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SCENA
OUTUBRO-DEZEMBRO 2023
Nº 03
ANO 1
C R Í T I C A
"Nous aimons la verité, nous aimons Dieu,
nous aimons tous les hommes." - Jacques Maritain
F I L O S O F I A | L I T E R A T U R A | A R T E S | C U L T U R A
Editorial
Temos a satisfação de apresentar aos leitores a última edição de 2023 de Scena
Crítica, mantendo a linha de um editorial temático, como fizemos ao longo das
edições deste ano. Nesta edição procuramos prestar tributo a Dom Luigi Giussani,
padre e teólogo italiano, fundador do movimento Comunhão e Libertação, no
tempo propício do encerramento das celebrações de seu centenário de
nascimento.
A partir da figura de Giussani esperamos gerar reflexões sobre o modo de operar
o apostolado católico a partir dos conceitos deixados em sua vasta obra,
apoiando-nos especialmente em sua tese central sobre o senso religioso.
É mister para nós, como revista de inspiração católica, suscitar o debate e a
reflexão sobre os temas que são caros e necessários ao contexto eclesial
moderno, sempre atados a um amplo editorial que versa sobre temas diversos de
interesse do conjunto da sociedade e da academia.
Inspirados por nossos egrégios patronos, fizemos, como de costume, a revisão de
textos de suas autorias, elegendo para esta edição de fim de ano Gustavo Corção
em sua crônica sobre as festividades natalinas, procurando, assim, contextualizar-
nos ainda mais no tempo em que vivemos, em um final de ano que se apresenta
cheio de turbulências e questões que não solucionadas nos fazem olhar para um
futuro povoado de incertezas.
Continuamos dando sequência a nossos editoriais temáticos, além de reunir
novos autores que, pela primeira vez, contribuíram para nossa Ágora Literária, na
expectativa de que assim atraiam novas contribuições para o nosso jovem
periódico.
Fazemos, então, votos de um desdobramento feliz para este ano, nosso ano 1,
depositando nossas esperanças e expectativas no Logos que tantos ansiavam e
que se encarnou no seio da Virgem, correspondendo aos homens em suas
expectativas e temores.
Gloria in excelsis Deo
et in terra pax hominibus bonae voluntatis!
Filipe F. Machado
Eduardo D. S. Silva
Editores
Scena Crítica é uma publicação
trimestral, sem fins lucrativos
scenacritica@gmail.com
scenacritica.my.canva.site
instagram.com/scenacritica
Editor
Filipe Machado
Colaboradores desta edição
Bárbara Bedôr
Barbara Lima
Eduardo Silva
Guilherme Chapini
Gustavo de Moura
Carlos Frederico Calvet
Júlia Rocha
Liécifran Martins
Rafael dos Santos
Sofia Brunstein
Telmo Olímpio
Tiago Cavalcante
Scena Crítica
Filosofia, literatura, artes, cultura
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 2
SCENA
S
Na esperança
O ocaso do ano e a proximidade das festividades natalinas
trazem o terceiro número de Scena Crítica. O tempo do
Advento, que marca as quatro semanas que preparam o
Natal, muito nos fala da temática da esperança, palavra
que permeia o projeto desta revista, que prossegue na
esperança de contribuir para o enriquecimento cultural e
intelectual do cenário brasileiro contemporâneo.
A temática que guia esta edição é a experiência religiosa.
Para isso, fomos buscar na pessoa do sacerdote, educador
e escritor italiano Luigi Giussani (1922-2005), fundador do
movimento Comunhão e Libertação, as indicações para
uma análise do senso religioso em nossos dias. A figura de
Giussani e sua contribuição é explanada por Filipe
Machado no artigo Dom Giussani: um homem de Ação
Católica. No Dossiê, a entrevista com Alexandre Ferraro,
responsável nacional do movimento Comunhão e
Libertação, é-nos oferecido um amplo panorama do
movimento no Brasil e no mundo.
Sendo o Natal, que logo celebraremos, uma expressão do
senso religioso, a coluna Vox Patroni traz Gustavo Corção
em seu premiado romance Lições de Abismo, expondo as
contradições da sociedade e um Natal a cada dia mais
tomado pelo consumismo.
Eduardo Silva, nas Crônicas de um tempo peculiar,
oferece-nos uma singela crônica sobre a experiência da
confissão, que marca a realidade cultural do ocidente
desde o medievo. Telmo Olímpio retorna para nossas
páginas com uma profunda meditação no texto Cegueira
da vista e cegueira da alma.
A filosofia tem espaço privilegiado neste edição. No artigo
A Trindade na ponta dos dedos Carlos Frederico Calvet
traz uma análise da exposição de Tomás de Aquino, o
grande filósofo e teólogo medieval, acerca da Trindade na
Suma Teológica. Kant também marca presença no texto
de Tiago Cavalcante que analisa Dignidade humana e
boa vontade na obra do filósofo alemão. Filipe Machado
retorna no Carderno de Cinema confrontando dois
grandes filósofos do séc. XX, Bergson e Deleuze, acerca do
tema cinema-movimento.
Barbara Lima brinda esta edição com um texto cujo tema
é ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. O
artigo Entre axé e salaam: a influência de práticas
islâmicas no Candoblé do nordeste brasileiro traz à luz
pontos de grande importância na compreensão da
formação religiosa e cultural na história do Brasil.
O médico e o monstro, de Robert L. Stevenson, é o
clássico que Julia Rocha traz nesta edição na resenha da
coluna Livro Aberto. E Rafael Santos, na coluna Ensaios
do cotidiano, convida-nos a um agradável passeio na
temática do prazer, enquanto Bárbara Bedôr nos conduz
na relação entre Inspiração e poemas.
Na Ágora, a praça de divulgação literária, quatro
promissores poetas. Sofia Brunstein, Guilherme Chapini,
Liécifran Borges e Gustavo Rodrigues colaboram com a
poesia brasileira contemporânea e, para inspirar os novos,
trazemos um poeta clássico: o sempre atual Jorge de
Lima. Boa leitura!
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I
O
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I
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O
3
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
Í N D I C E
Crônicas de um tempo peculiar, pág. 6
Uma confissão
Entre axé e salaam, pág. 20
A influência de práticas islâmicas no candomblé do
nordeste brasileiro
Ágora, pág. 17
Praça de divulgação literária
Dossiê, pág. 13
Um ano jubilar
Vox patroni, pág. 7
Estamos em véspera de natal
Livro aberto, pág. 16
O médico e o monstro
Caderno de cinema, pág. 23
Cinema-movimento
In Scena, pág. 26
Dom Giussani, pág. 8
Um homem de Ação Católica
A Trindade na ponta dos dedos, pág. 11
Cinco verdade sobre a Trindade na Suma de
Santo Tomás
Dignidade humana e boa vontade, pág. 18
Uma reflexão em Kant
Ensaios do cotidiano, pág. 24
O prazer
Inpiração e poemas, pág. 25
Cegueira da vista e cegueira da alma, pág. 10
"A literatura é o homem. É no homem aquela vocação misteriosa e
imprevista, condicionada por mil elementos exteriores e íntimos,
mas desabrochada pelo mistério do espírito, que sopra onde quer."
A L C E U A M O R O S O L I M A
ei que talvez a geração mais nova não seja lá
muito acostumada a ouvir as palavras “confissão”
ou “confessionário” no sentido que aqui trago. No
máximo podem achar que falo de algum quadro de reality
show ou algo do gênero. Mas de início preciso esclarecer
que não. Refiro-me a confessar pecados a um padre
mesmo. Ainda há pessoas, digamos, peculiares, como eu,
que se prestam a isso.
Ao longo da vida, vamos sempre sentindo necessidade de
encontrar formas de fazer escoar certos excessos que
vamos acumulando. Más escolhas, conflitos de
relacionamentos, falas ditas sem reflexão (ou talvez com
excesso de reflexão maldosa), pensamentos provindos
sabe-se lá de que precipício da consciência, enfim, todo
um arcabouço de resíduos a se descartar. Uns não estão
muito preocupados em se desfazer desses badulaques.
Outros despejam esses acúmulos na terapia. Os católicos
insistem num método menos freudiano (ainda que não o
desprezem de todo) e mais medieval (sem nada de
pejorativo no termo): a tal da confissão.
Como católico de longa data, confessar-me já faz parte do
meu cotidiano. Mas há algumas confissões que ganham
um lugar de destaque na memória, talvez como forma de
preencher o espaço deixado pelos resíduos psicológicos
despejados nos ouvidos de um paciente sacerdote. Uma
confissão, particularmente, traz-me até hoje interessantes
reflexões.
Indo certa vez ao centro do Rio de Janeiro, ali pelos idos
de novembro, recordo-me que, ao sair de um
compromisso num prédio, deparei-me com uma chuva
torrencial, dessas que a metrópole carioca sabe muito
bem produzir em dias de calor sufocante. Abrigado da
chuva na longa marquise, via os passantes a correr pelo
Largo da Carioca. Logo do lado oposto ao prédio onde
estava, o plurissecular Convento de Santo Antônio, da
CRÔNICAS DE UM
TEMPO PECULIAR
Uma confissão
Eduardo Silva, graduado em
História pela UFRRJ e em Filosofia
pela PUC-Rio, encaminha os
estudos também para a literatura e
a teologia, sempre a partir de um
diálogo entre o pensamento
tomista e as diversas correntes
contemporâneas.
6
S
Ordem Franciscana. Olhando para o emblemático
conjunto sacro colonial, recordei-me de minha pobre
condição de pecador e, encorajado pela fé e pela
diminuição do volume de água a cair, atravessei a rua e
adentrei o longo e escuro corredor em cujo fundo havia o
elevador que conduzia ao convento e à igreja anexa.
Não encontrei o tradicional vai e vem de fiéis e turistas,
nem outros penitentes. Vi tão somente, no fundo da escura
sala do capítulo onde os frades atendem as almas aflitas,
um filho de São Francisco a caminhar, estola roxa ao
pescoço e terço na mão. O dramático crucifixo barroco na
parede do fundo completava aquela cena digna de uma
pintura, mas que não teve outro pincel que não meus
olhos inquietos. Ao virar-se e perceber minha presença, o
frade logo fez sinal para que me aproximasse. Tinha um ar
venerável em seus cabelos brancos e sua postura
encurvada.
Sentei-me diante do frade. Atrás dele, o crucificado fitava-
me, como que a suplicar em sua agonia: “Tenho sede!”. Mas
como! A única água que tenho agora é suja e fétida, pois é
como que o chorume desse lixo pestilento que são meus
pecados. “Dá-me! Acaso eu que transformei água em vinho
não posso também purificar as águas turvas e fazê-las
límpidas outra vez?”.
Os olhos azuis penetrantes do idoso frei, olhos com misto
de rigor e ternura, pareciam vasculhar minha alma
enquanto punha para fora os tais resíduos acumulados.
Não foi a primeira, e muito menos, infelizmente, a minha
última confissão. Os conselhos dados pelo confessor não
tiveram nada de extraordinário ou espetaculoso. Falava
com simplicidade de coisas simples, obvias até, mas com
profundidade tal que confirmava esta verdade: o óbvio
precisa ser dito.
“Eu te absolvo...”. Cada vez que ouço sobre mim as palavras
da absolvição sacramental percebo como o homem não
precisa de muito para ser feliz. Ao menos não um muito
visível. Ao sair pelas portas que davam para o pátio de
pedra, a chuva tinha parado. Os raios de sol abriam
brechas nas nuvens cinzentas e dali de cima davam um
cenário espetacular ao centro da cidade. A natureza
naquele dia se assemelhara à minha alma.
Desci e caminhei pelas ruas, agora tomadas pelas poças
d’água. Assim é a alma após a tempestade dos erros com
que se depara ao examinar sua consciência. A chuva se vai,
mas suas consequências visíveis ficam. É necessário
paciência e esforço para que as poças escorram e sequem.
Até lá, há que se fazer como o VLT que vi ao passar pela
rua Sete de setembro. Diante de um grande bolsão, teve
que diminuir a velocidade, para depois seguir seu percurso
em velocidade normal. Também eu, ao deparar-me com os
bolsões lentamente escoantes de meus vícios em processo
de correção, preciso diminuir o ritmo e atravessar com
paciência.
Uma confissão. É pena que muitos não tenham essa
mesma experiencia. Mas hão de ter outras, nisso creio
firmemente. Mas essa minha experiência, desculpem-me
os da nova geração, não há reality show que supere.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
na cabeça,
parecia alheia à
discussão:
- É muito cara.
- Foi remarcada,
madame. A
senhora não
encontrará uma
boneca destas
por menos de
cem cruzeiros...
Mas se a senhora
quiser, temos
outras bonecas
mais baratas.
Qual é o seu
orçamento,
madame?
A dama de azul
franziu
ligeiramente os
sobrolhos.
- É para uma
menina pobre. A
filha da
empregada.
Vox patroni
dando voz aos que nos precederam
ESTAMOS EM VÉSPERA DE NATAL
Gustavo Corção, 1950
7 Scena Crítica | Outubro-dezembro 2023
E
Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o
limite de “seu orçamento” como queria o desajeitado
vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre,
explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para
sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela;
de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para
a filha da criada.
O vendedor compreendeu logo que o problema se
deslocava para um novo sistema de microunidades.
Ninguém, evidentemente, mede em quilômetros o
diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em
milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o
glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas
stamos em véspera de Natal. O movimento das ruas
dobrou; triplicou. Os automóveis buzinam, imobi-
lizados nas esquinas entupidas; as lojas regurgitam; os
vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os
clientes, entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem-
se, acotovelam-se, mas sorriem, sim, sorriem - porque
parece que todo o mundo está muito contente.
(...)
Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma
casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e
autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já
dava mostras de impaciência. Passando de um para outro,
ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas
e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha
preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas
dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso
universo.
Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre
o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um
urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos
parados de contas azuis.
- Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que
esconderam o menino Jesus?
O menino Jesus estava na esquina de Assembleia com
Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava.
As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas!) não
viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E
tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre.
Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga
o tirara de uma lata de despejo.
Quando eu
passei, ele
tentava pegar a
chupeta caída
nos trapos sujos
da mãe. Levava-a
à boca, sem jeito,
metendo os
dedinhos nos
lábios, de onde
corria uma saliva
clara e inocente.
A mãe, de braço
estendido, pedia
uma esmola pelo
amor de Deus.
Seria mãe de
verdade? Dizem
que se alugam
crianças para
mendigar. A
mendiga é falsa.
A criança é falsa.
A mãe é falsa. E
dessa falsidade
todo mundo
desconfia.
A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável.
Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino
olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos.
Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E
o menino sorriu. Para mim!
CORÇÃO, Gustavo. Lições
de Abismo. Rio de Janeiro:
Agir, 1989, p. 140.145-146.
.
OEm 1959 o Papa João XXIII tomava de surpresa a
cristandade com o anúncio de que pretendia
convocar um Concílio Ecumênico, como de fato o
fez. A 11 de outubro de 1962 foi solenemente inaugurando o
Sacrossanto Concílio Vaticano II.
O seu antecessor do século XIX, o homônimo Vaticano I, teve
como tônica o reforço do poder hierárquico, especialmente
do poder papal, resultando na proclamação do dogma da
infalibilidade do Romano Pontífice.
O Vaticano II notabilizou-se, ou ao menos recebeu a fama, de
ser o Concílio que garantiu a maioridade do laicato na Igreja,
ainda que muitas de suas páginas se concentrem em
desenvolver uma teologia do episcopado e do reforço da
autoridade dos prelados em suas igrejas particulares.
Como o Concílio e mais ainda o seu espírito foram
dogmatizados ao longo dos anos subsequentes de forma
sistematizada e ideológica, acabamos por cair em um
ambiente em que análises críticas da conjuntura eclesial no
pós-Concílio acabam por ser inviabilizadas, especialmente no
que diz respeito a dois aspectos: as dinâmicas pastoral e
litúrgica que se seguiram ao Vaticano II.
É preciso lançar um olhar sem preconceitos e vícios
ideológicos para a situação da Igreja nos anos que
imediatamente precederam o Concílio, de modo a buscar na
história da Igreja de sempre soluções e alternativas às
questões que afligem a Igreja do nosso tempo, e também
sem temor inovar naquilo que necessitar progredir na
dinâmica irreversível da História.
Este texto não tem a pretensão de apresentar soluções ou
alternativas à dinâmica da Igreja hodierna, mas através da
biografia de um dos homens mais insignes da Igreja do
século XX, verificar aquilo que podemos extrair da sua
experiência do movimento que fundou, lições para nossa
ação em prol da comunidade dos batizados e para o mundo
que a deseja e almeja, ainda que a desconheça.
Em 1922 nascia, em uma comuna da
Lombardia, Luigi Giovanni Giussani, que
em 1945 seria ordenado sacerdote do
clero de Milão. Giussani certamente é
mais notabilizado na atualidade, e
com razão, por ter sido o idealizador
de um dos maiores movimentos
eclesiais do século XX, o Comunhão
e Libertação. No entanto, gostaria de
focar mais na figura do homem que,
apesar do seu envolvimento nas bem-
sucedidas estruturas de organização
do laicato do seu tempo, teve um olhar
certeiro no diagnóstico das dificuldades
que estariam por vir em um momento
em que tudo parecia razoavelmente
no lugar.
A Itália dos anos 1950, para
um observador desatento,
apresentava o aspecto
de segurança para a
Igreja. Os seminários
estavam cheios, a
frequência aos sacra-
mentos era alta,
Dom Giussani
8
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
Um homem de Ação Católica
o laicato aparecia articulado através dos diversos órgãos da
Ação Católica. No cenário político a Igreja aparecia bem
representada pela Democracia Cristã. Tudo parecia confluir
para o bem-estar da Igreja.
O grande trunfo da análise de Giussani reside justamente
naquilo que se tornou um de seus léxicos mais célebres: a
experiência.
É a experiência o grande trunfo para distinguir a mera
exterioridade das práticas religiosas e a real adesão ao
cristianismo. O interessante é notar que as estruturas, e até
certo ponto os esquemas de pastoral e apostolado, não são
por si descartáveis, mas, pelo contrário, podem ser meios
eficazes para proporcionar e até mesmo fortalecer a relação
do sujeito em sua experiência da religião.
E foi justamente através das estruturas de ação pastoral que
Giussani iniciou sua atuação, mais especificamente nas
fileiras da Ação Católica, onde notabilizou-se na direção do
setor estudantil. Não fosse o contato com a Juventude
Estudantil Católica, Giussani não poderia ter antecipado o
sentimento que discretamente pairava na mentalidade
juvenil e que resultaria nos acontecimentos de 1968.
Há uma sentença particularmente marcante de D. Giussani:
As pessoas abandonaram a Igreja, mas antes a Igreja as
abandonou. Ora, é preciso de uma chave hermenêutica para
bem compreender esta declaração de um Giussani já ancião.
O fato é que ele percebia que o discurso eclesiástico, durante
muito tempo, ateve-se a uma pregação eminentemente
moralista, abrindo mão de um aspecto que Giussani
considerava fundamental: o evento.
O cristianismo é um evento na medida em que é encontro. E
é encontro pessoal e direto com uma pessoa viva e real. A
religião reduzida a meros preceitos rituais e normas de
comportamento moral, ainda que seja eficiente
temporariamente em fazer a manutenção de estruturas, não
gera um engajamento real e eficiente com os seus aderentes.
É neste sentido que retomo a temática inicial do modus
pastoral no qual estava localizado o início do movimento da
juventude de Giussani. A atuação da Ação Católica, para
além de apenas servir como longa manus da hierarquia,
proporcionava um desdobramento da ação pastoral em
um movimento ad extra, ao invés de concentrar-se,
como na pastoral hodierna, em aprisionar o leigo nas
estruturas e locais que naturalmente não os perten-
cem, nem mesmo dizem respeito a sua vocação, mas
pelo contrário, em cristianizar o ambiente social.
Um dos pilares da filosofia de Giussani é uma adesão
integral à realidade. Neste sentido, sua pregação sem-
pre se desenvolveu no sentido de afirmar que o cristia-
nismo não pode ser uma fuga do real, mas, pelo
contrário, leva o homem a comprometer-
se com a integralidade dos fatores
que compõem a existência.
Ora, é evidente que há uma
certa impregnação do mé-
todo da Ação Católica no
discurso e consciência
de Giussani, pois só é
possível tomar esta
atitude diante do
evento da vida se
.
A primeira metade do século XX é marcada por célebres
conversões que, não raramente, foram capitaneadas pelas
estruturas da Ação Católica, seja pelo método ou pela
própria estrutura organizacional. Creio que, na verdade,
seria mais apropriado o termo reconversões, uma vez que
a maior parte desses conversos já era batizada, além de
viverem em um contexto cultural muito mais próximo à
religião que o hodierno.
Neste sentido, já havendo distinguido a mera prática da
autêntica experiência religiosa, chegamos finalmente à
questão, que ainda que não pretenda solucionar ou propor
soluções neste momento, ponho à reflexão. O sucesso do
movimento fundado por Giussani, depois conhecido por
Comunhão e Libertação, é um desdobramento orgânico
da Gioventù Studentesca que nada mais era do que uma
variação da Juventude Estudantil Católica, órgão da Ação
Católica.
Ora, o modo de ação apostólica não só de Giussani, mas
de muitos movimentos que apresentaram sucesso após o
Concílio, em um momento histórico de profunda aridez
para a Igreja, utilizavam o modus operandi anterior ao
Concílio. Grosso modo, a experiência demonstra que
considerar o laicato no seu ambiente natural, ou seja, a
sociedade, é muito mais eficiente e menos dispendioso do
que uma práxis pastoral que procura subverter essa ordem
inserindo-os no contexto do “apostolado sacramental”.
As espiritualidades e movimentos que se pretenderem
perenes, parecem ter que fazer uma revisão, até muito
própria, do Concílio: é preciso que se reestabeleça os
vínculos com o mundo, é preciso que façamos pazes com
a realidade.
9
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
houver a disposição de tomar
uma postura ativa diante da
realidade, postura essa que
pode ser traduzida em: ver,
julgar e agir.
Chamo, então, atenção para
o nosso contexto eclesial
latino-americano. Após anos
de hegemonia, quase
solitária, da teologia da
libertação, seria quase que
natural uma tendência a
afastar-se da imanência, o
que de fato acabou
ocorrendo de forma
desastrosa. Após anos de
avanço de uma teologia de
caráter profundamente
sociológico e
antropocêntrico, o caminho
encontrado pela Igreja
Latino-Americana para
desvincilhar-se deste
caminho foi o de lançar-se
no extremo da “soteriologia”
que encontra sua
correspondência mais radical
e equivocada no neopente-
costalismo.
É evidente que a partir dessas duas tendências inviabiliza-se
uma experiência autenticamente cristã. É inviabilizada
porque o grande distintivo do cristianismo é a encarnação,
portanto não se pode associá-lo a nenhum tipo de doutrina
que pretenda a alienação. Por outro lado, o mistério da
encarnação consiste no enraizamento do Logos na natureza
humana, não permitindo a exclusão do elemento
transcendente em sua experiência e discurso.
Uma vez que se conheça e confesse que o Logos se encarnou
em Jesus Cristo, não há outro lugar para onde o homem
possa direcionar o seu instinto religioso. Ou melhor, no léxico
de Giussani, é ali que ele encontrará a correspondência mais
satisfatória para a experiência universal do senso religioso.
A questão que coloco reside em demonstrar que a pastoral
deve ser um facilitador para que o homem se depare com
essas questões essenciais, já que dizem respeito a sua
própria constituição natural, de modo a permitir que viva de
modo mais autêntico e integral a vida à luz da experiência
com o Real.
A experiência da Igreja após o Vaticano II gira em torno de
duas reflexões: uma reflexão introspectiva da Igreja (Lumen
Gentium) e uma nova perspectiva, a partir desta nova forma
de lidar consigo, para relacionar-se com o mundo moderno
(Gaudium et spes).
Em Gaudium et spes se diagnostica, finalmente, que há um
profundo distanciamento do homem moderno com relação
à religião, inclusive pela tendência de acreditar que o
afastamento da religião e de suas práticas constituem
condição sine qua non para o desenvolvimento da ciência e
da técnica. Ora, como resposta a essa tendência o Concílio
vai afirmar a vocação religiosa do homem. É certo, e creio,
que nenhuma antropologia poderá desconsiderar que é da
constituição humana universal a elaboração de sistemas de
crença e culto aos quais o homem dedica-se afim de dar
vazão a um instinto natural.
O ponto que quero notar é que as tensões entre o dogma e o
avanço da modernidade no mundo ocidental ocorre de
muitos séculos, ao menos desde a baixa Idade Média.
Contudo, trazendo ainda para mais próximo dos eventos do
Vaticano II, é possível notar uma ação eficiente do
apostoladoem prol da reconciliação de um número não
negligenciável de homens, por muita das vezes hostis, com a
religião.
Com especialização em roteiro pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
Filipe Machado é bacharel em
filosofia pela PUC-Rio e licenciado
em História. Atualmente suas
pesquisas estão centradas nos
autores que compuseram a cena
intelectual católica do século XX
com especial ênfase em Gustavo
Corção.
.
Q uando, nos anos escolares, li Sófocles, impressio-
nou-me sobremaneira a figura de Édipo. A peça
é marcada de ambiguidades e por um destino
inexorável que leva seu protagonista a uma profunda
angústia e desespero. Qualquer um fugiria do fado de matar
o próprio pai e casar-se com sua mãe. E mesmo resistindo ao
máximo aos planos dos deuses comunicados pelo Oráculo,
Édipo cumpre sua sina e vive a vida que já lhe havia sido
imposta. Tais fatos levam a personagem a tirar a vista dos
seus olhos, terminando seus dias cego.
O que não pude considerar na tenra idade, só a leitura mais
madura veio evidenciar. Édipo não ficou cego, uma vez que
sempre o fora. Ele não conseguia enxergar nada, vivia na
ignorância da sua origem, da sua identidade e também da
absurdidade de seus atos. Não consideramos aqui o valor
moral de suas ações, mas tão simplesmente quantas coisas
ele fez sem se dar conta porque não sabia, porque não via. E
pergunto-me: ele poderia ver? Acaso poderia saber?
Na trama do poeta grego, pode-se ver retratada duas
cegueiras; uma é física, o próprio homem tira-lhe dos olhos a
luz; a outra é anímica, psíquica, mental: o homem não vê seu
entorno, suas circunstâncias, sua própria existência. Sem ver,
o homem não pode se dirigir por um caminho, não pode
escolher uma via, não pode traçar as escolhas da vida.
Também nos evangelhos, encontramos outro homem cego,
Bartimeu. Diferente de Édipo, que ao retirar a venda da alma,
resolve cegar a vista, o pobre do tempo do Nazareno é cego
desde o dia em que nasceu e, por ordem divina, cura-se
concomitantemente tanto da cegueira da vista quanto da
cegueira da alma. Seu clamor, como narra Marcos, foi ouvido
e toda sua vida encontrou sentido e visão neste encontro.
Não seria exagero, ao considerarmos a contemporaneidade,
dizer que a maioria dos seres humanos vivem a cegueira da
alma que independe da cegueira da vista; ainda que se possa
ter as duas. Encontramos diversas pessoas ao longo do
caminho que parecem viver sem se dar conta do sentido
último de sua existência, sem perceber minimamente suas
circunstâncias ou as do mundo. Pessoas, que embora vejam
tantas coisas nas telas dos seus celulares, que embora leiam
todas as últimas notícias sobre as guerras e sobre a
economia, que embora se pensem mais lúcidas que todas,
são na verdade reproduções fiéis de tantos édipos e tantos
bartimeus. E talvez, por um longo período de suas vidas,
assim como os personagens da literatura e do evangelho, não
se deem conta da própria cegueira espiritual.
O fenômeno do ofuscamento da alma contemporânea foi
alvo da análise do português Saramago. Em “Ensaio sobre a
cegueira”, a cegueira física é símbolo e também meio de o
ser humano dar conta da sua cegueira interior, do
conhecimento individual e coletivo do agir em sociedade.
Como se percebe, a cegueira é tema recorrente, desde os
antigos até nós, que também tantas e tantas vezes não
conseguimos enxergar. Queremos ver, entender, inteligir
nossa vida no mundo e não conseguimos. Talvez, por isso
justamente, alastra-se por toda parte uma série de
profissionais que pretendem ajudar-nos a ver, os tais
psicólogos, coaches, mentores, etc.
Estamos certos desde nossas adolescências, quando talvez
demos conta de uma falta de conhecimento próprio, que a
cegueira da alma é a pior coisa que pode ocorrer à existência.
Cegueira da vista
e cegueira da alma
10
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
Não à toa, os cristãos chamaram o Céu tantas vezes de visão
beatífica, a plena visão. Não ver, perceber-se no escuro, é a
sensação mais angustiante e, ao mesmo tempo, mais
purificadora que pode haver. Desta sensação parece emergir
duas possibilidades: buscar a vista como Bartimeu ou cegar-
se de vez como Édipo.
Voltamos a Sófocles e seu Édipo cego, e percebemos que
depois de ver não podemos voltar à cegueira. E isto também
pode ser estarrecedor quando nos damos conta dos
recônditos mais sombrios dos seres humanos e também os
de nossa própria alma. Finalmente, quando Édipo se dá
conta de sua própria vida, das circunstâncias terríveis em
que ele se encontra, aquilo que ele tanto quis ver, resolve
cegar os próprios olhos. No entanto, a alma que viu não pode
deixar de enxergar. A tormenta continua a consumir-lhe e,
embora cego, vê mais do que nunca.
Ver é um bem inestimável, não tenho dúvidas. Confirma isto
a escrita do Apocalipse: Vi o céu aberto... vi descer um anjo...
vi um novo céu e uma nova terra. Confirma a prece do cego:
Domine, ut videam ― Senhor, que eu veja. Confirma
também a filosofia tomista sobre o belo: Pulchrum est quod
visum placet ― O belo é o que agrada a visão.
Sem vista, não há beleza, não há sentido, não há vida. Que eu
e tu, meu caro leitor, vejamos!
Telmo Olímpio é mestrando em
Letras Clássicas pela UFPR, bacharel
em Direito pela UFRJ e em Filosofia
pela PUC-RIO
anto Agostinho diz, em seu Tratado sobre a Trinda-
de, que em nenhuma parte há algo mais perigoso,
laborioso e frutuoso do que este estudo. Efetiva-
mente, muitos dos erros relativos à Trindade foram
superados pelo labor dos Padres. À época de Tomás, já se
podia, há alguns séculos, desfrutar da beleza e da
profundidade do mistério trinitário, sem os perigos do
passado, embora com exigências igualmente laboriosas.
Dom Cirilo Folch Gomes inicia a conclusão de uma de suas
mais fascinantes obras, em que trata justamente da
Trindade, com a seguinte questão: “É possível ainda hoje,
na presente situação cultural, falar do Pai, Filho e Espírito
Santo como ‘três Pessoas’, se nos referimos a Seu mistério
íntimo e eterno?” (1979, p. 355). Santo Tomás, que guiou a
investigação de Dom Cirilo, oferece-nos elementos
doutrinais importantes que podem ser com fins
meramente didáticos, sem prejuízo do mais importante, o
mistério.
Tomás tratou esse mistério de modo tão excelente e, ouso
dizer, também didático, que, com os cinco dedos de uma
de nossas mãos, podemos abordar os temas principais
relativos à Trindade imanente. São cinco, justamente como
os dedos da mão, em ordinal também, os temas que nos
interessam aqui: um Deus, o polegar; duas processões, o
indicador; três Pessoas, o médio; quatro relações, o anular;
cinco atos nocionais, o mínimo.
1. Deus é uno. A questão 31 da primeira parte da Suma
Teológica discute em quatro artigo a unidade de Deus na
Trindade. Como é possível que um Deus que é
simplesmente uno e único possa ser, em sua essência, três
pessoas. Ao reconhecer que Deus é tino, no primeiro artigo
desta questão, Tomás ressalva que Deus não é tríplice, mas
trino (ST I, q. 31, a. 1, ad 3). Há trindade em Deus, isto é, há
número determinado de pessoas. O que indica a distinção
das Pessoas “não é o mesmo que diversidade ou diferença”,
porque a distinção é uma oposição relativa, isto é, que
exprime uma relação. Trata-se de dizer a essência de Deus
é três, isto é, o três em Deus não é propriamente um
número (ST I, q. 30, a. 3), como se acrescentássemos uma
unidade ao um, para fazermos dois, e uma unidade ao dois
para fazermos três. Três é a essência mesma de Deus.
Omnia tria...
2. Duas processões. O Filho procede do Pai; e o Espírito
procede do Pai de do Filho. A processão é uma relação,
porém enquanto a relação em nós é um acidente, como
em Deus não há acidentes, estas relações são subsistentes,
de modo que pertencem ao próprio Deus por essência. E
há somente duas processões (ST I, q. 27, a. 5): a processão
do Verbo, que é a geração (ST I, q. 31, a. 2); e a processão do
Espírito, que não é geração, é a processão do Amor, pois
como a natureza intelectual tem duas ações, a do
intelecto e a da vontade, a processão do Verbo é conforme
a ação do intelecto; e a processão do Amor é conforme a
ação da vontade (ST I, q. 27, a. 4).
3. Três Pessoas. Devem-se afirmar várias pessoas em Deus,
porque, em Deus, pessoa significa relação subsistente na
natureza divina (ST I, q. 30, a. 1). Ora, em Deus há várias
relações reais; logo, há várias pessoas, na verdade três. Por
quê? Porque duas relações opostas correspondem a duas
pessoas: assim, a paternidade e a filiação. A espiração e a
processão por espiração, por outro lado, são opostas entre
si. Contudo, se a espiração ao Pai e ao Filho, a processão
por espiração não lhes pode corresponder: logo, designa a
terceira pessoa: o Espírito Santo (ST I, q. 30, a. 2) .
A TRINDADE NA PONTA DOS DEDOS
11
S
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
Cinco verdades sobre a Tridade na Suma de Santo Tomás
4. Quatro relações. A relação em Deus é o mesmo que sua
essência, porque o que é acidental nos entes deve ser
atribuído a Deus de modo essencial, de modo que o ser da
relação é o mesmo que o ser da essência divina (ST I, q. 28,
a. 1). As quatro relações reais em Deus são: paternidade,
filiação, espiração e processão (ST I, q. 28, a. 4), porque não
pode haver relação real em Deus se não for fundada na
ação. Ora, as ações imanentes em Deus são duas
processões: a do intelecto (a do Verbo) e a da vontade (a
do Amor). Se a processão do Verbo é geração e a do Amor,
embora sem nome próprio, é a espiração e toda relação
tem dois termos, duas processões, com dois temos opostos
cada, constituem quatro relações: a do Pai com o Filho,
paternidade; a do Filho com o Pai, filiação; a do Pai e do
Filho como o Espírito, espiração; a do Espírito com o Pai e
o Filho, processão, no sentido de ‘procedido’ deles.
5. Cinco atos nocionais. Os atos nocionais devem ser
atribuídos às pessoas, porque, para designar a ordem de
origem das pessoas, se lhes atribui atos nocionais (ST I, q.
41, a. 1). As noções são pois: inascibilidade e paternidade; a
filiação; a espiração; e a processão. dessa forma, ao Pai se
referem as noções de inascibilidade e de paternidade e de
espiração comum (do Espírito com o Filho); o Filho é
conhecido pela filiação, como seu modo de proceder, pela
espiração comum, que um mesmo modo de
conhecimento com o Pai; e o Espírito que procede de
ambos é conhecido pela processão (ST I, q. 32, a. 3). Os atos
nocionais procedem de algo, porque o Filho procede da
substância do Pai; e em Deus há verdadeira e própria
paternidade, nascimento e filiação (ST I, q. 41, a. 3). Em
Deus, há uma potência em relação aos atos nocionais,
porque potência significa o princípio do ato; porque, ao se
compreender o Pai como princípio de geração e o Pai e o
Filho como princípio de espiração, é preciso que se lhes
atribuam as potências de gerar a Pai e a de espirar a
ambos (ST I, q. 41, a. 4). Sobre este aspecto, talvez o menos
conhecido da doutrina, diz Vanier: “A ação nocional e
todas as ideias relacionadas tornaram-se, na Suma, formas
simples de conceber exigidas pelo nosso espírito. A
precisão e consistência adquiridas por estes conceitos são
notável. Mas a importância do seu desenvolvimento vem
acima de tudo da pureza que permitiram dar aos
primeiros conceitos de teologia científica trinitária: a
procissão imanente e a sobreviver ao relacionamento
pessoal” (1953, p. 88) .
Concluo com o mesmo autor com que iniciei esta
exposição didática, Dom Cirilo Folch Gomes. Sua resposta
à pergunta, que ele mesmo propôs, aparece no último
parágrafo de sua obra citada: “Assim, um conceito se abre
para o outro. Compreendemos melhor o que sejam as
Pessoas divinas quando refletimos sobre a doação que nos
autoliberta, sobre a caridade que nos abre as portas da
autorrealização. E compreendemos melhor que
verdadeiramente a doação nos liberta e a caridade nos
realiza, se pensamos naquilo que são as divinas Pessoas”
(1979, p. 371). Usar cinco dedos para falarmos na Trindade
pode ser um modo didático e mnemônico útil, sobretudo
ao ensino. O importante, porém, é reconhecer que as
verdades reveladas sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
foram-no de modo progressivo, na economia da Salvação.
E mais, que a Trindade continua a ser mistério e é na
experiência do mistério, isto é, no culto, que conhecemos
e vivemos a dinâmica trinitária do amor de Deus.
GOMES, Cirilo Folch. A Doutrina da Trindade Eterna. Rio de
Janeiro: Lumen Christi, 1979.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. V. 1. São Paulo: Loyola, 2009.
VANIER, Paul. Théologie Trinitaire chez Saint Thomas d’Aquin:
Évolution du Concept d’Action Notionelle. Paris: Jean Vrin, 1953.
12
Pós-doutor pela Universitat
Autònoma de Barcelona e doutor
em filosofia pela Pontificia
Università San Tommaso, Carlos
Frederico Gurgel Calvet da Silveira é
professor titular da Universidade
Católica de Petrópolis e professor
agregado da PUC-Rio.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
A Trindade. Livro de horas de Llanbeblig, final do séc. XIV.
Dossiê
13
Comunhão e Libertação no Brasil
m 2022 comemorou-se o centená-
rio do sacerdote, professor e escritor
italiano Luigi Giussani. Seu nome es-
tá inteiramente vinculado ao movimento
que fundou, originado em seu apostolado
com estudantes desde a década de 1950, o
Comunhão e Libertação. Em seus escritos,
que alcançaram popularidade, trabalhou
com o conceito de senso religioso, que
parece ser uma resposta no mínimo
interessante, e que apresenta eficácia
pastoral considerável no atual contexto de
secularização da sociedade ocidental.
Resgatando a figura de Giussani e seu
movimento, Scena Crítica foi ao encontro
de Alexandre Ferraro, professor da
Faculdade de Medicina da USP, atual
responsável no Brasil pelo movimento
Comunhão e Libertação, que tem seu
apostolado presente em pelo menos 40
cidades em todo o país.
Scena Crítica: Quem foi Luigi Giussani?
Alexandre Ferraro: Nas palavras do
próprio Giussani: um simples padre da
Diocese de Milão.
Toda a formação para o sacerdócio
ocorreu lá, de fato. A pedido do bispo,
quando ainda jovem sacerdote, tornou-se
professor de religião em escolas públicas.
Graças à formação que teve percebia o
cristianismo de tal forma que atraiu
multidões. Essas pessoas a quem esse
cristianismo atraiu formou o que, hoje,
conhecemos como Comunhão e
Libertação, movimento que está espalhado
em mais de 80 países.
SC: Há um conceito central no
pensamento de Dom Giussani que é o
Senso Religioso. Do que se trata?
Alexandre Ferraro: Giussani era
considerado para ser um teólogo de vida
acadêmica devido ao seu particular
pendor aos estudos. O ambiente que o
rodeava na Itália dos anos 1950 era de
aparente otimismo com relação à
presença da Igreja na sociedade. A religião
estava presente na educação pública, era
muito bem representada na política pela
Democracia Cristã, as igrejas se
encontravam cheias, etc. No entanto, D.
Giussani já intuía que todo aquele
aparente ambiente de hegemonia eclesial
não se sustentaria por muito tempo. É
importante frisar isto, porque, ainda hoje,
temos a tentação de nos acomodarmos
quando percebemos que um movimento
ou outra realidade qualquer na Igreja está
sendo bem-sucedida numericamente, o
risco é de estarmos promovendo um falso
diagnóstico da realidade. Para D. Giussani
o fator numérico realmente não era um
critério.
Essa intuição brotava dos encontros que
promovia com os jovens estudantes. De
fato, o que ocorria é que a frequência
religiosa não correspondia a uma prática
religiosa. A vida concreta, a cultura
estavam sendo construídas por uma
mentalidade ateia e de esquerda.
A ideia de senso religioso não nasce
propriamente com Giussani, mas com
Montini, àquela altura seu Bispo. Por volta
de 1956 Montini publicou uma carta
pastoral falando sobre o senso religioso, e
a partir daí Giussani irá desenvolver
exaustivamente essa temática.
Portanto, o senso religioso é um traço
universal nos homens de todos os tempos
e culturas que se expressa em um
conjunto de exigências fundamentais,
como as exigências da verdade, do amor,
da justiça e da beleza; e em evidências
como, por exemplo, a evidência da própria
existência humana ou a evidência da
realidade como um todo e que produz em
nós a percepção da existência do mistério.
Senso religioso, portanto, em última
instância coincide com a razão, é o ápice
da razão. O senso religioso é, então, aquela
faculdade que há em nós que nos permite
que olhando para o real percebamos o
mistério.
SC: Ao escrever sobre o senso religioso
Giussani propões algumas premissas.
Você poderia falar de modo especial
sobre a premissa do realismo?
Alexandre Ferraro: Ao longo dos
anos D. Giussani foi aperfeiçoando
o conceito do senso religioso,
especialmente a partir das
aulas que ministrou na Univer-
sidade do Sacro Cuore e
que acabaram resultando
na 1ª edição de O senso religioso nos anos
1980.
No livro ele propõe um percurso
epistemológico para que o leitor conheça
e se aproprie do que é o senso religioso,
onde ele introduz 3 premissas: o realismo;
a razoabilidade, ou seja, o uso da razão e o
sentimento.
Ao introduzir o tema do realismo ele irá
citar um célebre frase de Alexis Carrel:
“Pouca observação e muito raciocínio
conduzem ao erro. Muita observação e
pouco raciocínio conduzem à verdade.”
A partir do que diz Carrel, ele quer afirmar
que devemos privilegiar a observação à
dialética, ou seja, eu devo mais observar o
objeto de meu conhecimento, no contexto
do senso religioso, mas o método se aplica
a qualquer outro objeto.
Mas o que é o senso religioso sobre o qual
nós devemos nos deter e observar? O
senso religioso é uma experiência. A
realidade se manifesta na experiência. É
somente quando eu chego no nível da
experiência que se manifesta a realidade.
E
Entrevista com o responsável nacional do movimento
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
muito mais lenta, pois vai de pessoa em
pessoa, mas no fim é muito mais eficiente,
pois a transformação é autêntica.
SC: Podemos dizer que houve, em
algum momento, uma coincidência
entre Comunhão e Libertação e a
Democracia Cristã?
Alexandre Ferraro: Esta é uma questão
muito importante, pois foi assim que o
movimento foi taxado por décadas, sem,
no entanto, nunca ter sido assim. Giussani
sempre manteve uma saudável distância
disso, mas como era um movimento
numericamente expressivo e cheio de
jovens competentes, os bispos pediam dos
membros apoio à Democracia Cristã.
Giussani não queria entrar na polêmica
sobre o plebiscito do divórcio na Itália,
mas por obediência aos bispos italianos
acabou adentrando na polêmica em que a
Igreja saiu perdedora. Então havia uma
ligação por obediência de Giussani à
hierarquia. Nos documentos, comunicados
oficiais e pronunciamentos é possível
perceber que ele nunca acreditou nessa
união. Ele ensina que não se deveria
acreditar nela. Mas na prática muitos,
especialmente de esquerda, acreditam
que o movimento coincidia com a
Democracia Cristã ou era seu braço
eclesial.
SC: Como está a situação do Movimento
após o pedido de reformas do Papa
Francisco?
Alexandre Ferraro: De fato há 3 anos o
Papa Francisco pediu a todos os
movimentos e expressões leigas algumas
alterações que nasceram da avaliação
dessa experiência nova que foram os
movimentos. Todos os movimentos
começaram a partir do século XX, e depois
de algum tempo dessas experiências já é
possível à Igreja fazer uma avaliação do
status dessas organizações, sobretudo no
aspecto do Direito Canônico. No fundo, é
pensar como a Igreja hierárquica se
relaciona com a dimensão carismática. Há
todo um diálogo entre hierarquia e
carisma. Isso é muito próprio da Igreja
Católica, se pensarmos, por exemplo, em
São Francisco de Assis, São Domingos,
Santo Inácio… Há sempre um diálogo com
esses carismas que vivem renovando
periodicamente através do apelo da Igreja.
A originalidade é que o século XX fez com
que esse movimentos “carismáticos”, no
sentido mais amplo da palavra, fossem de
leigos, o que traz um certo ineditismo,
inclusive no aspecto jurídico.
Por isso o Papa pede algumas mudanças.
Talvez a principal seja que os presidentes
dos movimentos passam a ter um
mandato de 5 anos com direito a somente
uma renovação.
No dia 15 de outubro do ano passado,
portanto no início da comemoração do
centenário de D. Giussani, o Papa
Francisco, dirigindo-se aos membros do
movimento presentes na Praça de São
Pedro, disse que a Igreja e o Papa esperam
mais de nós e recordou que ainda há
muito do carisma a ser compreendido,
14
Giussani não é, em termos filosóficos, um
realista, no sentido em que só há a
realidade e o sujeito não conta. Não, para
ele o conhecimento é um encontro
misterioso do sujeito com a realidade,
portanto um conjunto dessas duas coisas.
SC: Gostaria que você aprofundasse um
pouco mais sobre esse conceito de
experiência.
Alexandre Ferraro: Experiência não é
simplesmente viver e passar por situações.
Experiência implica em algo fora de mim,
que em mim produz a compreensão do
significado do vivido. Esses dois fatores são
necessários para chegar no nível da
experiência.
SC: O movimento iniciou a partir da
experiência de Giussani como professor
secundarista e da Juventude Estudantil
Católica. Como o movimento se
distinguiu de uma ação exclusiva para
estudantes e se tornou um movimento
de espiritualidade abrangente?
Alexandre Ferraro: Giussani nunca quis
criar um movimento. Ele não teve uma
intuição, como ocorreu com outros
funadores. Giussani era o assistente da
Ação Católica Estudantil, que era
fortíssima naquele período na Itália.
Em seu estilo de estar com os jovens
estudantes, pela insistência na experiência
e nesse diálogo aberto, já que ele era um
homem de profundo diálogo ecumênico e
cultural, muitos começaram a segui-lo.
Basicamente até os anos 60 era
fundamentalmente um grupo da Ação
Católica da Diocese de Milão. No final dos
anos 60 com a revolução cultural de 1968,
muitos abandonaram esse grupo, no
entanto uma parcela significativa que
levava a sério o desejo de libertação que
era a tônica daquele momento,
perceberam que encontravam com
experiência que faziam junto a D. Giussani
uma resposta concreta a esses anseios de
libertação. Essa libertação se encontrava
pela comunhão vivida no seio da Igreja.
Portanto é a partir da comunhão que
nasce a libertação.
A mesma exigência de libertação que o
mundo vivia nos anos 1960 e percebe-se
que é a comunhão cristã a melhor
correspondência a esse anseio. Então, o
que era um movimento de estudantes
secundaristas começa a ficar muito mais
presente no ambiente universitário, já com
o nome de Comunhão e Libertação.
Um fato interessante é que, já em 1974, o
Cardeal Arns de São Paulo, em visita a
Milão, contatou Giussani para levar o
movimento à pastoral universitária de São
Paulo e assim ele chega ao Brasil já nos
anos 1970. É interessante notar que o
movimento chega ao Brasil com aspecto
de pastoral universitária. Já havia uma
certa resistência em Giussani de exportar o
método comunhão e libertação, pois ele,
como padre diocesano, compreendia que
as suas atividades deveriam estar restritas
à Diocese de Milão.
Com a eleição de João Paulo II houve uma
grande sintonia com Giussani, até que em
1984, o Papa vai finalmente identificar
Comunhão e Libertação como um carisma
e faz o apelo a que o movimento se
espelhasse pelo mundo. Então o Papa
universaliza um carisma que na cabeça de
Giussani era algo restrito ao contexto
italiano.
SC: Fale um pouco do cenário do
movimento no Brasil.
Alexandre Ferraro: O movimento no
Brasil existe em mais de 40 cidades
espalhadas de Norte a Sul, e estou como
responsável há 3 meses.
No Brasil, por motivos históricos, os nossos
abraçaram a necessidade de demonstrar
que a justiça social é mais bem alcançada
a partir da comunhão eclesial do que pela
mudança das estruturas. Há uma frase que
sempre repetimos: “ Aquilo que muda as
estruturas é o mesmo que muda o coração
do homem”. Então, em última análise, nós
servíamos no Brasil de antítese à teologia
da libertação. Foi esse o movimento que
eu conheci, em 1984, como calouro da
faculdade de medicina. Portanto, havia de
um lado a teologia da libertação, e de
outro o Comunhão e Libertação
procurando responder às mesma questão
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
de pontos de vista
opostos.
É interessante notar que,
hoje no Brasil, sem
exageros, centenas de
milhares de pessoas são
beneficiadas pela atuação
social do movimento. Isso
prova, então, que a
intuição estava certa, de
que o amor à Igreja, à sua
tradição e à sua
hierarquia, ou seja, de que
aquilo que o muda as
estruturas é o mesmo que
muda o coração do
homem que é o encontro
com Jesus Cristo, isso
chega ao nível da
transformação social. É
muito diferente,
certamente, do processo
revolucionário, é inclusive
15
recordando, portanto, que estamos apenas
no início.
A reforma estrutural que é pedida, nós
compreendemos que seja um enorme
chamado à corresponsabilidade, todos são
chamados a ser corresponsáveis por esse
carisma. Sendo assim, o estatuto está
sendo revisado, nós estamos finalizando o
novo estatuto que perecisa ser aprovado
pelo Dicastério responsável em Roma. De
nossa parte essa revisão deve estar pronta
até o fim deste ano, mas o tempo total vai
depender das aprovações da Cúria
Romana.
SC: No início do pontificado de
Francisco se levantou que haveria uma
relação de Bergoglio com o movimento
na Argentina. Como de fato era essa
relação?
Alexandre Ferraro: O Papa conhecia
muito bem o movimento, especialmente a
partir dos anos 1990, portanto mais de 30
anos de relação. Ele tinha uma grande
afinidade com o pensamento de Giussani,
especialmente sobre o senso religioso, mas
não só, também uma grande proximidade
na forma de pensar a figura de Cristo,
inclusive tendo prefaciado os dois livros.
Bergoglio há mais de 30 anos possui uma
afinidade com o movimento, não muitos
mais do que isso. A proximidade de
Francisco vem da leitura de Giussani,
diferente dos últimos dois papas: João
Paulo II e Bento XVI. Ratzinger e Giussani
eram muito próximos, tanto que ele pediu
que nossas Memores Domini cuidassem da
sua casa, demonstrando assim a grande
estima que nutria pelo movimento.
Francisco nutre estima, mas essa estima
nasce mais das leituras de Giussani, que
como ele mesmo diz, o ajudaram e
formaram.
SC: Como é a sua experiência em
relação ao apostolado na Universidade,
sendo do movimento e ao mesmo
tempo professor?
Eu sou médico, mas me dedico apenas ao
magistério, uma vez que sou professor de
medicina da USP. Não tenho mais
consultório, não faço clínica, sou apenas
professor universitário.
Diferente da minha época de estudante,
onde havia um certo anticlericalismo, já
que, de certa maneira, a Igreja ainda era
uma presença social com a qual era
“necessário” entrar em choque, o jovem
universitário de hoje está a quilômetros de
distância da experiência religiosa, tomado
de um indiferentismo total. Isso, pela
minha experiência, parece ter tornado
muito mais fácil a nossa missão, a nossa
pastoral, pois havia um preconceito que
não há mais. Foi a geração dos pais desses
estudantes que rejeitou a religião.
Resultou que há um profundo
desconhecimento da cultura religiosa,
portanto vejo de forma positiva a situação.
Há uma abertura, pois há todo um mundo
a ser evangelizado do zero.
A vida da comunidade cristã é tão bela
que se torna humanamente atraente, pois
é bom estar juntos, é belo estarmos juntos.
Dos meus alunos que começam a
frequentar o movimento 99% deles são
ateus. Então, em geral, quem se atrai pelo
carisma do movimento são pessoas que
estão muito distantes da Igreja. Em todos
os homens há um traço da Verdade de
Cristo, então todos ou autores, todas as
expressões artísticas nos interessam.
Fazer um caminho, demonstrando que
todo gênio artístico, independente até da
sua posição ideológica, é profeta de Cristo,
é entusiasmante para todos, mesmo para
quem não tem fé, e acaba se sentindo
muito atraído.
Às vezes aqueles que já têm fé preferem
ficar em grupos de estudo bíblico ou de
“louvor”, enquanto os que não têm se
mostram mais entusiasmados em fazer
este percurso.
A expressão comunitária do movimento
também é outro fator fortemente atrativo.
É uma experiência de pertença a uma
comunidade que é Corpo de Cristo. O meu
encontro com Cristo em carne e osso é a
comunidade cristã. Isso tudo somado a
nossas atividades culturais e festas é muito
atraente aos jovens.
Então, em síntese, seria: abertura cultural,
capacidade de dialogar sem preconceitos
com o mundo contemporâneo e a força
comunitária, pois apostar tudo na força do
indivíduo, como se o cristianismo fosse um
heroísmo, para o homem ferido do século
XXI, resultará em menos sucesso.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
na verdade, a mesma pessoa.
Numa tentativa de burlar o
que propõe a teoria de Freud,
Jekyll elabora uma poção que
o permite se transformar em
outra pessoa, um alter ego, seu
gêmeo maligno. Hyde é a
corporificação do lado sombrio
da personalidade de Jekyll,
enfim libertado depois de
tanto tempo recalcado no
fundo de seu inconsciente. Seu
objetivo era dar vazão às às
pulsões reprimidas de seu
duplicata, garantindo, ao
mesmo tempo, que sua
imagem social não fosse
maculada. Dessa forma, Hyde
funcionaria como uma espécie
de álibi.
Livro aberto
O MÉDICO E O MONSTRO
Robert Louis Stevenson
médico e o monstro ou O estranho caso do dr.
Jekyll e do sr. Hyde é uma novela gótica escrita
por Robert Louis Stevenson e publicada em 1886. A
obra ficou conhecida por tratar do tema do duplo ou sósia,
revelando que todos nós temos um lado bom e um lado mau.
Essas partes, apesar de opostas, seriam indissociáveis e
complementares, compondo a mais genuína natureza
humana.
Todos nós temos características das quais não nos orgulhamos.
Defeitos que buscamos esconder a todo custo para
recebermos aprovação daqueles que admiramos. Assumimos,
muitas vezes, uma espécie de máscara social, na intenção de
performar algo que não somos. Freud, em seu livro “O mal-estar
na civilização”, afirma que a vida civilizada pressupõe o
recalque das pulsões e a submissão do princípio de prazer ao
princípio da realidade. Isto é, o homem teria aberto mão de
sua felicidade para viver em segurança na sociedade. E é sob a
luz dessa dicotomia que se inicia essa história.
Dr. Jekyll é um médico muito respeitado e conceituado pela
sociedade britânica. No entanto, há algum tempo, ele vem
despertando a suspeita de seu advogado e amigo pessoal, o sr.
Utterson. Tudo começa quando Jekyll, em seu testamento,
concede plenos poderes, em caso de morte ou
desaparecimento, a um sujeito chamado Edward Hyde. O
problema está na (má) fama de Hyde, um homem de
comportamentos, no mínimo, estranhos, sempre envolvido em
atos violentos e criminosos. O leitor embarca em uma
inquietação junto a Utterson para descobrir: afinal, qual é a
ligação entre dois sujeitos de personalidades tão distintas
e tão incompatíveis?
A palavra estranho não está no título à toa: a relação entre
Jekyll e Hyde é estranha; a aparência e comportamento de
Hyde são estranhos; a súbita mudança de hábitos de Jekyll é
estranha. Entramos no campo do insólito, onde nada é como
espera-se que seja. No lugar da ordem, o caos. No lugar da
luz, as trevas. Há algo misterioso pairando no ar, circulando
pelas ruas de Londres a noite. E nós seguimos no encalço do
dr. Utterson, que encarna o detetive e sai numa verdadeira ca-
ça às bruxas, ou melhor, ao
monstro.
16
STEVENSON, R. L. O médico e o monstro: o estranho caso do dr.
Jekyll e sr. Hyde. São Paulo: Penguin Companhia, 2021.
Julia Rocha, 24 anos, formada em
licenciatura em Letras Portugês-
Literatura pela UFRJ.
O
O sr. Hyde era pálido e
quase um anão, dava a
impressão de ser aleijado,
sem nenhuma deformidade
identificá-vel, possuía um
sorriso
desagradável,comportara-
se diante do advogado
com um misto execrando
de timidez e ousadia, e
falava com uma voz rouca,
sussurrante e pouco fluida;
todos esses pontos
depunham contra ele mas
nem todos juntos podiam
explicar a repugnância, o
ódio e o medo que
inspirava no sr. Utterson e
que ele nunca sentira antes.
(STEVENSON, 2022, p. 75)
Se cada um, pensei, pudesse ocupar identidades distintas, a
vida seria aliviada de tudo que é insuportável, o injusto seguiria
seu caminho, livre das aspirações e do remorso de seu gêmeo
mais digno; e o justo poderia percorrer com passos fortes e
seguros seu caminho ascendente, praticando as boas ações que
lhe dão prazer, não mais exposto à desgraça e à penitência
causadas por obra daquele mal extrínseco. A maldição da
humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem
sido amarrados juntos — que no ventre angustiado da
consciência aqueles gêmeos opostos lutem continuamente.
(STEVENSON, 2022, p. 125-126).
A história de Jekyll e Hyde nos mostra que o bem e o mal são
intrínsecos à natureza humana, portanto, indissociáveis e
complementares. O admirado médico sucumbiu graças a sua
ganância, pois tornou-se obcecado pela própria persona, tal
como Narciso se apaixonou pela imagem refletida no lago.
Como em um episódio de Scooby-Doo, o monstro da história
era, na verdade, humano. Um ser humano incapaz de assumir
suas fraquezas e de sustentar quem realmente era.
O mal que Hyde encarna não é externo a Jekyll, não vem como
um componente da poção preparada e ingerida por ele. O
monstro emerge do próprio Jekyll, é seu corpo que se
transforma no monstro simiesco que resulta em Hyde. O
monstro, o mal, não vem de fora, vem de dentro do círculo do
bem representado por Jekyll. Bem e Mal não configuram um
dualismo para Stevenson, mas uma dualidade, ambos provêm
da mesma matéria-prima. Jekyll e Hyde não são dois seres, mas
dois modos de ser. (GARCIA-ROZA, 2022, p. 14-15).
O grande plot twist da
narrativa acontece quando
o mistério é finalmente
revelado: Jekyll e Hyde são,
A dinâmica entre aquilo que é recalcado e aquilo que é
revelado é a base das relações entre indivíduo e sociedade. A
natureza é repleta de dinamismos. Bom e mau. Moral e imoral.
Amor e ódio. Vida e morte. O equilíbrio está no jogo de cintura
que fazemos para andar na corda bamba.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
No mar
No mar eu te encontrei,
e te amei.
Sobre as ondas eu amei.
Os ventos conspiraram,
ao nosso favor.
A favor do nosso amor.
Ondas fortes entre,
as ondas flutuei.
E no mar eu te amei.
Amei no mar.
Sobre as ondas amei.
No mar eu amei.
Sentir o mar.
Amei no mar.
E fui feliz ao ar.
Ágοrα
Praça de divulgação literária
17
Sofia Brunstein é membro da União Brasileira
de Escritores do Rio Grande do Sul e autora de
Arquivos Escritos (Editora Alcance, 2021).
Meu Pranto
O que dizer sobre você?
Companheiro há tantos anos
Vimos juntos o crescer dos ramos
Os ramos, tantos ramos, do meu ser
Meu pranto, sincero e sofrido
Libertador e aguerrido
Esclarecedor dos medos distantes
(Inverossímeis guardados nas estantes)
Eu achei que esse poema seria sobre você
(Mas não é)
Aqui, eu presto o meu agradecimento
Por sempre estar disposto
A todo e qualquer momento
A descer pelo rosto
E me permitir ver
Que você não é um “amigo”
Mas é um “querido conhecido”
Que, por vezes, me fornece abrigo
Depois de um tempo transcorrido
(Acho que é assim, não é?)
Gostaria de ter seu texto divulgado na
Ágora? Confere lá no nosso site
(https://scenacritica.my.canva.site/) as
regras para submissão. Poemas, cronicas,
contos, resenhas, todos tem espaço em
nossa praça de divulgação literária.
O ano de 2023 marca os 130 anos do
nascimento do grande poeta alagoano Jorge de
Lima (1893-1953), autor de obras como Poemas
Negros, Tempo e eternidade e Invenção de
Orfeu.
Distribuição da Poesia
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a Ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos.
In: Tempo e
eternidade, 1935
O Sul
Hoje a lua nasceu no lado contrário
Não sei se ela estava errada
Ou se finalmente eu acordei
(E olhei)
Para o lado certo.
Guilherme Nélio F. Chapini, nascido no
interior de Goiás, 30 anos, escreve, cria e
acredita no poder da arte, do amor e da
alteridade e age nesse sentido.
Liécifran Borges Martins é compositora,
escritora, poetisa e parodista. Técnica em
Química pelo Instituto Federal do Espírito
Santo (IFES)
Inspirando a nova geração...
Cançonetista
Enquanto a chuva não chega ao sertão,
Sabiá canta triste - no quintal
A dor que chora e clama pela vida,
Verdadeira maestria lacrimal.
O Sol que racha, queima e alumia,
Estimula o lamento da graúna.
Sofredoras e tristes lamúrias,
Acrescenta aos lamentos de reúna.
E quando o astro vai sumindo no horizonte,
A carimbamba logo enceta seu penar.
Dando à noite perfeita melodia
Estimando a Lua que bela pousará.
Gustavo Rodrigues de Moura, nascido em
Teresina-PI, é professor, músico e escritor.
Acadêmico de Letras-Português, vê na
educação a chance de mudar o mundo.
Out-dez 2023 | Scena Crítica
Dignidade Humana e Boa Vontade
presente texto é resultado de um Trabalho de con-
clusão de Curso apresentado no ano de 2022 na
Universidade Católica de Petrópolis – RJ, sendo
orientado pelo professor Daniel Leite da mesma
universidade. Este trabalho visava responder à pergunta:
somente o homem com boa vontade (ou bom caráter)
pode ser entendido como sendo digno? Essa reflexão foi
feita utilizando a obra Fundamentação da Metafísica dos
Costumes (FMC), de Immanuel Kant (1724 – 1804).
Nesta obra, Kant revela a capacidade do ser humano em
não ser um meio para se realizar alguma coisa, mas sim
um fim em si mesmo. Esse conceito de dignidade está
diretamente relacionado à questão do valor, por ser a
dignidade algo que não tem preço e nem pode ser
negociado ou trocado por outra coisa.
Também buscamos analisar aqui a interpretação de Oliver
Sensen do conceito kantiano de dignidade, segundo a
qual a dignidade estaria atrelada ao bom caráter, ou
ainda, que só seria digno aquele que possui bom caráter
(ou boa vontade), algo que tornaria o conceito kantiano
bastante controverso, não apenas no campo acadêmico,
mas também no campo prático das ações humanas. O que
seria ter uma boa vontade? Utilizar-se de uma vontade
que não fosse boa não feriria a própria dignidade do ser?
Os Conceitos de Boa Vontade
e Dignidade Humana em Kant
Kant evoca o conceito de boa vontade já na primeira frase
da obra FMC: “Neste mundo, e até fora dele, nada é
possível pensar que possa ser considerado como bom sem
limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”.
Todos as demais coisas que poderiam ser tomadas como
boas, chamados por ele, talentos do espírito, a saber,
discernimento, capacidade de julgar, argúcia de espírito
ou ainda as qualidades do temperamento, como coragem,
decisão, constância de propósito são coisas boas e
desejáveis, podem ser más e prejudiciais se a vontade não
for boa, se o caráter não for bom.
Para entender o conceito de Kant para a dignidade
humana faz-se necessário explicar os imperativos
hipotéticos e categóricos. Os imperativos hipotéticos
mostram apenas a conexão entre um meio e um fim, pois,
se é desejado o fim, também se deseja o meio para obtê-
lo. O que é necessário, por exemplo, quando se deseja
fazer um bolo. Para tal, é necessário que se aprenda a
cozinhar e também como utilizar as receitas de modo que
saia o resultado final, o bolo pretendido. Essa necessidade
é só para aqueles que desejam fazer o bolo, não é algo
universalizável. Uma pessoa pode viver sem aprender a
fazer um bolo, não uma lei, portanto. Quanto ao
imperativo categórico, este obriga, de maneira
incondicionada, que o comando seja obedecido. Como por
exemplo, salvar a vida. Na segunda parte da FMC, Kant
oferece três formulações do princípio de moralidade. Essas
formulações são formulações de um mesmo imperativo
categórico.
O primeiro modo, ou formulação, do imperativo categórico
kantiano é a fórmula da lei universal: “Aja somente com
aquela máxima através da qual você pode ao mesmo
tempo querer que se transforme em lei universal”. Esta
O formulação é o critério que deve ser utilizado para uma
decisão moral.
O segundo modo é a fórmula da humanidade como fim
em si: “Aja de tal modo a tratar a humanidade, tanto em
sua pessoa como na de outros, como um fim e nunca
apenas como meio”. Pode-se constatar aqui a lei
autoimposta pela razão, livre da sensibilidade. A ação deve
ser realizada considerando a si mesmo como digno e aos
demais também.
O terceiro modo é a fórmula “a ideia da vontade de todo
ser racional como uma vontade legisladora universal”.
Este último princípio será substituído a se-
guir pela formulação do reino dos fins, a
saber, “que toda máxima originada de
nossa legislação deve harmonizar em
um reino de fins, com um reino da
natureza”. A segunda e a terceira
fórmulas aproximam a razão da
intuição, de tal
modo que o
imperativo cate-
górico possa ser
mais facilmente
aceito.
Quando uma pessoa
age bem com outra
pessoa apenas para
parecer ser boa peran-
te as outras pessoas, ela
está agindo sob a condição,
imposta por uma inclinação,
de que “é necessário agir bem pa-
ra ser bem visto por outra pessoa”.
Na visão kantiana, a pessoa que
está sendo ajudada está sendo
um meio para se obter algo, e
não um fim. A pessoa que
age dessa forma também faz
de si mesma um meio e não
um fim.
Como, para o filósofo, a digni-
dade possui valor em si, a
dignidade do homem na visão
kantiana mostra a ideia de
que ele é um fim em si mes-
mo, e não um meio. O
homem não pode ser um
mero meio para algo porque
possui a faculdade de liber-
dade e razão.
Os conceitos kantianos de
dignidade humana segundo
Oliver Sensen
Sensen aborda no terceiro
capítulo de seu livro,
Kant on Human
Dignity, a fórmula kan-
tiana da humanidade.
Inicialmente ele apre-
18
Uma reflexão em Kant
Irina
Borsuchenko
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Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
motivo é o dever, fica entendido que é o indivíduo que, em
sua racionalidade, encontra o dever que move a sua boa
ação. Portanto, os conceitos morais estão a priori na razão.
E somente o dever é o motivo que faz com que a ação seja
boa. Caso a finalidade seja o motivo da ação, esta torna-se
egoísta. Ora, a partir do momento que o indivíduo age
contra o dever, não pratica a boa ação, está cometendo o
equívoco contra a sua própria razão.
Tomando esse assunto para a discussão, toma-se o
exemplo: se o indivíduo não se eleva ao patamar de sujeito
digno por não ter boa vontade, essa ação pode ser
universalizada? Não faria sentido na própria dinâmica que
Kant propõe. Não teria fundamento com o que ele expõe
em seu texto. Seria uma contradição ao que ele escreve.
Todo e qualquer ser humano pode cair em contradição
com a sua razão.
Nessa perspectiva, Tonetto atesta que na Doutrina da
Virtude, Kant também escreve que não se deve negar o
respeito ao homem vicioso e nem negar o seu valor moral,
pois “de acordo com esta hipótese ele jamais poderia vir a
ser corrigido, o que é incompatível com a ideia de um
homem que, enquanto tal (como ser moral) não pode
nunca perder a disposição para o bem”. Portanto, isso vai
contra a ideia de Sensen sobre só ter dignidade aquele
que possui boa vontade. Até mesmo o indivíduo com
comportamento vicioso deve ser respeitado. Ele também
possui dignidade e não pode ser tratado como mero meio.
A ética kantiana possui entre os seus deveres o respeito
incondicional à dignidade do outro, não colocando como
limitador a boa vontade das suas ações.
Conclusões
Pode-se concluir que a dignidade em Kant não possui
como limitante a boa vontade, ou o bom caráter. Como o
próprio filósofo afirma, até o homem com os piores vícios
devem ser respeitados. Posicionamo-nos assim contra a
ideia de Sensen de que a boa vontade determina se o
indivíduo é ou não digno.
Entende-se assim que tratar a humanidade como fim em
si mesmo com o devido foco na dignidade tanto
representa deveres quanto direitos para o indivíduo. O
respeito pelas pessoas é um ato horizontal, e não vertical.
Não há elevação daquele que é mais virtuoso em relação
ao que é menos virtuoso. O imperativo categórico
kantiano, que norteia o princípio do respeito pelos outros,
é fundamental pois dá luz a uma dignidade incondicional
e intrínseca que pertence a cada indivíduo e que conecta
cada ser humano um com o outro em uma sociedade
onde todos devem respeitar-se mutuamente.
O estudo sobre o pensamento de Kant acerca da
dignidade é muito importante ainda hoje, principalmente
no que diz respeito aos direitos humanos. E ao afirmar que
até os menos virtuosos devem ser respeitados,
considerando a sociedade atual que ainda nega tantos
direitos a tantas pessoas que são excluídas e não possuem
seus direitos respeitados, pode-se constatar que o ato de
tomar o outro como fim em si mesmo e não como um
meio acaba por trazer uma luz filosófica ao tema.
apresenta uma interpretação de passagens textuais que
levam ao conceito da fórmula da humanidade. Já na
segunda seção aponta que a fórmula é uma “ordem direta
da razão”, não sendo justificada através da referência a um
valor. Na seção seguinte aborda a aplicação dessa fórmula
e então discute, na última seção, a principal objeção
contra a fórmula da humanidade, segundo a qual ela seria
vazia e destituída e conteúdo.
Robinson dos Santos, em seu texto Sobre autonomia e
dignidade como base para justificação dos direitos
humanos, mostra que o problema fundamental que
motivou o trabalho de Sensen foi o de entender se os seres
humanos são respeitados por terem dignidade ou se eles
têm dignidade por serem respeitados. Caso a primeira
afirmação fosse considerada, então está se tratando da
interpretação tradicional do conceito de dignidade. A
dignidade é o fundamento do respeito. Já tomando a
segunda possibilidade tem-se uma compreensão
totalmente oposta à primeira, pela qual a dignidade
decorre do mandamento do respeito que tem a sua
origem na razão.
19
Para Sensen, o ser humano deve respeitar o
outro pois isto lhe é ordenado pelo imperativo
categórico presente na fórmula da humanidade. Os
direitos não são fundados no valor dos seres humanos.
Como na FMC Kant diz que o valor intrínseco é “elevado
sobre todo preço”, “não admite um equivalente” e “não tem
um valor meramente relativo, mas um valor incondicional
e incomparável”, os seres humanos têm dignidade, mas
não como valor absoluto ou intrínseco, segundo a visão de
Sensen, já que para ele não é a humanidade que possui
um valor absoluto, mas sim a moralidade. Um indivíduo
não deve respeitar os demais porque eles possuem
dignidade, mas a relação é oposta, eles possuem
dignidade e valor porque devem ser respeitados.
Uma análise sobre dignidade e boa vontade
Se para Kant a ação ser boa depende de que ela não seja
praticada sem qualquer finalidade específica, com a razão
utilizando-se de um motivo a priori que está nela mesma
de tal modo que dirija à vontade e pratique a ação, e esse
Tiago Cavalcante é graduado em
Filosofia pela Universidade Católica
de Petrópolis – RJ, onde atualmente
é graduando em Teologia.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
aparição e disseminação do Islã em África se dá a
partir do século VII na Etiópia e progressivamente
para o resto do continente africano no século se-
seguinte seguindo as rotas comerciais seculares,
sobretudo no caso da África Ocidental. Por muito tempo
teve-se o entendimento de que a religião ao chegar ao
continente africano, principalmente, na África subsaariana,
teria tomado características diferenciadas do seu
“original”, o que foi chamado por estudiosos franceses
(sobretudo Vincent Monteil no seu livro L´Islam Noir)
como Islam Noir, ou Islã Negro. Contudo, é importante
salientar que desde o seus surgimento, as práticas do Islã
foram sendo modelas segundo os contextos linguísticos e
culturais.
Esse tipo de “classificação” é claramente resultado do
imperialismo francês, como aponta Thiago Henrique Mota
em seu artigo Questões sobre o processo de islamização
na Senegâmbia (1570-1625). Neste mesmo texto, Mota
pontua as problemáticas acerca desse conceito
esclarecendo que o Islã encontrado na África negra é tão
legítimo quanto o Islã árabe. Porém, é necessário
relativizar a fala do autor na medida em que para o Árabe,
o africano era e ainda continua sendo um muçulmano
inferior. Á prova disso é a lei muçulmana que sentencia
que não se pode escravizar outro muçulmano, mas Árabes
e nem mesmo os “berberes” arabizados respeitaram isso. A
captura e a escravização de Ahmad Bhabha, por exemplo,
levado para o Marrocos, um dos maiores eruditos do
império do Mali, é bem ilustrativo.
O autor afirma a permanência dos preceitos islâmicos
originais em África ao observar que a prática islâmica
africana mantinha a doutrina dos chamados Cinco Pilares,
que seriam a shahadah ou profissão de fé, as cinco salats
ou orações diárias, o zakat que concerne à doação de
dinheiro e outros bens para necessitados, o jejum no mês
de Ramadan e o hajj, que é a peregrinação a Meca que
deve ser feita pelo menos uma vez na vida por todo
muçulmano que tiver condições financeiras e de saúde
para fazê-lo. Além disso, constatou também a existência
de escolas corânicas, universidades (Al-Azhar no Egito no
A século X, Zitouna em Tunis, Al-Quaraouiyine em Fés,
Djenné e Tombuctu , Pirés...) e mesquitas que tinham
papel fundamental no processo de islamização e de
prática do Islã, não só na região da Senegâmbia, objeto de
Mota, mas também em outras partes do continente.
(MOTA 2014:341). É importante salientar que as instituições
de ensino formaram excelentes eruditos que circulavam
entre a África - o mundo ibérico e o Oriente.
A adesão do Islã no continente africano teve vieses
diversos, justamente por se engendrar na pluralidade de
sociedades’ existentes, mas boa parte da literatura sobre o
assunto aponta uma inserção bastante pacífica,
principalmente anterior ao período das jihads, guerras
santas islâmicas, começarem a tomar espaço na neste
espaço da África. Thiago H. Mota elucida que até o século
XVII, anterior à chegada de religiosos guerreiros, os
conhecimentos islâmicos sofriam uma “releitura” para
adequar-se aos contextos culturais e políticos locais,
garantindo um dinamismo e particularidade do Islã
subsaariano, porém sem perder sua essência. (MOTA
2014:351-352) Esse engendramento entre Islã e cultura
tradicional desde África tem um grande peso e fará
diferença na hora de analisarmos o tema do trabalho aqui
proposto. Contrariamente às afirmações de Mota, é
importante destacar que houve forte resistência à nova
religião. No contexto da África do Norte, segundo Sylvia
Serbin em seu livro Les reines d´Afrique et les héroines de
la diaspora noire, as mobilizações foram encabeçadas por
Kahina – uma rainha berbere – resistiram militarmente por
mais de um século contra a penetração do islã.
Durante o período de tráfico Atlântico, foram
transplantados africanos de diversas sociedades, culturais,
classes sociais, profissionais de ambos os sexos e de
diversas regiões. Com isso, também vieram escravizados
que eram muçulmanos, enviados principalmente às
regiões da Bahia, Rio de Janeiro e de Pernambuco [1].
Essas pessoas foram chamadas de malês no Brasil do
século XIX. Muitos deles foram vendidos como escravos
por vencedores de conflitos locais ainda no continente
africano, principalmente após a jihad feita pelo sheikh [2]
20
Entre axé e salaam
A influência de práticas islâmicas no Candomblé do nordeste brasileiro
fulani Usman Dan Fodio (este é um dos seus
nomes registrados), contra os hauçás. Esses
africanos escravizados e vendidos pós esses
conflitos tinham características muito
particulares. Embora a escravidão não fizesse
distinção entre pobres e ricos, letrados ou não, de
prestígio ou não; os malês tinham uma formação
intelectual que muitas vezes era superior a dos
seus próprios senhores. Eram bilíngues, sabiam
escrever e até mesmo ensinar o árabe. Por conta
disso, sempre faziam parte dos grupos de
resistência por não aceitarem tal condição.
Foram eles que pensaram e articularam com
outros não muçulmanos o grande levante de
escravizados da Bahia conhecido como Revolta
dos Malês. É interessante pensar a perspectiva de
sociabilização de escravizados no nordeste
brasileiro através dessa revolta. Sua configuração
mostra de forma clara que embora houvessem
diferenças pessoais entre todos os envolvidos, o
senso de coletividade e necessidade de sobrevi-
Gravura do séc. XVIII representando
muçulmanos na região do Senegal.
http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
É importante ressaltar que a troca religiosa e cultural
realizada pelo Islã e o Candomblé dos escravizados em
nada deslegitima ambas as religiões; pelo contrário,
mostra como o processo de construção e afirmação de sua
estrutura em terras brasileiras tem marcas do que foi a
escravidão e como a mesma propiciou que cada uma
fosse o que é até os dias de
hoje.
O autor Waldemar Valente, citado no artigo de Claudia
Lima e outros, estuda a questão Islã x Candomblé muito
bem. Ele, por exemplo, estudou possíveis ligações entre
ditos “amuletos” islâmicos, usados desde África, que eram
compostos por um cordão com um pingente que se
assemelhava a um livreto e que continha versículos do
Alcorão com o uso de patuás bantos que guardavam unha
e cabelo para fins de proteção e cura. Valente (1957:57-58)
citado por Lima (2009:292) destaca também que em
diversos xangôs pernambucanos que tinham forte tradição
gêge-nago, foi possível observar uma prática corânica
muito comum que proíbe o uso de bebidas alcóolicas.
A autora Claudia Lima apresenta outros elementos
presentes na prática do Candomblé pernambucano que
lembram exercícios de fé islâmicos. Lima cita que uma
dona de casa [de santo] de braços cruzados faz uma
reverência dizendo a frase Barica da Subá môtumba, que
significa “meus respeitos”. (LIMA 2009:297). No Islã durante
a salat os muçulmanos sunitas ficam com as mãos sobre o
peito quando estão de pé, em uma postura de respeito a
Allah. O costume de tocar o chão e passar as mãos no
rosto no rito de Candomblé nagô pernambucano também
se assemelha muito a prática da salat muçulmana que
pratica ambos durante a reza. Prostra-se à Allah ao mesmo
tempo em que se diz a expressão Allahu Akbar [3] em
reconhecimento a grandeza de Deus e passar as mãos no
rosto para os muçulmanos e depositar as bênçãos que
Allah enviou aos fiéis durante a oração nas suas vidas.
Lima também diz que:
vência faziam com que os mesmos se ajudassem entre si,
principalmente em momentos de luta pela liberdade.
Alberto da Costa e Silva em seu texto Sobre a rebelião de
1835 na Bahia cita João José Reis que diz: “Se quisermos
definir resumidamente o movimento de 1835, podemos
dizer que a conspiração foi malê e o levante foi africano.”
(grifo feito por Reis) (SILVA 2002:10).
Após essa breve elucidação acerca do caminho dos negros
muçulmanos que saíram de África e chegaram ao nosso
nordeste, pensemos como a presença dos mesmos nesses
espaços, que já tinham considerada disseminação de
cultura religiosa africana tradicional, foi capaz de
influenciar as práticas do Candomblé. Contudo a
apreensão da flexibilidade e da fluidez nos trânsitos dos
espaços religiosos nos obrigam a tomar em conta a
existência desta facilidade na própria África como
também os efeitos das extremas brutalidades coloniais em
novas terras que forçavam fortes intercâmbios culturais
para que esses escravizados continuassem vivos e ao
mesmo tempo fortalecia os laços entre os infelizes.
Nos trabalhos acadêmicos analisados para este trabalho,
nos quais friso o baixo número de produções feitas até o
presente momento, apontando um campo fértil ainda a
ser explorado, é observado que é praticamente impossível
precisar o momento em que essa dita influência começou
a acontecer entre ambos os objetos.
A longa e terrível viagem abordo dos navios negreiros era
um dos primeiros passos na tentativa de desumanização
do africano escravizado. Ainda dentro desse ambiente
hostil, as pessoas tentavam criar redes de associação,
comunicação e de sobrevivência. Trocas multilaterais que
permeavam todos os âmbitos da vida, inclusive suas
crenças.
Retomando ao que foi falando anteriormente sobre a
islamização do continente africano, podemos observar que
o convívio entre Islã e cultura tradicional se deu de muitos
séculos, portanto, anterior ao período do tráfico Atlântico.
Desta forma, as primeiras trocas entre essas duas
instâncias se iniciaram antes mesmo dessa longa viagem
até o outro lado do oceano.
Existem diversos relatos, de clérigos da igreja, periódicos,
autores do período e relatos orais que apontam para
resquícios de prática islâmica que parecem ter adentrado
ao exercício da fé de Candomblé.
No artigo, Negros Islâmicos no Brasil: interpretação do
Islã no Brasil de Lidice Meyer Pinto Ribeiro a autora cita o
estudioso Arthur Ramos, que acerca da interação entre o
Islã e religiões tradicionais diz: “O islamismo dos negros
malês do Brasil sempre esteve eivado das práticas
religiosas africanas.” (RIBEIRO 2011:150) E Ribeiro ainda
reafirma que tal fenômeno havia se iniciado ainda em
África, como apontado anteriormente.
Em outro artigo igualmente interessante, da autora
Claudia Maria de Assis Rocha Lima, de título Heranças
Muçulmanas no nagô de Pernambuco: construindo mitos
fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Lima
inicia seu texto com elucidações um pouco problemáticas
envolvendo a questão do conceito de Islã Negro. Para ela
“o islamismo negro é uma religião sincrética” (LIMA
2009:285), porém, como já foi aqui elucidado, essa
afirmação reforça a ideia imperialista francesa de que o
Islã da África subsaariana é inferior, como se o praticado
nessas regiões fosse apenas um islamismo completamente
afastado dos seus preceitos originais. E, como já foi
apresentado, no trabalho de Thiago Henrique Mota, pode-
se ver que a situação é bastante diferente.
A perpetuação desse tipo de discurso, de fato, gera ecos
de desvalorização que acabam for favorecer manutenções
de imaginários sociais que o utiliza para perpetuar uma
brutalidade. Alain Pascal Kaly elucida isso claramente
quando diz:
21
http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693
O silêncio passou a contribuir bastante na periferização e
invisibilização das contribuições da civilização árabo-
muçulmana na formação da identidade nacional; também
contribuiu ideologicamente ao legitimar ndiretamente as
diversas formas de racismo e preconceito que assolavam e
ainda assolam a esmagadora maioria da população
brasileira descendente de africanos por fazer acreditar que
o negro africano foi o único a ser escravizado ao longo da
história moderna da humanidade. (KALY2016:130)
Outras evidências nos fazem supor que a arquitetura dos
terreiros, que surgiram no Brasil tem uma ligação com a
disposição das mesquitas muçulmanas. Nas mesquitas,
homens e mulheres retiram os sapatos e dirigem-se a áreas
separadas, onde tapetes para orações são estendidos. Na
maioria dos terreiros, estão estabelecidos os locais dos
homens e das mulheres, tanto para assistência, como para
os integrantes do culto. (LIMA 2009:299)
O babalorixá Eurico Ramos em seu livro Revendo o
Candomblé: respondendo perguntas mais frequentes
sobre a religião aponta diversas possibilidades de
assimilações islâmicas dentro dos terreiros. Ramos fala
primeiramente sobre o xirê, palavra em ioruba que
significa roda em que são evocados os orixás, é o ápice
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
[1] É muito importante destacar que os portugueses, os espanhóis e
também parte dos franceses tinham sido colonizados pelos africanos
islamizados por quase nove séculos. Vide os trabalhos de Alain Pascal
Kaly (2016) Mamadou Diouf, Tata Cissé sobre esta presença. Foi esta
presença secular que vai lançar algumas das bases das conquistas do
mundo atlântico.
[2] Título dado ao líder religioso no Islã.
[3] Que significa “Deus é grande”.
[4] Considera-se sunnah os meios que o profeta Muhammed escolheu
para aplicar a palavra de Deus revelada através do Alcorão. A palavra
em árabe significa “caminho”, aquele no qual todo muçulmano deve
seguir.
Bibliografia
LIMA, Claudia Maria de Assis Rocha. Heranças muçulmanas no
nagô de Pernambuco: construindo mitos fundadores da religião
de matriz africana no Brasil. Revista Brasileira de História das
Religiões. Ano I, nº 3, jan. 2009 – Dossiê Tolerância e Intolerância
nas manifestações religiosas.
KALY, Alain Pascal. A presença-ausência dos árabes e de
muçulmanos nos processos de
modernização brasileira: a readequação dos mapas coloniais.
Repocs, v.13, nº 26, jul/dez 2016.
MONTEIL, Vicent. L’Islam Noir. Revue de l'histoire des
religions, 1965, 168-2, pp. 225-226.
MOTA, Thiago Henrique. Questões sobre o processo
de islamização na Senegâmbia (1570-1625). Revista
de Ciências Humanas. Viçosa: v. 14, nº 2, p. 339-
335, jan/dez 2014.
RAMOS, Eurico. Revendo o Candomblé:
respondendo as perguntas mais frequentes
sobre a religião. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros Islâmicos
no Brasil. Revista USP. São Paulo: nº 91, p.
139-152, setembro/novembro 2011.
SERBIN, Sylvia. Reines d'Afrique et
héroïnes de la diaspora noire. Sepia Eds.
2004.
SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a
rebelião de 1835 na Bahia. Revista
Brasileira. n. 31, v. 8, 2002. p. 9-34.
litúrgico em uma casa de Candomblé. É no xirê que é feita
a roda das baianas. Essas baianas giram no sentido anti-
horário, em volta da chamada cumeeira, que é o mesma
direção em que gira o planeta, representando assim o
processo evolutivo da humanidade e da Terra através das
histórias dos Orixás. Os muçulmanos também fazem esse
giro em torno de um pilar central no mesmo sentido, para
Ramos a diferença é que todo esse rito no Islã é feito com
muito sentimento e dor, enquanto no Candomblé é feito
com muita alegria e festa. (RAMOS 2011:s/p).
É comum fazerem associações da palavra Oxalá com a
figura islâmica de Deus, geralmente chamada de Allah ou
Alá. Porém, a grafia dessa palavra tem dois significados. O
primeiro é árabe, oriundo da expressão InshAllah que
significa “se Deus quiser” e o segundo vem da palavra
ioruba Òrìsànlá, nome de um orixá, a quem também
chamam de Obatalá.
Ramos aponta outras similaridades, como o do opaxorô,
um objetivo em forma de cajado estritamente ligada a
vestimenta do orixá Oxalá e que representa a criação do
mundo. O babalorixá diz que: “os símbolos do opaxorô são
incrivelmente similares aos encontrados nas mesquitas
islâmicas, devido aos vestígios do Islã que permaneceram
na nossa religião até os dias de hoje.” (RAMOS 2009:s/p) e
acrescenta que essa influência se apresenta em diversos
outros detalhes como nos torsos ou ojás nas cabeças, que
seriam semelhantes aos turbantes islâmicos, que embora
não sejam encarados como regra por homens muçulma-
nos é considerado uma sunnah [4]. Também nos panos
da costa, que lembram o uso do filá muçulmano que
muitas vezes também era utilizado com um pano joga-
do pelo pescoço e costas, a cor branca ser associada a
cor de Oxalá, o fato da sexta-feira ser um dia sagrado
assim como no Islã, etc.
Dentro das divindades do Candomblé tam-
bém é possível identificar uma falange de
um orixá que está diretamente ligado
com a figura do muçulmano negro, que é
Ogum Malê ou Ogum Malei. Essa divinda-
de é a sexta falange do orixá Ogum, que
é um orixá guerreiro. Pouco conhecido, e
por isso faz com que se tenham poucas
representações do mesmo, Ogum Malê é
tido como a figura de um guerreiro negro,
fortemente armado e com roupas mouras,
ou seja, com vestimentas típicas dos povos
do norte da África que praticavam o Islã.
São muitas as possibilidades e objetos de
análise que este tema apresenta. Embora
ainda pouco estudadas no efervescente
meio de pesquisas acadêmicas em História do Brasil, as
conexões entre Islã e Candomblé são riquíssimas e se
apresentam prontas para serem exploradas. Os autores
que o fazem tentam reconstruir redes de interação que
por vezes parecem sutis, mas que quanto mais são
pesquisadas, mais saltam aos olhos do pesquisador.
Os estudos sobre escravidão são plurais e merecem
maior aprofundamento sobre esse tema.
Através dos apontamentos feitos nesse trabalho através da
leitura dos textos, é possível concluir que existiu sim uma
troca religiosa considerável entre as práticas islâmicas e as
de Candomblé. Hoje, ambas as religiões estabelecidas em
território nacional, cada uma com seus fiéis, parece que tal
associação parece absurda ou até mesmo apenas
especulativa. Porém, entender que o período escravocrata
do Brasil separou negros de suas casas em África, que
precisaram por sua vez fazer novas casas e famílias aqui, é
perceber que todo esse processo não poderia excluir as
práticas religiosas que se esbarravam no dia-a-dia que
geraram assimilações naturais de ambas as partes gerando
um cenário ainda mais plural do que nós já conhecemos.
22
Barbara Lima é historiadora e
graduanda em Letras/Inglês. De
interesses múltiplos, busca na
multipotencialidade o equilíbrio
entre felicidade e ofício.
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
CADERNO
CINEMA
23
Cinema-movimento
o presente artigo, gostaria de iniciar uma jornada mais
reflexiva a cerca do estudo da filosofia do cinema,
principalmente a partir das obras de Deleuze e
Bergson, onde perceberemos que há muito que se entrelaça
entre essa modalidade de arte e a mais antiga das formas de
pensar.
Na relativamente recente história do cinema, não tardou em
haver autores que teorizassem sobre o cinematógrafo já na
proximidade do seu surgimento. É interessante notar que ao
teorizar sobre algo que parece tão contemporâneo, nos
deparamos com dilemas e questões que remontam à temas
de grande antiguidade na filosofia.
Um dos pioneiros no estudo do cinema foi o francês Henri
Bergson (1859-1941) que ao postular suas teses sobre o
movimento criou o material necessário para que outro filósofo
francês, Gilles Deleuze, pudesse postular o conceito de
imagem-movimento.
É interessante notar que em Deleuze há uma distinção clara
de que filosofia e cinema não se confundem. A filosofia para
ele é a atividade que lida com os conceitos, enquanto que o
cinema lida com a imagem e os símbolos.
Deleuze começa a tratar sobre a temática do movimento, a
partir de 3 teses que ele toma da filosofia antiga. A primeira
trata do movimento e o instante, para isso temos de retornar
aos paradoxos de Zenão, que datam do século V a.c. . Esse
paradoxo se afirma de muitos modos, em diversas alegorias,
utilizarei aqui a mais clássica e a que também penso deixar
mais clara a questão: Na suposição de uma corrida entre
Aquiles e uma tartaruga, Aquiles que naturalmente é muito
mais veloz que a tartaruga a concede uma determinada
vantagem para que ela percorra um determinado espaço
antes da largada e depois de atingida essa vantagem, Aquiles
inicia sua trajetória.
O paradoxo está justamente no fato de que Aquiles, ao menos
em tese, não conseguirá atingir a tartaruga, pois quando ele
atingir o ponto em que ela estava, a tartaruga já terá avançado
mais um pouco, mais um pouco e mais um pouco e assim
sucessivamente, de modo que Aquiles nunca conseguirá
alcançar sua adversária.
Bergson, em sua obra “Matéria e memória”, dirá que o
problema deste paradoxo está justamente nas premissas, pois
não se deve deduzir o movimento do espaço/distância, não se
DE
oferece imediatamente uma imagem-movimento.”
A questão que nos deparamos, então, é que na verdade o
cinema simplesmente recria uma ilusão que já está presente
em nosso modo de perceber o movimento no mundo, como se
houvesse uma espécie de cinematógrafo interno que nos faz
perceber esta ilusão do movimento, com tudo Deleuze irá
responder negativamente a esta impressão, pois a grande
diferença entre as duas modalidades de percepção é que na
natural não há correções no aparelho visual a posteriori,
enquanto que no cinematógrafo há.
Apesar de o cinema utilizar-se de meios artificiais para obter a
ilusão do movimento, a sua resultante é natural, pois aquilo
que o expectador experimenta pela visão é o movimento real
através da sucessão dos fotogramas, que no início do cinema
eram 18/segundo e atualmente são 24/segundo.
Bergson que obteve destaque em sua filosofia por substituir o
conceito de eternidade pelo conceito de “novo”, irá aplicar isso
também ao cinema. Begson acreditava que o que é novo não
pode aparecer nos seus primórdios, pois tende a ser rejeitado
e portanto aparecem inicialmente apenas com os caracteres
em comum com o que já há. Isto aplica-se também ao cinema,
quando pensamos que no seu início o cinema possui apenas a
tomada fixa, o tornando imóvel, e em sua evolução o cinema
adquiri formalmente o movimento quando adota a câmera
móvel.
É interessante notar também que do ponto de vista mais
empírico, dos criadores do cinematógrafo, já havia uma
tentativa de recriar a partir do cinema a percepção natural do
movimento. Não é atoa que nas primeiras projeções, os irmãos
Lumière, tentavam impactar o público, de modo a despertar
nele o impacto da visão.
É importante também acrescentar que a ideia da imagem-
movimento é anterior ao ingresso do cinema na filosofia de
Bergson, este conceito é cunhado, em 1896, em sua obra
“Matéria e memória”, enquanto que só tratará do cinema, em
1907, em sua “A evolução criadora”, onde irá aplicar com mais
perfeição a ideia à coisa.
Iniciamos assim o percurso sobre a filosofia da imagem-
movimento de Bergson/Deleuze, que poderemos aprofundar
nos artigos que serão subsequentes. Neste apresentamos a
primeira das três teses sobre o movimento.
DELEUZE, Gilles. A imagem movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Unesp, 2010
N
Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
O filófofo Giles Deleuze
(1925-1995)
deve utilizar as posições estáticas
como princípio, mas devo pensar no ato
de mover-se, um mover que não
está no espaço, mas sim no tempo.
O cinema nos oferece, ao mesmo
tempo em que nos dá a imagem,
a impressão do movimento. Nisto
Deleuze reconhece o acerto da
fenomenologia, pois esta conside-
rava que a percepção natural
do movimento se difere da per-
cepção cinematográfica, justa-
mente porque no cinema
imagem soma-se ao movi-
mento, criando então a
imagem-movimento.
Nas palavras de Deleuze:
“Em suma, o cimema não
nos oferece uma ima-
gem à qual acrescenta-
ria movimento, ele nos
O filófofo Henri Bergson
(1859-1941)
Com especialização em roteiro pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
Filipe Machado é bacharel em
filosofia pela PUC-Rio e licenciado
em História. Atualmente suas
pesquisas estão centradas nos
autores que compuseram a cena
intelectual católica do século XX
com especial ênfase em Gustavo
Corção.
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  • 1. SCENA OUTUBRO-DEZEMBRO 2023 Nº 03 ANO 1 C R Í T I C A "Nous aimons la verité, nous aimons Dieu, nous aimons tous les hommes." - Jacques Maritain F I L O S O F I A | L I T E R A T U R A | A R T E S | C U L T U R A
  • 2. Editorial Temos a satisfação de apresentar aos leitores a última edição de 2023 de Scena Crítica, mantendo a linha de um editorial temático, como fizemos ao longo das edições deste ano. Nesta edição procuramos prestar tributo a Dom Luigi Giussani, padre e teólogo italiano, fundador do movimento Comunhão e Libertação, no tempo propício do encerramento das celebrações de seu centenário de nascimento. A partir da figura de Giussani esperamos gerar reflexões sobre o modo de operar o apostolado católico a partir dos conceitos deixados em sua vasta obra, apoiando-nos especialmente em sua tese central sobre o senso religioso. É mister para nós, como revista de inspiração católica, suscitar o debate e a reflexão sobre os temas que são caros e necessários ao contexto eclesial moderno, sempre atados a um amplo editorial que versa sobre temas diversos de interesse do conjunto da sociedade e da academia. Inspirados por nossos egrégios patronos, fizemos, como de costume, a revisão de textos de suas autorias, elegendo para esta edição de fim de ano Gustavo Corção em sua crônica sobre as festividades natalinas, procurando, assim, contextualizar- nos ainda mais no tempo em que vivemos, em um final de ano que se apresenta cheio de turbulências e questões que não solucionadas nos fazem olhar para um futuro povoado de incertezas. Continuamos dando sequência a nossos editoriais temáticos, além de reunir novos autores que, pela primeira vez, contribuíram para nossa Ágora Literária, na expectativa de que assim atraiam novas contribuições para o nosso jovem periódico. Fazemos, então, votos de um desdobramento feliz para este ano, nosso ano 1, depositando nossas esperanças e expectativas no Logos que tantos ansiavam e que se encarnou no seio da Virgem, correspondendo aos homens em suas expectativas e temores. Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus bonae voluntatis! Filipe F. Machado Eduardo D. S. Silva Editores Scena Crítica é uma publicação trimestral, sem fins lucrativos scenacritica@gmail.com scenacritica.my.canva.site instagram.com/scenacritica Editor Filipe Machado Colaboradores desta edição Bárbara Bedôr Barbara Lima Eduardo Silva Guilherme Chapini Gustavo de Moura Carlos Frederico Calvet Júlia Rocha Liécifran Martins Rafael dos Santos Sofia Brunstein Telmo Olímpio Tiago Cavalcante Scena Crítica Filosofia, literatura, artes, cultura Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica 2 SCENA S
  • 3. Na esperança O ocaso do ano e a proximidade das festividades natalinas trazem o terceiro número de Scena Crítica. O tempo do Advento, que marca as quatro semanas que preparam o Natal, muito nos fala da temática da esperança, palavra que permeia o projeto desta revista, que prossegue na esperança de contribuir para o enriquecimento cultural e intelectual do cenário brasileiro contemporâneo. A temática que guia esta edição é a experiência religiosa. Para isso, fomos buscar na pessoa do sacerdote, educador e escritor italiano Luigi Giussani (1922-2005), fundador do movimento Comunhão e Libertação, as indicações para uma análise do senso religioso em nossos dias. A figura de Giussani e sua contribuição é explanada por Filipe Machado no artigo Dom Giussani: um homem de Ação Católica. No Dossiê, a entrevista com Alexandre Ferraro, responsável nacional do movimento Comunhão e Libertação, é-nos oferecido um amplo panorama do movimento no Brasil e no mundo. Sendo o Natal, que logo celebraremos, uma expressão do senso religioso, a coluna Vox Patroni traz Gustavo Corção em seu premiado romance Lições de Abismo, expondo as contradições da sociedade e um Natal a cada dia mais tomado pelo consumismo. Eduardo Silva, nas Crônicas de um tempo peculiar, oferece-nos uma singela crônica sobre a experiência da confissão, que marca a realidade cultural do ocidente desde o medievo. Telmo Olímpio retorna para nossas páginas com uma profunda meditação no texto Cegueira da vista e cegueira da alma. A filosofia tem espaço privilegiado neste edição. No artigo A Trindade na ponta dos dedos Carlos Frederico Calvet traz uma análise da exposição de Tomás de Aquino, o grande filósofo e teólogo medieval, acerca da Trindade na Suma Teológica. Kant também marca presença no texto de Tiago Cavalcante que analisa Dignidade humana e boa vontade na obra do filósofo alemão. Filipe Machado retorna no Carderno de Cinema confrontando dois grandes filósofos do séc. XX, Bergson e Deleuze, acerca do tema cinema-movimento. Barbara Lima brinda esta edição com um texto cujo tema é ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. O artigo Entre axé e salaam: a influência de práticas islâmicas no Candoblé do nordeste brasileiro traz à luz pontos de grande importância na compreensão da formação religiosa e cultural na história do Brasil. O médico e o monstro, de Robert L. Stevenson, é o clássico que Julia Rocha traz nesta edição na resenha da coluna Livro Aberto. E Rafael Santos, na coluna Ensaios do cotidiano, convida-nos a um agradável passeio na temática do prazer, enquanto Bárbara Bedôr nos conduz na relação entre Inspiração e poemas. Na Ágora, a praça de divulgação literária, quatro promissores poetas. Sofia Brunstein, Guilherme Chapini, Liécifran Borges e Gustavo Rodrigues colaboram com a poesia brasileira contemporânea e, para inspirar os novos, trazemos um poeta clássico: o sempre atual Jorge de Lima. Boa leitura! I T I N E R Á R I O I T I N E R Á R I O 3 Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 4. Í N D I C E Crônicas de um tempo peculiar, pág. 6 Uma confissão Entre axé e salaam, pág. 20 A influência de práticas islâmicas no candomblé do nordeste brasileiro Ágora, pág. 17 Praça de divulgação literária Dossiê, pág. 13 Um ano jubilar Vox patroni, pág. 7 Estamos em véspera de natal Livro aberto, pág. 16 O médico e o monstro Caderno de cinema, pág. 23 Cinema-movimento In Scena, pág. 26 Dom Giussani, pág. 8 Um homem de Ação Católica A Trindade na ponta dos dedos, pág. 11 Cinco verdade sobre a Trindade na Suma de Santo Tomás Dignidade humana e boa vontade, pág. 18 Uma reflexão em Kant Ensaios do cotidiano, pág. 24 O prazer Inpiração e poemas, pág. 25 Cegueira da vista e cegueira da alma, pág. 10
  • 5. "A literatura é o homem. É no homem aquela vocação misteriosa e imprevista, condicionada por mil elementos exteriores e íntimos, mas desabrochada pelo mistério do espírito, que sopra onde quer." A L C E U A M O R O S O L I M A
  • 6. ei que talvez a geração mais nova não seja lá muito acostumada a ouvir as palavras “confissão” ou “confessionário” no sentido que aqui trago. No máximo podem achar que falo de algum quadro de reality show ou algo do gênero. Mas de início preciso esclarecer que não. Refiro-me a confessar pecados a um padre mesmo. Ainda há pessoas, digamos, peculiares, como eu, que se prestam a isso. Ao longo da vida, vamos sempre sentindo necessidade de encontrar formas de fazer escoar certos excessos que vamos acumulando. Más escolhas, conflitos de relacionamentos, falas ditas sem reflexão (ou talvez com excesso de reflexão maldosa), pensamentos provindos sabe-se lá de que precipício da consciência, enfim, todo um arcabouço de resíduos a se descartar. Uns não estão muito preocupados em se desfazer desses badulaques. Outros despejam esses acúmulos na terapia. Os católicos insistem num método menos freudiano (ainda que não o desprezem de todo) e mais medieval (sem nada de pejorativo no termo): a tal da confissão. Como católico de longa data, confessar-me já faz parte do meu cotidiano. Mas há algumas confissões que ganham um lugar de destaque na memória, talvez como forma de preencher o espaço deixado pelos resíduos psicológicos despejados nos ouvidos de um paciente sacerdote. Uma confissão, particularmente, traz-me até hoje interessantes reflexões. Indo certa vez ao centro do Rio de Janeiro, ali pelos idos de novembro, recordo-me que, ao sair de um compromisso num prédio, deparei-me com uma chuva torrencial, dessas que a metrópole carioca sabe muito bem produzir em dias de calor sufocante. Abrigado da chuva na longa marquise, via os passantes a correr pelo Largo da Carioca. Logo do lado oposto ao prédio onde estava, o plurissecular Convento de Santo Antônio, da CRÔNICAS DE UM TEMPO PECULIAR Uma confissão Eduardo Silva, graduado em História pela UFRRJ e em Filosofia pela PUC-Rio, encaminha os estudos também para a literatura e a teologia, sempre a partir de um diálogo entre o pensamento tomista e as diversas correntes contemporâneas. 6 S Ordem Franciscana. Olhando para o emblemático conjunto sacro colonial, recordei-me de minha pobre condição de pecador e, encorajado pela fé e pela diminuição do volume de água a cair, atravessei a rua e adentrei o longo e escuro corredor em cujo fundo havia o elevador que conduzia ao convento e à igreja anexa. Não encontrei o tradicional vai e vem de fiéis e turistas, nem outros penitentes. Vi tão somente, no fundo da escura sala do capítulo onde os frades atendem as almas aflitas, um filho de São Francisco a caminhar, estola roxa ao pescoço e terço na mão. O dramático crucifixo barroco na parede do fundo completava aquela cena digna de uma pintura, mas que não teve outro pincel que não meus olhos inquietos. Ao virar-se e perceber minha presença, o frade logo fez sinal para que me aproximasse. Tinha um ar venerável em seus cabelos brancos e sua postura encurvada. Sentei-me diante do frade. Atrás dele, o crucificado fitava- me, como que a suplicar em sua agonia: “Tenho sede!”. Mas como! A única água que tenho agora é suja e fétida, pois é como que o chorume desse lixo pestilento que são meus pecados. “Dá-me! Acaso eu que transformei água em vinho não posso também purificar as águas turvas e fazê-las límpidas outra vez?”. Os olhos azuis penetrantes do idoso frei, olhos com misto de rigor e ternura, pareciam vasculhar minha alma enquanto punha para fora os tais resíduos acumulados. Não foi a primeira, e muito menos, infelizmente, a minha última confissão. Os conselhos dados pelo confessor não tiveram nada de extraordinário ou espetaculoso. Falava com simplicidade de coisas simples, obvias até, mas com profundidade tal que confirmava esta verdade: o óbvio precisa ser dito. “Eu te absolvo...”. Cada vez que ouço sobre mim as palavras da absolvição sacramental percebo como o homem não precisa de muito para ser feliz. Ao menos não um muito visível. Ao sair pelas portas que davam para o pátio de pedra, a chuva tinha parado. Os raios de sol abriam brechas nas nuvens cinzentas e dali de cima davam um cenário espetacular ao centro da cidade. A natureza naquele dia se assemelhara à minha alma. Desci e caminhei pelas ruas, agora tomadas pelas poças d’água. Assim é a alma após a tempestade dos erros com que se depara ao examinar sua consciência. A chuva se vai, mas suas consequências visíveis ficam. É necessário paciência e esforço para que as poças escorram e sequem. Até lá, há que se fazer como o VLT que vi ao passar pela rua Sete de setembro. Diante de um grande bolsão, teve que diminuir a velocidade, para depois seguir seu percurso em velocidade normal. Também eu, ao deparar-me com os bolsões lentamente escoantes de meus vícios em processo de correção, preciso diminuir o ritmo e atravessar com paciência. Uma confissão. É pena que muitos não tenham essa mesma experiencia. Mas hão de ter outras, nisso creio firmemente. Mas essa minha experiência, desculpem-me os da nova geração, não há reality show que supere. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 7. na cabeça, parecia alheia à discussão: - É muito cara. - Foi remarcada, madame. A senhora não encontrará uma boneca destas por menos de cem cruzeiros... Mas se a senhora quiser, temos outras bonecas mais baratas. Qual é o seu orçamento, madame? A dama de azul franziu ligeiramente os sobrolhos. - É para uma menina pobre. A filha da empregada. Vox patroni dando voz aos que nos precederam ESTAMOS EM VÉSPERA DE NATAL Gustavo Corção, 1950 7 Scena Crítica | Outubro-dezembro 2023 E Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o limite de “seu orçamento” como queria o desajeitado vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre, explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela; de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para a filha da criada. O vendedor compreendeu logo que o problema se deslocava para um novo sistema de microunidades. Ninguém, evidentemente, mede em quilômetros o diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas stamos em véspera de Natal. O movimento das ruas dobrou; triplicou. Os automóveis buzinam, imobi- lizados nas esquinas entupidas; as lojas regurgitam; os vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os clientes, entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem- se, acotovelam-se, mas sorriem, sim, sorriem - porque parece que todo o mundo está muito contente. (...) Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso universo. Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos parados de contas azuis. - Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que esconderam o menino Jesus? O menino Jesus estava na esquina de Assembleia com Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava. As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas!) não viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre. Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga o tirara de uma lata de despejo. Quando eu passei, ele tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos da mãe. Levava-a à boca, sem jeito, metendo os dedinhos nos lábios, de onde corria uma saliva clara e inocente. A mãe, de braço estendido, pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria mãe de verdade? Dizem que se alugam crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é falsa. A mãe é falsa. E dessa falsidade todo mundo desconfia. A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável. Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E o menino sorriu. Para mim! CORÇÃO, Gustavo. Lições de Abismo. Rio de Janeiro: Agir, 1989, p. 140.145-146.
  • 8. . OEm 1959 o Papa João XXIII tomava de surpresa a cristandade com o anúncio de que pretendia convocar um Concílio Ecumênico, como de fato o fez. A 11 de outubro de 1962 foi solenemente inaugurando o Sacrossanto Concílio Vaticano II. O seu antecessor do século XIX, o homônimo Vaticano I, teve como tônica o reforço do poder hierárquico, especialmente do poder papal, resultando na proclamação do dogma da infalibilidade do Romano Pontífice. O Vaticano II notabilizou-se, ou ao menos recebeu a fama, de ser o Concílio que garantiu a maioridade do laicato na Igreja, ainda que muitas de suas páginas se concentrem em desenvolver uma teologia do episcopado e do reforço da autoridade dos prelados em suas igrejas particulares. Como o Concílio e mais ainda o seu espírito foram dogmatizados ao longo dos anos subsequentes de forma sistematizada e ideológica, acabamos por cair em um ambiente em que análises críticas da conjuntura eclesial no pós-Concílio acabam por ser inviabilizadas, especialmente no que diz respeito a dois aspectos: as dinâmicas pastoral e litúrgica que se seguiram ao Vaticano II. É preciso lançar um olhar sem preconceitos e vícios ideológicos para a situação da Igreja nos anos que imediatamente precederam o Concílio, de modo a buscar na história da Igreja de sempre soluções e alternativas às questões que afligem a Igreja do nosso tempo, e também sem temor inovar naquilo que necessitar progredir na dinâmica irreversível da História. Este texto não tem a pretensão de apresentar soluções ou alternativas à dinâmica da Igreja hodierna, mas através da biografia de um dos homens mais insignes da Igreja do século XX, verificar aquilo que podemos extrair da sua experiência do movimento que fundou, lições para nossa ação em prol da comunidade dos batizados e para o mundo que a deseja e almeja, ainda que a desconheça. Em 1922 nascia, em uma comuna da Lombardia, Luigi Giovanni Giussani, que em 1945 seria ordenado sacerdote do clero de Milão. Giussani certamente é mais notabilizado na atualidade, e com razão, por ter sido o idealizador de um dos maiores movimentos eclesiais do século XX, o Comunhão e Libertação. No entanto, gostaria de focar mais na figura do homem que, apesar do seu envolvimento nas bem- sucedidas estruturas de organização do laicato do seu tempo, teve um olhar certeiro no diagnóstico das dificuldades que estariam por vir em um momento em que tudo parecia razoavelmente no lugar. A Itália dos anos 1950, para um observador desatento, apresentava o aspecto de segurança para a Igreja. Os seminários estavam cheios, a frequência aos sacra- mentos era alta, Dom Giussani 8 Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica Um homem de Ação Católica o laicato aparecia articulado através dos diversos órgãos da Ação Católica. No cenário político a Igreja aparecia bem representada pela Democracia Cristã. Tudo parecia confluir para o bem-estar da Igreja. O grande trunfo da análise de Giussani reside justamente naquilo que se tornou um de seus léxicos mais célebres: a experiência. É a experiência o grande trunfo para distinguir a mera exterioridade das práticas religiosas e a real adesão ao cristianismo. O interessante é notar que as estruturas, e até certo ponto os esquemas de pastoral e apostolado, não são por si descartáveis, mas, pelo contrário, podem ser meios eficazes para proporcionar e até mesmo fortalecer a relação do sujeito em sua experiência da religião. E foi justamente através das estruturas de ação pastoral que Giussani iniciou sua atuação, mais especificamente nas fileiras da Ação Católica, onde notabilizou-se na direção do setor estudantil. Não fosse o contato com a Juventude Estudantil Católica, Giussani não poderia ter antecipado o sentimento que discretamente pairava na mentalidade juvenil e que resultaria nos acontecimentos de 1968. Há uma sentença particularmente marcante de D. Giussani: As pessoas abandonaram a Igreja, mas antes a Igreja as abandonou. Ora, é preciso de uma chave hermenêutica para bem compreender esta declaração de um Giussani já ancião. O fato é que ele percebia que o discurso eclesiástico, durante muito tempo, ateve-se a uma pregação eminentemente moralista, abrindo mão de um aspecto que Giussani considerava fundamental: o evento. O cristianismo é um evento na medida em que é encontro. E é encontro pessoal e direto com uma pessoa viva e real. A religião reduzida a meros preceitos rituais e normas de comportamento moral, ainda que seja eficiente temporariamente em fazer a manutenção de estruturas, não gera um engajamento real e eficiente com os seus aderentes. É neste sentido que retomo a temática inicial do modus pastoral no qual estava localizado o início do movimento da juventude de Giussani. A atuação da Ação Católica, para além de apenas servir como longa manus da hierarquia, proporcionava um desdobramento da ação pastoral em um movimento ad extra, ao invés de concentrar-se, como na pastoral hodierna, em aprisionar o leigo nas estruturas e locais que naturalmente não os perten- cem, nem mesmo dizem respeito a sua vocação, mas pelo contrário, em cristianizar o ambiente social. Um dos pilares da filosofia de Giussani é uma adesão integral à realidade. Neste sentido, sua pregação sem- pre se desenvolveu no sentido de afirmar que o cristia- nismo não pode ser uma fuga do real, mas, pelo contrário, leva o homem a comprometer- se com a integralidade dos fatores que compõem a existência. Ora, é evidente que há uma certa impregnação do mé- todo da Ação Católica no discurso e consciência de Giussani, pois só é possível tomar esta atitude diante do evento da vida se
  • 9. . A primeira metade do século XX é marcada por célebres conversões que, não raramente, foram capitaneadas pelas estruturas da Ação Católica, seja pelo método ou pela própria estrutura organizacional. Creio que, na verdade, seria mais apropriado o termo reconversões, uma vez que a maior parte desses conversos já era batizada, além de viverem em um contexto cultural muito mais próximo à religião que o hodierno. Neste sentido, já havendo distinguido a mera prática da autêntica experiência religiosa, chegamos finalmente à questão, que ainda que não pretenda solucionar ou propor soluções neste momento, ponho à reflexão. O sucesso do movimento fundado por Giussani, depois conhecido por Comunhão e Libertação, é um desdobramento orgânico da Gioventù Studentesca que nada mais era do que uma variação da Juventude Estudantil Católica, órgão da Ação Católica. Ora, o modo de ação apostólica não só de Giussani, mas de muitos movimentos que apresentaram sucesso após o Concílio, em um momento histórico de profunda aridez para a Igreja, utilizavam o modus operandi anterior ao Concílio. Grosso modo, a experiência demonstra que considerar o laicato no seu ambiente natural, ou seja, a sociedade, é muito mais eficiente e menos dispendioso do que uma práxis pastoral que procura subverter essa ordem inserindo-os no contexto do “apostolado sacramental”. As espiritualidades e movimentos que se pretenderem perenes, parecem ter que fazer uma revisão, até muito própria, do Concílio: é preciso que se reestabeleça os vínculos com o mundo, é preciso que façamos pazes com a realidade. 9 Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica houver a disposição de tomar uma postura ativa diante da realidade, postura essa que pode ser traduzida em: ver, julgar e agir. Chamo, então, atenção para o nosso contexto eclesial latino-americano. Após anos de hegemonia, quase solitária, da teologia da libertação, seria quase que natural uma tendência a afastar-se da imanência, o que de fato acabou ocorrendo de forma desastrosa. Após anos de avanço de uma teologia de caráter profundamente sociológico e antropocêntrico, o caminho encontrado pela Igreja Latino-Americana para desvincilhar-se deste caminho foi o de lançar-se no extremo da “soteriologia” que encontra sua correspondência mais radical e equivocada no neopente- costalismo. É evidente que a partir dessas duas tendências inviabiliza-se uma experiência autenticamente cristã. É inviabilizada porque o grande distintivo do cristianismo é a encarnação, portanto não se pode associá-lo a nenhum tipo de doutrina que pretenda a alienação. Por outro lado, o mistério da encarnação consiste no enraizamento do Logos na natureza humana, não permitindo a exclusão do elemento transcendente em sua experiência e discurso. Uma vez que se conheça e confesse que o Logos se encarnou em Jesus Cristo, não há outro lugar para onde o homem possa direcionar o seu instinto religioso. Ou melhor, no léxico de Giussani, é ali que ele encontrará a correspondência mais satisfatória para a experiência universal do senso religioso. A questão que coloco reside em demonstrar que a pastoral deve ser um facilitador para que o homem se depare com essas questões essenciais, já que dizem respeito a sua própria constituição natural, de modo a permitir que viva de modo mais autêntico e integral a vida à luz da experiência com o Real. A experiência da Igreja após o Vaticano II gira em torno de duas reflexões: uma reflexão introspectiva da Igreja (Lumen Gentium) e uma nova perspectiva, a partir desta nova forma de lidar consigo, para relacionar-se com o mundo moderno (Gaudium et spes). Em Gaudium et spes se diagnostica, finalmente, que há um profundo distanciamento do homem moderno com relação à religião, inclusive pela tendência de acreditar que o afastamento da religião e de suas práticas constituem condição sine qua non para o desenvolvimento da ciência e da técnica. Ora, como resposta a essa tendência o Concílio vai afirmar a vocação religiosa do homem. É certo, e creio, que nenhuma antropologia poderá desconsiderar que é da constituição humana universal a elaboração de sistemas de crença e culto aos quais o homem dedica-se afim de dar vazão a um instinto natural. O ponto que quero notar é que as tensões entre o dogma e o avanço da modernidade no mundo ocidental ocorre de muitos séculos, ao menos desde a baixa Idade Média. Contudo, trazendo ainda para mais próximo dos eventos do Vaticano II, é possível notar uma ação eficiente do apostoladoem prol da reconciliação de um número não negligenciável de homens, por muita das vezes hostis, com a religião. Com especialização em roteiro pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Filipe Machado é bacharel em filosofia pela PUC-Rio e licenciado em História. Atualmente suas pesquisas estão centradas nos autores que compuseram a cena intelectual católica do século XX com especial ênfase em Gustavo Corção.
  • 10. . Q uando, nos anos escolares, li Sófocles, impressio- nou-me sobremaneira a figura de Édipo. A peça é marcada de ambiguidades e por um destino inexorável que leva seu protagonista a uma profunda angústia e desespero. Qualquer um fugiria do fado de matar o próprio pai e casar-se com sua mãe. E mesmo resistindo ao máximo aos planos dos deuses comunicados pelo Oráculo, Édipo cumpre sua sina e vive a vida que já lhe havia sido imposta. Tais fatos levam a personagem a tirar a vista dos seus olhos, terminando seus dias cego. O que não pude considerar na tenra idade, só a leitura mais madura veio evidenciar. Édipo não ficou cego, uma vez que sempre o fora. Ele não conseguia enxergar nada, vivia na ignorância da sua origem, da sua identidade e também da absurdidade de seus atos. Não consideramos aqui o valor moral de suas ações, mas tão simplesmente quantas coisas ele fez sem se dar conta porque não sabia, porque não via. E pergunto-me: ele poderia ver? Acaso poderia saber? Na trama do poeta grego, pode-se ver retratada duas cegueiras; uma é física, o próprio homem tira-lhe dos olhos a luz; a outra é anímica, psíquica, mental: o homem não vê seu entorno, suas circunstâncias, sua própria existência. Sem ver, o homem não pode se dirigir por um caminho, não pode escolher uma via, não pode traçar as escolhas da vida. Também nos evangelhos, encontramos outro homem cego, Bartimeu. Diferente de Édipo, que ao retirar a venda da alma, resolve cegar a vista, o pobre do tempo do Nazareno é cego desde o dia em que nasceu e, por ordem divina, cura-se concomitantemente tanto da cegueira da vista quanto da cegueira da alma. Seu clamor, como narra Marcos, foi ouvido e toda sua vida encontrou sentido e visão neste encontro. Não seria exagero, ao considerarmos a contemporaneidade, dizer que a maioria dos seres humanos vivem a cegueira da alma que independe da cegueira da vista; ainda que se possa ter as duas. Encontramos diversas pessoas ao longo do caminho que parecem viver sem se dar conta do sentido último de sua existência, sem perceber minimamente suas circunstâncias ou as do mundo. Pessoas, que embora vejam tantas coisas nas telas dos seus celulares, que embora leiam todas as últimas notícias sobre as guerras e sobre a economia, que embora se pensem mais lúcidas que todas, são na verdade reproduções fiéis de tantos édipos e tantos bartimeus. E talvez, por um longo período de suas vidas, assim como os personagens da literatura e do evangelho, não se deem conta da própria cegueira espiritual. O fenômeno do ofuscamento da alma contemporânea foi alvo da análise do português Saramago. Em “Ensaio sobre a cegueira”, a cegueira física é símbolo e também meio de o ser humano dar conta da sua cegueira interior, do conhecimento individual e coletivo do agir em sociedade. Como se percebe, a cegueira é tema recorrente, desde os antigos até nós, que também tantas e tantas vezes não conseguimos enxergar. Queremos ver, entender, inteligir nossa vida no mundo e não conseguimos. Talvez, por isso justamente, alastra-se por toda parte uma série de profissionais que pretendem ajudar-nos a ver, os tais psicólogos, coaches, mentores, etc. Estamos certos desde nossas adolescências, quando talvez demos conta de uma falta de conhecimento próprio, que a cegueira da alma é a pior coisa que pode ocorrer à existência. Cegueira da vista e cegueira da alma 10 Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica Não à toa, os cristãos chamaram o Céu tantas vezes de visão beatífica, a plena visão. Não ver, perceber-se no escuro, é a sensação mais angustiante e, ao mesmo tempo, mais purificadora que pode haver. Desta sensação parece emergir duas possibilidades: buscar a vista como Bartimeu ou cegar- se de vez como Édipo. Voltamos a Sófocles e seu Édipo cego, e percebemos que depois de ver não podemos voltar à cegueira. E isto também pode ser estarrecedor quando nos damos conta dos recônditos mais sombrios dos seres humanos e também os de nossa própria alma. Finalmente, quando Édipo se dá conta de sua própria vida, das circunstâncias terríveis em que ele se encontra, aquilo que ele tanto quis ver, resolve cegar os próprios olhos. No entanto, a alma que viu não pode deixar de enxergar. A tormenta continua a consumir-lhe e, embora cego, vê mais do que nunca. Ver é um bem inestimável, não tenho dúvidas. Confirma isto a escrita do Apocalipse: Vi o céu aberto... vi descer um anjo... vi um novo céu e uma nova terra. Confirma a prece do cego: Domine, ut videam ― Senhor, que eu veja. Confirma também a filosofia tomista sobre o belo: Pulchrum est quod visum placet ― O belo é o que agrada a visão. Sem vista, não há beleza, não há sentido, não há vida. Que eu e tu, meu caro leitor, vejamos! Telmo Olímpio é mestrando em Letras Clássicas pela UFPR, bacharel em Direito pela UFRJ e em Filosofia pela PUC-RIO
  • 11. anto Agostinho diz, em seu Tratado sobre a Trinda- de, que em nenhuma parte há algo mais perigoso, laborioso e frutuoso do que este estudo. Efetiva- mente, muitos dos erros relativos à Trindade foram superados pelo labor dos Padres. À época de Tomás, já se podia, há alguns séculos, desfrutar da beleza e da profundidade do mistério trinitário, sem os perigos do passado, embora com exigências igualmente laboriosas. Dom Cirilo Folch Gomes inicia a conclusão de uma de suas mais fascinantes obras, em que trata justamente da Trindade, com a seguinte questão: “É possível ainda hoje, na presente situação cultural, falar do Pai, Filho e Espírito Santo como ‘três Pessoas’, se nos referimos a Seu mistério íntimo e eterno?” (1979, p. 355). Santo Tomás, que guiou a investigação de Dom Cirilo, oferece-nos elementos doutrinais importantes que podem ser com fins meramente didáticos, sem prejuízo do mais importante, o mistério. Tomás tratou esse mistério de modo tão excelente e, ouso dizer, também didático, que, com os cinco dedos de uma de nossas mãos, podemos abordar os temas principais relativos à Trindade imanente. São cinco, justamente como os dedos da mão, em ordinal também, os temas que nos interessam aqui: um Deus, o polegar; duas processões, o indicador; três Pessoas, o médio; quatro relações, o anular; cinco atos nocionais, o mínimo. 1. Deus é uno. A questão 31 da primeira parte da Suma Teológica discute em quatro artigo a unidade de Deus na Trindade. Como é possível que um Deus que é simplesmente uno e único possa ser, em sua essência, três pessoas. Ao reconhecer que Deus é tino, no primeiro artigo desta questão, Tomás ressalva que Deus não é tríplice, mas trino (ST I, q. 31, a. 1, ad 3). Há trindade em Deus, isto é, há número determinado de pessoas. O que indica a distinção das Pessoas “não é o mesmo que diversidade ou diferença”, porque a distinção é uma oposição relativa, isto é, que exprime uma relação. Trata-se de dizer a essência de Deus é três, isto é, o três em Deus não é propriamente um número (ST I, q. 30, a. 3), como se acrescentássemos uma unidade ao um, para fazermos dois, e uma unidade ao dois para fazermos três. Três é a essência mesma de Deus. Omnia tria... 2. Duas processões. O Filho procede do Pai; e o Espírito procede do Pai de do Filho. A processão é uma relação, porém enquanto a relação em nós é um acidente, como em Deus não há acidentes, estas relações são subsistentes, de modo que pertencem ao próprio Deus por essência. E há somente duas processões (ST I, q. 27, a. 5): a processão do Verbo, que é a geração (ST I, q. 31, a. 2); e a processão do Espírito, que não é geração, é a processão do Amor, pois como a natureza intelectual tem duas ações, a do intelecto e a da vontade, a processão do Verbo é conforme a ação do intelecto; e a processão do Amor é conforme a ação da vontade (ST I, q. 27, a. 4). 3. Três Pessoas. Devem-se afirmar várias pessoas em Deus, porque, em Deus, pessoa significa relação subsistente na natureza divina (ST I, q. 30, a. 1). Ora, em Deus há várias relações reais; logo, há várias pessoas, na verdade três. Por quê? Porque duas relações opostas correspondem a duas pessoas: assim, a paternidade e a filiação. A espiração e a processão por espiração, por outro lado, são opostas entre si. Contudo, se a espiração ao Pai e ao Filho, a processão por espiração não lhes pode corresponder: logo, designa a terceira pessoa: o Espírito Santo (ST I, q. 30, a. 2) . A TRINDADE NA PONTA DOS DEDOS 11 S Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica Cinco verdades sobre a Tridade na Suma de Santo Tomás
  • 12. 4. Quatro relações. A relação em Deus é o mesmo que sua essência, porque o que é acidental nos entes deve ser atribuído a Deus de modo essencial, de modo que o ser da relação é o mesmo que o ser da essência divina (ST I, q. 28, a. 1). As quatro relações reais em Deus são: paternidade, filiação, espiração e processão (ST I, q. 28, a. 4), porque não pode haver relação real em Deus se não for fundada na ação. Ora, as ações imanentes em Deus são duas processões: a do intelecto (a do Verbo) e a da vontade (a do Amor). Se a processão do Verbo é geração e a do Amor, embora sem nome próprio, é a espiração e toda relação tem dois termos, duas processões, com dois temos opostos cada, constituem quatro relações: a do Pai com o Filho, paternidade; a do Filho com o Pai, filiação; a do Pai e do Filho como o Espírito, espiração; a do Espírito com o Pai e o Filho, processão, no sentido de ‘procedido’ deles. 5. Cinco atos nocionais. Os atos nocionais devem ser atribuídos às pessoas, porque, para designar a ordem de origem das pessoas, se lhes atribui atos nocionais (ST I, q. 41, a. 1). As noções são pois: inascibilidade e paternidade; a filiação; a espiração; e a processão. dessa forma, ao Pai se referem as noções de inascibilidade e de paternidade e de espiração comum (do Espírito com o Filho); o Filho é conhecido pela filiação, como seu modo de proceder, pela espiração comum, que um mesmo modo de conhecimento com o Pai; e o Espírito que procede de ambos é conhecido pela processão (ST I, q. 32, a. 3). Os atos nocionais procedem de algo, porque o Filho procede da substância do Pai; e em Deus há verdadeira e própria paternidade, nascimento e filiação (ST I, q. 41, a. 3). Em Deus, há uma potência em relação aos atos nocionais, porque potência significa o princípio do ato; porque, ao se compreender o Pai como princípio de geração e o Pai e o Filho como princípio de espiração, é preciso que se lhes atribuam as potências de gerar a Pai e a de espirar a ambos (ST I, q. 41, a. 4). Sobre este aspecto, talvez o menos conhecido da doutrina, diz Vanier: “A ação nocional e todas as ideias relacionadas tornaram-se, na Suma, formas simples de conceber exigidas pelo nosso espírito. A precisão e consistência adquiridas por estes conceitos são notável. Mas a importância do seu desenvolvimento vem acima de tudo da pureza que permitiram dar aos primeiros conceitos de teologia científica trinitária: a procissão imanente e a sobreviver ao relacionamento pessoal” (1953, p. 88) . Concluo com o mesmo autor com que iniciei esta exposição didática, Dom Cirilo Folch Gomes. Sua resposta à pergunta, que ele mesmo propôs, aparece no último parágrafo de sua obra citada: “Assim, um conceito se abre para o outro. Compreendemos melhor o que sejam as Pessoas divinas quando refletimos sobre a doação que nos autoliberta, sobre a caridade que nos abre as portas da autorrealização. E compreendemos melhor que verdadeiramente a doação nos liberta e a caridade nos realiza, se pensamos naquilo que são as divinas Pessoas” (1979, p. 371). Usar cinco dedos para falarmos na Trindade pode ser um modo didático e mnemônico útil, sobretudo ao ensino. O importante, porém, é reconhecer que as verdades reveladas sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, foram-no de modo progressivo, na economia da Salvação. E mais, que a Trindade continua a ser mistério e é na experiência do mistério, isto é, no culto, que conhecemos e vivemos a dinâmica trinitária do amor de Deus. GOMES, Cirilo Folch. A Doutrina da Trindade Eterna. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1979. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. V. 1. São Paulo: Loyola, 2009. VANIER, Paul. Théologie Trinitaire chez Saint Thomas d’Aquin: Évolution du Concept d’Action Notionelle. Paris: Jean Vrin, 1953. 12 Pós-doutor pela Universitat Autònoma de Barcelona e doutor em filosofia pela Pontificia Università San Tommaso, Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira é professor titular da Universidade Católica de Petrópolis e professor agregado da PUC-Rio. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica A Trindade. Livro de horas de Llanbeblig, final do séc. XIV.
  • 13. Dossiê 13 Comunhão e Libertação no Brasil m 2022 comemorou-se o centená- rio do sacerdote, professor e escritor italiano Luigi Giussani. Seu nome es- tá inteiramente vinculado ao movimento que fundou, originado em seu apostolado com estudantes desde a década de 1950, o Comunhão e Libertação. Em seus escritos, que alcançaram popularidade, trabalhou com o conceito de senso religioso, que parece ser uma resposta no mínimo interessante, e que apresenta eficácia pastoral considerável no atual contexto de secularização da sociedade ocidental. Resgatando a figura de Giussani e seu movimento, Scena Crítica foi ao encontro de Alexandre Ferraro, professor da Faculdade de Medicina da USP, atual responsável no Brasil pelo movimento Comunhão e Libertação, que tem seu apostolado presente em pelo menos 40 cidades em todo o país. Scena Crítica: Quem foi Luigi Giussani? Alexandre Ferraro: Nas palavras do próprio Giussani: um simples padre da Diocese de Milão. Toda a formação para o sacerdócio ocorreu lá, de fato. A pedido do bispo, quando ainda jovem sacerdote, tornou-se professor de religião em escolas públicas. Graças à formação que teve percebia o cristianismo de tal forma que atraiu multidões. Essas pessoas a quem esse cristianismo atraiu formou o que, hoje, conhecemos como Comunhão e Libertação, movimento que está espalhado em mais de 80 países. SC: Há um conceito central no pensamento de Dom Giussani que é o Senso Religioso. Do que se trata? Alexandre Ferraro: Giussani era considerado para ser um teólogo de vida acadêmica devido ao seu particular pendor aos estudos. O ambiente que o rodeava na Itália dos anos 1950 era de aparente otimismo com relação à presença da Igreja na sociedade. A religião estava presente na educação pública, era muito bem representada na política pela Democracia Cristã, as igrejas se encontravam cheias, etc. No entanto, D. Giussani já intuía que todo aquele aparente ambiente de hegemonia eclesial não se sustentaria por muito tempo. É importante frisar isto, porque, ainda hoje, temos a tentação de nos acomodarmos quando percebemos que um movimento ou outra realidade qualquer na Igreja está sendo bem-sucedida numericamente, o risco é de estarmos promovendo um falso diagnóstico da realidade. Para D. Giussani o fator numérico realmente não era um critério. Essa intuição brotava dos encontros que promovia com os jovens estudantes. De fato, o que ocorria é que a frequência religiosa não correspondia a uma prática religiosa. A vida concreta, a cultura estavam sendo construídas por uma mentalidade ateia e de esquerda. A ideia de senso religioso não nasce propriamente com Giussani, mas com Montini, àquela altura seu Bispo. Por volta de 1956 Montini publicou uma carta pastoral falando sobre o senso religioso, e a partir daí Giussani irá desenvolver exaustivamente essa temática. Portanto, o senso religioso é um traço universal nos homens de todos os tempos e culturas que se expressa em um conjunto de exigências fundamentais, como as exigências da verdade, do amor, da justiça e da beleza; e em evidências como, por exemplo, a evidência da própria existência humana ou a evidência da realidade como um todo e que produz em nós a percepção da existência do mistério. Senso religioso, portanto, em última instância coincide com a razão, é o ápice da razão. O senso religioso é, então, aquela faculdade que há em nós que nos permite que olhando para o real percebamos o mistério. SC: Ao escrever sobre o senso religioso Giussani propões algumas premissas. Você poderia falar de modo especial sobre a premissa do realismo? Alexandre Ferraro: Ao longo dos anos D. Giussani foi aperfeiçoando o conceito do senso religioso, especialmente a partir das aulas que ministrou na Univer- sidade do Sacro Cuore e que acabaram resultando na 1ª edição de O senso religioso nos anos 1980. No livro ele propõe um percurso epistemológico para que o leitor conheça e se aproprie do que é o senso religioso, onde ele introduz 3 premissas: o realismo; a razoabilidade, ou seja, o uso da razão e o sentimento. Ao introduzir o tema do realismo ele irá citar um célebre frase de Alexis Carrel: “Pouca observação e muito raciocínio conduzem ao erro. Muita observação e pouco raciocínio conduzem à verdade.” A partir do que diz Carrel, ele quer afirmar que devemos privilegiar a observação à dialética, ou seja, eu devo mais observar o objeto de meu conhecimento, no contexto do senso religioso, mas o método se aplica a qualquer outro objeto. Mas o que é o senso religioso sobre o qual nós devemos nos deter e observar? O senso religioso é uma experiência. A realidade se manifesta na experiência. É somente quando eu chego no nível da experiência que se manifesta a realidade. E Entrevista com o responsável nacional do movimento Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 14. muito mais lenta, pois vai de pessoa em pessoa, mas no fim é muito mais eficiente, pois a transformação é autêntica. SC: Podemos dizer que houve, em algum momento, uma coincidência entre Comunhão e Libertação e a Democracia Cristã? Alexandre Ferraro: Esta é uma questão muito importante, pois foi assim que o movimento foi taxado por décadas, sem, no entanto, nunca ter sido assim. Giussani sempre manteve uma saudável distância disso, mas como era um movimento numericamente expressivo e cheio de jovens competentes, os bispos pediam dos membros apoio à Democracia Cristã. Giussani não queria entrar na polêmica sobre o plebiscito do divórcio na Itália, mas por obediência aos bispos italianos acabou adentrando na polêmica em que a Igreja saiu perdedora. Então havia uma ligação por obediência de Giussani à hierarquia. Nos documentos, comunicados oficiais e pronunciamentos é possível perceber que ele nunca acreditou nessa união. Ele ensina que não se deveria acreditar nela. Mas na prática muitos, especialmente de esquerda, acreditam que o movimento coincidia com a Democracia Cristã ou era seu braço eclesial. SC: Como está a situação do Movimento após o pedido de reformas do Papa Francisco? Alexandre Ferraro: De fato há 3 anos o Papa Francisco pediu a todos os movimentos e expressões leigas algumas alterações que nasceram da avaliação dessa experiência nova que foram os movimentos. Todos os movimentos começaram a partir do século XX, e depois de algum tempo dessas experiências já é possível à Igreja fazer uma avaliação do status dessas organizações, sobretudo no aspecto do Direito Canônico. No fundo, é pensar como a Igreja hierárquica se relaciona com a dimensão carismática. Há todo um diálogo entre hierarquia e carisma. Isso é muito próprio da Igreja Católica, se pensarmos, por exemplo, em São Francisco de Assis, São Domingos, Santo Inácio… Há sempre um diálogo com esses carismas que vivem renovando periodicamente através do apelo da Igreja. A originalidade é que o século XX fez com que esse movimentos “carismáticos”, no sentido mais amplo da palavra, fossem de leigos, o que traz um certo ineditismo, inclusive no aspecto jurídico. Por isso o Papa pede algumas mudanças. Talvez a principal seja que os presidentes dos movimentos passam a ter um mandato de 5 anos com direito a somente uma renovação. No dia 15 de outubro do ano passado, portanto no início da comemoração do centenário de D. Giussani, o Papa Francisco, dirigindo-se aos membros do movimento presentes na Praça de São Pedro, disse que a Igreja e o Papa esperam mais de nós e recordou que ainda há muito do carisma a ser compreendido, 14 Giussani não é, em termos filosóficos, um realista, no sentido em que só há a realidade e o sujeito não conta. Não, para ele o conhecimento é um encontro misterioso do sujeito com a realidade, portanto um conjunto dessas duas coisas. SC: Gostaria que você aprofundasse um pouco mais sobre esse conceito de experiência. Alexandre Ferraro: Experiência não é simplesmente viver e passar por situações. Experiência implica em algo fora de mim, que em mim produz a compreensão do significado do vivido. Esses dois fatores são necessários para chegar no nível da experiência. SC: O movimento iniciou a partir da experiência de Giussani como professor secundarista e da Juventude Estudantil Católica. Como o movimento se distinguiu de uma ação exclusiva para estudantes e se tornou um movimento de espiritualidade abrangente? Alexandre Ferraro: Giussani nunca quis criar um movimento. Ele não teve uma intuição, como ocorreu com outros funadores. Giussani era o assistente da Ação Católica Estudantil, que era fortíssima naquele período na Itália. Em seu estilo de estar com os jovens estudantes, pela insistência na experiência e nesse diálogo aberto, já que ele era um homem de profundo diálogo ecumênico e cultural, muitos começaram a segui-lo. Basicamente até os anos 60 era fundamentalmente um grupo da Ação Católica da Diocese de Milão. No final dos anos 60 com a revolução cultural de 1968, muitos abandonaram esse grupo, no entanto uma parcela significativa que levava a sério o desejo de libertação que era a tônica daquele momento, perceberam que encontravam com experiência que faziam junto a D. Giussani uma resposta concreta a esses anseios de libertação. Essa libertação se encontrava pela comunhão vivida no seio da Igreja. Portanto é a partir da comunhão que nasce a libertação. A mesma exigência de libertação que o mundo vivia nos anos 1960 e percebe-se que é a comunhão cristã a melhor correspondência a esse anseio. Então, o que era um movimento de estudantes secundaristas começa a ficar muito mais presente no ambiente universitário, já com o nome de Comunhão e Libertação. Um fato interessante é que, já em 1974, o Cardeal Arns de São Paulo, em visita a Milão, contatou Giussani para levar o movimento à pastoral universitária de São Paulo e assim ele chega ao Brasil já nos anos 1970. É interessante notar que o movimento chega ao Brasil com aspecto de pastoral universitária. Já havia uma certa resistência em Giussani de exportar o método comunhão e libertação, pois ele, como padre diocesano, compreendia que as suas atividades deveriam estar restritas à Diocese de Milão. Com a eleição de João Paulo II houve uma grande sintonia com Giussani, até que em 1984, o Papa vai finalmente identificar Comunhão e Libertação como um carisma e faz o apelo a que o movimento se espelhasse pelo mundo. Então o Papa universaliza um carisma que na cabeça de Giussani era algo restrito ao contexto italiano. SC: Fale um pouco do cenário do movimento no Brasil. Alexandre Ferraro: O movimento no Brasil existe em mais de 40 cidades espalhadas de Norte a Sul, e estou como responsável há 3 meses. No Brasil, por motivos históricos, os nossos abraçaram a necessidade de demonstrar que a justiça social é mais bem alcançada a partir da comunhão eclesial do que pela mudança das estruturas. Há uma frase que sempre repetimos: “ Aquilo que muda as estruturas é o mesmo que muda o coração do homem”. Então, em última análise, nós servíamos no Brasil de antítese à teologia da libertação. Foi esse o movimento que eu conheci, em 1984, como calouro da faculdade de medicina. Portanto, havia de um lado a teologia da libertação, e de outro o Comunhão e Libertação procurando responder às mesma questão Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica de pontos de vista opostos. É interessante notar que, hoje no Brasil, sem exageros, centenas de milhares de pessoas são beneficiadas pela atuação social do movimento. Isso prova, então, que a intuição estava certa, de que o amor à Igreja, à sua tradição e à sua hierarquia, ou seja, de que aquilo que o muda as estruturas é o mesmo que muda o coração do homem que é o encontro com Jesus Cristo, isso chega ao nível da transformação social. É muito diferente, certamente, do processo revolucionário, é inclusive
  • 15. 15 recordando, portanto, que estamos apenas no início. A reforma estrutural que é pedida, nós compreendemos que seja um enorme chamado à corresponsabilidade, todos são chamados a ser corresponsáveis por esse carisma. Sendo assim, o estatuto está sendo revisado, nós estamos finalizando o novo estatuto que perecisa ser aprovado pelo Dicastério responsável em Roma. De nossa parte essa revisão deve estar pronta até o fim deste ano, mas o tempo total vai depender das aprovações da Cúria Romana. SC: No início do pontificado de Francisco se levantou que haveria uma relação de Bergoglio com o movimento na Argentina. Como de fato era essa relação? Alexandre Ferraro: O Papa conhecia muito bem o movimento, especialmente a partir dos anos 1990, portanto mais de 30 anos de relação. Ele tinha uma grande afinidade com o pensamento de Giussani, especialmente sobre o senso religioso, mas não só, também uma grande proximidade na forma de pensar a figura de Cristo, inclusive tendo prefaciado os dois livros. Bergoglio há mais de 30 anos possui uma afinidade com o movimento, não muitos mais do que isso. A proximidade de Francisco vem da leitura de Giussani, diferente dos últimos dois papas: João Paulo II e Bento XVI. Ratzinger e Giussani eram muito próximos, tanto que ele pediu que nossas Memores Domini cuidassem da sua casa, demonstrando assim a grande estima que nutria pelo movimento. Francisco nutre estima, mas essa estima nasce mais das leituras de Giussani, que como ele mesmo diz, o ajudaram e formaram. SC: Como é a sua experiência em relação ao apostolado na Universidade, sendo do movimento e ao mesmo tempo professor? Eu sou médico, mas me dedico apenas ao magistério, uma vez que sou professor de medicina da USP. Não tenho mais consultório, não faço clínica, sou apenas professor universitário. Diferente da minha época de estudante, onde havia um certo anticlericalismo, já que, de certa maneira, a Igreja ainda era uma presença social com a qual era “necessário” entrar em choque, o jovem universitário de hoje está a quilômetros de distância da experiência religiosa, tomado de um indiferentismo total. Isso, pela minha experiência, parece ter tornado muito mais fácil a nossa missão, a nossa pastoral, pois havia um preconceito que não há mais. Foi a geração dos pais desses estudantes que rejeitou a religião. Resultou que há um profundo desconhecimento da cultura religiosa, portanto vejo de forma positiva a situação. Há uma abertura, pois há todo um mundo a ser evangelizado do zero. A vida da comunidade cristã é tão bela que se torna humanamente atraente, pois é bom estar juntos, é belo estarmos juntos. Dos meus alunos que começam a frequentar o movimento 99% deles são ateus. Então, em geral, quem se atrai pelo carisma do movimento são pessoas que estão muito distantes da Igreja. Em todos os homens há um traço da Verdade de Cristo, então todos ou autores, todas as expressões artísticas nos interessam. Fazer um caminho, demonstrando que todo gênio artístico, independente até da sua posição ideológica, é profeta de Cristo, é entusiasmante para todos, mesmo para quem não tem fé, e acaba se sentindo muito atraído. Às vezes aqueles que já têm fé preferem ficar em grupos de estudo bíblico ou de “louvor”, enquanto os que não têm se mostram mais entusiasmados em fazer este percurso. A expressão comunitária do movimento também é outro fator fortemente atrativo. É uma experiência de pertença a uma comunidade que é Corpo de Cristo. O meu encontro com Cristo em carne e osso é a comunidade cristã. Isso tudo somado a nossas atividades culturais e festas é muito atraente aos jovens. Então, em síntese, seria: abertura cultural, capacidade de dialogar sem preconceitos com o mundo contemporâneo e a força comunitária, pois apostar tudo na força do indivíduo, como se o cristianismo fosse um heroísmo, para o homem ferido do século XXI, resultará em menos sucesso. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 16. na verdade, a mesma pessoa. Numa tentativa de burlar o que propõe a teoria de Freud, Jekyll elabora uma poção que o permite se transformar em outra pessoa, um alter ego, seu gêmeo maligno. Hyde é a corporificação do lado sombrio da personalidade de Jekyll, enfim libertado depois de tanto tempo recalcado no fundo de seu inconsciente. Seu objetivo era dar vazão às às pulsões reprimidas de seu duplicata, garantindo, ao mesmo tempo, que sua imagem social não fosse maculada. Dessa forma, Hyde funcionaria como uma espécie de álibi. Livro aberto O MÉDICO E O MONSTRO Robert Louis Stevenson médico e o monstro ou O estranho caso do dr. Jekyll e do sr. Hyde é uma novela gótica escrita por Robert Louis Stevenson e publicada em 1886. A obra ficou conhecida por tratar do tema do duplo ou sósia, revelando que todos nós temos um lado bom e um lado mau. Essas partes, apesar de opostas, seriam indissociáveis e complementares, compondo a mais genuína natureza humana. Todos nós temos características das quais não nos orgulhamos. Defeitos que buscamos esconder a todo custo para recebermos aprovação daqueles que admiramos. Assumimos, muitas vezes, uma espécie de máscara social, na intenção de performar algo que não somos. Freud, em seu livro “O mal-estar na civilização”, afirma que a vida civilizada pressupõe o recalque das pulsões e a submissão do princípio de prazer ao princípio da realidade. Isto é, o homem teria aberto mão de sua felicidade para viver em segurança na sociedade. E é sob a luz dessa dicotomia que se inicia essa história. Dr. Jekyll é um médico muito respeitado e conceituado pela sociedade britânica. No entanto, há algum tempo, ele vem despertando a suspeita de seu advogado e amigo pessoal, o sr. Utterson. Tudo começa quando Jekyll, em seu testamento, concede plenos poderes, em caso de morte ou desaparecimento, a um sujeito chamado Edward Hyde. O problema está na (má) fama de Hyde, um homem de comportamentos, no mínimo, estranhos, sempre envolvido em atos violentos e criminosos. O leitor embarca em uma inquietação junto a Utterson para descobrir: afinal, qual é a ligação entre dois sujeitos de personalidades tão distintas e tão incompatíveis? A palavra estranho não está no título à toa: a relação entre Jekyll e Hyde é estranha; a aparência e comportamento de Hyde são estranhos; a súbita mudança de hábitos de Jekyll é estranha. Entramos no campo do insólito, onde nada é como espera-se que seja. No lugar da ordem, o caos. No lugar da luz, as trevas. Há algo misterioso pairando no ar, circulando pelas ruas de Londres a noite. E nós seguimos no encalço do dr. Utterson, que encarna o detetive e sai numa verdadeira ca- ça às bruxas, ou melhor, ao monstro. 16 STEVENSON, R. L. O médico e o monstro: o estranho caso do dr. Jekyll e sr. Hyde. São Paulo: Penguin Companhia, 2021. Julia Rocha, 24 anos, formada em licenciatura em Letras Portugês- Literatura pela UFRJ. O O sr. Hyde era pálido e quase um anão, dava a impressão de ser aleijado, sem nenhuma deformidade identificá-vel, possuía um sorriso desagradável,comportara- se diante do advogado com um misto execrando de timidez e ousadia, e falava com uma voz rouca, sussurrante e pouco fluida; todos esses pontos depunham contra ele mas nem todos juntos podiam explicar a repugnância, o ódio e o medo que inspirava no sr. Utterson e que ele nunca sentira antes. (STEVENSON, 2022, p. 75) Se cada um, pensei, pudesse ocupar identidades distintas, a vida seria aliviada de tudo que é insuportável, o injusto seguiria seu caminho, livre das aspirações e do remorso de seu gêmeo mais digno; e o justo poderia percorrer com passos fortes e seguros seu caminho ascendente, praticando as boas ações que lhe dão prazer, não mais exposto à desgraça e à penitência causadas por obra daquele mal extrínseco. A maldição da humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem sido amarrados juntos — que no ventre angustiado da consciência aqueles gêmeos opostos lutem continuamente. (STEVENSON, 2022, p. 125-126). A história de Jekyll e Hyde nos mostra que o bem e o mal são intrínsecos à natureza humana, portanto, indissociáveis e complementares. O admirado médico sucumbiu graças a sua ganância, pois tornou-se obcecado pela própria persona, tal como Narciso se apaixonou pela imagem refletida no lago. Como em um episódio de Scooby-Doo, o monstro da história era, na verdade, humano. Um ser humano incapaz de assumir suas fraquezas e de sustentar quem realmente era. O mal que Hyde encarna não é externo a Jekyll, não vem como um componente da poção preparada e ingerida por ele. O monstro emerge do próprio Jekyll, é seu corpo que se transforma no monstro simiesco que resulta em Hyde. O monstro, o mal, não vem de fora, vem de dentro do círculo do bem representado por Jekyll. Bem e Mal não configuram um dualismo para Stevenson, mas uma dualidade, ambos provêm da mesma matéria-prima. Jekyll e Hyde não são dois seres, mas dois modos de ser. (GARCIA-ROZA, 2022, p. 14-15). O grande plot twist da narrativa acontece quando o mistério é finalmente revelado: Jekyll e Hyde são, A dinâmica entre aquilo que é recalcado e aquilo que é revelado é a base das relações entre indivíduo e sociedade. A natureza é repleta de dinamismos. Bom e mau. Moral e imoral. Amor e ódio. Vida e morte. O equilíbrio está no jogo de cintura que fazemos para andar na corda bamba. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 17. No mar No mar eu te encontrei, e te amei. Sobre as ondas eu amei. Os ventos conspiraram, ao nosso favor. A favor do nosso amor. Ondas fortes entre, as ondas flutuei. E no mar eu te amei. Amei no mar. Sobre as ondas amei. No mar eu amei. Sentir o mar. Amei no mar. E fui feliz ao ar. Ágοrα Praça de divulgação literária 17 Sofia Brunstein é membro da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Sul e autora de Arquivos Escritos (Editora Alcance, 2021). Meu Pranto O que dizer sobre você? Companheiro há tantos anos Vimos juntos o crescer dos ramos Os ramos, tantos ramos, do meu ser Meu pranto, sincero e sofrido Libertador e aguerrido Esclarecedor dos medos distantes (Inverossímeis guardados nas estantes) Eu achei que esse poema seria sobre você (Mas não é) Aqui, eu presto o meu agradecimento Por sempre estar disposto A todo e qualquer momento A descer pelo rosto E me permitir ver Que você não é um “amigo” Mas é um “querido conhecido” Que, por vezes, me fornece abrigo Depois de um tempo transcorrido (Acho que é assim, não é?) Gostaria de ter seu texto divulgado na Ágora? Confere lá no nosso site (https://scenacritica.my.canva.site/) as regras para submissão. Poemas, cronicas, contos, resenhas, todos tem espaço em nossa praça de divulgação literária. O ano de 2023 marca os 130 anos do nascimento do grande poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953), autor de obras como Poemas Negros, Tempo e eternidade e Invenção de Orfeu. Distribuição da Poesia Mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu. Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo para oferecer ao Senhor. Não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos. Estalajadeiros não me incomodeis. Bufarinheiros e banqueiros sei fabricar distâncias para vos recuar. A vida está malograda, creio nas mágicas de Deus. Os galos não cantam, a manhã não raiou. Vi os navios irem e voltarem. Vi os infelizes irem e voltarem. Vi homens obesos dentro do fogo. Vi ziguezagues na escuridão. Capitão-mor, onde é o Congo? Onde é a Ilha de São Brandão? Capitão-mor que noite escura! Uivam molossos na escuridão. Ó indesejáveis, qual o país, qual o país que desejais? Mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu. Só tenho poesia para vos dar. Abancai-vos, meus irmãos. In: Tempo e eternidade, 1935 O Sul Hoje a lua nasceu no lado contrário Não sei se ela estava errada Ou se finalmente eu acordei (E olhei) Para o lado certo. Guilherme Nélio F. Chapini, nascido no interior de Goiás, 30 anos, escreve, cria e acredita no poder da arte, do amor e da alteridade e age nesse sentido. Liécifran Borges Martins é compositora, escritora, poetisa e parodista. Técnica em Química pelo Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) Inspirando a nova geração... Cançonetista Enquanto a chuva não chega ao sertão, Sabiá canta triste - no quintal A dor que chora e clama pela vida, Verdadeira maestria lacrimal. O Sol que racha, queima e alumia, Estimula o lamento da graúna. Sofredoras e tristes lamúrias, Acrescenta aos lamentos de reúna. E quando o astro vai sumindo no horizonte, A carimbamba logo enceta seu penar. Dando à noite perfeita melodia Estimando a Lua que bela pousará. Gustavo Rodrigues de Moura, nascido em Teresina-PI, é professor, músico e escritor. Acadêmico de Letras-Português, vê na educação a chance de mudar o mundo. Out-dez 2023 | Scena Crítica
  • 18. Dignidade Humana e Boa Vontade presente texto é resultado de um Trabalho de con- clusão de Curso apresentado no ano de 2022 na Universidade Católica de Petrópolis – RJ, sendo orientado pelo professor Daniel Leite da mesma universidade. Este trabalho visava responder à pergunta: somente o homem com boa vontade (ou bom caráter) pode ser entendido como sendo digno? Essa reflexão foi feita utilizando a obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), de Immanuel Kant (1724 – 1804). Nesta obra, Kant revela a capacidade do ser humano em não ser um meio para se realizar alguma coisa, mas sim um fim em si mesmo. Esse conceito de dignidade está diretamente relacionado à questão do valor, por ser a dignidade algo que não tem preço e nem pode ser negociado ou trocado por outra coisa. Também buscamos analisar aqui a interpretação de Oliver Sensen do conceito kantiano de dignidade, segundo a qual a dignidade estaria atrelada ao bom caráter, ou ainda, que só seria digno aquele que possui bom caráter (ou boa vontade), algo que tornaria o conceito kantiano bastante controverso, não apenas no campo acadêmico, mas também no campo prático das ações humanas. O que seria ter uma boa vontade? Utilizar-se de uma vontade que não fosse boa não feriria a própria dignidade do ser? Os Conceitos de Boa Vontade e Dignidade Humana em Kant Kant evoca o conceito de boa vontade já na primeira frase da obra FMC: “Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”. Todos as demais coisas que poderiam ser tomadas como boas, chamados por ele, talentos do espírito, a saber, discernimento, capacidade de julgar, argúcia de espírito ou ainda as qualidades do temperamento, como coragem, decisão, constância de propósito são coisas boas e desejáveis, podem ser más e prejudiciais se a vontade não for boa, se o caráter não for bom. Para entender o conceito de Kant para a dignidade humana faz-se necessário explicar os imperativos hipotéticos e categóricos. Os imperativos hipotéticos mostram apenas a conexão entre um meio e um fim, pois, se é desejado o fim, também se deseja o meio para obtê- lo. O que é necessário, por exemplo, quando se deseja fazer um bolo. Para tal, é necessário que se aprenda a cozinhar e também como utilizar as receitas de modo que saia o resultado final, o bolo pretendido. Essa necessidade é só para aqueles que desejam fazer o bolo, não é algo universalizável. Uma pessoa pode viver sem aprender a fazer um bolo, não uma lei, portanto. Quanto ao imperativo categórico, este obriga, de maneira incondicionada, que o comando seja obedecido. Como por exemplo, salvar a vida. Na segunda parte da FMC, Kant oferece três formulações do princípio de moralidade. Essas formulações são formulações de um mesmo imperativo categórico. O primeiro modo, ou formulação, do imperativo categórico kantiano é a fórmula da lei universal: “Aja somente com aquela máxima através da qual você pode ao mesmo tempo querer que se transforme em lei universal”. Esta O formulação é o critério que deve ser utilizado para uma decisão moral. O segundo modo é a fórmula da humanidade como fim em si: “Aja de tal modo a tratar a humanidade, tanto em sua pessoa como na de outros, como um fim e nunca apenas como meio”. Pode-se constatar aqui a lei autoimposta pela razão, livre da sensibilidade. A ação deve ser realizada considerando a si mesmo como digno e aos demais também. O terceiro modo é a fórmula “a ideia da vontade de todo ser racional como uma vontade legisladora universal”. Este último princípio será substituído a se- guir pela formulação do reino dos fins, a saber, “que toda máxima originada de nossa legislação deve harmonizar em um reino de fins, com um reino da natureza”. A segunda e a terceira fórmulas aproximam a razão da intuição, de tal modo que o imperativo cate- górico possa ser mais facilmente aceito. Quando uma pessoa age bem com outra pessoa apenas para parecer ser boa peran- te as outras pessoas, ela está agindo sob a condição, imposta por uma inclinação, de que “é necessário agir bem pa- ra ser bem visto por outra pessoa”. Na visão kantiana, a pessoa que está sendo ajudada está sendo um meio para se obter algo, e não um fim. A pessoa que age dessa forma também faz de si mesma um meio e não um fim. Como, para o filósofo, a digni- dade possui valor em si, a dignidade do homem na visão kantiana mostra a ideia de que ele é um fim em si mes- mo, e não um meio. O homem não pode ser um mero meio para algo porque possui a faculdade de liber- dade e razão. Os conceitos kantianos de dignidade humana segundo Oliver Sensen Sensen aborda no terceiro capítulo de seu livro, Kant on Human Dignity, a fórmula kan- tiana da humanidade. Inicialmente ele apre- 18 Uma reflexão em Kant Irina Borsuchenko / Shutterstock.com Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 19. motivo é o dever, fica entendido que é o indivíduo que, em sua racionalidade, encontra o dever que move a sua boa ação. Portanto, os conceitos morais estão a priori na razão. E somente o dever é o motivo que faz com que a ação seja boa. Caso a finalidade seja o motivo da ação, esta torna-se egoísta. Ora, a partir do momento que o indivíduo age contra o dever, não pratica a boa ação, está cometendo o equívoco contra a sua própria razão. Tomando esse assunto para a discussão, toma-se o exemplo: se o indivíduo não se eleva ao patamar de sujeito digno por não ter boa vontade, essa ação pode ser universalizada? Não faria sentido na própria dinâmica que Kant propõe. Não teria fundamento com o que ele expõe em seu texto. Seria uma contradição ao que ele escreve. Todo e qualquer ser humano pode cair em contradição com a sua razão. Nessa perspectiva, Tonetto atesta que na Doutrina da Virtude, Kant também escreve que não se deve negar o respeito ao homem vicioso e nem negar o seu valor moral, pois “de acordo com esta hipótese ele jamais poderia vir a ser corrigido, o que é incompatível com a ideia de um homem que, enquanto tal (como ser moral) não pode nunca perder a disposição para o bem”. Portanto, isso vai contra a ideia de Sensen sobre só ter dignidade aquele que possui boa vontade. Até mesmo o indivíduo com comportamento vicioso deve ser respeitado. Ele também possui dignidade e não pode ser tratado como mero meio. A ética kantiana possui entre os seus deveres o respeito incondicional à dignidade do outro, não colocando como limitador a boa vontade das suas ações. Conclusões Pode-se concluir que a dignidade em Kant não possui como limitante a boa vontade, ou o bom caráter. Como o próprio filósofo afirma, até o homem com os piores vícios devem ser respeitados. Posicionamo-nos assim contra a ideia de Sensen de que a boa vontade determina se o indivíduo é ou não digno. Entende-se assim que tratar a humanidade como fim em si mesmo com o devido foco na dignidade tanto representa deveres quanto direitos para o indivíduo. O respeito pelas pessoas é um ato horizontal, e não vertical. Não há elevação daquele que é mais virtuoso em relação ao que é menos virtuoso. O imperativo categórico kantiano, que norteia o princípio do respeito pelos outros, é fundamental pois dá luz a uma dignidade incondicional e intrínseca que pertence a cada indivíduo e que conecta cada ser humano um com o outro em uma sociedade onde todos devem respeitar-se mutuamente. O estudo sobre o pensamento de Kant acerca da dignidade é muito importante ainda hoje, principalmente no que diz respeito aos direitos humanos. E ao afirmar que até os menos virtuosos devem ser respeitados, considerando a sociedade atual que ainda nega tantos direitos a tantas pessoas que são excluídas e não possuem seus direitos respeitados, pode-se constatar que o ato de tomar o outro como fim em si mesmo e não como um meio acaba por trazer uma luz filosófica ao tema. apresenta uma interpretação de passagens textuais que levam ao conceito da fórmula da humanidade. Já na segunda seção aponta que a fórmula é uma “ordem direta da razão”, não sendo justificada através da referência a um valor. Na seção seguinte aborda a aplicação dessa fórmula e então discute, na última seção, a principal objeção contra a fórmula da humanidade, segundo a qual ela seria vazia e destituída e conteúdo. Robinson dos Santos, em seu texto Sobre autonomia e dignidade como base para justificação dos direitos humanos, mostra que o problema fundamental que motivou o trabalho de Sensen foi o de entender se os seres humanos são respeitados por terem dignidade ou se eles têm dignidade por serem respeitados. Caso a primeira afirmação fosse considerada, então está se tratando da interpretação tradicional do conceito de dignidade. A dignidade é o fundamento do respeito. Já tomando a segunda possibilidade tem-se uma compreensão totalmente oposta à primeira, pela qual a dignidade decorre do mandamento do respeito que tem a sua origem na razão. 19 Para Sensen, o ser humano deve respeitar o outro pois isto lhe é ordenado pelo imperativo categórico presente na fórmula da humanidade. Os direitos não são fundados no valor dos seres humanos. Como na FMC Kant diz que o valor intrínseco é “elevado sobre todo preço”, “não admite um equivalente” e “não tem um valor meramente relativo, mas um valor incondicional e incomparável”, os seres humanos têm dignidade, mas não como valor absoluto ou intrínseco, segundo a visão de Sensen, já que para ele não é a humanidade que possui um valor absoluto, mas sim a moralidade. Um indivíduo não deve respeitar os demais porque eles possuem dignidade, mas a relação é oposta, eles possuem dignidade e valor porque devem ser respeitados. Uma análise sobre dignidade e boa vontade Se para Kant a ação ser boa depende de que ela não seja praticada sem qualquer finalidade específica, com a razão utilizando-se de um motivo a priori que está nela mesma de tal modo que dirija à vontade e pratique a ação, e esse Tiago Cavalcante é graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Petrópolis – RJ, onde atualmente é graduando em Teologia. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 20. aparição e disseminação do Islã em África se dá a partir do século VII na Etiópia e progressivamente para o resto do continente africano no século se- seguinte seguindo as rotas comerciais seculares, sobretudo no caso da África Ocidental. Por muito tempo teve-se o entendimento de que a religião ao chegar ao continente africano, principalmente, na África subsaariana, teria tomado características diferenciadas do seu “original”, o que foi chamado por estudiosos franceses (sobretudo Vincent Monteil no seu livro L´Islam Noir) como Islam Noir, ou Islã Negro. Contudo, é importante salientar que desde o seus surgimento, as práticas do Islã foram sendo modelas segundo os contextos linguísticos e culturais. Esse tipo de “classificação” é claramente resultado do imperialismo francês, como aponta Thiago Henrique Mota em seu artigo Questões sobre o processo de islamização na Senegâmbia (1570-1625). Neste mesmo texto, Mota pontua as problemáticas acerca desse conceito esclarecendo que o Islã encontrado na África negra é tão legítimo quanto o Islã árabe. Porém, é necessário relativizar a fala do autor na medida em que para o Árabe, o africano era e ainda continua sendo um muçulmano inferior. Á prova disso é a lei muçulmana que sentencia que não se pode escravizar outro muçulmano, mas Árabes e nem mesmo os “berberes” arabizados respeitaram isso. A captura e a escravização de Ahmad Bhabha, por exemplo, levado para o Marrocos, um dos maiores eruditos do império do Mali, é bem ilustrativo. O autor afirma a permanência dos preceitos islâmicos originais em África ao observar que a prática islâmica africana mantinha a doutrina dos chamados Cinco Pilares, que seriam a shahadah ou profissão de fé, as cinco salats ou orações diárias, o zakat que concerne à doação de dinheiro e outros bens para necessitados, o jejum no mês de Ramadan e o hajj, que é a peregrinação a Meca que deve ser feita pelo menos uma vez na vida por todo muçulmano que tiver condições financeiras e de saúde para fazê-lo. Além disso, constatou também a existência de escolas corânicas, universidades (Al-Azhar no Egito no A século X, Zitouna em Tunis, Al-Quaraouiyine em Fés, Djenné e Tombuctu , Pirés...) e mesquitas que tinham papel fundamental no processo de islamização e de prática do Islã, não só na região da Senegâmbia, objeto de Mota, mas também em outras partes do continente. (MOTA 2014:341). É importante salientar que as instituições de ensino formaram excelentes eruditos que circulavam entre a África - o mundo ibérico e o Oriente. A adesão do Islã no continente africano teve vieses diversos, justamente por se engendrar na pluralidade de sociedades’ existentes, mas boa parte da literatura sobre o assunto aponta uma inserção bastante pacífica, principalmente anterior ao período das jihads, guerras santas islâmicas, começarem a tomar espaço na neste espaço da África. Thiago H. Mota elucida que até o século XVII, anterior à chegada de religiosos guerreiros, os conhecimentos islâmicos sofriam uma “releitura” para adequar-se aos contextos culturais e políticos locais, garantindo um dinamismo e particularidade do Islã subsaariano, porém sem perder sua essência. (MOTA 2014:351-352) Esse engendramento entre Islã e cultura tradicional desde África tem um grande peso e fará diferença na hora de analisarmos o tema do trabalho aqui proposto. Contrariamente às afirmações de Mota, é importante destacar que houve forte resistência à nova religião. No contexto da África do Norte, segundo Sylvia Serbin em seu livro Les reines d´Afrique et les héroines de la diaspora noire, as mobilizações foram encabeçadas por Kahina – uma rainha berbere – resistiram militarmente por mais de um século contra a penetração do islã. Durante o período de tráfico Atlântico, foram transplantados africanos de diversas sociedades, culturais, classes sociais, profissionais de ambos os sexos e de diversas regiões. Com isso, também vieram escravizados que eram muçulmanos, enviados principalmente às regiões da Bahia, Rio de Janeiro e de Pernambuco [1]. Essas pessoas foram chamadas de malês no Brasil do século XIX. Muitos deles foram vendidos como escravos por vencedores de conflitos locais ainda no continente africano, principalmente após a jihad feita pelo sheikh [2] 20 Entre axé e salaam A influência de práticas islâmicas no Candomblé do nordeste brasileiro fulani Usman Dan Fodio (este é um dos seus nomes registrados), contra os hauçás. Esses africanos escravizados e vendidos pós esses conflitos tinham características muito particulares. Embora a escravidão não fizesse distinção entre pobres e ricos, letrados ou não, de prestígio ou não; os malês tinham uma formação intelectual que muitas vezes era superior a dos seus próprios senhores. Eram bilíngues, sabiam escrever e até mesmo ensinar o árabe. Por conta disso, sempre faziam parte dos grupos de resistência por não aceitarem tal condição. Foram eles que pensaram e articularam com outros não muçulmanos o grande levante de escravizados da Bahia conhecido como Revolta dos Malês. É interessante pensar a perspectiva de sociabilização de escravizados no nordeste brasileiro através dessa revolta. Sua configuração mostra de forma clara que embora houvessem diferenças pessoais entre todos os envolvidos, o senso de coletividade e necessidade de sobrevi- Gravura do séc. XVIII representando muçulmanos na região do Senegal. http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693 Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 21. É importante ressaltar que a troca religiosa e cultural realizada pelo Islã e o Candomblé dos escravizados em nada deslegitima ambas as religiões; pelo contrário, mostra como o processo de construção e afirmação de sua estrutura em terras brasileiras tem marcas do que foi a escravidão e como a mesma propiciou que cada uma fosse o que é até os dias de hoje. O autor Waldemar Valente, citado no artigo de Claudia Lima e outros, estuda a questão Islã x Candomblé muito bem. Ele, por exemplo, estudou possíveis ligações entre ditos “amuletos” islâmicos, usados desde África, que eram compostos por um cordão com um pingente que se assemelhava a um livreto e que continha versículos do Alcorão com o uso de patuás bantos que guardavam unha e cabelo para fins de proteção e cura. Valente (1957:57-58) citado por Lima (2009:292) destaca também que em diversos xangôs pernambucanos que tinham forte tradição gêge-nago, foi possível observar uma prática corânica muito comum que proíbe o uso de bebidas alcóolicas. A autora Claudia Lima apresenta outros elementos presentes na prática do Candomblé pernambucano que lembram exercícios de fé islâmicos. Lima cita que uma dona de casa [de santo] de braços cruzados faz uma reverência dizendo a frase Barica da Subá môtumba, que significa “meus respeitos”. (LIMA 2009:297). No Islã durante a salat os muçulmanos sunitas ficam com as mãos sobre o peito quando estão de pé, em uma postura de respeito a Allah. O costume de tocar o chão e passar as mãos no rosto no rito de Candomblé nagô pernambucano também se assemelha muito a prática da salat muçulmana que pratica ambos durante a reza. Prostra-se à Allah ao mesmo tempo em que se diz a expressão Allahu Akbar [3] em reconhecimento a grandeza de Deus e passar as mãos no rosto para os muçulmanos e depositar as bênçãos que Allah enviou aos fiéis durante a oração nas suas vidas. Lima também diz que: vência faziam com que os mesmos se ajudassem entre si, principalmente em momentos de luta pela liberdade. Alberto da Costa e Silva em seu texto Sobre a rebelião de 1835 na Bahia cita João José Reis que diz: “Se quisermos definir resumidamente o movimento de 1835, podemos dizer que a conspiração foi malê e o levante foi africano.” (grifo feito por Reis) (SILVA 2002:10). Após essa breve elucidação acerca do caminho dos negros muçulmanos que saíram de África e chegaram ao nosso nordeste, pensemos como a presença dos mesmos nesses espaços, que já tinham considerada disseminação de cultura religiosa africana tradicional, foi capaz de influenciar as práticas do Candomblé. Contudo a apreensão da flexibilidade e da fluidez nos trânsitos dos espaços religiosos nos obrigam a tomar em conta a existência desta facilidade na própria África como também os efeitos das extremas brutalidades coloniais em novas terras que forçavam fortes intercâmbios culturais para que esses escravizados continuassem vivos e ao mesmo tempo fortalecia os laços entre os infelizes. Nos trabalhos acadêmicos analisados para este trabalho, nos quais friso o baixo número de produções feitas até o presente momento, apontando um campo fértil ainda a ser explorado, é observado que é praticamente impossível precisar o momento em que essa dita influência começou a acontecer entre ambos os objetos. A longa e terrível viagem abordo dos navios negreiros era um dos primeiros passos na tentativa de desumanização do africano escravizado. Ainda dentro desse ambiente hostil, as pessoas tentavam criar redes de associação, comunicação e de sobrevivência. Trocas multilaterais que permeavam todos os âmbitos da vida, inclusive suas crenças. Retomando ao que foi falando anteriormente sobre a islamização do continente africano, podemos observar que o convívio entre Islã e cultura tradicional se deu de muitos séculos, portanto, anterior ao período do tráfico Atlântico. Desta forma, as primeiras trocas entre essas duas instâncias se iniciaram antes mesmo dessa longa viagem até o outro lado do oceano. Existem diversos relatos, de clérigos da igreja, periódicos, autores do período e relatos orais que apontam para resquícios de prática islâmica que parecem ter adentrado ao exercício da fé de Candomblé. No artigo, Negros Islâmicos no Brasil: interpretação do Islã no Brasil de Lidice Meyer Pinto Ribeiro a autora cita o estudioso Arthur Ramos, que acerca da interação entre o Islã e religiões tradicionais diz: “O islamismo dos negros malês do Brasil sempre esteve eivado das práticas religiosas africanas.” (RIBEIRO 2011:150) E Ribeiro ainda reafirma que tal fenômeno havia se iniciado ainda em África, como apontado anteriormente. Em outro artigo igualmente interessante, da autora Claudia Maria de Assis Rocha Lima, de título Heranças Muçulmanas no nagô de Pernambuco: construindo mitos fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Lima inicia seu texto com elucidações um pouco problemáticas envolvendo a questão do conceito de Islã Negro. Para ela “o islamismo negro é uma religião sincrética” (LIMA 2009:285), porém, como já foi aqui elucidado, essa afirmação reforça a ideia imperialista francesa de que o Islã da África subsaariana é inferior, como se o praticado nessas regiões fosse apenas um islamismo completamente afastado dos seus preceitos originais. E, como já foi apresentado, no trabalho de Thiago Henrique Mota, pode- se ver que a situação é bastante diferente. A perpetuação desse tipo de discurso, de fato, gera ecos de desvalorização que acabam for favorecer manutenções de imaginários sociais que o utiliza para perpetuar uma brutalidade. Alain Pascal Kaly elucida isso claramente quando diz: 21 http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1693 O silêncio passou a contribuir bastante na periferização e invisibilização das contribuições da civilização árabo- muçulmana na formação da identidade nacional; também contribuiu ideologicamente ao legitimar ndiretamente as diversas formas de racismo e preconceito que assolavam e ainda assolam a esmagadora maioria da população brasileira descendente de africanos por fazer acreditar que o negro africano foi o único a ser escravizado ao longo da história moderna da humanidade. (KALY2016:130) Outras evidências nos fazem supor que a arquitetura dos terreiros, que surgiram no Brasil tem uma ligação com a disposição das mesquitas muçulmanas. Nas mesquitas, homens e mulheres retiram os sapatos e dirigem-se a áreas separadas, onde tapetes para orações são estendidos. Na maioria dos terreiros, estão estabelecidos os locais dos homens e das mulheres, tanto para assistência, como para os integrantes do culto. (LIMA 2009:299) O babalorixá Eurico Ramos em seu livro Revendo o Candomblé: respondendo perguntas mais frequentes sobre a religião aponta diversas possibilidades de assimilações islâmicas dentro dos terreiros. Ramos fala primeiramente sobre o xirê, palavra em ioruba que significa roda em que são evocados os orixás, é o ápice Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 22. [1] É muito importante destacar que os portugueses, os espanhóis e também parte dos franceses tinham sido colonizados pelos africanos islamizados por quase nove séculos. Vide os trabalhos de Alain Pascal Kaly (2016) Mamadou Diouf, Tata Cissé sobre esta presença. Foi esta presença secular que vai lançar algumas das bases das conquistas do mundo atlântico. [2] Título dado ao líder religioso no Islã. [3] Que significa “Deus é grande”. [4] Considera-se sunnah os meios que o profeta Muhammed escolheu para aplicar a palavra de Deus revelada através do Alcorão. A palavra em árabe significa “caminho”, aquele no qual todo muçulmano deve seguir. Bibliografia LIMA, Claudia Maria de Assis Rocha. Heranças muçulmanas no nagô de Pernambuco: construindo mitos fundadores da religião de matriz africana no Brasil. Revista Brasileira de História das Religiões. Ano I, nº 3, jan. 2009 – Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas. KALY, Alain Pascal. A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira: a readequação dos mapas coloniais. Repocs, v.13, nº 26, jul/dez 2016. MONTEIL, Vicent. L’Islam Noir. Revue de l'histoire des religions, 1965, 168-2, pp. 225-226. MOTA, Thiago Henrique. Questões sobre o processo de islamização na Senegâmbia (1570-1625). Revista de Ciências Humanas. Viçosa: v. 14, nº 2, p. 339- 335, jan/dez 2014. RAMOS, Eurico. Revendo o Candomblé: respondendo as perguntas mais frequentes sobre a religião. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros Islâmicos no Brasil. Revista USP. São Paulo: nº 91, p. 139-152, setembro/novembro 2011. SERBIN, Sylvia. Reines d'Afrique et héroïnes de la diaspora noire. Sepia Eds. 2004. SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a rebelião de 1835 na Bahia. Revista Brasileira. n. 31, v. 8, 2002. p. 9-34. litúrgico em uma casa de Candomblé. É no xirê que é feita a roda das baianas. Essas baianas giram no sentido anti- horário, em volta da chamada cumeeira, que é o mesma direção em que gira o planeta, representando assim o processo evolutivo da humanidade e da Terra através das histórias dos Orixás. Os muçulmanos também fazem esse giro em torno de um pilar central no mesmo sentido, para Ramos a diferença é que todo esse rito no Islã é feito com muito sentimento e dor, enquanto no Candomblé é feito com muita alegria e festa. (RAMOS 2011:s/p). É comum fazerem associações da palavra Oxalá com a figura islâmica de Deus, geralmente chamada de Allah ou Alá. Porém, a grafia dessa palavra tem dois significados. O primeiro é árabe, oriundo da expressão InshAllah que significa “se Deus quiser” e o segundo vem da palavra ioruba Òrìsànlá, nome de um orixá, a quem também chamam de Obatalá. Ramos aponta outras similaridades, como o do opaxorô, um objetivo em forma de cajado estritamente ligada a vestimenta do orixá Oxalá e que representa a criação do mundo. O babalorixá diz que: “os símbolos do opaxorô são incrivelmente similares aos encontrados nas mesquitas islâmicas, devido aos vestígios do Islã que permaneceram na nossa religião até os dias de hoje.” (RAMOS 2009:s/p) e acrescenta que essa influência se apresenta em diversos outros detalhes como nos torsos ou ojás nas cabeças, que seriam semelhantes aos turbantes islâmicos, que embora não sejam encarados como regra por homens muçulma- nos é considerado uma sunnah [4]. Também nos panos da costa, que lembram o uso do filá muçulmano que muitas vezes também era utilizado com um pano joga- do pelo pescoço e costas, a cor branca ser associada a cor de Oxalá, o fato da sexta-feira ser um dia sagrado assim como no Islã, etc. Dentro das divindades do Candomblé tam- bém é possível identificar uma falange de um orixá que está diretamente ligado com a figura do muçulmano negro, que é Ogum Malê ou Ogum Malei. Essa divinda- de é a sexta falange do orixá Ogum, que é um orixá guerreiro. Pouco conhecido, e por isso faz com que se tenham poucas representações do mesmo, Ogum Malê é tido como a figura de um guerreiro negro, fortemente armado e com roupas mouras, ou seja, com vestimentas típicas dos povos do norte da África que praticavam o Islã. São muitas as possibilidades e objetos de análise que este tema apresenta. Embora ainda pouco estudadas no efervescente meio de pesquisas acadêmicas em História do Brasil, as conexões entre Islã e Candomblé são riquíssimas e se apresentam prontas para serem exploradas. Os autores que o fazem tentam reconstruir redes de interação que por vezes parecem sutis, mas que quanto mais são pesquisadas, mais saltam aos olhos do pesquisador. Os estudos sobre escravidão são plurais e merecem maior aprofundamento sobre esse tema. Através dos apontamentos feitos nesse trabalho através da leitura dos textos, é possível concluir que existiu sim uma troca religiosa considerável entre as práticas islâmicas e as de Candomblé. Hoje, ambas as religiões estabelecidas em território nacional, cada uma com seus fiéis, parece que tal associação parece absurda ou até mesmo apenas especulativa. Porém, entender que o período escravocrata do Brasil separou negros de suas casas em África, que precisaram por sua vez fazer novas casas e famílias aqui, é perceber que todo esse processo não poderia excluir as práticas religiosas que se esbarravam no dia-a-dia que geraram assimilações naturais de ambas as partes gerando um cenário ainda mais plural do que nós já conhecemos. 22 Barbara Lima é historiadora e graduanda em Letras/Inglês. De interesses múltiplos, busca na multipotencialidade o equilíbrio entre felicidade e ofício. Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica
  • 23. CADERNO CINEMA 23 Cinema-movimento o presente artigo, gostaria de iniciar uma jornada mais reflexiva a cerca do estudo da filosofia do cinema, principalmente a partir das obras de Deleuze e Bergson, onde perceberemos que há muito que se entrelaça entre essa modalidade de arte e a mais antiga das formas de pensar. Na relativamente recente história do cinema, não tardou em haver autores que teorizassem sobre o cinematógrafo já na proximidade do seu surgimento. É interessante notar que ao teorizar sobre algo que parece tão contemporâneo, nos deparamos com dilemas e questões que remontam à temas de grande antiguidade na filosofia. Um dos pioneiros no estudo do cinema foi o francês Henri Bergson (1859-1941) que ao postular suas teses sobre o movimento criou o material necessário para que outro filósofo francês, Gilles Deleuze, pudesse postular o conceito de imagem-movimento. É interessante notar que em Deleuze há uma distinção clara de que filosofia e cinema não se confundem. A filosofia para ele é a atividade que lida com os conceitos, enquanto que o cinema lida com a imagem e os símbolos. Deleuze começa a tratar sobre a temática do movimento, a partir de 3 teses que ele toma da filosofia antiga. A primeira trata do movimento e o instante, para isso temos de retornar aos paradoxos de Zenão, que datam do século V a.c. . Esse paradoxo se afirma de muitos modos, em diversas alegorias, utilizarei aqui a mais clássica e a que também penso deixar mais clara a questão: Na suposição de uma corrida entre Aquiles e uma tartaruga, Aquiles que naturalmente é muito mais veloz que a tartaruga a concede uma determinada vantagem para que ela percorra um determinado espaço antes da largada e depois de atingida essa vantagem, Aquiles inicia sua trajetória. O paradoxo está justamente no fato de que Aquiles, ao menos em tese, não conseguirá atingir a tartaruga, pois quando ele atingir o ponto em que ela estava, a tartaruga já terá avançado mais um pouco, mais um pouco e mais um pouco e assim sucessivamente, de modo que Aquiles nunca conseguirá alcançar sua adversária. Bergson, em sua obra “Matéria e memória”, dirá que o problema deste paradoxo está justamente nas premissas, pois não se deve deduzir o movimento do espaço/distância, não se DE oferece imediatamente uma imagem-movimento.” A questão que nos deparamos, então, é que na verdade o cinema simplesmente recria uma ilusão que já está presente em nosso modo de perceber o movimento no mundo, como se houvesse uma espécie de cinematógrafo interno que nos faz perceber esta ilusão do movimento, com tudo Deleuze irá responder negativamente a esta impressão, pois a grande diferença entre as duas modalidades de percepção é que na natural não há correções no aparelho visual a posteriori, enquanto que no cinematógrafo há. Apesar de o cinema utilizar-se de meios artificiais para obter a ilusão do movimento, a sua resultante é natural, pois aquilo que o expectador experimenta pela visão é o movimento real através da sucessão dos fotogramas, que no início do cinema eram 18/segundo e atualmente são 24/segundo. Bergson que obteve destaque em sua filosofia por substituir o conceito de eternidade pelo conceito de “novo”, irá aplicar isso também ao cinema. Begson acreditava que o que é novo não pode aparecer nos seus primórdios, pois tende a ser rejeitado e portanto aparecem inicialmente apenas com os caracteres em comum com o que já há. Isto aplica-se também ao cinema, quando pensamos que no seu início o cinema possui apenas a tomada fixa, o tornando imóvel, e em sua evolução o cinema adquiri formalmente o movimento quando adota a câmera móvel. É interessante notar também que do ponto de vista mais empírico, dos criadores do cinematógrafo, já havia uma tentativa de recriar a partir do cinema a percepção natural do movimento. Não é atoa que nas primeiras projeções, os irmãos Lumière, tentavam impactar o público, de modo a despertar nele o impacto da visão. É importante também acrescentar que a ideia da imagem- movimento é anterior ao ingresso do cinema na filosofia de Bergson, este conceito é cunhado, em 1896, em sua obra “Matéria e memória”, enquanto que só tratará do cinema, em 1907, em sua “A evolução criadora”, onde irá aplicar com mais perfeição a ideia à coisa. Iniciamos assim o percurso sobre a filosofia da imagem- movimento de Bergson/Deleuze, que poderemos aprofundar nos artigos que serão subsequentes. Neste apresentamos a primeira das três teses sobre o movimento. DELEUZE, Gilles. A imagem movimento. São Paulo: Editora 34, 2018. BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Unesp, 2010 N Outubro-dezembro 2023 | Scena Crítica O filófofo Giles Deleuze (1925-1995) deve utilizar as posições estáticas como princípio, mas devo pensar no ato de mover-se, um mover que não está no espaço, mas sim no tempo. O cinema nos oferece, ao mesmo tempo em que nos dá a imagem, a impressão do movimento. Nisto Deleuze reconhece o acerto da fenomenologia, pois esta conside- rava que a percepção natural do movimento se difere da per- cepção cinematográfica, justa- mente porque no cinema imagem soma-se ao movi- mento, criando então a imagem-movimento. Nas palavras de Deleuze: “Em suma, o cimema não nos oferece uma ima- gem à qual acrescenta- ria movimento, ele nos O filófofo Henri Bergson (1859-1941) Com especialização em roteiro pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Filipe Machado é bacharel em filosofia pela PUC-Rio e licenciado em História. Atualmente suas pesquisas estão centradas nos autores que compuseram a cena intelectual católica do século XX com especial ênfase em Gustavo Corção.