de Bom Despacho, e foi por isto que tão despachadamente aceitou o convite do gentio Tirano para difundir o Evangelho num salão de ginástica. Aliás, não só naquelas minhas viagens de antanho, mas até ao presente dia, encontro por toda parte essa mesma mentalidade estreita e anticristã. Tenho falado em salões pertencentes a igrejas Evangélicas, ao Espiritismo, à Maçonaria, ao Rotary Clube, ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, aos Rosacruzes, à Sociedade Teosófica; tenho conferenciado em teatros, cinemas, clubes de diversos tipos, até em oficinas mecânicas – e toda vez muitos dos que não fazem parte dessas sociedades torcem o nariz e acham que isto é uma apostasia ou uma profanação da mensagem evangélica. Essa tendência de querer roubar ao Cristianismo o seu caráter universal e cósmico, e reduzi-lo a uma seita ou piedosa confraria, é antiquíssima. Toda vez que falo num local pertencente a uma denominação protestante, consta por aí fora que me filiei ao protestantismo; quando falo na Liga ou na Federação Espírita, os dissidentes fazem constar que “virei espírita”; quando aceito um convite da parte de uma loja maçônica, muitos sabem que “o Rohden entrou para a maçonaria”. Em Washington eu falava muitas vezes na Self-Realization Fellowship, centro espiritual de origem hindu, e mesmo naquela terra de amplos horizontes não faltava quem visse nisso uma apostasia do cristianismo para o paganismo. Ultimamente, pessoas mais romanas que cristãs descobriram que eu sou da “seita dos yoguis”. O que essas piedosas ignorantes entendem por yoga ou yogui – só Deus o sabe. Saber a verdade sobre isto é, certamente, “heresia” ou “apostasia da fé”. É dificílimo ao homem profano emancipar-se do espírito sectário e compreender que o Cristianismo não é uma seita, igreja ou denominação, mas a realização universal e incondicional do amor a todos os homens, inspirada no amor de Deus, a fraternidade humana baseada na paternidade de Deus. Depois de longos debates, consegui que o vigário permitisse às Filhas de Maria a assistência às minhas conferências, naquele cinema endemoninhado. Mas o
  • 16. coadjutor, em sinal de protesto, saiu da cidade; e o vigário, durante a conferência, foi sentar-se no confessionário para ouvir os pecados das beatas ainda não suficientemente paganizadas para porem pé naquele maldito local onde eu ia proclamar a mensagem do Evangelho do Cristo. Daí o mandei buscar por uma comissão de pessoas gradas do lugar, e ele, por exceção, atendeu ao nosso apelo. Sentou-se, com a comissão, no estrado de honra, mas, bem se via, estava sobre brasas. Deve ter suado frio durante toda essa hora e feito penitência por todos os pecados que, tão sem cerimônia, entraram naquele inferno de Satanás. Contaram-me que, não muito antes dessa data, o presidente da Sociedade de São Vicente de Paula, de Pitangui, realizara, em Bom Despacho, uma conferência sobre Beethoven, no dito cinema – e também desta vez tiveram as almas piedosas proibição categórica de assistir à mesma, não só por causa do local profano, mas também porque a conferência versava sobre um compositor que, na sua adolescência, tinha tido alguns deslizes... Se adotarmos esse critério de canário de gaiola, teremos de abster-nos de ouvir conferências e sermões e de ler livros sobre Santo Agostinho, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, e quase todos os luminares do Cristianismo, porque todos eles, sem excetuar o próprio apóstolo Paulo e seu colega Simão Pedro, passaram por certos períodos evolutivos nada edificantes. Em vez destas pieguices e melindres, não seria melhor mostrarmos ao público a força regeneradora do Evangelho do Cristo, quando entra na vida de um homem pecador e se apodera da alma dele?
  • 17. Nas florestas amazônicas. Condutores ou sedutores clericais? Havia uns quatro anos que andava perlustrando, por terra, mar e ar, todas as latitudes e longitudes desses 8 1/2 milhões de quilômetros quadrados que se chamam Brasil. Em centenas de cidades e vilas já ardiam os faróis da boa imprensa, espalhando pela redondeza a luz das grandes idéias e dos excelsos ideais do Evangelho. Centenas de correspondentes – homens, senhoras, moças, até crianças – e diversos milhares de auxiliares colaboravam comigo na grande Cruzada da Boa Imprensa. O fogo sagrado alastrava magnificamente. Incêndios de entusiasmo iluminavam os céus do Brasil. Cerca de 100.000 volumes saíam, anualmente, do escritório da Cruzada e voavam por todos os recantos do país. Além das nossas edições próprias difundíamos, cada ano, uns 200.000 exemplares de outras casas editoras de orientação católica. Era a Cruzada, assim, uma poderosa central de difusão de literatura cristã e, ao mesmo tempo, um centro de controle e orientação, uma entidade que examinava e selecionava criteriosamente os livros, orientando constantemente os interessados que pedissem informações sobre o espírito deste ou daquele livro. Éramos uma verdadeira Inspetoria de Higiene Moral, sempre de perfeito acordo com a autoridade eclesiástica, que era o cardeal Leme, então arcebispo do Rio de Janeiro. A minha saúde, embora férrea (meu pai nunca esteve doente e morreu só de velhice com 91 anos; minha mãe com 80) cedia, aos poucos, a essa tremenda ofensiva material e espiritual. Organizar e supervisionar uma empresa de projeção nacional, arranjar os meios para custear as enormes despesas, viajar 6, 8 e até 10 meses por ano, e ainda escrever, muitas vezes de noite, dezenas de obras – era bombardeio por demais pesado para os meus nervos. Numa dessas viagens pelos sertões da Bahia, andei mais de uma semana com sezões que, na hora do acesso febril, me escaldavam o sangue até 40 ou 41 graus. Engoli tantas cápsulas de quinina que, por fim, o remédio resultou pior que a moléstia; fiquei com tal zuada nos ouvidos que mal ouvia a minha própria
  • 18. voz, e a insônia, que me fora de todo desconhecida, se tornou minha companheira de noites intermináveis. Quando então, após essa maré de sezões ou febres palustres, vinha a ressaca, era tamanha a fraqueza que me acometia e a vertigem que tudo fazia girar, que só com extremo esforço conseguia manter-me em pé. Entretanto, eu não me rendia. Não interrompia o itinerário traçado. Não ia para a cama. Mesmo com 40 graus de febre ou mais, seguia avante, de trem, de caminhão, de marinéti, de sopa1, por vezes de avião, e falava duas, três vezes por dia. Gastei uma fortuna nessas viagens aéreas, caríssimas, sobretudo pelos ínvios sertões do nordeste e pelas florestas do norte e nordeste. A Cruzada rendia, não para mim – que nunca guardei um só cruzeiro – mas para si mesma, para a sua maior expansão e prosperidade. Eu só conhecia a providência divina, e não as previdências humanas. Só mais tarde, quando apunhalado pelas costas pela cobiça e inveja de colegas, é que abri os olhos e percebi a necessidade de arranjar alguns recursos para a subsistência material. 1. Nomes que, no Norte, dão aos ônibus do interior. O pensamento de que me aproximava cada vez mais da realização do meu ideal de muitos anos me dava forças e alegria para prosseguir na luta, enquanto me restasse um átomo de energias. Desde os dois Retiros Espirituais, de 30 dias cada um, fiquei como que obsessionado por essa idéia, de criar no Brasil uma poderosa entidade que, em todas as cidades, vilas e freguesias do território nacional, irradiasse constantemente a luz divina do Evangelho, essa luz e essa força do além que eu chegara a conhecer e a experimentar em mim mesmo e ansiava por tornar conhecidas de meus patrícios. Tinha eu a firme convicção de que a vida humana só vale pelos ideais que a animam – “viver as suas idéias e morrer por seus ideais”, como escrevi mais tarde, num dos meus livros. À luz desse ideal, todos os sacrifícios me pareciam insignificantes. Dinheiro, saúde, tempo, forças, conforto – tudo isto só tinha um valor relativo, como meio para atingir esse fim superior. O meu intuito imediato era elevar o número de agências permanentes da Cruzada a mil – e nem possuíamos metade desse número. Mas eu me sentia cheio de entusiasmo e esperança toda vez que mais uma agência se alinhasse com as antigas, formando mais um farol para espargir o conhecimento e amor de meu divino Senhor e Mestre. * * * Em meados de 1937 estava eu em Belém do Pará, que era então a extrema baliza da Cruzada. Para além desse gigantesco estuário do rei dos rios não se conhecia a nossa organização, não circulavam, senão esporadicamente, os
  • 19. nossos livros. Belém veio a ser uma potência. Um jovem sacerdote barnabita, carioca, inteligente, dinâmico, realizador, meteu ombros à tarefa de organizar o serviço da difusão literária na metrópole paraense. Em breve se tornou esse novo centro o número um do Brasil. Um grupo de jovens apóstolas levantou completo cadastro da cidade, distribuindo grupos de propagandistas permanentes por todas as zonas e bairros. Foi uma verdadeira ofensiva de livros cristãos. Ofensiva que devia durar diversos anos, até o tempo em que a Cruzada caiu assassinada pela invidia clericalis. Que haveria para além desse extremo limite? Manaus?... Manaus! O meu sangue de aventureiro não resistiu ao desejo de demandar a capital longínqua das selvas tropicais... Tive sorte. Chegara a Belém, levando excursionistas (professores e professoras) brasileiros do centro e do sul, o vapor Jaceguai. Tirei passagem, e, por espaço de cinco dias e cinco noites, fomos subindo a vasta torrente que nasce na cordilheira dos Andes e morre no seio do Atlântico. Devo dizer que o Amazonas foi para mim uma grande decepção. Não vi o Amazonas de que lera e que trazia na imaginação. Navegávamos constantemente, dia a dia, num canal de água barrenta. Como? Aquilo era o célebre Amazonas? Cortávamos para a direita, para a esquerda, duas, três, quatro vezes, e sempre estávamos ainda num canal. Até Santarém, mais ou menos o Amazonas é um enorme complexo de canais, rios, ilhas, paranás, igarapés, lagos, banhados, canaviais, ilhotas semicriadas, seminascituras, bosques flutuantes – o Gênesis antes do fiat definitivo. Tudo aquilo deve ser terra de aluvião que a cordilheira dos Andes, em eras pré-históricas, despejou mar adentro, até formar aquelas imensas planícies de terra e água. A monotonia é absoluta, fatigante. Cada manhã, o mesmo panorama do dia anterior. O Amazonas só impressiona pela grandiosidade, pelo incomensurável das suas extensões. As ribanceiras, ao menos até Santarém, quase até Óbidos, são planas como uma mesa, sem nenhuma elevação de vulto. Jacarés, às centenas, aos milhares, semi- enterrados na lama tépida, só com os olhos e as salientes narinas de fora, como um par de periscópios, encarnação da inércia, não se movem, nem mesmo se dão de um tiro de revólver, porque a bala ricocheteia na terrível couraça. Aqui e acolá, o corpo desgracioso de algum peixe-boi a comer indolentemente o viçoso capim das margens, como se fosse capivara, não é nem peixe nem boi, é um mamífero que se esqueceu da sua espécie e trocou a terra firme pelo elemento líquido, sem conseguir virar peixe autêntico. Garças, cegonhas, guarás, marrecos, sem conta, ao ponto de escurecerem o sol, quando, aos milhares, erguem vôo. De longe em longe, a vivenda primitiva duma família de silvícolas, construção tosca suspensa entre os troncos das árvores, a salvo das enchentes.
  • 20. * * * Domingo à tarde, chegamos a Itacoatiara, pequena cidade sobre a margem direita de quem sobe o rio. Como o nosso vapor parasse umas horas, saltei em terra e dei um giro pela cidadezinha. Perguntei pela casa do vigário. É lá adiante, à beira do rio, disseram umas moças em trajos domingueiros, acrescentando: Mas, o nosso Vigário está quase a morrer... – A morrer? – Sim, voltou das matas, ontem. Deram-lhe umas febres. Também já é muito velho, coitado... Quando entrei na casa paupérrima, defrontei com uma rede suspensa numa grande sala quadrada. Em torno da rede, algumas pessoas, e, estendido nela, um homem entre 70 e 80 anos presumíveis. Cabelo branco; as barbas, quase da mesma cor, havia tempo não conheciam navalha. O olhar febril, as faces encovadas, cadavéricas... Quando saudei o velho sacerdote – Pereira, se bem me lembro – um lampejo de satisfação iluminou-lhe o semblante esmaecido. – O sr. é padre? – perguntou com estranheza, esforçando os olhos por entre as penumbras da sala. – Sou, sim, senhor. Venho do Rio de Janeiro, em trânsito a Manaus. – Ah! foi Deus que o mandou aqui! – exclamou o moribundo, agarrando-me a mão e beijando-a efusivamente. Depois, com violento acesso de tosse e súbita tontura, deixou-se cair na rede, da qual soerguera o corpo magríssimo. Passado o acesso, prosseguiu: – Pois, foi Deus que aqui o trouxe... Vou morrer, hoje ou amanhã... Vim das matas, ontem, onde passei uns meses, visitando meus paroquianos... Distâncias enormes... Só de canoa, dias e noites a fio... Muitos insetos venenosos... Depois, as febres palustres... Há uma semana que ando doente, com impaludismo... Outras complicações... Sou velho... A febre de 41 graus... Fui dado por morto... Há dias que não como... O meu fim está próximo... Minha última confissão foi há muitos, muitos meses... É impossível, por aqui... Não há um colega em toda a redondeza... Para ir à paróquia próxima perco mais de uma semana... Eram estas palavras proferidas a jato, com intermitências e grande esforço... A um sinal do moribundo, todas as pessoas se retiraram. Sentei-me ao lado da rede, num tamborete, com uma das mãos dele entre as minhas. Rezamos juntos, naquela sugestiva penumbra, onde rondava a morte... Ajudei-o a fazer exame de consciência... O velho lutador fez a sua confissão, a última da sua vida terrestre, como ele pensava... A seguinte – só ante o trono de Deus, sem
  • 21. confessor humano... Enquanto ele ralava, vagarosamente, sincera e humildemente como uma criança, julgava eu ter diante de mim um daqueles neo-comungantes da minha antiga paróquia da Laguna, em Santa Catarina, para os quais escrevi o meu livrinho Mistério de Amor... O momento era divinamente solene e terrífico... De repente, lembrei que não tinha jurisdição eclesiástica, para a diocese de Manaus. Não precisa – disse o velhinho – Deus também é bispo... Terminada a confissão, a penitência, a ação de graças, conversamos mais à vontade, e expliquei ao colega a finalidade da minha viagem. – E aqui, na minha paróquia, não há representante da sua Cruzada? – Ora, se eu nem sabia da existência de Itacoatiara... – Pois faço questão de ter aqui uma representante da boa imprensa, antes que feche os olhos para sempre. É uma necessidade. Este povo é bom, mas não tem instrução religiosa. Alguns sabem ler... Ó Aparecida! vem cá, Aparecida! Aproximou-se uma moça para receber ordens. E o velhinho, ofegante, quase a agonizar, começou a explicar à Aparecida o que ela tinha de fazer para iniciar a campanha do bom livro, no meio daquelas selvas. Suava frio, de tanto esforço, esse herói moribundo. – Deixe, padre, deixe que eu lhe explique! – intervim, ao ver o cansaço do doente. – Não, não! – replicou ele. Quando eu explico, minha sobrinha me atende. Ela é muito dócil e piedosa. E assim foi o velho explicando à jovem, com o último resto de suas forças, a necessidade da campanha do livro religioso e o modo de realizar esse importante apostolado. E eu pensava em Paulo de Tarso a evangelizar os povos, mesmo do fundo do leito de dores, mesmo à sombra do cárcere... Há muitos desse heróis anônimos, no fundo das matas e dos sertões do Brasil. Ninguém lhes canta as glórias. O seu nome não aparece, em letra de forma, nas colunas dos jornais. As estações de rádio e televisão os desconhecem. O “mundo civilizado” não sabe da sua existência. Entretanto, são esses os brasileiros autênticos, os pioneiros da cultura, os bandeirantes da fé, os guardas avançados do idealismo cristão. Apóstolos da sua missão, acabarão necessariamente mártires do seu incompreendido heroísmo. A Aparecida veio dar uma ótima representante da Cruzada em Itacoatiara. Não era grande o movimento de livros, porque não eram muitos os alfabetizados,
  • 22. mas cada livro era lido e relido com muita atenção e interesse, ao pé do fogo, pelos que sabiam ler, escutados pelos que queriam ouvir. Em face de episódios desses, minha alma criava vida nova, e a plantinha da minha esperança, por vezes um tanto murcha, erguia a cabeça sonhando com melhores dias para o nosso querido Brasil... Padre Pereira, ou que nome tenhas: se ainda estás entre os vivos cá em baixo, ou se já estás lá em cima no mundo dos sempre-vivos, daqui da minha humilde tenda de trabalhos, envio-te um grande abraço de amigo irmão, e rogo-te que infundas na alma dos teus colegas de sacerdócio algo do heroísmo e da pureza de alma que iluminavam a tua vida terrestre. No meio do fragor da campanha que, daí a poucos anos, algumas ordens religiosas desencadearam contra mim e meu apostolado, pouco sentia eu por mim mesmo, calejado como estou com tanto murro e pontapé; muito sentia por todas as “Aparecidas”, diversas centenas, por esse Brasil afora. Como terão elas sofrido com os horrores que boa parte do clero e do episcopado criou dentro do catolicismo brasileiro, proibindo, execrando como “perniciosos à fé católica” todos os meus livros, tão efusivamente aprovados e abençoados por meu superior diocesano e tão avidamente lidos e assimilados pelas almas desejosas de luz e forças divinas! Tremenda decepção deve essa campanha satânica ter causado a essas almas simples, dedicadas, alheias a todas essas paixões de que caiu vítima parte dos que deviam ser os guias espirituais dos seus rebanhos – e de condutores que deviam ser se tornaram sedutores e mercenários... Não creio que todos os não-católicos ou anti-católicos em conjunto tenham feito tanto mal ao catolicismo como esses sacerdotes que se revoltaram contra a autoridade eclesiástica que aprovara os meus livros e mentiram ao povo brasileiro, a fim de advogarem os interesses financeiros dos seus conventos e das suas ordens e congregações... Deus tenha piedade deles... E piedade também das suas vítimas...
  • 23. Marajó, um mundo em gestação. Cristianismo em marcha. Encontrei em plena floresta amazônica uma cidade moderna, próspera, confortável, estética. Encontrei um povo amigo, simpático, cristão. Encontrei um mundo intelectual ávido de saber. Realizei, no vasto Teatro Amazonas, uma semana de conferências, patrocinadas pelo Dr. Álvaro Maia, então Interventor Federal nesse Estado. Quando eu via upadas cada noite aquelas 3000 cadeiras e milhares de olhos focalizados em mim, em intensa expectativa e profundo silêncio, sentia dentro de mim uma como que onda psíquica que me sugestionava poderosamente e me inspirava idéias melhores do que aquelas com que viera ao recinto. Eu via a magnificência do reino de Deus a despontar em milhares de almas. Como Tertuliano tinha razão em dizer que a “alma humana é cristã por sua própria natureza”! As teologias, mais tarde, em tempos de decadente escolasticismo intelectual e não espiritual, inventaram que a alma é, por sua natureza, inimiga de Deus, anticristã, e que certas cerimônias e fórmulas litúrgicas a devam fazer cristã: Essas teologias são, certamente, úteis a uma determinada classe sacerdotal, mas são a negação radical da verdade expressa pelo divino Mestre: “O reino de Deus está dentro de vós”. É que toda alma é divina, cristã por sua íntima natureza, embora nem todas realizem e atualizem esse cristianismo latente e potencial. Por isto é que veio o Cristo, ele, o Cristianismo plenamente atualizado, para mostrar-nos como também nós podemos e devemos atualizar em nós o nosso Cristianismo inato e ainda dormente. É este despertar do Cristianismo dormente da alma que o Mestre chama o “renascimento pelo espírito”. Tudo isto sentia eu poderosamente, em ocasiões como esta. Todo orador ou conferencista espiritual sabe que as melhores idéias lhe vêm só quando ele está diante dum auditório propício, com a necessária receptividade para apanhar as invisíveis irradiações de que o orador se sabe emissor, e que da antena sensível dos ouvintes são novamente refletidas sobre ele, surgindo com redobrada clareza, veemência e entusiasmo. Esse intercâmbio de ondas divinas e algo que ninguém pode descrever, mas que alguns podem sentir. Isto, porém, não dispensa o orador do trabalho prévio da preparação do
  • 24. assunto. Mas essa preparação prévia é apenas o elemento intelectual e técnico; a inspiração é algo inteiramente diferente, é espiritual, cósmica. Um grande escultor, em Paris, costumava dizer a seus discípulos: “Estudai com perfeição as regras da técnica da arte – e, depois, esquecei-vos de toda técnica e cedei à inspiração”. Do consórcio do consciente e do subconsciente, do intelectual-técnico e do espiritual-cósmico, é que nascem as grandes obras de arte de valor permanente. Poucas vezes vi tanta sede de saber, tamanha avidez do intelecto e da alma, como entre o povo de Manaus. Eu falava, isto é, palestrava sobre assuntos da vida ética e espiritual do homem uma hora inteira. Na segunda ou terceira noite veio ter comigo uma comissão perguntando se podia prolongar as minhas palestras por uma hora e meia ou duas, porque era raro aparecer em Manaus quem assim conversasse sobre assuntos de palpitante interesse. Daí por diante falava eu, cada noite, das 20 às 22 horas, e ninguém se movia do lugar. Por vezes, em cidades do litoral, antes de subir à tribuna, recebo do encarregado da organização o discreto aviso: “Não passe de 30 minutos, por favor, porque o povo não aguenta”. Semelhante injunção seria para desanimar qualquer orador, se ele não soubesse por experiência que esse “aguentar” ou “não aguentar” depende do modo como ele fala; por via de regra, os ouvintes “aguentam” tudo, desde que o orador saiba falar-lhes de alma para alma, e não apenas de cérebro a cérebro, ou de lábios a ouvidos. De resto, quando um orador saca do bolso enorme maço de tiras de papel e começa a declamá-las, uma por uma, com a costumada e insuportável entonação retórica e gestos previamente ensaiados diante do espelho – neste caso, é claro, convida ele os presentes a se ausentarem, ou, se porventura ficarem, a dormir em vez de ouvir. Comigo, nunca ninguém foi obrigado a “aguentar”. Os que ouviram alguma das 2000 conferências que, entre 1935 e 1940, realizei em cerca de 500 cidades e vilas do Brasil, sabem que não uso de retórica artificial, não me arvoro em orador de alto coturno, nem assumo ares dramáticos de conferencista ou pregador, mas que me limito a expor, simples e sobriamente, em tom de palestra, uma série de pensamentos que interessam a qualquer ser humano ainda não adulterado em sua íntima natureza cristã. E isto não cansa a ninguém. Todos acompanham espontaneamente o curso das idéias, quando estas são o eco da sua própria alma e dizem explicitamente o que cada homem já sabia implicitamente, embora não fosse capaz de externá-lo assim como o orador o expõe. O que disse no capítulo “Locutores da Humanidade” do mais lido de todos os meus livros, De Alma para Alma, é exatamente o que todo escritor ou orador deve fazer, quando quer ser ouvido e lido com vivo interesse e espontâneo entusiasmo. O autor, naturalmente, deve estar intimamente convencido da verdade daquilo que diz; deve ter vivido, sofrido e gozado essa verdade; do contrário, não poderá produzir convicção nos seus ouvintes ou
  • 25. leitores, por mais perfeitas que sejam as suas frases e seus períodos clássicos. Não é a palavra, mas sim a convicção que convence. “Convencer” é um composto de “vencer”; eu estou convencido duma verdade quando sou por ela vencido; e só posso convencer outros da mesma verdade se esta verdade que me venceu, que me derrotou, que me domina como um senhor domina seu servo, vence, derrota e domina soberanamente os meus ouvintes e leitores. A absoluta sinceridade das nossas palavras é o requisito número um para convencermos os outros daquilo que dizemos; eu devo ter vivido integralmente aquilo que digo para fazer com que os outros o vivam também. O que decide é o elemento invisível e imponderável, a íntima vivência daquilo de que as palavras são apenas o elemento visível e ponderável. Devido a essa falta de sinceridade, vigora entre nós o abominável costume, ou vício, de o orador levar longo tempo para se desculpar perante o público, frisando hipocritamente a sua “absoluta incompetência” e “reconhecida incapacidade” (aqui, naturalmente, ele abre uma pausa, aparentemente para tomar fôlego, na realidade, porém, para ouvir, das primeiras filas da platéia, o dulcíssimo “não apoiado”, música inefável para a sua complacente vaidade). Por que perder tempo para afirmar a sua incapacidade? Se ela de fato existe, é supérfluo prová-la de antemão, o público o verificará dentro em breve. De Manaus, mandei à sede da Cruzada, no Rio de Janeiro, uma mensagem telegráfica, felicitando-a pela conquista dessa longínqua etapa, na gloriosa marcha do Cristianismo dinâmico. Verdade é que existiam por conquistar fronteiras mais distantes. No Acre mantínhamos diversos centros de difusão; mas lá nunca estive pessoalmente. Quanto aos dois Estados do oeste, Goiás e Mato-Grosso, deixara-os para tempos posteriores, que não vieram, porque a invidia clericalis destruiu nossa obra apostólica antes do tempo. Convidado por esse benemérito apóstolo leigo e sincero amigo, que era o Dr. André Araújo, então Juiz de Menores, internei-me, com um grupo de amigos, floresta adentro, até a linda cachoeira de Tarumã, e outra, cujo nome me fugiu. Todos os meus leitores conhecem obras magníficas sobre a grandiosa natureza tropical dessas regiões, e não esperarão de mim uma descrição das selvas amazônicas e da estupenda exuberância e deslumbramento da sua flora e fauna. De resto, que idéia poderia a silenciosa palidez de umas folhas de papel inerte dar da exultante epopéia viva e vibrante da realidade objetiva? Quem não viu com seus próprios olhos, e viveu com sua alma, essas magnificências, nunca terá idéia exata do que seja, de fato, a Amazônia. Calor perene, umidade abundante, solo fertilíssimo – eis os requisitos básicos para esse eldorado do mundo vegetal e animal no clímax da sua expansão e vitalidade. Aqui imperam ainda, em plena pujança, os longuíssimos períodos pré-históricos da época mesozóica, quando as condições do globo terráqueo se achavam empenhadas nessa dramática revolução que assinala a transição da adolescência para a maturidade. A Amazônia é uma adolescente tropical
  • 26. em luta pela adultez. Aqui, o livro do Gênesis continua aberto, em plena evolução do segundo ou terceiro “dia da criação”... O fiat definitivo está ainda por ser proferido... No meio dessas selvas tropicais invadiu-me, novamente, o velho desejo de estar a sós e de ficar a sós para sempre, com Deus e com minha alma – a voz do meu estranho egoísmo místico. Por que será que o contato com a Natureza virgem nos infunde essa profunda e benéfica quietude interior – quietude que poderá, ao mesmo tempo, converter-se em malefício, num veneno inebriante? Dizem os orientais que a Natureza (maya) “revela e vela” a Deus, e isto é profundamente verdadeiro. Revela, manifesta, porque é obra de Deus – vela, oculta, porque é incompleta essa revelação. Na Natureza infra-humana, Deus aparece como um poder impersonal; na consciência humana, ele aparece como um ser personal, que se revela pelo imperativo ético do dever moral. Entretanto, Deus não é nem impersonal, como aparece na Natureza, nem personal, como aparece na consciência humana – ele é suprapersonal, ou melhor, onipersonal, como aparece na existência íntima dos grandes videntes e místicos, quando, “arrebatados ao terceiro céu”, percebem “ditos indizíveis”. “árreta rémata”, como diz Paulo de Tarso, depois de ultrapassar a zona do impersonal e de personal e arribar às praias ignotas do onipersonal, cujo conteúdo é “dito” à alma, mas não é “dizível” pelo intelecto ou pelos lábios corpóreos. Deixar-se absorver e embriagar pelo fascínio impersonal da Natureza é um perigo sutil, um veneno suavemente mortífero para o homem suficientemente iniciado na onipersonalidade do mundo divino... Quem jamais experimentou, no seu subconsciente, essa veemente sucção dos misteriosos abismos da natureza infra-humana, sabe do perigo que há nessas inebriantes melodias das tenebrosas Circes das profundezas e das fascinantes Sereias de ilhas longínquas... E sabe também que esses demônios dos abismos de mundos ignotos só se transformam em anjos de alturas celestes depois que o homem ingressou na luz meridiana duma experiência vital do Cristo e do reino de Deus dentro dele mesmo. Para esse homem cessou a funesta sucção do vórtice rumo ao abismo; a Natureza se lhe tornou amiga e aliada no seu caminho em demanda do Criador comum do homem e da Natureza. Tudo isto, e muito mais, era pensado em mim, na misteriosa semi-noite meridiana que me envolvia, por entre os gigantescos troncos e as altíssimas frondes dessa imensa catedral das selvas amazônicas, ao trovejante Te Deum da cachoeira e às discretas melodias filigrânicas das aves e dos insetos em derredor. * * * Terminada a semana de conferências, com a alma repleta de gratidão, entusiasmo e experiências inéditas, meti-me no bojo de um aviãozinho
  • 27. minúsculo, único que a Panair, nesse tempo, mantinha nessas zonas, a fim de encurtar por 9/10 a distância entre Manaus e Belém. Dom Basílio, piedoso bispo franciscano de Manaus, apesar de realmente pobre como o simpático vagabundo de Assis, fez questão de pagar pelo menos metade da minha passagem aérea – foi esta, aliás, a única vez que alguém, espontaneamente, contribuiu para o custeio das enormes despesas que minhas contínuas excursões reclamavam. E convém frisar esse gesto, tanto mais que, pouco depois, a cobiça de Ordens e Congregações religiosas estrangeiras (Dom Basílio era brasileiro) iniciou a destruição da Cruzada. O bispo, na sua bondade e simplicidade, acompanhou-me até ao aeroporto fluvial, e, quando me viu desaparecer no fundo da ave metálica (entrava-se por um alçapão de cima), na qual cabiam apenas cinco passageiros, exclamou: “Nem por nada embarcaria eu nessa geringonça!” E lá fomos, subindo, subindo, 3000 metros, deixando em baixo, muito longe, a fita argêntea do rei dos rios, emoldurado no verde-escuro das matas a espraiar- se por horizontes sem fim. Pouco a pouco, a fita argêntea, à medida que recebia os contingentes dos seus grandes tributários da direita e da esquerda, se alargava, se esfiapava caprichosamente, invadindo o interminável oceano de verdor, abrangendo entre seus braços líquidos ilhas e ilhotas, algumas ainda em estado embrionário. Tive a impressão de que a Amazônia foi surpreendida pelo homem ainda em plena gestação; não estava, a bem dizer, em condições de nascer para a civilização e ser normalmente habitada, a não ser por algum homem pré-histórico. Só falta andarem por aí uns sauros, ou cruzar os ares a sombra de alguma fantástica archeopterix para lhe dar perfeita similitude com a fisionomia da época terciária, que precedeu ao advento do chamado homo sapiens. A ilha de Marajó, como soube mais tarde, e muitas das suas milhares de colegas amazônicas, tem poucos trechos de solo realmente resistente. O resto é um mingau, misto de terra e água, em todas as graduações de liquidez ou solidez. Admirável a inteligência da flora marajoara! Como as plantas aprenderam a adaptar-se a esse solo incerto, onde pouco valeria à árvore possuir um único tronco, pois a primeira rajada violenta daria com ela em terra. Certa espécie de figueira, abundante nessa ilha, que tem mais ou menos a área da Suíça, sai dos banhados em forma duma haste delgada; desenvolve- se com grande rapidez, porque o cardápio é dos melhores e mais suculentos do mundo; estende horizontalmente os primeiros galhinhos; deita logo, de todos os pontos dos galhos, uns fiozinhos verticais, raizinhas finas como barbantes, em demanda do solo; mal atingida a terra pantanosa, engrossam os flexíveis filamentos, enrijam, avolumam, dilatam-se, dando uns como cabos de navio, e, por fim, acabam em verdadeiros troncos suplementares da árvore. E, enquanto engrossam e se enterram no solo pantanoso, descem das alturas
  • 28. desses galhos dezenas, centenas, milhares de novos fiozinhos vivos – até que, por fim, toda a figueira se acha circundada duma verdadeira paliçada de estípites, apoiada em centenas de troncos secundários, rodeando o tronco primário, formando verdadeiras paredes vivas. Penetrei pelo raizame labiríntico de uma dessas figueiras marajoaras, que media seguramente 50 metros de diâmetro, e tive a impressão de me achar por entre os feixes de colunas góticas, da catedral de Milão, Colônia ou Notre-Dame de Paris; muitas centenas de colunas me cercavam e envolviam em misteriosa penumbra; o bloco maciço dos troncos unidos devia ser de uns 20 metros de diâmetro; só aqui e acolá se enxergava ainda alguma fresta, espécie de janelinha gótica por entre as raízes solidamente aliadas e inseparavelmente unidas. Venha agora quanto vendaval quiser – não conseguirá derribar essa árvore, que teve a previdência de criar centenas de pontos de apoio no meio do terreno vacilante. Quanto mais o nosso minúsculo aviãozinho se aproximava do estuário, tanto mais perdia o Amazonas o seu caráter de torrente uniforme e assumia visos de imensa planície feita de ilhas e lagos. Tive convite insistente, em Manaus, para lá voltar no próximo ano, a fim de pregar os sermões da Semana Santa, com todas as despesas pagas. Não pude aceitar tão sedutora oferta, porque, nesse tempo, estaria eu em vésperas de embarcar para a Europa, chefiando uma peregrinação brasileira que ia representar o Brasil católico no Congresso Eucarístico Internacional de Budapeste. Não suspeitava eu o que, depois do meu regresso do Velho Mundo, ia acontecer comigo e com minha Cruzada... Brevemente, o leitor saberá...
  • 29. Excursionando pela Europa. Audiência com o Papa em Castel-Gandolfo. Em fins de maio de 1938 ia celebrar-se, em Budapeste, o 360 Congresso Eucarístico Internacional. Todo o mundo católico se faria representar. E o Brasil? Não tomaria parte? Nuvens sinistras acastelavam-se nos horizontes políticos do velho mundo. Os jornais davam páginas inteiras sobre complicações internacionais, preparativos bélicos, desenfreada corrida armamentista. A Alemanha, completamente derrotada na primeira Guerra Mundial, realizava um dos maiores prodígios de que há memória nos fastos da história humana. Sem colônias, sem exército, sem marinha, tremendamente endividada, e, pior de tudo, minada de um pessimismo sem precedentes, com guerras civis a todo momento, milhões de desempregados, legiões de vagabundos – essa Alemanha ressuscitara subitamente, em 1933, como que tocada por uma varinha mágica... Ressuscitara e, em menos de 6 anos, se achava assaz forte para ameaçar o mundo inteiro com as suas forças bélicas. Como explicar tão inaudita metamorfose? A varinha mágica se chamava “fé” – fé no seu futuro, fé nas possibilidades latentes, fé no seu grande destino na história da humanidade. E quem despertara a fagulha latente dessa fé era um homem possesso de um demonismo sinistro, que até ao presente dia é um dos tenebrosos mistérios do gênero humano – Adolf Hitler. Reboou pela Alemanha derrotada e pessimista a palavra estranha desse pretenso redentor – e milhões de vagabundos, maltrapilhos e desempregados se transformaram, da noite para o dia, em outros tantos soldados disciplinados ou dinâmicos operários das fábricas de munição, impelidos mais pela fé e pelo entusiasmo nacional do que pela esperança mercenária de vantagens materiais. Meninos, quase crianças, de 12 a 14 anos, pedem ao Fuehrer o insigne privilégio de serem admitidos no
  • 30. exército, na marinha, na aeronáutica, prevendo a gloriosa possibilidade de jogarem bombas destruidoras sobre Varsóvia, Londres, Paris, etc. A guerra, como é sabido, deflagrou em setembro de 1939. Em princípios de 1938 andavam as nuvens prenhes de ameaças, e ninguém sabia quando romperia a grande catástrofe... Levar para além do Atlântico um grupo de peregrinos envolvia enorme responsabilidade. O Brasil católico, pelo que se previa, não tomaria parte nesse Congresso Eucarístico. Foi então que minha Cruzada da Boa Imprensa, simples casa editora, perpetrou – digamos assim – uma das suas mais arrojadas façanhas, quiçá a mais arrojada de todas. Arrostar o impossível é terrivelmente inebriante... Pedi permissão ao cardeal Leme para organizar uma excursão a Budapeste. Íamos visitar também Roma e outros centro culturais da Europa. Dom Sebastião Leme logo aprovou a minha idéia e mandou-me, em magnífica carta, a sua bênção e seus votos de feliz êxito. Mãos à obra! Os 10 ou 11 meses que então se seguiram foram de intensa atividade em torno da idéia da excursão. O nosso escritório de casa editora quase que se transformou numa agência de turismo internacional. O Brasil inteiro ficou sabendo do nosso plano, aplaudido por muitos, incriminado por não poucos. De mãos dadas com meu gerente-jornalista, elaborei o itinerário. A excursão abrangeria, oficialmente, sete países: França, Itália, Áustria, Hungria, Iugoslávia, Suíça, Alemanha, levando um total de três meses. Pronto o itinerário, fomos ter com as grandes empresas de turismo, Exprinter, Waggon- Lit Cook, e outras. Os orçamentos que de lá nos vieram nos pareceram exorbitantes, embora, à luz dos preços de hoje, fossem “café pequeno”. Numa dessas empresas a excursão, tudo incluído, custava Cr$ 12.000,00, na outra, Cr$ 15.000,00 por pessoa, em classe turística, e um pouco mais em primeira classe. Hoje custaria dez vezes mais. Mas nesse tempo, 12 e 15 contos eram fortunas enormes. Abrimos mão das empresas de turismo e viagens e resolvemos fazer tudo sem intermediário algum dessa natureza. Como?... Houve quem me julgasse louco varrido... Entretanto, querer é poder! Afinal de contas, era simples questão de cálculo e organização: preço da passagem marítima, em primeira e segunda classes, tanto, com o costumado desconto para grupos maiores. Quanto às viagens terrestres pela Europa, hospedagem, etc., entendi-me com um amigo em Gênova, proprietário de confortáveis ônibus Fiat. Preços, tais e tais. Cheguei à conclusão final de que o preço, por pessoa, seria de Cr$ 8.500,00 em classe
  • 31. turística e de Cr$ 10.000,00 em primeira classe. Em terra, naturalmente, não haveria diferença de preços. Sobre esta base lançamos o prospecto definitivo. Começou o período do trabalho mais insano. Centenas e centenas de pessoas pediram informações sobre todos os pontos, possíveis e impossíveis – uma professora sertaneja até quis saber o que se comia a bordo, se havia feijão com arroz, etc.; do contrário ela não iria. Finalmente, em fevereiro de 1938, tínhamos uns 300 candidatos certos – quando veio o grande colapso! Colapso parcial, é verdade... Em março desse ano resolveu Hitler anexar a Áustria ao Reich alemão – e quase 200 dos nossos candidatos desistiram da viagem, na certeza de uma iminente guerra européia ou, quem sabe, duma conflagração mundial... Nós, que estávamos em contato permanente com os nossos consulados e embaixadas em Roma, Paris, Londres, Berlim, Viena, Budapeste, etc., sabíamos que, segundo todas as previsões dos entendidos, não haveria guerra em 1938; mas, como convencer outros dessa nossa convicção, no extremo norte ou sul, leste ou oeste do nosso imenso Brasil? Os jornais tinham de viver, e, por falta de assunto melhor, exploravam amplamente a “iminência de uma guerra mundial”. Ficamos com 120 excursionistas firmes e fiéis até o fim, entre eles 15 sacerdotes e um arcebispo, D. João Becker, de Porto Alegre. Mandamos reservar passagens nos vapores Oceânia, italiano, e Kosciuszko, polonês, sendo que este levaria os nossos peregrinos a Boulogne-sur-mer, norte da França; aquele, a Nápoles. Em Milão haveria junção das duas turmas, em dia marcado. Dito e feito. Embarcamos em fins de abril, nos dois transatlânticos, acompanhados das carinhosas bênçãos do cardeal Leme e do Núncio Apostólico, sendo que este último veio pessoalmente ao cais e a bordo trazer-nos os seus votos de boa viagem e feliz regresso. Dom Sebastião Leme, doente no seu sítio em Itaipava, fez-se representar por seu secretário particular, Monsenhor Melo, trazendo-me de Sua Eminência uma das mais belas cartas que possuo. Associei-me ao grupo maior, que seguia pelo Kosciuszko. A nossa passagem pelo Recife foi uma apoteose. Daí seguimos mar em fora. Flutuavam à nossa frente três esplêndidas bandeiras: o auri-verde pavilhão nacional; a alvi-áurea bandeira pontifícia, e o simpático pendão da Cruzada, com os dois lindos cometas a cruzarem-se sobre o globo azul, simbolizando as luzes da razão e da fé a iluminar as almas e o mundo.
  • 32. Paris, Lisieux, Lourdes – quantas impressões que a silenciosa palidez do papel não pode receber nem refletir! Chegamos ao meio dos Pirineus, onde se aninha a misteriosa Lourdes, no meio de tremendo aguaceiro; mas, assim mesmo, na escuridão da noite que caía, serpenteava uma grande procissão de tochas pelas encostas dos morros e por entre os rochedos, cantando conhecido hino de Lourdes. No dia seguinte visitamos a “gruta milagrosa”, onde uns 500 doentes deitados em macas, catres, esteiras, padiolas, suplicavam a Deus e à Virgem o dom da saúde, clamando em todas as línguas do mundo, erguendo os braços, fixando os olhos lacrimosos no nicho rochoso ao lado do qual aparecera, repetidas vezes, em 1858, a formosa “dama” descrita por Bernadete Soubirous, e onde brotara depois a fonte milagrosa, cujas águas continuam a fluir. Alexis Carrel, o grande cientista francês, fez estudos e investigações profundas sobre os inexplicáveis acontecimentos, que se vão perpetuando há quase um século, mas não chegou a uma conclusão definitiva. É sabido que a igreja romana apela para os fenômenos de Lourdes, sobretudo as curas repentinas de moléstias incuráveis, como provas a favor das suas doutrinas peculiares. Entretanto, a conclusão não procede; fenômenos análogos ocorrem em qualquer outra religião, dentro e fora do Cristianismo. Alexis Carrel chega à conclusão imparcial de que os ditos “milagres” nada têm que ver com o que, comumente, se chama “fé”, no sentido dogmático- eclesiástico, tanto assim que a imensa maioria das pessoas que, certamente com grande fé, vão a Lourdes para serem curadas, voltam para casa doentes como vieram; apenas diminuta porcentagem dos peregrinos é curada, e por vezes pessoas cuja “fé religiosa” se acha em baixo nível; muitos deles poderiam associar-se ao chefe da Sinagoga, Jairo, e dizer: “Creio, Senhor – ajuda a minha incredulidade!” Há muitos crentes descrentes – como também não faltam descrentes crentes... A teologia não resolve o caso. Nem sabemos, a bem dizer, o que quer dizer fé. Carrel insinua que existe uma espécie de Constituição Cósmica, que é infinita sanidade; o descontato com essa eterna fonte de saúde é doença, o contato é saúde. Mas ninguém sabe qual o processo que reintegra um organismo na vibração harmônica dessa eterna fonte de sanidade. Havia entre os nossos excursionistas um jovem, mais ou menos apático em matéria de religião eclesiástica; a tuberculose lhe roera um dos pulmões e estava destruindo lentamente o outro, como provam as radiografias tiradas e arquivadas no Bureau des Constatations mantida pela ciência médica em Lourdes, orou, diante da gruta, e nada aconteceu. Mas, durante a noite próxima, foi completamente restabelecido o pulmão semi-roído pela tuberculose e plenamente substituído o que fora destruído pela moléstia, como demonstram novas radiografias. A ciência e a teologia acham-se em face dum grande ponto de interrogação. Evidentemente, existem forças no Universo que ultrapassam o nosso alcance e
  • 33. que em determinadas circunstâncias atuam a favor de pessoas que conseguem sintonizar as vibrações do seu organismo individual com as vibrações do organismo universal da Constituição Cósmica. E essa sintonização é realizada, muitas vezes, na zona noturna do nosso subconsciente, mesmo durante o sono, ou num momento em que menos o esperamos. A presença de um poderoso foco de sintonização, como era Jesus de Nazaré, facilita grandemente a sintonização das vibrações do corpo humano, como temos no Evangelho. “Podes crer que eu te possa fazer isto?” – é esta a pergunta invariável que Jesus dirige aos doentes que o invocam, e só depois que o enfermo sintoniza as suas pequenas vibrações com a grande vibração do Taumaturgo é que acontece o “milagre”: “Creio, sim, senhor!” “Então seja feito contigo conforme crês!” O que é certo é que Lourdes é uma permanente refutação da concepção materialista do universo. É cientificamente inegável que, por detrás dos fenômenos perceptíveis do universo, existe uma realidade imperceptível aos sentidos, fonte e causa daqueles. É cientificamente impossível identificar a realidade do mundo com a sua perceptibilidade. Não podemos estabelecer a equação empírica e infantil: realidade = perceptibilidade; temos de modificar a equação do seguinte modo: realidade > perceptibilidade. O materialismo é por demais primitivo, ingênuo, unilateral, fragmentário; não satisfaz a nenhum homem capaz de raciocinar logicamente. A ciência natural de hoje é unânime em reconhecer que os fenômenos da natureza física não passam de uma espécie de sombras ou reflexos secundários de uma realidade primária, maior, que está por detrás deles. Assim, por exemplo, escreve Sir Arthur Stanley Eddington, no seu livro The Nature of the World: “O conhecimento nítido de que a ciência física trata de um mundo de sombras representa um dos mais significativos progressos. No mundo físico assistimos a um drama de silhuetas de sombras: no original shadowgraph, neologismo intraduzível. Tudo é simbólico... O mundo externo acabou num mundo de sombras... Se quisermos remover as nossas ilusões teremos de remover a substância (material), porquanto verificamos que a substância é uma das nossas maiores ilusões”. Sir James Jean, na sua obra The Mysterious Universe, escreve: “O curso do nosso conhecimento vai rumo a uma realidade não-mecânica. O Universo começa a apresentar-se-nos antes como um grande pensamento do que uma grande máquina”. Os dois livros revolucionários de Einstein, sobre a Relatividade e a Teoria do Campo Unificado, este último publicado pouco antes da morte dele, confirmam matematicamente a mesma verdade: que, por detrás dos fenômenos materiais e visíveis, jaz uma realidade imaterial e invisível, e tanto mais real quanto
  • 34. menos accessível aos nossos primitivos instrumentos sensoriais e intelectivos de hoje. É, certamente, nessa direção que uma humanidade futura, mais avançada no terreno da razão espiritual, intuitiva, desvendará o segredo último do chamado “milagre”. * * * Depois de fazermos junção, em Milão, com os nossos companheiros vindos via Mediterrâneo, transpusemos a fronteira da Itália e da Áustria ou melhor, da ex- Áustria, daquele tempo, porquanto acabava de ser anexada por Hitler à “grande Alemanha”. Nas cidades por onde passávamos mal víamos as paredes das casas, de tanta bandeira vermelha com a cruz gamada no centro. O estribilho de Heil Hitler! era ouvido milhares de vezes por dia, até nos mais primitivos botequins. A saudação fastidiosa era repetida à chegada e saída de qualquer freguês. * * * Não vou entediar o leitor com a descrição das margens do Danúbio Azul – que aliás só nos apareceu como verde-cinzento. Passamos mais duma semana na pitoresca cidade de Budapeste. Na histórica Praça dos Heróis assistimos à grande apoteose eucarística. Em Buenos Aires havia eu ouvido falar o então cardeal Eugênio Pacelli com tamanho desembaraço como se nascera na terra lendária do Cid. “Es de los nuestros!” diziam entusiasticamente os argentinos. Em Budapeste subia ele à tribuna, como Legado Pontifício, com a mesma segurança e firmeza e, sem usar tiras escritas, falava em magiar (húngaro) uma hora inteira, com tamanha espontaneidade e fluência como se nunca em sua vida falara outra língua. Não entendi uma só palavra dessa língua estranha, mas os meus amigos húngaros vibravam de entusiasmo pelo conteúdo dos discursos do futuro Papa Pio XII. Quando Núncio Apostólico em Berlim manejava ele com a mesma mestria a língua de Goethe, dirigindo o seu baixel com acerto por entre os recifes da mais moderna terminologia técnica germânica. No Congresso Eucarístico de Dublin falava o cardeal Pacelli o inglês como se fala às margens do Tâmisa. No alto do Corcovado ouvi-o exprimir-se em nosso suave linguajar brasileiro; apenas a curva traiçoeira do nosso “til” desafiava a flexibilidade glossológica do hábil orador. De Budapeste enviei, em nome da Cruzada da Boa Imprensa e da excursão, uma mensagem radiofônica aos nossos amigos no Brasil. Na Praça dos Heróis flutuavam as bandeiras de todas as nações, à exceção da Alemanha e da Rússia. Hitler proibira os “arianos” de participarem do Congresso Eucarístico e mandara fechar as fronteiras. Entretanto, como havia
  • 35. milhares de alemães para além das divisas do Reich, não faltou quem representasse os 20 milhões de católicos alemães. Faltava, porém, um orador alemão, não porque não houvesse, mas porque seria politicamente perigoso ou imprudente alguém assumir essa responsabilidade, em vista das possíveis represálias que Hitler exerceria contra pessoas da família dele na Alemanha ou na Áustria. Veio então ter comigo uma comissão enviada pela diretoria do Congresso Eucarístico, solicitando convidasse, em nome do Congresso, a D. João Becker, arcebispo de Porto Alegre, que se encontrava entre nossos peregrinos e, como filho de alemães, falava bem a língua dos seus antepassados germânicos. Foi o que fiz. D. João Becker improvisou uma alocução vibrante, incisiva, sobre a liberdade da Igreja dentro do Estado. Não tocou em assunto político, mas foi delirantemente aplaudido, tanto assim que havia por toda parte maiores antipatias do que simpatias em face do Fuehrer, embora ninguém ousasse externar publicamente os seus sentimentos, com medo das consequências. Em Viena, onde passamos alguns dias, pedi entrevista com o velho professor Sigmund Freud. Infelizmente, estava o autor da Psicanálise doente e com absoluta proibição médica de receber visitas. A anexação da Áustria ao Reich não podia deixar de ter consequências funestas para ele, como teve para todos os filhos de Israel. Mais tarde, em Florença, tive interessante entrevista com Giovanni Papini. Como eu passara em Nápoles um ano inteiro, pude sem dificuldade entreter- me com ele em italiano, embora o autor de Storia di Cristo usasse, por vezes, termos de gíria toscana cujo sentido eu antes adivinhava do que entendia. Havia eu lido, num jornal do Rio, um artigo de Agripino Grieco sobre o físico de Papini; dizia o conhecido crítico que a cara de Papini era tão feia que beirava ao obsceno, estando quase, a reclamar uma folha de parra. Grata foi a minha surpresa que, quando, naquele silencioso palacete à rua Gherazzi, semi-oculto entre as árvores, me vi face a face com um homem alto, desempenado, cabeça grande, testa larga – e nada monstruoso. Apenas quando falava percebia-se- lhe a posição algo saliente e oblíqua dos dentes incisivos. Um dos seus olhos estava quase totalmente extinto, e também o outro, injetado, ameaçava apagar-se. Papini usava óculos com vidros da grossura de um dedo. Perguntei- lhe por que não fora ao Congresso Eucarístico, em cujo programa figurava como orador. Papini, com aquele sorriso-esgar todo seu deu uma resposta que só pode ser entendida corretamente por quem leu o livro Un uomo finito (Um homem acabado). Tive a impressão de que esse homem continuava intimamente revoltado contra a sociedade, mesmo após a sua “conversão” ao catolicismo. De resto, a sua História de Cristo, Vida de Santo Agostinho e, sobretudo, a sua recente obra sobre o Diabo, mostram de sobejo a quantas anda o “catolicismo” desse pensador solitário. Ofereceu-me um exemplar
  • 36. autografado do seu livro Testimoni della Passione, como “ricordo di una visita fiorentina”. Em Roma, depois de visitarmos as nossas duas Embaixadas, a do Quirinal e a do Vaticano, e a Bruno Mussolini (o duce estava ausente de Roma) apresentei ao secretário do Vaticano a carta que levava do cardeal Leme, e foi-nos marcada audiência com Pio XI em Castel-Gandolfo, casa de campo do Papa, perto de Roma. Falou-nos em italiano, em termos tão simples que todos nós, mesmo os que não conheciam a língua do país, entendemos tudo. Depois, fomos visitar as sugestivas catacumbas, onde nossos irmãos de fé cristã viveram e morreram tão gloriosamente. O Coliseu, as igrejas, monumentos, bibliotecas, museus – quantas impressões para todos nós!... Nápoles, Capri, Vesúvio – para mim, gratíssimas reminiscências de anos passados...
  • 37. A sós em Gênova. Suas Majestades Britânicas em Paris. Em fins de junho chegamos a Gênova. Mais de dois meses havia eu vivido numa espécie de alta tensão física e psíquica, porque era responsável pela sorte daqueles 120 excursionistas confiados a meus cuidados, através de sete países da Europa. Se algo de sinistro acontecesse a um deles, ou se rompesse uma guerra no Velho Mundo, a minha situação seria horrorosa, por menos culpado que eu fosse pessoalmente. Finalmente, com a chegada ao porto de Gênova, estava virtualmente terminada a minha difícil tarefa, porque, a partir desse ponto, segundo combinação prévia, entregaria eu os nossos peregrinos ao sr. Italo Cavanna, que, nos esplêndidos ônibus Fiat os conduziria pela Suíça e Alemanha até o porto de reembarque. Quanto a mim mesmo, deixei-me ficar sozinho na lendária terra natal de Cristóvão Colombo. Finalmente, a sós, depois de alguns meses de barulho, lufa-lufa e cuidados exaustivos. Que coisa benéfica é poder estar a sós! Sem responsabilidades, nem cuidados nem reclamações de cada dia e cada hora! Abismei-me profunda e deliciosamente nessa imensa tranquilidade de estar sozinho comigo... Fui dar uns giros pela cidade, avenidas, praças, museus, campo-santo, sem destino certo, gozando em cheio inefável doçura de estar sozinho comigo e com a natureza em derredor... Reembarcaria no vapor Kosciuszko em Kiel, Alemanha oriental; mas até esse dia faltava ainda um mês inteiro. Resolvi aproveitar esse mês, tratando dos meus gostos pessoais, visitando centros culturais do meu interesse. Passei uma noite tranquilamente benéfica em Gênova, e, na noite imediata, às 10 horas, tomei o trem noturno para Paris, onde cheguei na manhã seguinte. Felizmente estava sozinho no meu coupé de segunda classe. Como o banco era um sofá macio, transformei-o numa espécie de leito e deitei-me. Daí a pouco aparece o chefe do trem – e eu esperava alguma trovoada pelo fato de eu estar deitado sem ter comprado leito no trem-dormitório. O chefe do trem, porém, não era do tipo dos trovejadores: abriu lentamente a porta do coupé,
  • 38. acordou-me suavemente, picotou minha passagem, desculpou-se gentilmente e fechou a porta com muito cuidado, sem se esquecer de apagar a luz e puxar as cortinas da porta de vidro para que eu pudesse dormir mais sossegadamente. Fiquei profundamente comovido com a delicadeza desse funcionário ferroviário e refleti longamente sobre a espontânea bondade que, por vezes, se oculta sob aparências vulgares e onde estamos habituados a esperar aspereza e brutalidade. Outro funcionário, mais convencido da sua excelsa dignidade e importância, teria apelado grosseiramente para o artigo tal, parágrafo tal do Regulamento Ferroviário; ter-me-ia dado ordem categórica de ficar sentado no banco em vez de deitar, e, tempos depois, teria voltado para verificar se eu obedecera às suas ordens sacrossantas, ou cometia o horroroso delito de dormir num coupé de segunda classe, com gravíssimo detrimento do erário público ou da companhia ferroviária. Entretanto... “o sopro sopra onde quer”... * * * Paris, 24 de junho, festa de São João Batista, o precursor do Cristo e mártir do seu ideal. Só no dia 29 de julho partiria o meu vapor, do porto de Kiel. Teria, pois, um mês inteiro para entrar na alma da cidade da luz. Instalei-me numa modesta pensão, perto do magnífico Bois-de-Bologne, vasto bosque amenizado de pitorescos lagos e ensombrado de verdes frondes. Reavivei o meu francês e pus-me a sondar os mistérios dessa cidade-sonho. No meio de tudo isto, me preocupava a idéia de terminar o meu livro Paulo de Tarso, cujos originais dormiam tranquilamente no fundo da minha mala, porque, havia meses, o barulho externo não me permitira o necessário silêncio interno que a elaboração da obra me exigia. Passei horas e dias inteiros nas grandes bibliotecas de Paris, lendo, pesquisando, a ver se algo de novo encontraria sobre a fascinante personalidade daquele pequeno rabino e grande apóstolo que pudesse aproveitar para o meu livro – esse livro que, daí a pouco, ia pôr em polvorosa os arraiais sectários do Brasil clerical. Perlustrei também as gigantescas livrarias. Encontrei-me com alguns dos corifeus da literatura gaulesa. Toda tarde, ia ao museu do Louvre, ou ao esplêndido Palais des Découvertes, à catedral de Notre-Dame, à igreja de Mont-Martre, de Madeleine, às Tulherias, ao museu de Grevin, à magnífica Praça de la Concorde, de l’Étoile, onde arde a pira permanente em homenagem ao soldado desconhecido. Inúmeras vezes passei horas a fio no interior do Louvre, mas não vi metade das suas maravilhas. Fascinava-me sobretudo o pavilhão relativo à história e arqueologia do Egito, os sarcófagos milenares, a sugestiva rigidez das suas múmias, a metafísica placidez daqueles rostos que ainda pareciam aureolados da misteriosa luz do espírito que, um dia, os iluminara. Mais uma vez, e com mais veemência do que nunca, tornou a estremecer-me pela alma e pelos nervos a estranha afinidade que eu sentia dentro de mim
  • 39. com essas venerandas figuras das margens do Nilo, que em seus olhos abertos e sem pupilas pareciam ter algo da firmeza das pirâmides, do enigmático da esfinge, da sabedoria de Ísis, do divino mistério da efígie velada de Saís... Foi-me dito por quem julgava ser clarividente que eu, em milênios idos, fora egípcio, ou beduíno, e quando esse tal viu as figuras de camelos e beduínos que exornam as paredes do meu cubículo, viu-se corroborado nessa sua asserção; um desses silenciosos nômades prostrado nas areias do deserto em adoração a Alá, disse ele, era um dos meus parentes daquelas épocas remotas... * * * No dia 19 de julho, chegaram a Paris Suas Majestades Britânicas. Lufa-lufa de preparativos, semanas a fio. Bandeiras, arcos de triunfo por toda parte. Era necessário que as duas grandes nações, a do continente e a das ilhas, cimentassem rijamente a amizade destinada a resistir ao mais violento embate hostil de que há memória na história da Europa. E resistiu até o presente dia, embora se haja desdobrado sobre a França o luto nacional da derrota. Na alma do povo e no espírito dos melhores elementos do próprio governo continua a arder o fogo sagrado da mesma simpatia. No dia em que o sopro da liberdade varrer essa espessa camada de cinzas obrigatórias, ver-se-á romper em vívida chama a brasa latente... Os três dias que Suas Majestades Britânicas passaram em Paris foram dias atrapalhadíssimos para o povo em geral – esse povo que nada viu do rei Jorge nem da rainha Elizabeth; pois, na cultíssima Europa, todo soberano tem de ser eminentemente invisível, como um fantasma de outros mundos, para não ser varado de balas ou punhais. Todas as grandes praças e avenidas da capital estavam rigorosamente isoladas, interceptadas por dois cordões de soldados de arma embalada. Metralhadoras em todas as esquinas. As sacadas e plataformas de todos os edifícios que davam para as avenidas onde passariam os ilustres visitantes, ocupadas pela força pública, a própria torre Eiffel não ficara esquecida. É que não faltava em Paris quem aproveitasse a primeira oportunidade para lançar uma bomba sobre a cabeça dos monarcas. Nos bondes, nos ônibus, no Metrô (bondes subterrâneos), por toda parte ouvia eu censuras abertas, por vezes violentas, ao governo francês pelo fato de gastar milhões de francos para essa visita. Também, como podia a “Frente Popular”, socialista, ver com bons olhos tamanha homenagem prestada a essas relíquias do monarquismo medieval? Voilà! c’est pour monsieur George!... C’est pour madame Elizabeth!” – dizia, desdenhosamente, um senhor, atrás de mim, num bonde, mostrando ao companheiro um dos enormes arcos de triunfo erguido em honra ao “senhor Jorge” e à “senhora Elizabeth”, como ele apelidava o régio casal.
  • 40. É incrível a liberdade de pensamento e de palavra que reina – ou reinava – na França. Quem dissesse, em Berlim, a décima parte do que eu ouvi dizer em Paris contra as medidas do governo, já estaria à sombra do xadrez, ou, mais provavelmente, sete palmos debaixo da terra, com o coração e o crânio varados de balas... Não tivesse estalado na Palestina, precisamente nesse tempo, o sangrento conflito entre judeus e árabes, teria eu embarcado a bordo do primeiro vapor em demanda de Jaffa, para visitar a terra natal de Jesus Nazareno, e, depois, internar-me pela Ásia Menor, seguindo parte do itinerário do seu maior discípulo, cuja biografia estava terminando. Cilícia, Panfília, Pisídia, Galácia, Éfeso; depois Atenas, Corinto, Filipes – que plano sedutor. Mas os insurrectos da Palestina não respeitavam sequer salvo-conduto do governo britânico. Somente carros blindados lhes incutiam respeito. Abandonei, por então, essa minha idéia querida, na certeza de que em 1940, por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional de Nice, ia realizá-Ia. Entretanto, o homem põe e Deus dispõe – e Hitler descompõe... Frustrado este plano, retomei, em fins de julho, o meu itinerário, cruzando a França, a Bélgica, passando uns dias em Berlim, onde a vida me custava diariamente mais de 100 cruzeiros, mesmo nas condições mais modestas. Fui a Hamburgo, onde a vida é mais democrática. Todas as tardes, ao pôr do sol, dava o meu passeio solitário ao longo do grandioso e esplêndido porto, que, a estas horas, deve estar reduzido pela RAF a uma imensa ruína... Em Kiel, o maior porto militar da Alemanha, estive apenas dois dias, contemplando, de longe, as gigantescas instalações de Krupp, filial das de Essen; vendo boa parte da soberba esquadra germânica ancorada ao longo das fortificações do cais ou no meio das águas tranquilas. Submarinos descansavam à flor d’água ou manobravam misteriosamente. O ininterrupto sussurro de flotilhas aéreas a cortar o céu estival – tudo isto parecia pressagiar algo de sinistro, algo de trágico... Mais um ano e pouco – e romperia a pavorosa conflagração... Cortamos, pelo canal de Kiel, todo o pescoço da península cuja cabeça se chama Dinamarca. Mas que vale uma cabeça sem pescoço?... Mar do Norte... Canal da Mancha... Adeus, França! Adeus, Inglaterra! Mais uns dias – e adeus, Europa, que te vais afundar num oceano de sangue, de lágrimas e de lama!... Mais uma semana – e adeus, Dacar!... Salve, imensidade azul do Atlântico!
  • 41. De Roma, Paris e Berlim – aos sertões do Brasil. Quando, em agosto de 1938, depois de uns quatro meses de ausência na Velha Europa e sobre o dorso do Atlântico, cheguei ao Rio de Janeiro, achei a nossa Pátria três vezes mais bela, mais humana e querida do que antes. A vida, na capital da República, me fazia lembrar algo de suave e bucólico, assim como roça, campo, natureza, sítio... a “cidade maravilhosa” afigurava-se-me uma grande aldeia. Os homens me pareciam mais humanos do que na Europa. Durante a minha ausência, saíra do prelo a segunda edição do meu Novo Testamento – parto laborioso, mas o filhinho sempre nascera mais ou menos viável e disposto a correr mundo – 10.000 exemplares encadernados, uma fortuna e um pesadelo... Dívida pesadíssima nas oficinas gráficas... Ominosas duplicatas que só me faziam lamentar uma coisa: não possuir forças de Josué para fazer parar esse sol fatídico que, dia a dia, aproximava o prazo do vencimento... Eu, que andava com a cabeça cheia de planos ultra-espirituais e hiper- intelectuais; eu, que vinha dos grandes focos da cultura milenária – não tive outro remédio senão recair no odioso prosaísmo de todos os dias e afundar-me novamente na preparação e no projeto de publicar a edição do Novo Testamento. Do contrário, era falência certa, protesto de letra, desmoralização pública. No Rio não encontrei o meu jornalista português. De regresso do lindo passeio à Europa, que eu lhe pagara integralmente, fora fazer 15 dias de “férias” no sítio – descansar do descanso... Voltou, finalmente. Daí a pouco, embarquei para o extremo norte, com alguns milhares de Novo Testamento e outras edições da Cruzada. Nesses anos, mais do que nunca, criei fama de “mercantilista”, “negociante”, “judeu”, e, mais ainda de “protestante” pelo fato de dar importância aos Evangelhos e querer difundi-los por esse Brasil afora.
  • 42. Tomara que um desses displicentes censores fizesse uma só das viagens que eu fiz às dezenas, pelo interior do nosso hinterland e pelas ínvias florestas do norte! Creio que estaria curado radicalmente, e para sempre, da sua opinião. Desta vez, de regresso de Roma, Viena, Budapeste, Paris e Berlim, afundei-me bem em pleno sertão bruto – onde “meu boi morreu”... Comecei meu penoso raid em Belém do Pará. Daí desci para São Luiz do Maranhão, Codó, Caxias. Entre Caxias e Teresina (nesse tempo, só até Flores, defronte a Teresina), há um trenzinho pré-histórico, cujo horário se resume nisto: “Sai quando quer e chega quando pode” – com exceção dos dias em que nele viaja o secretário do Ministério da Viação. De hora em hora, mais ou menos, tem de parar a fim de apagar o fogo dos “bronzes” incandescentes e esperar o tempo necessário para esfriarem. Nesses intervalos, os passageiros dão uns passeios pelas caatingas circunvizinhas. Num desses passeios, enquanto os “bronzes” esfriavam aos poucos, descobri, no oco duma árvore retorcida, um ninho de abelhas, dessas pretas que não têm ferrão. Armado apenas dum bom canivete, consegui abrir parcialmente a entrada do ninho, mas sem atingir o precioso mel. Levei porém boa quantidade de cera preta e cheirosa. Como se vê, há muito mal que vem para bem... Só mesmo um americano desumanizado podia inventar aquela frase estúpida de que time is money. O tempo não é ouro nem prata – o tempo é vida, e a vida é para ser vivida. A vida não vale pelo que produz – vale pelo que é. Assim pensam todos os homens sensatos, entre eles o próprio Jesus de Nazaré. Ninguém me prova que mais valeria a minha vida se, em vez de furar mel de jataí no sertão maranhense enquanto esfriavam os “bronzes”, eu tivesse acumulado montanhas de money num desses escuros e infectos escritórios das nossas cidades onde agoniza a esfarrapada retaguarda da vida humana... O mal foi apenas não ter eu atingido o mel, devido à fragilidade do meu canivete – e por terem os “bronzes” do trem esfriado muito depressa, obrigando-me a reembarcar no trenzinho pré-histórico... Teresina é para mim uma das cidades mais simpáticas, certamente não por causa do calor escaldante, mas por causa do espírito do povo e da avidez do mundo intelectual. Desde o princípio, tenho encontrado na capital do Piauí ótimos auditórios, quer na Faculdade de Direito e no Clube dos Diários, quer no Teatro Sete de Setembro, no Ginásio ou no esplêndido salão da atual Sociedade de Medicina. Os homens têm verdadeira fome e sede de ouvir. O Colégio do Sagrado Coração de Jesus punha sempre à minha disposição um grupo de “andorinhas”1 de asas fortes e sempre dispostas a voar pelas alturas cerúleas do idealismo apostólico. 1. “Andorinhas” – Costumava dividir as moças em andorinhas e galinhas. Aquelas eram as que estão dispostas a voar pelas excelsitudes dos trabalhos apostólicos, e me têm ajudado imensamente na difusão das idéias e dos ideais do Cristianismo. Galinhas eram as que só gostavam de ciscar nas areias profanas dos divertimentos e das vaidades naturais, sempre com mil e uma desculpas para não erguer vôo – bem como galinhas pesadonas, que têm asas para não voar...
  • 43. Mandara eu para Teresina 50 exemplares do Novo Testamento – pediram mais 100. Nessa cidade que só tinham saída livros de alto intelectualismo, ao passo que literatura piedosa e romântica só encontrava aceitação em certas rodas. Terminado o meu trabalho de conferências e organização em Teresina, surgiu para mim um problema. D. Hugo Bressane de Araújo, então bispo da Cidade do Bonfim, no sertão da Bahia, pedira-me com insistência que fizesse conferências na diocese dele. Tenha o leitor a bondade de tomar o mapa e localizar Bonfim. Verá que entre Bonfim e Juazeiro da Bahia há uma estrada de ferro. Defronte a Juazeiro, sobre a margem esquerda do rio São Francisco, no sertão de Pernambuco, está situada Petrolina. De Teresina a Petrolina tracemos uma linha reta, simbolizando uma viagem de poucos dias. Se, pelo contrário, eu tomasse o vapor, teria de voltar primeiro a São Luís do Maranhão (com os “bronzes” em fogo), esperar dias intermináveis por um vapor, rodear todo o litoral do Maranhão até à Bahia, tomar o trem na cidade do Salvador e daí a dois dias, mais ou menos vivo, chegar a Bonfim. Levaria mais duma semana nessa viagem. Resolvi, pois, ganhar tempo gastando forças e sacrificando comodidades. Tive sorte. Apanhei um caminhão de carga que estava com viagem marcada para Acauã, estaçãozinha sertaneja para lá de Petrolina, à qual a ligavam as paralelas dum ramal ferroviário. Quando descobri o dito caminhão, já estava a boléia tomada. O dono do veículo teve a gentileza de colocar por detrás da boléia uma tábua solta e sem encosto, já se vê, onde eu e mais dois companheiros de suplício fomos tomar assento – para dois dias e duas noites... E abalamos, lá pelas 5 horas da tarde, rumo ao sertão bruto... O que vivi e sofri, nessas 40 e tantas horas, não se pode exprimir com vocábulos humanos. Entre Teresina e Petrolina não há estrada de rodagem, nem propriamente caminho algum que tão pomposo nome mereça. Nunca andou enxada ou picareta por essas bandas virgens de cultura. O caminho é feito de cada vez, à força de pneu e investidas de carro de assalto, derrubando árvores, focinhando nos barrancos, rolando pelos declives, levantando poeira pior que cortina de fumaça Iá na belicosa Europa, a tal ponto que muitas vezes eu perdia de vista, por muito tempo, meu companheiro de tábua solta. Esta mesma tábua, como que possessa de maus espíritos, salta, corcoveia, escorrega, foge, ora para a direita, ora para a esquerda, já para a frente, já para trás. O passageiro faz o possível para segurá-la e para manter o contato entre a tábua e a respectiva parte almofadada do corpo, manobra essa nem sempre fácil de realizar. Não creio que Deus, na sua imensa justiça e bondade, deixe de perdoar todos os pecados aos que sofreram esse pavoroso purgatório.
  • 44. Aguentei uma noite e um dia na tábua endemoninhada. Na segunda noite, de exausto e sonolento, deixei-me cair sobre a carga – uns sacos cheios não sei de que – e consegui dormir com todos esses choques e solavancos; e enquanto dormia, segurava-me institivamente com ambas as mãos nos sacos, a fim de não ser jogado para fora do caminhão e desaparecer na escuridão das caatingas. Não encontramos água potável. Toda a água, nessa zona, é salobra, porque o subsolo é salitroso. Eu, ainda que infenso a tudo que seja álcool, levava comigo, por precaução, uma garrafa de caninha, para tirar o mau gosto a certas águas e matar os micróbios e as amebas que nela habitassem. Sabia o que é febre amebiana, porque, em outra ocasião, já me levara às portas da morte. Não fossem os meus planos e as dívidas da Cruzada, teria eu gostado de morrer nesses sertões. Seria a morte mais digna e bela para um bandeirante da imprensa. Era tempo de prolongada seca. Rolávamos em pleno saara. Só de longe em longe víamos umas folhas verdes. Para o almoço e jantar procurávamos uma “pensão” nos pequenos povoados que, aqui e acolá, interrompiam a imensa monotonia. Carne de sol, feijão, arroz, farofa, paçoca – eis o nosso cardápio habitual. Verdura – nem sombra. O sol mata tudo. Passei um dia sem comer, porque não podia engolir essas comidas secas e insípidas. O nosso condutor parava demais nos botequins. É vício do nortista tomar um cafezinho em toda e qualquer bodeguinha que encontre à beira da estrada. Se perdêssemos o trenzinho de Acauã a Petrolina, estávamos fritos. Sabe Deus quando teríamos outro! Nosso condutor não tomava juízo. Caninha, café, compadres, comadres – eram os grandes inimigos do progresso. De resto, para aguentar 40 horas de trabalho ininterrupto, só mesmo nervos de aço e músculos de cimento armado. Eis senão quando assoma a estaçãozinha de Acauã – e no mesmo instante ouvimos o apito estridente da partida do trem. Perdemos o trem! perdemos o trem! Qual nada! O nosso chauffeur embalou o seu carro de assalto e atirou-o brutalmente para a frente, cortando o trilho da ferrovia – e parou. Parecia uma tentativa de suicídio coletivo. Mas aquele caboclo sabia onde tinha o nariz. Que havia de fazer o trenzinho senão parar? E parou mesmo, com a maior naturalidade, assim como um ônibus quando se faz sinal. Saltamos do caminhão para o trem – sem passagem, está visto. Estávamos infinitamente sujos: 40 e tantas horas de chuva de poeira, misturada com muito suor. De nós, propriamente, nada mais se via; éramos uma grossa camada de barro, espécie de fantasmas. Olhos, ouvidos, boca, nariz – tudo encharcado.