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O MANIFESTO ANTIESCLAVAGISTA
   DOS ÚLTIMOS CAPUCHINHOS ESPANHÓIS DE BISSAU (1686)


Como adiante se indicará mais em pormenor, o pe. J. B. Labat, na sua muito
conhecida obra relativa à África ocidental, utilizou largamente o texto de La
Courbe, mas encabeçou as suas viagens em A. Brüe. No respeitante a Bissau,
serviu-se da relação de La Courbe e também de outra respeitante a viagem
que efectivamente lá fez A. Brüe em 1700. Entre o mais, fala dos missionários
lá existentes, e é fácil concluir, pelo cotejo com o que nos chegou da autoria de
La Courbe, que nessa parte se utilizou, sobretudo, do texto deste, embora
reporte os acontecimentos a 1700. Diz Labat (I) que os missionários eram
então três e que
    Ils prêchoient la foi jusque dans les navires anglais, qui avoient traité
des captifs, et par le moyen de jeunes negres à qui ils avaient enseigné la
langue portugaise, et qui leur servaient d'interpretes et de catechistes, ils
faisaient entendre les vérités de notre religion à ces pauvres esclaves, et
les baptisaient. Ils allaient prêcher de tapade en tapade, et rassemblaient
deux ou trois fois le jour à l'Eglise ceux qu'on pouvait regarder comme
des Catecumenes, et leur apprenaient leur Catechisme et leurs prieres...
Ils firent un manifeste pour justifier leur conduite, s'aviserent hors de
propos de condamner tous les chrétiens qui retenaient d'autres chrétiens,
quoique noirs, dans l'esclavage; ils condamnerent encore ceux qui les
vendaient aux Anglais ou Hollandais, chez lesquels il était sûr qu'on ne
leur parlerait jamais de la foi, et encore moins de la liberté, quoiqu'ils
eussent été baptisés; ils firent des discours dans lesquels il taxaient leurs
compatriotes d'une maniere un peu trop marquée, d'empêcher par leurs
déreglements les progres de la foi, et ils envoyerent ce manifeste en
Espagne et en Portugal, et le porterent avec eux à la Martinique, ou ils
furent obligés de passer dans un vaisseau de la Compagnie de France,
pour de là trouver une occasion de repasser en Portugal; parce que ce
manifeste avait soulevé contre eux tous leurs compatriotes des Bissaux
et des environs à qui une pareille morale ne convenait point du tout. Elle
ne fut pas plus goutée à la Martinique, les Puissances les prierent de
garder leur manifeste, et de ne rien remuer sur cet article.
    O historiador Berlioux, no seu conhecido livro sobre André Brüe, ocupa-se
destas informações de Labat para pôr em relevo o alto significado moral da
atitude dos missionários de Bissau, que ele julga serem portugueses, como se
deduz da redacção de Labat (II). Através de A. Arcin, esta opinião foi retomada
por João Barreto, que escreve que «os frades de Bissau, sob a orientação do
bispo D. Vitoriano da Costa [...] foram os primeiros a reagir contra a
escravatura convertida em um puro negócio de carne humana» (III).
    Não conhecemos nenhum documento português que se identifique com o
manifesto referido por Labat, mas, em contrapartida, sabemos de outro, datado
de 14 de Abril de 1686, em que os três últimos capuchinhos espanhóis que
assistiram em Bissau analisam miudamente a injustiça da maior parte dos
cativeiros que se faziam na Guiné. Devem ser estes capuchinhos que La
Courbe encontrou em Bissau (de onde terão partido alguns meses depois) e
que diz terem-lhe dado uma cópia de um manifesto em que punham a claro
que quase todos os escravos eram cativados injustamente. Foi Labat quem
tudo baralhou, chamando-lhes portugueses e relacionando-os com a viagem de
André Brüe de 1700. Dê-se o seu a seu dono, não fazendo de D. Fr. Vitoriano
Portuense uma espécie de patrono dos autores daquele manifesto, até porque
ainda não fora sagrado bispo nem viera para Cabo Verde quando tal
documento foi redigido.
    Labat, em parte (que não transcrevemos) daquela mesma passagem,
revela que os missionários estavam em conflito com os «cristãos» e os Papéis,
por se recusarem a sepultar na igreja maus cristãos. Ora o episódio é
amplamente relatado pelos próprios missionários espanhóis em carta de 1 de
Junho de 1686 endereçada de Bissau a D. Pedro II (IV); este facto confirma o
que dizemos quanto à autoria e data do manifesto.
    O nosso amigo Pe. Francisco Leite de Faria, na notícia que deu da edição
moderna da crónica do Pe. Anguiano (V), mostrou já amplamente, por outras
formas, que o manifesto referido por Labat fora redigido pelos últimos três
frades espanhóis que estiveram em Bissau. A análise do «Informe y relación»
de 14 de Abril de 1686 que agora publicamos em F, ao que julgamos pela
primeira vez, vem confirmar inteiramente os seus pontos de vista.
    Antes de nos debruçarmos sobre esse importante documento, é
conveniente, para sua melhor apreciação, recapitular o que até à época haviam
escrito vários autores espanhóis e portugueses acerca da intrincada questão
da legitimidade do cativeiro dos escravos oriundos da Guiné.
    Num livro publicado em 1555, o Pe. Fernando Oliveira critica violentamente
a escravatura e ataca os traficantes de escravos em termos muito duros:
    E não é nesta parte boa escusa dizer que eles se vendem uns a outros,
porque não deixa de ter culpa quem compra o mal vendido e as leis
humanas desta terra e doutras o condenam, porque se não houvesse
compradores não haveria mais vendedores, nem os ladrões furtariam
para vender. Assim que nós lhe damos ocasião para se enganarem uns a
outros e se roubarem, e forçarem, e venderem, pois os vamos comprar, o
que não fariam se lá não fôssemos a isso, nem jamais o fizeram senão
depois que os nós a isso induzimos. Nós fomos os inventores de tão mau
trato, nunca usado nem ouvido entre humanos (VI). Não se achará nem
razão humana consciente, que jamais houvesse no mundo trato público e
livre de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra
e vende alimárias, bois ou cavalos e semelhantes. Assim os tangem,
assim os constrangem, trazem, e levam e provam, e escolhem com tanto
desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no curral. Não somente
eles, mas também seus filhos, e toda geração, depois de cá nascidos e
cristãos nunca têm remissão. Já que damos a isto cor de piedade cristã,
dizendo que os trazemos a fazer cristãos, não seria mal usar com eles
dessa piedade, e dar-lhes algum jubileu depois de servirem certo tempo
limitado por lei.
    E o desassombrado padre prossegue na sua catilinária criticando o
tratamento dado a muitos escravos pelos seus senhores e a hipocrisia destes,
rematando:
    E a mim me parece que seu cativeiro é bem desarrazoado quanto é da
nossa parte, porque eles não nos ofendem, nem nos devem, nem temos
justa causa para lhe fazer guerra, e sem justa guerra não os podemos
cativar, nem comprar a cujos não são. Pois da sua parte se o eles
merecem, nós não somos juizes disso, nem Deus nos fez verdugos da
sua ira, mas manda que preguemos a sua fé com caridade e
modéstia (VII).
    Fernando Oliveira, portanto, reprova globalmente a escravatura e o tráfico
de escravos exercido pelos Portugueses, negando a este um fundamento legal
autêntico. Esta atitude, tão extrema para a sua época e que faz dele um grande
precursor, não era, porém, a usual entre os teólogos e juristas de então, os
quais, embora reprovando os excessos que se cometiam, apontavam que a
escravatura - e portanto o tráfico de escravos - podia ser legitima em certas
circunstâncias.
    É o caso de Mercado e de Molina, os autores quinhentistas usualmente
referidos nesta matéria como pioneiros do movimento de ideias contra a
escravatura (desconhecendo-se a opinião anterior e mais radical de Fernando
Oliveira).
    O dominicano Frei Tomás de Mercado, natural de Sevilha, estudou no
México, e foi em 1569 que publicou o seu afamado livro, em que inclui o
capitulo «Del trato de los negros de Cabouerde» (VIII). Depois de evidenciar
que a jurisdição dessa área era do rei de Portugal, afirma ser «pública voz y
fama, que en rescatar, sacar, y traer los negros de su tierra para Indias, o para
aca, ay dos mill engaños, y se hazen mil robos, y se cometen mill fuerças».
Cativar e vender negros ou outras pessoas, diz ele, é negócio licito em três
casos: a) guerra; b) delitos públicos; c) venda pelos pais.
    Entre os povos não cristãos, é frequente, em caso de guerra, ficar o vencido
escravo do vencedor, o que «se platica en Guinea mas que en otras partes»,
por serem muito pequenos os reinos e senhorios e assim se envolverem em
frequentes guerras. Também entre estas mesmas gentes é lei que quem
pratica certos delitos fique escravo e seja vendido, revertendo o produto para a
república ou para a parte agravada, «y como son viciosos y bárbaros cometen
enormes y detestables delictos por los quales segu~ sus leyes licitamente se
cautiuan y vendem>. Finalmente, o terceiro título é o de os pais, em caso de
extrema necessidade, poderem vender os seus filhos para bem destes, o que
Mercado diz ser frequente na Guiné.
    Mas o nosso autor aponta que aos escravos obtidos licitamente se juntam
«infinitos fingidos, o injustos, que vienen engañados, violentados, forçados y
hurtados», especificando os seguintes casos:
    a)     Às guerras justas, há a acrescentar muitas injustas, já que os Negros
           não se movem segundo a razão, mas sim por paixão, e, como os
           Portugueses e os Castelhanos pagam tanto por um escravo, mesmo
           sem guerra fazem caçadas uns aos outros, obtendo infinitos cativos
           contra toda a justiça;
    b)     Sob o pretexto de justiça, escravizam indivíduos com todas as suas
           famílias, por meio de enganos e testemunhos falsos; ou armam-lhes
           ciladas por meio de agentes seus, que os levam aos portos a vender;
    c)     Os pais vendem frequentemente os filhos sem ser em casos de
           necessidade;
    d)     Mercadores portugueses e negros metem-se pela terra dentro, a fim
           de trazerem escravos à costa;
    e)     Os mercadores europeus atraem negros aos navios por meio de
           enganos e, uma vez a bordo, largam do porto com eles aprisionados.
    Mercado diz que estes últimos casos eram então menos frequentes do que
    antes, porque os Negros se foram tornando mais «ladinos» e porque o rei
de Portugal promulgou e fez executar com rigor leis penais contra tal.
Mesmo assim, «ha sido siempre publica voz, y fama, que de dos partes que
sale, la vna es enganada o tyranicamente cautiva, o forçada», Trata-se,
portanto, de um «trato tan infamado», pelo que ninguém se deve meter
nele, «no ay otro mejor medio sino desistir dello». «Suele algunos allegar
que el rey de Portugal tiene consejo de consciencia y es de creer, aurã visto
y examinado este negocio, digo q personas curiosas destas gradas hã
escrito a Lisboa, q los Theologos de Seuilla, y Castilla les pone escrupulo
en este trato, rogãdoles se informe de los de alla, y hã les respondido:
pesais q tenemos aca otro derecho o otra theologia? lo q alia dize dezimos,
y nos parece peor como a personas q nos consta mejor la maldad q passa.»
Desde já se chama a atenção para esta informação, pois uma série de
testemunhos de que adiante nos ocupamos comprova que havia em
Portugal quem se preocupasse com tal «caso de consciência».
Dos fins do século XVI para os começos do século XVII, foi publicado o De
iustitia et iure, do jesuíta espanhol Luis de Molina, que terminara os seus
estudos em Coimbra, onde foi professor antes de se destacar na cátedra de
Teologia da Universidade de Évora, tendo assim podido colher informações
directas em Portugal quanto ao tráfico de escravos da Guiné. Além de
referir alguns dos factos e opiniões de Mercado, junta-lhes outros, e tudo
submete a cerrada análise jurídica, concluindo, entre o mais, que os
Portugueses não curavam de averiguar da legalidade dos escravos
adquiridos na Guiné e que nem o bispo de Cabo Verde, nem os sacerdotes,
nem outrem na metrópole tinha escrúpulos na matéria (IX).
Esta opinião é certamente excessiva, pois chegou-nos uma carta do bispo
de Cabo Verde (muito provavelmente D. Fr. Pedro Brandão), dirigida a el-rei
à volta de 1600, em que propõe que sejam libertados os escravos que se
cristianizarem, pelas razões seguintes:

Porque humanamente se não pode atalhar aos muitos modos com que
injustamente os cativam. Porque uns são furtados por força ou
engano, outros condenados sem culpa a cativeiro, como são as
mulheres, filhos e parentes pelas culpas dos pais, outros tomados em
guerras injustas, porque não tratam de jure, senão de quem mais
pode. Outros vendidos por seus pais, sem necessidade bastante;
outros com um artificio fraudulento de homem morto que descubra a
casa do matador, quando querem cativar algum com toda sua familia,
e outros por outros modos injustos. De sorte que dizem os práticos
que de mil escravos que vêm ao Reino, os novecentos são mal
cativos.
Nem parece que pode tal ser, porque os ministros de V. Majestade,
quando muito, dão juramento a algumas pessoas que os tangomaus,
ou mercantes, lhes apresentam, e juram que são escravos de boa lei,
não o podendo saber, sendo trazidos de tantas e tão remotas partes.
Por vezes se tratou na Mesa da Consciência do remédio, e não se acha
nenhum que possa impedir estes ordinários escândalos (X).

E o bispo prossegue com as vantagens de vária ordem que adviriam da
libertação dos escravos que se cristianizassem. A. Brásio julga que o
documento, que não está datado, poderá ser de D. Fr. Pedro Brandão,
bispo em 1588-1608, que retirou para a metrópole em 1594 e resignou em
fins de 1606. Podemos acrescentar, em reforço da sua opinião, que em 13
de Junho de 1700 D. Fr. Vitoriano Portuense, num dos seus muitos escritos
em que propugnou o baptismo dos escravos, invocou o exemplo de D. Fr.
Pedro Brandão, «que floresceu neste bispado há cem anos estimando
como certo que os negros desta conquista de Guiné eram injustamente
cativos, querendo impedir este contrato, e, vendo que o não podia, deixou o
bispado, e se foi para esse reino recolher no seu cubículo». E ele mesmo
afirma: «o meu escrúpulo não é tamanho que condene totalmente este
negócio, pois o toleram tantos homens letrados, que permita Deus que
acertem contra a opinião de muito grandes teólogos assentada sobre os
fundamentos que eu mesmo em Guiné experimentei.» (XI).
Em 1604 foram para as ilhas de Cabo Verde os primeiros missionários
jesuítas, tendo como superior o Pe. Baltasar Barreira, e logo no ano
seguinte o Pe. Fernão Guerreiro, na sua conhecida Relação Anual,
publicava a seguinte notícia relativa à acção deles no campo de que nos
  vimos ocupando.
:
Também fazem muito serviço a Deus no ajudar a descativar muitos
escravos, que, sendo livres, os trazem cativos injustamente da terra
firme de Guiné os mercadores portugueses, que nisso tratam;
principalmente quando consta, por testemunhas, da injustiça de seu
cativeiro, que é ou furtando-os e metendo-os por força nos navios, ou
havendo-os dos outros negros que injustamente os salteiam e cativam
(porque basta virem às punhadas ou arremeter somente um ao outro,
sem razão alguma, para o que mais pode cativar o outro e o vender por
seu escravo), ou havendo-os também dos tangomaus, ou lançados
com os negros, e que andam neste trato pela terra dentro (XII).

Este trecho do Pe. Guerreiro é baseado numa carta de 19 de Abril de 1605
do Pe. Manuel de Barros, o qual acrescenta a informação de que os reis
negros recorriam à prova da «água vermelha» para «destruir e vender
algum fidalgo poderoso do seu reino», vendendo-lhe também «todos os que
tem em casa e todos os de sua geração, suas mulheres, filhos e escravos»
(XIII).
A prova da «água vermelha» com a mesma finalidade também é referida
pelo Pe. Guerreiro, atribuindo-a ao rei dos Cassangas, dizendo que este,
para obter mais escravos, recorria a outras «tiranias a que eles chamam
leis»: em caso de morte de alguém, e após a «averiguação» por meio do
«jabacouce» do «homicida e feiticeiro» que «o matou e lhe comeu a alma»,
prisão e venda da sua família, sendo dado igual destino aos familiares dos
homens que caiam das palmeiras e morram (XIV). Estas informações são
claramente extraídas do Tratado de 1594 de André Álvares de Almada
(XV), que, além de outros exemplos, também diz que os Mandingas do rio
Gâmbia vendiam muitos escravos, uns obtidos em guerras e juízos, mas
muitos outros em furtos, pelo que devia haver cuidado em lhos adquirir,
embora se tivessem verificado casos em que eles os mataram após os
Portugueses terem recusado comprá-los (XVI).
Em 1606, o Pe Baltasar Barreira produziu uma pormenorizada informação
sobre as maneiras como se faziam e traficavam escravos na Guiné (XVII),
de      que      muito    resumidamente       se     dão    alguns    tópicos.
Não se faz nenhum exame do título do cativeiro, «nem há quem pergunte
por ele», já que os armadores aceitam todos os negros que lhes levam, e os
reis, para negociarem, cativam negros forros sem se importarem com a
justiça ou injustiça de tal acto. Os armadores desculpam-se dizendo que
não têm possibilidade de averiguar do titulo do cativeiro, até porque
ordinariamente compram os escravos a tangomaus portugueses, seguem
costumes antigos e morrer-lhes-ia a maior parte da armação em
consequência da demora que haveria em averiguar caso por caso.
Os tangomaus, por sua vez, alegam que não é costume perguntar o título
do cativeiro e que correriam risco de morte se o quisessem indagar, o que,
aliás, não teria interesse, já que as respostas seriam falseadas, ou pelos
 vendedores ou pelos escravos.
Na Serra Leoa, os Manes antropófagos venderam muitos sapes vencidos
aos Portugueses, tendo posteriormente um capitão da ilha de Santiago
dado liberdade aos que nela então viviam. Quando querem escravos para
vender aos Portugueses, fazem guerras e assaltos aos vizinhos e utilizam
os condenados à morte e seus familiares. Quando um indivíduo se
considera agravado de outro ou de parentes deste, quer o agravo seja
grande ou pequeno, verdadeiro ou fingido, cativa-o, e por sua vez a família
deste exerce represália semelhante na aldeia de onde ele provém. Se um
indivíduo se quer desagravar de outro mais poderoso, dá conta disso ao rei,
 que procede à captura.
Entre «outros modos de cativar com título de justiça» contam-se: quando há
prova ou confissão de um indivíduo ser feiticeiro ou ter morto outrem com
peçonha; quando um indivíduo tem relações com mulher de rei ou solicita
guerra contra ele ou pede às «chinas» que o matem (neste caso, se o rei
adoece, o culpado é morto ou vendido, confiscados os seus bens e
cativados e vendidos os parentes). Nas averiguações recorrem à prova da
«água vermelha», e, quando um que a bebe morre, considera-se isso prova
de culpabilidade e deitam mão da «fazenda, filhos e mulheres».
Em caso de morte de alguém, recorrem à «tumba» para averiguar quem foi
o feiticeiro culpado, que matam ou vendem, igualmente vendendo os filhos
 e mulheres.
Nalguns reinos é costume prender e vender aos portugueses as pessoas de
reinos vizinhos surpreendidas a roubar frutos. Outras vezes enganam
forasteiros, dizendo que lhes vão mostrar os portugueses a quem os
vendem, ameaçando matar tais cativos se não lhos comprarem. Os Bijagós
fazem muitos assaltos por mar aos povos vizinhos, vendendo os
prisioneiros aos portugueses que vão ao seu arquipélago.
A terminar, o Pe. Barreira põe à consideração se não poderia ser dada no
futuro licença para comprar todos os escravos sem examinar o título do seu
cativeiro, como satisfação pelos muitos roubos, agravos e mortes que os
 Portugueses têm sofrido na Guiné.
Em cartas de 4 e 5 de Março de 1607 (XVIII), o Pe. Baltasar Barreira
completa         o      seu        juízo,     nos       seguintes     termos:

E porque esta matéria [título com que se cativam os negros da Guiné]
é muito embaraçada e cheia de dúvidas, por utraque parte, não parece
possível averiguar-se quais são de bom título e quais não, o qual digo
porque o ordinário é venderem-se os negros por culpas que cometem,
ou eles ou parentes e naturais seus, o qual é como lei entre todos, e
sem isto não se podem governar bem, vista a sua natureza. E ainda
que pode acontecer algumas vezes que se vendam sem culpa ou que a
culpa não parece digna de cativeiro, para o qual entre eles basta
qualquer, não é possível averiguar-se isto; e assim sou de parecer que
se não pode tomar assento nesta matéria, senão que ou deve correr o
trato dos escravos como até aqui ou proibir-se de todo.

Na sua Etiópia Menor, o jesuíta Manuel Álvares, companheiro do Pe.
Baltasar Barreira na missão de Cabo Verde e Guiné, igualmente põe em
dúvida a legitimidade de muito do que se passava em tal matéria,
considerando só haver quatro títulos de servidão justa: venda pelo próprio,
venda por pais pobres, guerra justa, pena criminal. Contudo, era frequente o
gentio biafada e banhum vender aos mercadores indivíduos com a boca
tapada, para não poderem falar, ou mascarados, para não serem
conhecidos. Outros abusos eram venderem muitos com títulos de feiticeiros,
os tios venderem os sobrinhos (entre os Biafadas), serem cativadas as
famílias das vítimas da prova da «água vermelha» e da «tumba» (Banhuns),
os Bijagós assaltarem os povos vizinhos, a frequência dos «chais»
(sobretudo       por     adultério)     entre      os     Papéis      (XIX).
Outro jesuíta, espanhol, que em Cartagena (América) assistia aos escravos
negros, Alonso de Sandoval, dá também, no seu conhecido livro,
informações colhidas de capitães e passageiros dos navios vindos da Guíné
e que coincidem com as registadas acima pelos jesuítas portugueses (XX).

Não vamos alongar estas páginas com mais resumos de autores
consagrados de obras impressas (como o jesuíta espanhol Thomaz
Sánchez, referido, aliás, pelos autores do manifesto de Bissau de 1686) ou
de informações e pareceres portugueses manuscritos de fins do século XVI
e começos do século XVII, já que as opiniões coincidem entre si e com o
 que já vimos.
O documento de 14 de Abril de 1686, a que atrás nos referimos, encontra-
se na Biblioteca da Ajuda (cota actual S4-xIII-1S, n. 094, anteriormente S2-
XI-9, n. 94), e tem o seguinte longo título: «Informe y relación que Fr.
Francisco de la Mota, vice-prefecto de la misión de religiosos capuchinos de
las costas de Guínea y sus compaiñeros hacen a su Majestad que Dios
guarde el Señor Rey de Portugal del modo con que los negros de dichas
costas y rios se compran y son reducidos a cautiverio».
No preâmbulo que antecede a «Relación dei echo de los cautiuerios de la
costa de Guinea», Fr. Francisco de la Mota - que diz haver sido nomeado
vice-prefeito pelo prefeito da missão, Fr. António de Truxillo - informa haver
examinado, durante os oito anos em que se encontrava na Guiné, a
maneira como eram reduzidos a cativeiro os escravos, concluindo que o
«contrato y compras de negros es illicito, pecaminoso e injusto», já que
quase todos eram injusta e tiranicamente cativados. O mesmo afirma que
não se faz - nem se pode fazer - nenhum exame da justiça dos cativeiros ao
comprar os escravos, e que devem ser restituídos à liberdade os que foram
adquiridos na Guiné como tais (excepto algum raro cuja legitimidade de
escravidão se possa apurar). Dada a gravidade do caso, e o facto de desde
há muito o comércio de escravos correr de tal maneira, propõe que seja
 consultada a Mesa da Consciência sobre a matéria.
O extenso documento é assinado por Fr. Francisco de la Mota e Fr. Angel
de Fuente la Peña, levando uma apostilha de confirmação de Fr.
Buenaventura de Maluenda. Trata-se dos três últimos missionários
espanhóis que continuavam na Guiné, de um grupo de catorze que haviam
desembarcado na Serra Leoa em 1678; os restantes haviam morrido ou
regressado à Espanha. Estes frades espanhóis não tinham licença das
autoridades de Lisboa para missionarem na Guiné, o que originou um
conflito de que aqui nos não ocupamos (XXI), tendo o Pe. Truxillo ido a
Santiago de Cabo Verde e a Lisboa para solucionar a questão, acabando
por serem agregados à sua missão alguns franciscanos portugueses da
província dos Algarves, que não se entenderam com os seus colegas
espanhóis e rapidamente deixaram a Guiné, indo no seu encalço o Pe.
Truxillo, que já estava de novo em Lisboa em Novembro de 1684, partindo
para Espanha poucos meses depois e desistindo do propósito de os
missionários espanhóis continuarem na Guiné. É, portanto, neste ambiente
de conflito e em vésperas de deixarem a Guiné que os capuchinhos
espanhóis redigem em Bissau o manifesto de que nos ocupamos, facto a
ter desde já em conta para uma melhor compreensão das razões que os
poderão ter levado a esse acto; com efeito, a 26 de Março de 1686 já se
encontrava em Bissau o capucho português Fr. Francisco de Pinhel, a
quem os missionários espanhóis entregariam o hospício e a igreja (XXII).
No documento consideram-se oito áreas geográficas, de sul pa¬ra norte,
analisando-se em cada uma delas as diferentes formas de escravização.

Assim, na área da Serra Leoa (ou, mais propriamente, entre o rio de
Madrebomba e o rio Ponga), onde viviam manes, bagas, bolões, logos,
sossos e limbas, eram três os modos usuais de cativar negros:
a) por delitos (chamados chais), incluindo a acusação de feiticeiro (cuja
averiguação era feita por sortes ou mediante veneno dado a beber, isto é,
pela tradicional e generalizada prova da «água vermelha»);
b) venda das crianças limbas pelas mães;
c) por assaltos levados a cabo pelos Fulas.
Sobre o rio Nuno as informações eram mais escassas, por lá não haverem
estado os capuchinhos espanhóis, mas presumia-se que os negros aí
vendidos provinham dos assaltos dos Fulas e dos chais dos Bagas.
O arquipélago dos Bijagós era o maior centro de venda de escravos,
obtidos por três maneiras: a) por delitos ou chais (cuja averiguação se podia
fazer mediante o sacrifício de galinhas a que eram cortadas as cabeças,
vendo para onde caía o corpo); b) venda dos familiares e escravos de um
morto pelo seu herdeiro; c) assaltos e roubos de gente levados a cabo pelos
Bijagós entre as populações vizinhas do continente e ilhas próximas (era
esta a principal origem dos escravos vendidos pelos Bijagós).
Entre os Biafadas compravam-se poucos negros, pois não furtavam muito;
eram frequentes os chais. Os autores, por engano, incluem entre os
Biafadas o rei do Cabo, que era território de Mandingas; esse rei, bastante
cruel, cativava muita gente em guerras.
Na ilha de Bissau, os habitantes obtinham escravos por meio de assaltos
    por     mar,    à    maneira      dos Bijagós,       e   através  de    chais.
    Entre Bissau e Cacheu, os Balantas e Felupes eram dados a investir as
    embarcações quando naufragadas, matando os brancos e cativando os
    negros, vendendo os que antes eram escravos e resgatando os que eram
    livres.
    No rio de Cacheu, os Felupes, Papéis e Banhuns faziam guerra entre si
    para «amarrar» escravos, obtendo outros por meio de chais.
    Nos rios Gâmbia e Senegal, onde comerciavam franceses e ingleses, os
    missionários não tinham experiência directa, mas, segundo informações
    colhidas de um francês, a injustiça dos cativeiros ainda ultrapassava a que
     se verificava nas zonas mais a sul.
    E os autores do manifesto, após esta análise, concluem pela injustiça da
    quase totalidade dos casos de cativeiro e «ser injusto y contra conciencia
    dicho comercio de parte de los mercaderes, y aun de los que los compran
    en Europa». No entanto, admitindo poderem estar enganados, pedem a el-
    rei de Portugal que lhes faça ver o erro ou, no caso de estarem na verdade,
    que proíba o comércio de escravos. Adiante veremos como os capuchinhos
    espanhóis não tinham afinal dúvidas sobre o caso, apesar do que
     escreveram nesta parte do manifesto.
    A todas as ilegalidades já apontadas, eles acrescentam ainda uma série de
    inconvenientes que acarretava o comércio de escravos:
    a) Os compradores de escravos são os responsáveis pelas injustiças dos
        que os «amarram», pois, se não houvesse aqueles, os últimos
         dedicar-se-am a outras actividades;
    b) Os Bijagós e os Papéis fazem sacrificios de animais em honra dos
         mercadores, o que é coisa abominável;
    c) A abundância de escravos provocara o descrédito do trabalho entre os
         homens livres;
    d) Dada a abundância de escravos, as sociedades não se podem governar
         cristamente, pois predomina a concubinagem;
    e) As «amarrações» provocam o ódio dos parentes dos cativos contra os
         Brancos, o que impede estes de penetrar pela terra dentro;
    f) A sucessão de contínuas desgraças, que os Brancos aceitam como
         castigo divino pela injustiça do tráfico de escravos.
    Havia, segundo os autores do manifesto, a consciência geral de que, se só
se comerciassem escravos legítimos, o tráfico terminaria totalmente, pelo que
os comerciantes davam como desculpas que não furtavam os escravos e não
sabiam se estes eram furtados, que assim os traziam à cristandade, que era
prática antiga não proibida pelos reis nem pelos bispos. E os missionários
terminam com novo apelo, para que el-rei mande examinar o caso.
Fr. Francisco de la Mota e os seus companheiros não se limitaram a enviar
este manifesto ao rei de Portugal, pois chegaram-nos testemunhos claros de
que entregaram ou enviaram documentos afins (não exactamente iguais) a
outras pessoas e entidades.
Com efeito, La Courbe diz que eles combatiam a escravatura e que fizeram um
manifesto em latim que enviaram para Espanha, para Portugal e para Itália,
tendo-lhe dado outro para que o levasse para França. Na realidade, no próprio
relato de La Courbe encontra-se o testemunho de que ele se utilizou do
manifesto, pelo menos na enumeração dos rios e povos para sul do rio Grande
e dos Bijagós (XXIII). E, como se viu no começo deste capítulo, igualmente
Labat fala do manifesto, dizendo que, no regresso à Europa, os seus autores
também o levaram para a ilha Martinica, onde não gostaram dele.
Como era de esperar, também o manifesto se divulgou entre os capuchinhos
de Espanha. Assim, o Pe. Mateo de Anguiano, na sua crónica das missões dos
capuchinhos espanhóis em África, escrita pouco depois, tem dois capitulos
(XIV e XV), intitulados «De los abusos tiránicos que ha introducido el demonio
de la avaricia en las partes de Guinea con la ocasión dei comercio de los
esc1avos» e «Prosiguese la materia del capitulo precedente y los lastimosos
abusos y crueldades que se practican en Guinea», que contêm o mesmo
género de informação e a mesma doutrina do «Informe y relación» dirigido ao
rei de Portugal. Têm, no entanto, certas variantes e aperfeiçoamentos, o que
nos leva a supor que terão base em documento mais desenvolvido, talvez
posterior (XXIV).
Em Fevereiro de 1687, os cardeais da Propaganda Fide ocuparam-se de um
relatório acerca da escravatura na África ocidental, e que lhes chegara através
do núncio em Portugal, a quem o haviam remetido missionários da Guiné.
Desconhece-se hoje o paradeiro desse relatório, mas o conteúdo das actas
daquela congregação levou a supor que o seu autor seria Fr. Francisco de la
Mota (XXV). Podemos agora confirmar que existe notável identidade de
informação e doutrina entre o perdido relatório (através do que dele dizem
aquelas actas) e o manifesto dirigido ao rei de Portugal e assinado em primeiro
lugar por aquele capuchinho (XXVI). Mas o relatório ia bastante além do
manifesto, pois daquelas actas se deduz que os seus autores afirmavam haver
negado os sacramentos aos comerciantes de escravos que se recusavam a
abandonar as práticas ilicitas, diziam praticarem-se na Guiné todo o género de
abusos que reduziam a zero o trabalho missionário e solicitavam o poder para
impor censuras.
Não desejamos profundar aqui o assunto, até porque não estamos de posse de
todos os elementos documentais existentes. É evidente que o manifesto dos
capuchinhos espanhóis enviado a D. Pedro II contém doutrina certa, no campo
jurídico e moral, mas suspeitamos, com bom fundamento, que não foi apenas a
defesa dessa doutrina que levou tais missionários a agir da maneira como o
fizeram.
Com efeito, o manifesto contém factos que - são os próprios autores a dizê-lo -
eram do conhecimento geral na Guiné, e no campo jurídico não tem qualquer
novidade, pois a generalidade dos casos de cativeiro ilícito que apresentam já
fora denunciada por juristas espanhóis e missionários portugueses desde mais
de um século antes; apenas se pode dizer que especifica mais
pormenorizadamente esses casos por áreas e por grupos étnicos. Quando o
documento foi redigido, já Fr. Francisco de la Mota devia saber que em breve
os capuchinhos espanhóis iam ter de abandonar a Guiné, pois o seu prefeito,
Fr. António de Truxillo, já decidira esse abandono mais de um ano antes e
havia partido de Lisboa para Espanha(XXVII). Encontrando-se na Guiné desde
há oito anos, essa iminência de partida talvez explique porque terão decidido
escrever o manifesto, e não antes; e uma passagem de Labat, que tudo faz
crer ser respigada no trecho perdido do relato da viagem de La Courbe, mostra
que poucos meses depois da data do manifesto eles «pensavam retirar-se e
abandonar uma terra tão ingrata» (XXVIII). É também sintomático que se
tenham abstido de introduzir no documen¬to em questão qualquer reprovação
ou simples referência aos seus concidadãos espanhóis no que respeita ao
tráfico de escravos, quando uma parte, pelo menos, dos capuchinhos
espanhóis idos para a Guiné desde 1648 embarcara para ai em navios
negreiros espanhóis. Têm uma palavra de reprovação para os que compravam
escravos da Guiné na Europa, enquanto calam os que o faziam na América
espanhola, para onde (salvo curtos períodos) seguia a maior parte dos
escravos dessa área, como era do conhecimento geral. Afigura-se-nos que o
impulso que levou ao envio do manifesto antiesclavagista ao rei de Portugal
não obedeceu exclusivamente a puros intuitos morais, até porque nele se
pede, para própria elucidação dos autores, que o caso seja examinado pelos
juristas, enquanto no documento afim enviado ao núncio em Portugal com
destino a Roma se afirma redondamente a ilegitimidade da quase totalidade
dos cativeiros e se anuncia haverem sido recusados os sacramentos aos que
persistiam nesse tráfico. No fundo, as velhas rivalidades entre Portugueses e
Espanhóis e entre ordens religiosas devem ter tido a sua quota-parte na
decisão de enviar manifestos - não inteiramente concordantes, como vimos -
para várias entidades e para vários países. Mas, tomamos a salientar, não
desejamos deixar aqui uma opinião categórica em matéria de tanto melindre,
até por falta de elementos documentais; o nosso principal intuito é o de divulgar
o texto do notável «Informe y relación» dirigido ao rei de Portugal pelos últimos
capuchinhos espanhóis que estiveram em Bissau, o que permitirá a outras
pessoas profundarem o assunto.
Não encontrámos qualquer testemunho documental concreto sobre o que D.
Pedro II terá feito depois de receber tal manifesto. No entanto, dentro do
caderno onde ele está redigido (e que tem a cota 94) vem um papel pequeno,
solto, com o n.o 94-a, que, por estes factos e pela sua natureza, constitui muito
provavelmente - sem que possamos ter a certeza - a minuta (tem várias
emendas) de um parecer redigido por um religioso anónimo acerca da matéria
exposta      pelos    capuchinhos      espanhóis.      Eis    o     seu     texto:

Voto sobre o resgate dos negros da costa de África.

Vi estes papéis tocantes ao resgate dos negros pela costa de África e o
que não era de segredo comuniquei a alguns padres que estiveram em
Angola, e aos lentes de Teologia deste Colégio, e todos uniformemente
julgaram que Sua Majestade que Deus guarde podia sem [...] a
consciência mandar fazer os ditos resgates com as cláusulas seguintes:

Item - que em cada lugar de resgate se ponha um feitor, com um clérigo
natural da terra que saiba a língua, homens de sã consciência;

Item - que estes em primeiro lugar examinem exactamente se são os
negros justamente cativos encarregando-lhes Sua Majestade muito este
ponto e declarando-lhes que não se há-de dar por bem servido por
resgatarem mais negros, senão por justificarem com maior cuidado os
seus cativeiros.

Item - que os títulos justificados de cativeiros são quatro: o 1º de guerra
justa; o 2º dos que de pais e avôs eram já cativos; o 3º dos que estavam
para o talho; o 4º daqueles que por delitos graves estavam condenados à
morte ou a cativeiro perpétuo segundo as leis ou costumes das terras,
não aprovando porém o cativeiro daqueles que o incorreram por furtos
leves,   ou     delitos    semelhantes    de     pouca   substância.

Item - que o clérigo tenha grande aplicação a catequisar os negros,
ensinando-lhes os mistérios da fé, e baptizando-os, e sem esta instrução
 na fé e baptismo nenhum se embarque.

Com estas cláusulas satisfaz Sua Majestade a sua consciência e, se
houver alguma desordem, ficará carregando sobre as consciências dos
tais oficiais, como sucede no governo universal de todo o Reino, em que
Sua Majestade não tem mais obrigação que de pôr seus (?) ministros, e
castigá-los pelos erros de seus ofícios constando-lhe deles.

Embora tudo pareça estar certo, teoricamente, a colocação de um feitor e um
clérigo natural da terra em cada lugar de resgate seria muito difícil na prática, e
não veio a verificar-se. Acerca doutro ponto do mesmo documento, o do
penúltimo parágrafo, é interessante notar que o bispo D. Fr. Vitoriano
Portuense, que iria para Cabo Verde poucos anos depois, procurou dar
realidade à catequização e baptismo dos escravos antes de embarcarem, o
que pode ser consequência deste e de outros «votos» semelhantes que
tivessem sido redigidos a propósito do manifesto dos capuchinhos espanhóis.
Ao fim e ao cabo, o Pe. Baltasar Barreira, no começo do século, tinha razão -
não havia possibilidade prática de averiguar a legitimidade dos cativeiros, pelo
que o tráfico de escravos devia correr como até então, ou acabar por completo;
nada de meias-medidas.
E foi o que, afinal, sucedeu por muito tempo após a saída dos missionários
espanhóis de Bissau - tudo continuou como antes, aí e por toda a costa de
África.
Só mais de um século e meio volvido o repugnante tráfico seria extinto. Mas
para isso foi necessário um conjunto de circunstâncias políticas e económicas
favoráveis (em que avultam a independência dos Estados Unidos da América e
a revolução industrial na Inglaterra), um grande movimento internacional de
opinião pública, a actuação conjugada de vários países e a utilização de
poderosos meios materiais.
Ao contrário do que pensavam e proclamavam os capuchinhos espanhóis de
Bissau, não bastava coarctar a actuação dos negreiros na parte da Guiné onde
comerciavam os Portugueses. Havia muita gente - branca e negra - e muitos
interesses - de europeus, americanos e africanos - envolvidos no odioso tráfico,
para que ele pudesse cessar com as simples medidas unilaterais que eles
preconizavam.
Chegamos, assim, ao fim deste estudo de um curioso período da história de
Bissau, terra bem mais falada e discutida hoje em dia por esse mundo fora do
que o era ainda há poucos anos.
Seguem-se os textos que ilustram os aspectos apresentados e outros
documentos que comprovam as conclusões a que se chegou.
NOTAS

I - J. B. LABAT, ob. cit. t. v, cap. VII, pp. 216-220.
II - ÉTlENNE-FÉLIX BERLIOUX, Andre Brüe ou I'origine de la Colonie Française du
Sénégal, Paris, 1874, pp. 151-155. Como La Courbe partiu de Bissau em Fevereiro de 1687, e
os capuchinhos espanhóis só depois disso largaram de lá, a referência de Labat ao seu
regresso à Europa via Martinica mostra que acrescentou nessa parte o texto de La Courbe.
III - História da Guiné, pp. 140-141,289. Também A. LOURENÇO FARINHA, ob. cit., p. 76,
julga que o bispo esteve ligado à atitude dos frades de Bissau, e nós mesmos, algures, caímos
em idêntico erro.
IV - Publicada por CARROCERA, in ANGUIANO, ob. cit. II, pp. 297-298. Na última página do
artigo referido na nota 6 escrevemos erradamente que o manifesto era de Abril de 1684.
V - In Studia, 3, Janeiro de 1959, pp. 304-305.
VI - O que não é verdade; quanto à África ocidental, veja-se J. D. FAGE, «Slavery and the
slave trade in the context of West African history». in Journal of African History, 10
(1969),3, pp. 393-404.
VII - FERNANOO OLIVEIRA, Arte da Guerra do Mar, Coimbra, 1555, 1ª parte, cap. III; há
reedições de 1937 e 1969, Lisboa, com comentários de QUIRINO DA FONSECA e de
BOTELHO DE SOUSA.
VIII - THOMAS DE MERCADO, Tratos y contratos de mercaderes y tratantes, Salamanca,
1569, 1º Tratado, cap. XV.
IX - LUIS DE MOLlNA, De Justitia et Iure, trat. II, disps. 34 e 35.
X - Biblioteca da Universidade de Coimbra, mss. 465, tls. 14-14 v., publ. por A. BRÁ¬
510, Monumento Missionaria Africana, 2ª sér., III, pp. 442-446.
XI - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Cabo Verde, caixa 6.
XII - FERNÃO GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia
de Jesus nas partes da lndia Oriental, e no Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné {...}, Lisboa,
1605, liv. IV, cap. VIII, fl. 130.
XIII - Arquivo Romano da Sociedade de Jesus, Lusitania, 83, fl. 351 v.
XIV - Ob. cit., cap. IX.
XV - ANDRÉ ÁLVARES DE ALMADA, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde,
cap. VIII.
XVI - Ob. cit., cap. V.
XVII - Academia Real de la Historia, Madrid, Papeles de Jesuítas, ms. 185, nº 15. O
documento não tem data nem assinatura, mas duas cartas do P.. Baltasar Barreira, de 4 e 5 de
Março de 1607, permitem concluir que este foi o seu autor e que o documento já estava pronto
em Julho de 1606. Essas cartas são publicadas por A. BRÁSIO, ob. cit., IV, pp. 220-228, e
aquele documento a pp. 190-199.
XVIII - Ver nota anterior.
XIX - MANUEL ÁLVARES, Etiópia Menor, parte 1ª, caps. V, VI, VII, IX e XI.
XX - ALONSO DE SANDOVAL, Naturaleza, policia sagrada i profana, costumbres i ritos,
disciplina i catechismo evangelico de todos Etiopes, Sevilha, 1627, liv. I, cap. XVII.
XXI - O assunto é tratado na crónica do Pe. MATEUS DE ANGUIANO editada por
CARROCERA, tendo-se o Pe. FRANCISCO LEITE DE FARIA (ob. cit., na nota 50) debruçado
sobre ele e mostrado a falta de isenção deste último padre espanhol nas conclusões que
apresenta.
XXII - F. LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 306.
XXIII - CULTRU, Premier voyage du Sieur de La Courbe fait a la Coste d'Afrique en 1685,
Paris, 1913, pp. 212 e 254-255.
XXIV - Nas notas ao «Informe y relación» (F) indicam-se com algum pormenor as diferenças
em relação ao texto da crónica do p.e Anguiano.
XXV - RALPH M. WILTGEN, Gold Coast Mission History 1471-1880, 1956, pp. 96-97.
XXVI - Não examinámos as referidas actas, mas baseamo-nos no resumo que delas é dado na
ob. cit., na nota anterior, pp. 97-98.
XXVII - LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 302.
XXVIII - LABAT, ob. cit., v, p. 216.

   Avelino Teixeira da Mota, As Viagens do Bispo D. Frei Vitoriano
Portuense à Guiné e a Cristianização dos Reis de Bissau, Junta de
Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1974

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O manifesto antiesclavagista dos últimos capuchinhosespanhóis de bissau

  • 1. O MANIFESTO ANTIESCLAVAGISTA DOS ÚLTIMOS CAPUCHINHOS ESPANHÓIS DE BISSAU (1686) Como adiante se indicará mais em pormenor, o pe. J. B. Labat, na sua muito conhecida obra relativa à África ocidental, utilizou largamente o texto de La Courbe, mas encabeçou as suas viagens em A. Brüe. No respeitante a Bissau, serviu-se da relação de La Courbe e também de outra respeitante a viagem que efectivamente lá fez A. Brüe em 1700. Entre o mais, fala dos missionários lá existentes, e é fácil concluir, pelo cotejo com o que nos chegou da autoria de La Courbe, que nessa parte se utilizou, sobretudo, do texto deste, embora reporte os acontecimentos a 1700. Diz Labat (I) que os missionários eram então três e que Ils prêchoient la foi jusque dans les navires anglais, qui avoient traité des captifs, et par le moyen de jeunes negres à qui ils avaient enseigné la langue portugaise, et qui leur servaient d'interpretes et de catechistes, ils faisaient entendre les vérités de notre religion à ces pauvres esclaves, et les baptisaient. Ils allaient prêcher de tapade en tapade, et rassemblaient deux ou trois fois le jour à l'Eglise ceux qu'on pouvait regarder comme des Catecumenes, et leur apprenaient leur Catechisme et leurs prieres... Ils firent un manifeste pour justifier leur conduite, s'aviserent hors de propos de condamner tous les chrétiens qui retenaient d'autres chrétiens, quoique noirs, dans l'esclavage; ils condamnerent encore ceux qui les vendaient aux Anglais ou Hollandais, chez lesquels il était sûr qu'on ne leur parlerait jamais de la foi, et encore moins de la liberté, quoiqu'ils eussent été baptisés; ils firent des discours dans lesquels il taxaient leurs compatriotes d'une maniere un peu trop marquée, d'empêcher par leurs déreglements les progres de la foi, et ils envoyerent ce manifeste en Espagne et en Portugal, et le porterent avec eux à la Martinique, ou ils furent obligés de passer dans un vaisseau de la Compagnie de France, pour de là trouver une occasion de repasser en Portugal; parce que ce manifeste avait soulevé contre eux tous leurs compatriotes des Bissaux et des environs à qui une pareille morale ne convenait point du tout. Elle ne fut pas plus goutée à la Martinique, les Puissances les prierent de garder leur manifeste, et de ne rien remuer sur cet article. O historiador Berlioux, no seu conhecido livro sobre André Brüe, ocupa-se destas informações de Labat para pôr em relevo o alto significado moral da atitude dos missionários de Bissau, que ele julga serem portugueses, como se deduz da redacção de Labat (II). Através de A. Arcin, esta opinião foi retomada por João Barreto, que escreve que «os frades de Bissau, sob a orientação do bispo D. Vitoriano da Costa [...] foram os primeiros a reagir contra a escravatura convertida em um puro negócio de carne humana» (III). Não conhecemos nenhum documento português que se identifique com o manifesto referido por Labat, mas, em contrapartida, sabemos de outro, datado de 14 de Abril de 1686, em que os três últimos capuchinhos espanhóis que assistiram em Bissau analisam miudamente a injustiça da maior parte dos cativeiros que se faziam na Guiné. Devem ser estes capuchinhos que La Courbe encontrou em Bissau (de onde terão partido alguns meses depois) e que diz terem-lhe dado uma cópia de um manifesto em que punham a claro que quase todos os escravos eram cativados injustamente. Foi Labat quem
  • 2. tudo baralhou, chamando-lhes portugueses e relacionando-os com a viagem de André Brüe de 1700. Dê-se o seu a seu dono, não fazendo de D. Fr. Vitoriano Portuense uma espécie de patrono dos autores daquele manifesto, até porque ainda não fora sagrado bispo nem viera para Cabo Verde quando tal documento foi redigido. Labat, em parte (que não transcrevemos) daquela mesma passagem, revela que os missionários estavam em conflito com os «cristãos» e os Papéis, por se recusarem a sepultar na igreja maus cristãos. Ora o episódio é amplamente relatado pelos próprios missionários espanhóis em carta de 1 de Junho de 1686 endereçada de Bissau a D. Pedro II (IV); este facto confirma o que dizemos quanto à autoria e data do manifesto. O nosso amigo Pe. Francisco Leite de Faria, na notícia que deu da edição moderna da crónica do Pe. Anguiano (V), mostrou já amplamente, por outras formas, que o manifesto referido por Labat fora redigido pelos últimos três frades espanhóis que estiveram em Bissau. A análise do «Informe y relación» de 14 de Abril de 1686 que agora publicamos em F, ao que julgamos pela primeira vez, vem confirmar inteiramente os seus pontos de vista. Antes de nos debruçarmos sobre esse importante documento, é conveniente, para sua melhor apreciação, recapitular o que até à época haviam escrito vários autores espanhóis e portugueses acerca da intrincada questão da legitimidade do cativeiro dos escravos oriundos da Guiné. Num livro publicado em 1555, o Pe. Fernando Oliveira critica violentamente a escravatura e ataca os traficantes de escravos em termos muito duros: E não é nesta parte boa escusa dizer que eles se vendem uns a outros, porque não deixa de ter culpa quem compra o mal vendido e as leis humanas desta terra e doutras o condenam, porque se não houvesse compradores não haveria mais vendedores, nem os ladrões furtariam para vender. Assim que nós lhe damos ocasião para se enganarem uns a outros e se roubarem, e forçarem, e venderem, pois os vamos comprar, o que não fariam se lá não fôssemos a isso, nem jamais o fizeram senão depois que os nós a isso induzimos. Nós fomos os inventores de tão mau trato, nunca usado nem ouvido entre humanos (VI). Não se achará nem razão humana consciente, que jamais houvesse no mundo trato público e livre de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias, bois ou cavalos e semelhantes. Assim os tangem, assim os constrangem, trazem, e levam e provam, e escolhem com tanto desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no curral. Não somente eles, mas também seus filhos, e toda geração, depois de cá nascidos e cristãos nunca têm remissão. Já que damos a isto cor de piedade cristã, dizendo que os trazemos a fazer cristãos, não seria mal usar com eles dessa piedade, e dar-lhes algum jubileu depois de servirem certo tempo limitado por lei. E o desassombrado padre prossegue na sua catilinária criticando o tratamento dado a muitos escravos pelos seus senhores e a hipocrisia destes, rematando: E a mim me parece que seu cativeiro é bem desarrazoado quanto é da nossa parte, porque eles não nos ofendem, nem nos devem, nem temos justa causa para lhe fazer guerra, e sem justa guerra não os podemos cativar, nem comprar a cujos não são. Pois da sua parte se o eles merecem, nós não somos juizes disso, nem Deus nos fez verdugos da
  • 3. sua ira, mas manda que preguemos a sua fé com caridade e modéstia (VII). Fernando Oliveira, portanto, reprova globalmente a escravatura e o tráfico de escravos exercido pelos Portugueses, negando a este um fundamento legal autêntico. Esta atitude, tão extrema para a sua época e que faz dele um grande precursor, não era, porém, a usual entre os teólogos e juristas de então, os quais, embora reprovando os excessos que se cometiam, apontavam que a escravatura - e portanto o tráfico de escravos - podia ser legitima em certas circunstâncias. É o caso de Mercado e de Molina, os autores quinhentistas usualmente referidos nesta matéria como pioneiros do movimento de ideias contra a escravatura (desconhecendo-se a opinião anterior e mais radical de Fernando Oliveira). O dominicano Frei Tomás de Mercado, natural de Sevilha, estudou no México, e foi em 1569 que publicou o seu afamado livro, em que inclui o capitulo «Del trato de los negros de Cabouerde» (VIII). Depois de evidenciar que a jurisdição dessa área era do rei de Portugal, afirma ser «pública voz y fama, que en rescatar, sacar, y traer los negros de su tierra para Indias, o para aca, ay dos mill engaños, y se hazen mil robos, y se cometen mill fuerças». Cativar e vender negros ou outras pessoas, diz ele, é negócio licito em três casos: a) guerra; b) delitos públicos; c) venda pelos pais. Entre os povos não cristãos, é frequente, em caso de guerra, ficar o vencido escravo do vencedor, o que «se platica en Guinea mas que en otras partes», por serem muito pequenos os reinos e senhorios e assim se envolverem em frequentes guerras. Também entre estas mesmas gentes é lei que quem pratica certos delitos fique escravo e seja vendido, revertendo o produto para a república ou para a parte agravada, «y como son viciosos y bárbaros cometen enormes y detestables delictos por los quales segu~ sus leyes licitamente se cautiuan y vendem>. Finalmente, o terceiro título é o de os pais, em caso de extrema necessidade, poderem vender os seus filhos para bem destes, o que Mercado diz ser frequente na Guiné. Mas o nosso autor aponta que aos escravos obtidos licitamente se juntam «infinitos fingidos, o injustos, que vienen engañados, violentados, forçados y hurtados», especificando os seguintes casos: a) Às guerras justas, há a acrescentar muitas injustas, já que os Negros não se movem segundo a razão, mas sim por paixão, e, como os Portugueses e os Castelhanos pagam tanto por um escravo, mesmo sem guerra fazem caçadas uns aos outros, obtendo infinitos cativos contra toda a justiça; b) Sob o pretexto de justiça, escravizam indivíduos com todas as suas famílias, por meio de enganos e testemunhos falsos; ou armam-lhes ciladas por meio de agentes seus, que os levam aos portos a vender; c) Os pais vendem frequentemente os filhos sem ser em casos de necessidade; d) Mercadores portugueses e negros metem-se pela terra dentro, a fim de trazerem escravos à costa; e) Os mercadores europeus atraem negros aos navios por meio de enganos e, uma vez a bordo, largam do porto com eles aprisionados. Mercado diz que estes últimos casos eram então menos frequentes do que antes, porque os Negros se foram tornando mais «ladinos» e porque o rei
  • 4. de Portugal promulgou e fez executar com rigor leis penais contra tal. Mesmo assim, «ha sido siempre publica voz, y fama, que de dos partes que sale, la vna es enganada o tyranicamente cautiva, o forçada», Trata-se, portanto, de um «trato tan infamado», pelo que ninguém se deve meter nele, «no ay otro mejor medio sino desistir dello». «Suele algunos allegar que el rey de Portugal tiene consejo de consciencia y es de creer, aurã visto y examinado este negocio, digo q personas curiosas destas gradas hã escrito a Lisboa, q los Theologos de Seuilla, y Castilla les pone escrupulo en este trato, rogãdoles se informe de los de alla, y hã les respondido: pesais q tenemos aca otro derecho o otra theologia? lo q alia dize dezimos, y nos parece peor como a personas q nos consta mejor la maldad q passa.» Desde já se chama a atenção para esta informação, pois uma série de testemunhos de que adiante nos ocupamos comprova que havia em Portugal quem se preocupasse com tal «caso de consciência». Dos fins do século XVI para os começos do século XVII, foi publicado o De iustitia et iure, do jesuíta espanhol Luis de Molina, que terminara os seus estudos em Coimbra, onde foi professor antes de se destacar na cátedra de Teologia da Universidade de Évora, tendo assim podido colher informações directas em Portugal quanto ao tráfico de escravos da Guiné. Além de referir alguns dos factos e opiniões de Mercado, junta-lhes outros, e tudo submete a cerrada análise jurídica, concluindo, entre o mais, que os Portugueses não curavam de averiguar da legalidade dos escravos adquiridos na Guiné e que nem o bispo de Cabo Verde, nem os sacerdotes, nem outrem na metrópole tinha escrúpulos na matéria (IX). Esta opinião é certamente excessiva, pois chegou-nos uma carta do bispo de Cabo Verde (muito provavelmente D. Fr. Pedro Brandão), dirigida a el-rei à volta de 1600, em que propõe que sejam libertados os escravos que se cristianizarem, pelas razões seguintes: Porque humanamente se não pode atalhar aos muitos modos com que injustamente os cativam. Porque uns são furtados por força ou engano, outros condenados sem culpa a cativeiro, como são as mulheres, filhos e parentes pelas culpas dos pais, outros tomados em guerras injustas, porque não tratam de jure, senão de quem mais pode. Outros vendidos por seus pais, sem necessidade bastante; outros com um artificio fraudulento de homem morto que descubra a casa do matador, quando querem cativar algum com toda sua familia, e outros por outros modos injustos. De sorte que dizem os práticos que de mil escravos que vêm ao Reino, os novecentos são mal cativos. Nem parece que pode tal ser, porque os ministros de V. Majestade, quando muito, dão juramento a algumas pessoas que os tangomaus, ou mercantes, lhes apresentam, e juram que são escravos de boa lei, não o podendo saber, sendo trazidos de tantas e tão remotas partes. Por vezes se tratou na Mesa da Consciência do remédio, e não se acha nenhum que possa impedir estes ordinários escândalos (X). E o bispo prossegue com as vantagens de vária ordem que adviriam da libertação dos escravos que se cristianizassem. A. Brásio julga que o documento, que não está datado, poderá ser de D. Fr. Pedro Brandão,
  • 5. bispo em 1588-1608, que retirou para a metrópole em 1594 e resignou em fins de 1606. Podemos acrescentar, em reforço da sua opinião, que em 13 de Junho de 1700 D. Fr. Vitoriano Portuense, num dos seus muitos escritos em que propugnou o baptismo dos escravos, invocou o exemplo de D. Fr. Pedro Brandão, «que floresceu neste bispado há cem anos estimando como certo que os negros desta conquista de Guiné eram injustamente cativos, querendo impedir este contrato, e, vendo que o não podia, deixou o bispado, e se foi para esse reino recolher no seu cubículo». E ele mesmo afirma: «o meu escrúpulo não é tamanho que condene totalmente este negócio, pois o toleram tantos homens letrados, que permita Deus que acertem contra a opinião de muito grandes teólogos assentada sobre os fundamentos que eu mesmo em Guiné experimentei.» (XI). Em 1604 foram para as ilhas de Cabo Verde os primeiros missionários jesuítas, tendo como superior o Pe. Baltasar Barreira, e logo no ano seguinte o Pe. Fernão Guerreiro, na sua conhecida Relação Anual, publicava a seguinte notícia relativa à acção deles no campo de que nos vimos ocupando. : Também fazem muito serviço a Deus no ajudar a descativar muitos escravos, que, sendo livres, os trazem cativos injustamente da terra firme de Guiné os mercadores portugueses, que nisso tratam; principalmente quando consta, por testemunhas, da injustiça de seu cativeiro, que é ou furtando-os e metendo-os por força nos navios, ou havendo-os dos outros negros que injustamente os salteiam e cativam (porque basta virem às punhadas ou arremeter somente um ao outro, sem razão alguma, para o que mais pode cativar o outro e o vender por seu escravo), ou havendo-os também dos tangomaus, ou lançados com os negros, e que andam neste trato pela terra dentro (XII). Este trecho do Pe. Guerreiro é baseado numa carta de 19 de Abril de 1605 do Pe. Manuel de Barros, o qual acrescenta a informação de que os reis negros recorriam à prova da «água vermelha» para «destruir e vender algum fidalgo poderoso do seu reino», vendendo-lhe também «todos os que tem em casa e todos os de sua geração, suas mulheres, filhos e escravos» (XIII). A prova da «água vermelha» com a mesma finalidade também é referida pelo Pe. Guerreiro, atribuindo-a ao rei dos Cassangas, dizendo que este, para obter mais escravos, recorria a outras «tiranias a que eles chamam leis»: em caso de morte de alguém, e após a «averiguação» por meio do «jabacouce» do «homicida e feiticeiro» que «o matou e lhe comeu a alma», prisão e venda da sua família, sendo dado igual destino aos familiares dos homens que caiam das palmeiras e morram (XIV). Estas informações são claramente extraídas do Tratado de 1594 de André Álvares de Almada (XV), que, além de outros exemplos, também diz que os Mandingas do rio Gâmbia vendiam muitos escravos, uns obtidos em guerras e juízos, mas muitos outros em furtos, pelo que devia haver cuidado em lhos adquirir, embora se tivessem verificado casos em que eles os mataram após os Portugueses terem recusado comprá-los (XVI). Em 1606, o Pe Baltasar Barreira produziu uma pormenorizada informação sobre as maneiras como se faziam e traficavam escravos na Guiné (XVII),
  • 6. de que muito resumidamente se dão alguns tópicos. Não se faz nenhum exame do título do cativeiro, «nem há quem pergunte por ele», já que os armadores aceitam todos os negros que lhes levam, e os reis, para negociarem, cativam negros forros sem se importarem com a justiça ou injustiça de tal acto. Os armadores desculpam-se dizendo que não têm possibilidade de averiguar do titulo do cativeiro, até porque ordinariamente compram os escravos a tangomaus portugueses, seguem costumes antigos e morrer-lhes-ia a maior parte da armação em consequência da demora que haveria em averiguar caso por caso. Os tangomaus, por sua vez, alegam que não é costume perguntar o título do cativeiro e que correriam risco de morte se o quisessem indagar, o que, aliás, não teria interesse, já que as respostas seriam falseadas, ou pelos vendedores ou pelos escravos. Na Serra Leoa, os Manes antropófagos venderam muitos sapes vencidos aos Portugueses, tendo posteriormente um capitão da ilha de Santiago dado liberdade aos que nela então viviam. Quando querem escravos para vender aos Portugueses, fazem guerras e assaltos aos vizinhos e utilizam os condenados à morte e seus familiares. Quando um indivíduo se considera agravado de outro ou de parentes deste, quer o agravo seja grande ou pequeno, verdadeiro ou fingido, cativa-o, e por sua vez a família deste exerce represália semelhante na aldeia de onde ele provém. Se um indivíduo se quer desagravar de outro mais poderoso, dá conta disso ao rei, que procede à captura. Entre «outros modos de cativar com título de justiça» contam-se: quando há prova ou confissão de um indivíduo ser feiticeiro ou ter morto outrem com peçonha; quando um indivíduo tem relações com mulher de rei ou solicita guerra contra ele ou pede às «chinas» que o matem (neste caso, se o rei adoece, o culpado é morto ou vendido, confiscados os seus bens e cativados e vendidos os parentes). Nas averiguações recorrem à prova da «água vermelha», e, quando um que a bebe morre, considera-se isso prova de culpabilidade e deitam mão da «fazenda, filhos e mulheres». Em caso de morte de alguém, recorrem à «tumba» para averiguar quem foi o feiticeiro culpado, que matam ou vendem, igualmente vendendo os filhos e mulheres. Nalguns reinos é costume prender e vender aos portugueses as pessoas de reinos vizinhos surpreendidas a roubar frutos. Outras vezes enganam forasteiros, dizendo que lhes vão mostrar os portugueses a quem os vendem, ameaçando matar tais cativos se não lhos comprarem. Os Bijagós fazem muitos assaltos por mar aos povos vizinhos, vendendo os prisioneiros aos portugueses que vão ao seu arquipélago. A terminar, o Pe. Barreira põe à consideração se não poderia ser dada no futuro licença para comprar todos os escravos sem examinar o título do seu cativeiro, como satisfação pelos muitos roubos, agravos e mortes que os Portugueses têm sofrido na Guiné. Em cartas de 4 e 5 de Março de 1607 (XVIII), o Pe. Baltasar Barreira completa o seu juízo, nos seguintes termos: E porque esta matéria [título com que se cativam os negros da Guiné] é muito embaraçada e cheia de dúvidas, por utraque parte, não parece possível averiguar-se quais são de bom título e quais não, o qual digo
  • 7. porque o ordinário é venderem-se os negros por culpas que cometem, ou eles ou parentes e naturais seus, o qual é como lei entre todos, e sem isto não se podem governar bem, vista a sua natureza. E ainda que pode acontecer algumas vezes que se vendam sem culpa ou que a culpa não parece digna de cativeiro, para o qual entre eles basta qualquer, não é possível averiguar-se isto; e assim sou de parecer que se não pode tomar assento nesta matéria, senão que ou deve correr o trato dos escravos como até aqui ou proibir-se de todo. Na sua Etiópia Menor, o jesuíta Manuel Álvares, companheiro do Pe. Baltasar Barreira na missão de Cabo Verde e Guiné, igualmente põe em dúvida a legitimidade de muito do que se passava em tal matéria, considerando só haver quatro títulos de servidão justa: venda pelo próprio, venda por pais pobres, guerra justa, pena criminal. Contudo, era frequente o gentio biafada e banhum vender aos mercadores indivíduos com a boca tapada, para não poderem falar, ou mascarados, para não serem conhecidos. Outros abusos eram venderem muitos com títulos de feiticeiros, os tios venderem os sobrinhos (entre os Biafadas), serem cativadas as famílias das vítimas da prova da «água vermelha» e da «tumba» (Banhuns), os Bijagós assaltarem os povos vizinhos, a frequência dos «chais» (sobretudo por adultério) entre os Papéis (XIX). Outro jesuíta, espanhol, que em Cartagena (América) assistia aos escravos negros, Alonso de Sandoval, dá também, no seu conhecido livro, informações colhidas de capitães e passageiros dos navios vindos da Guíné e que coincidem com as registadas acima pelos jesuítas portugueses (XX). Não vamos alongar estas páginas com mais resumos de autores consagrados de obras impressas (como o jesuíta espanhol Thomaz Sánchez, referido, aliás, pelos autores do manifesto de Bissau de 1686) ou de informações e pareceres portugueses manuscritos de fins do século XVI e começos do século XVII, já que as opiniões coincidem entre si e com o que já vimos. O documento de 14 de Abril de 1686, a que atrás nos referimos, encontra- se na Biblioteca da Ajuda (cota actual S4-xIII-1S, n. 094, anteriormente S2- XI-9, n. 94), e tem o seguinte longo título: «Informe y relación que Fr. Francisco de la Mota, vice-prefecto de la misión de religiosos capuchinos de las costas de Guínea y sus compaiñeros hacen a su Majestad que Dios guarde el Señor Rey de Portugal del modo con que los negros de dichas costas y rios se compran y son reducidos a cautiverio». No preâmbulo que antecede a «Relación dei echo de los cautiuerios de la costa de Guinea», Fr. Francisco de la Mota - que diz haver sido nomeado vice-prefeito pelo prefeito da missão, Fr. António de Truxillo - informa haver examinado, durante os oito anos em que se encontrava na Guiné, a maneira como eram reduzidos a cativeiro os escravos, concluindo que o «contrato y compras de negros es illicito, pecaminoso e injusto», já que quase todos eram injusta e tiranicamente cativados. O mesmo afirma que não se faz - nem se pode fazer - nenhum exame da justiça dos cativeiros ao comprar os escravos, e que devem ser restituídos à liberdade os que foram adquiridos na Guiné como tais (excepto algum raro cuja legitimidade de
  • 8. escravidão se possa apurar). Dada a gravidade do caso, e o facto de desde há muito o comércio de escravos correr de tal maneira, propõe que seja consultada a Mesa da Consciência sobre a matéria. O extenso documento é assinado por Fr. Francisco de la Mota e Fr. Angel de Fuente la Peña, levando uma apostilha de confirmação de Fr. Buenaventura de Maluenda. Trata-se dos três últimos missionários espanhóis que continuavam na Guiné, de um grupo de catorze que haviam desembarcado na Serra Leoa em 1678; os restantes haviam morrido ou regressado à Espanha. Estes frades espanhóis não tinham licença das autoridades de Lisboa para missionarem na Guiné, o que originou um conflito de que aqui nos não ocupamos (XXI), tendo o Pe. Truxillo ido a Santiago de Cabo Verde e a Lisboa para solucionar a questão, acabando por serem agregados à sua missão alguns franciscanos portugueses da província dos Algarves, que não se entenderam com os seus colegas espanhóis e rapidamente deixaram a Guiné, indo no seu encalço o Pe. Truxillo, que já estava de novo em Lisboa em Novembro de 1684, partindo para Espanha poucos meses depois e desistindo do propósito de os missionários espanhóis continuarem na Guiné. É, portanto, neste ambiente de conflito e em vésperas de deixarem a Guiné que os capuchinhos espanhóis redigem em Bissau o manifesto de que nos ocupamos, facto a ter desde já em conta para uma melhor compreensão das razões que os poderão ter levado a esse acto; com efeito, a 26 de Março de 1686 já se encontrava em Bissau o capucho português Fr. Francisco de Pinhel, a quem os missionários espanhóis entregariam o hospício e a igreja (XXII). No documento consideram-se oito áreas geográficas, de sul pa¬ra norte, analisando-se em cada uma delas as diferentes formas de escravização. Assim, na área da Serra Leoa (ou, mais propriamente, entre o rio de Madrebomba e o rio Ponga), onde viviam manes, bagas, bolões, logos, sossos e limbas, eram três os modos usuais de cativar negros: a) por delitos (chamados chais), incluindo a acusação de feiticeiro (cuja averiguação era feita por sortes ou mediante veneno dado a beber, isto é, pela tradicional e generalizada prova da «água vermelha»); b) venda das crianças limbas pelas mães; c) por assaltos levados a cabo pelos Fulas. Sobre o rio Nuno as informações eram mais escassas, por lá não haverem estado os capuchinhos espanhóis, mas presumia-se que os negros aí vendidos provinham dos assaltos dos Fulas e dos chais dos Bagas. O arquipélago dos Bijagós era o maior centro de venda de escravos, obtidos por três maneiras: a) por delitos ou chais (cuja averiguação se podia fazer mediante o sacrifício de galinhas a que eram cortadas as cabeças, vendo para onde caía o corpo); b) venda dos familiares e escravos de um morto pelo seu herdeiro; c) assaltos e roubos de gente levados a cabo pelos Bijagós entre as populações vizinhas do continente e ilhas próximas (era esta a principal origem dos escravos vendidos pelos Bijagós). Entre os Biafadas compravam-se poucos negros, pois não furtavam muito; eram frequentes os chais. Os autores, por engano, incluem entre os Biafadas o rei do Cabo, que era território de Mandingas; esse rei, bastante cruel, cativava muita gente em guerras.
  • 9. Na ilha de Bissau, os habitantes obtinham escravos por meio de assaltos por mar, à maneira dos Bijagós, e através de chais. Entre Bissau e Cacheu, os Balantas e Felupes eram dados a investir as embarcações quando naufragadas, matando os brancos e cativando os negros, vendendo os que antes eram escravos e resgatando os que eram livres. No rio de Cacheu, os Felupes, Papéis e Banhuns faziam guerra entre si para «amarrar» escravos, obtendo outros por meio de chais. Nos rios Gâmbia e Senegal, onde comerciavam franceses e ingleses, os missionários não tinham experiência directa, mas, segundo informações colhidas de um francês, a injustiça dos cativeiros ainda ultrapassava a que se verificava nas zonas mais a sul. E os autores do manifesto, após esta análise, concluem pela injustiça da quase totalidade dos casos de cativeiro e «ser injusto y contra conciencia dicho comercio de parte de los mercaderes, y aun de los que los compran en Europa». No entanto, admitindo poderem estar enganados, pedem a el- rei de Portugal que lhes faça ver o erro ou, no caso de estarem na verdade, que proíba o comércio de escravos. Adiante veremos como os capuchinhos espanhóis não tinham afinal dúvidas sobre o caso, apesar do que escreveram nesta parte do manifesto. A todas as ilegalidades já apontadas, eles acrescentam ainda uma série de inconvenientes que acarretava o comércio de escravos: a) Os compradores de escravos são os responsáveis pelas injustiças dos que os «amarram», pois, se não houvesse aqueles, os últimos dedicar-se-am a outras actividades; b) Os Bijagós e os Papéis fazem sacrificios de animais em honra dos mercadores, o que é coisa abominável; c) A abundância de escravos provocara o descrédito do trabalho entre os homens livres; d) Dada a abundância de escravos, as sociedades não se podem governar cristamente, pois predomina a concubinagem; e) As «amarrações» provocam o ódio dos parentes dos cativos contra os Brancos, o que impede estes de penetrar pela terra dentro; f) A sucessão de contínuas desgraças, que os Brancos aceitam como castigo divino pela injustiça do tráfico de escravos. Havia, segundo os autores do manifesto, a consciência geral de que, se só se comerciassem escravos legítimos, o tráfico terminaria totalmente, pelo que os comerciantes davam como desculpas que não furtavam os escravos e não sabiam se estes eram furtados, que assim os traziam à cristandade, que era prática antiga não proibida pelos reis nem pelos bispos. E os missionários terminam com novo apelo, para que el-rei mande examinar o caso. Fr. Francisco de la Mota e os seus companheiros não se limitaram a enviar este manifesto ao rei de Portugal, pois chegaram-nos testemunhos claros de que entregaram ou enviaram documentos afins (não exactamente iguais) a outras pessoas e entidades. Com efeito, La Courbe diz que eles combatiam a escravatura e que fizeram um manifesto em latim que enviaram para Espanha, para Portugal e para Itália, tendo-lhe dado outro para que o levasse para França. Na realidade, no próprio relato de La Courbe encontra-se o testemunho de que ele se utilizou do manifesto, pelo menos na enumeração dos rios e povos para sul do rio Grande
  • 10. e dos Bijagós (XXIII). E, como se viu no começo deste capítulo, igualmente Labat fala do manifesto, dizendo que, no regresso à Europa, os seus autores também o levaram para a ilha Martinica, onde não gostaram dele. Como era de esperar, também o manifesto se divulgou entre os capuchinhos de Espanha. Assim, o Pe. Mateo de Anguiano, na sua crónica das missões dos capuchinhos espanhóis em África, escrita pouco depois, tem dois capitulos (XIV e XV), intitulados «De los abusos tiránicos que ha introducido el demonio de la avaricia en las partes de Guinea con la ocasión dei comercio de los esc1avos» e «Prosiguese la materia del capitulo precedente y los lastimosos abusos y crueldades que se practican en Guinea», que contêm o mesmo género de informação e a mesma doutrina do «Informe y relación» dirigido ao rei de Portugal. Têm, no entanto, certas variantes e aperfeiçoamentos, o que nos leva a supor que terão base em documento mais desenvolvido, talvez posterior (XXIV). Em Fevereiro de 1687, os cardeais da Propaganda Fide ocuparam-se de um relatório acerca da escravatura na África ocidental, e que lhes chegara através do núncio em Portugal, a quem o haviam remetido missionários da Guiné. Desconhece-se hoje o paradeiro desse relatório, mas o conteúdo das actas daquela congregação levou a supor que o seu autor seria Fr. Francisco de la Mota (XXV). Podemos agora confirmar que existe notável identidade de informação e doutrina entre o perdido relatório (através do que dele dizem aquelas actas) e o manifesto dirigido ao rei de Portugal e assinado em primeiro lugar por aquele capuchinho (XXVI). Mas o relatório ia bastante além do manifesto, pois daquelas actas se deduz que os seus autores afirmavam haver negado os sacramentos aos comerciantes de escravos que se recusavam a abandonar as práticas ilicitas, diziam praticarem-se na Guiné todo o género de abusos que reduziam a zero o trabalho missionário e solicitavam o poder para impor censuras. Não desejamos profundar aqui o assunto, até porque não estamos de posse de todos os elementos documentais existentes. É evidente que o manifesto dos capuchinhos espanhóis enviado a D. Pedro II contém doutrina certa, no campo jurídico e moral, mas suspeitamos, com bom fundamento, que não foi apenas a defesa dessa doutrina que levou tais missionários a agir da maneira como o fizeram. Com efeito, o manifesto contém factos que - são os próprios autores a dizê-lo - eram do conhecimento geral na Guiné, e no campo jurídico não tem qualquer novidade, pois a generalidade dos casos de cativeiro ilícito que apresentam já fora denunciada por juristas espanhóis e missionários portugueses desde mais de um século antes; apenas se pode dizer que especifica mais pormenorizadamente esses casos por áreas e por grupos étnicos. Quando o documento foi redigido, já Fr. Francisco de la Mota devia saber que em breve os capuchinhos espanhóis iam ter de abandonar a Guiné, pois o seu prefeito, Fr. António de Truxillo, já decidira esse abandono mais de um ano antes e havia partido de Lisboa para Espanha(XXVII). Encontrando-se na Guiné desde há oito anos, essa iminência de partida talvez explique porque terão decidido escrever o manifesto, e não antes; e uma passagem de Labat, que tudo faz crer ser respigada no trecho perdido do relato da viagem de La Courbe, mostra que poucos meses depois da data do manifesto eles «pensavam retirar-se e abandonar uma terra tão ingrata» (XXVIII). É também sintomático que se tenham abstido de introduzir no documen¬to em questão qualquer reprovação
  • 11. ou simples referência aos seus concidadãos espanhóis no que respeita ao tráfico de escravos, quando uma parte, pelo menos, dos capuchinhos espanhóis idos para a Guiné desde 1648 embarcara para ai em navios negreiros espanhóis. Têm uma palavra de reprovação para os que compravam escravos da Guiné na Europa, enquanto calam os que o faziam na América espanhola, para onde (salvo curtos períodos) seguia a maior parte dos escravos dessa área, como era do conhecimento geral. Afigura-se-nos que o impulso que levou ao envio do manifesto antiesclavagista ao rei de Portugal não obedeceu exclusivamente a puros intuitos morais, até porque nele se pede, para própria elucidação dos autores, que o caso seja examinado pelos juristas, enquanto no documento afim enviado ao núncio em Portugal com destino a Roma se afirma redondamente a ilegitimidade da quase totalidade dos cativeiros e se anuncia haverem sido recusados os sacramentos aos que persistiam nesse tráfico. No fundo, as velhas rivalidades entre Portugueses e Espanhóis e entre ordens religiosas devem ter tido a sua quota-parte na decisão de enviar manifestos - não inteiramente concordantes, como vimos - para várias entidades e para vários países. Mas, tomamos a salientar, não desejamos deixar aqui uma opinião categórica em matéria de tanto melindre, até por falta de elementos documentais; o nosso principal intuito é o de divulgar o texto do notável «Informe y relación» dirigido ao rei de Portugal pelos últimos capuchinhos espanhóis que estiveram em Bissau, o que permitirá a outras pessoas profundarem o assunto. Não encontrámos qualquer testemunho documental concreto sobre o que D. Pedro II terá feito depois de receber tal manifesto. No entanto, dentro do caderno onde ele está redigido (e que tem a cota 94) vem um papel pequeno, solto, com o n.o 94-a, que, por estes factos e pela sua natureza, constitui muito provavelmente - sem que possamos ter a certeza - a minuta (tem várias emendas) de um parecer redigido por um religioso anónimo acerca da matéria exposta pelos capuchinhos espanhóis. Eis o seu texto: Voto sobre o resgate dos negros da costa de África. Vi estes papéis tocantes ao resgate dos negros pela costa de África e o que não era de segredo comuniquei a alguns padres que estiveram em Angola, e aos lentes de Teologia deste Colégio, e todos uniformemente julgaram que Sua Majestade que Deus guarde podia sem [...] a consciência mandar fazer os ditos resgates com as cláusulas seguintes: Item - que em cada lugar de resgate se ponha um feitor, com um clérigo natural da terra que saiba a língua, homens de sã consciência; Item - que estes em primeiro lugar examinem exactamente se são os negros justamente cativos encarregando-lhes Sua Majestade muito este ponto e declarando-lhes que não se há-de dar por bem servido por resgatarem mais negros, senão por justificarem com maior cuidado os seus cativeiros. Item - que os títulos justificados de cativeiros são quatro: o 1º de guerra justa; o 2º dos que de pais e avôs eram já cativos; o 3º dos que estavam para o talho; o 4º daqueles que por delitos graves estavam condenados à
  • 12. morte ou a cativeiro perpétuo segundo as leis ou costumes das terras, não aprovando porém o cativeiro daqueles que o incorreram por furtos leves, ou delitos semelhantes de pouca substância. Item - que o clérigo tenha grande aplicação a catequisar os negros, ensinando-lhes os mistérios da fé, e baptizando-os, e sem esta instrução na fé e baptismo nenhum se embarque. Com estas cláusulas satisfaz Sua Majestade a sua consciência e, se houver alguma desordem, ficará carregando sobre as consciências dos tais oficiais, como sucede no governo universal de todo o Reino, em que Sua Majestade não tem mais obrigação que de pôr seus (?) ministros, e castigá-los pelos erros de seus ofícios constando-lhe deles. Embora tudo pareça estar certo, teoricamente, a colocação de um feitor e um clérigo natural da terra em cada lugar de resgate seria muito difícil na prática, e não veio a verificar-se. Acerca doutro ponto do mesmo documento, o do penúltimo parágrafo, é interessante notar que o bispo D. Fr. Vitoriano Portuense, que iria para Cabo Verde poucos anos depois, procurou dar realidade à catequização e baptismo dos escravos antes de embarcarem, o que pode ser consequência deste e de outros «votos» semelhantes que tivessem sido redigidos a propósito do manifesto dos capuchinhos espanhóis. Ao fim e ao cabo, o Pe. Baltasar Barreira, no começo do século, tinha razão - não havia possibilidade prática de averiguar a legitimidade dos cativeiros, pelo que o tráfico de escravos devia correr como até então, ou acabar por completo; nada de meias-medidas. E foi o que, afinal, sucedeu por muito tempo após a saída dos missionários espanhóis de Bissau - tudo continuou como antes, aí e por toda a costa de África. Só mais de um século e meio volvido o repugnante tráfico seria extinto. Mas para isso foi necessário um conjunto de circunstâncias políticas e económicas favoráveis (em que avultam a independência dos Estados Unidos da América e a revolução industrial na Inglaterra), um grande movimento internacional de opinião pública, a actuação conjugada de vários países e a utilização de poderosos meios materiais. Ao contrário do que pensavam e proclamavam os capuchinhos espanhóis de Bissau, não bastava coarctar a actuação dos negreiros na parte da Guiné onde comerciavam os Portugueses. Havia muita gente - branca e negra - e muitos interesses - de europeus, americanos e africanos - envolvidos no odioso tráfico, para que ele pudesse cessar com as simples medidas unilaterais que eles preconizavam. Chegamos, assim, ao fim deste estudo de um curioso período da história de Bissau, terra bem mais falada e discutida hoje em dia por esse mundo fora do que o era ainda há poucos anos. Seguem-se os textos que ilustram os aspectos apresentados e outros documentos que comprovam as conclusões a que se chegou.
  • 13. NOTAS I - J. B. LABAT, ob. cit. t. v, cap. VII, pp. 216-220. II - ÉTlENNE-FÉLIX BERLIOUX, Andre Brüe ou I'origine de la Colonie Française du Sénégal, Paris, 1874, pp. 151-155. Como La Courbe partiu de Bissau em Fevereiro de 1687, e os capuchinhos espanhóis só depois disso largaram de lá, a referência de Labat ao seu regresso à Europa via Martinica mostra que acrescentou nessa parte o texto de La Courbe. III - História da Guiné, pp. 140-141,289. Também A. LOURENÇO FARINHA, ob. cit., p. 76, julga que o bispo esteve ligado à atitude dos frades de Bissau, e nós mesmos, algures, caímos em idêntico erro. IV - Publicada por CARROCERA, in ANGUIANO, ob. cit. II, pp. 297-298. Na última página do artigo referido na nota 6 escrevemos erradamente que o manifesto era de Abril de 1684. V - In Studia, 3, Janeiro de 1959, pp. 304-305. VI - O que não é verdade; quanto à África ocidental, veja-se J. D. FAGE, «Slavery and the slave trade in the context of West African history». in Journal of African History, 10 (1969),3, pp. 393-404. VII - FERNANOO OLIVEIRA, Arte da Guerra do Mar, Coimbra, 1555, 1ª parte, cap. III; há reedições de 1937 e 1969, Lisboa, com comentários de QUIRINO DA FONSECA e de BOTELHO DE SOUSA. VIII - THOMAS DE MERCADO, Tratos y contratos de mercaderes y tratantes, Salamanca, 1569, 1º Tratado, cap. XV. IX - LUIS DE MOLlNA, De Justitia et Iure, trat. II, disps. 34 e 35. X - Biblioteca da Universidade de Coimbra, mss. 465, tls. 14-14 v., publ. por A. BRÁ¬ 510, Monumento Missionaria Africana, 2ª sér., III, pp. 442-446. XI - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Cabo Verde, caixa 6. XII - FERNÃO GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas partes da lndia Oriental, e no Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné {...}, Lisboa, 1605, liv. IV, cap. VIII, fl. 130. XIII - Arquivo Romano da Sociedade de Jesus, Lusitania, 83, fl. 351 v. XIV - Ob. cit., cap. IX. XV - ANDRÉ ÁLVARES DE ALMADA, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, cap. VIII. XVI - Ob. cit., cap. V. XVII - Academia Real de la Historia, Madrid, Papeles de Jesuítas, ms. 185, nº 15. O documento não tem data nem assinatura, mas duas cartas do P.. Baltasar Barreira, de 4 e 5 de Março de 1607, permitem concluir que este foi o seu autor e que o documento já estava pronto em Julho de 1606. Essas cartas são publicadas por A. BRÁSIO, ob. cit., IV, pp. 220-228, e aquele documento a pp. 190-199. XVIII - Ver nota anterior. XIX - MANUEL ÁLVARES, Etiópia Menor, parte 1ª, caps. V, VI, VII, IX e XI. XX - ALONSO DE SANDOVAL, Naturaleza, policia sagrada i profana, costumbres i ritos, disciplina i catechismo evangelico de todos Etiopes, Sevilha, 1627, liv. I, cap. XVII. XXI - O assunto é tratado na crónica do Pe. MATEUS DE ANGUIANO editada por CARROCERA, tendo-se o Pe. FRANCISCO LEITE DE FARIA (ob. cit., na nota 50) debruçado sobre ele e mostrado a falta de isenção deste último padre espanhol nas conclusões que apresenta. XXII - F. LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 306. XXIII - CULTRU, Premier voyage du Sieur de La Courbe fait a la Coste d'Afrique en 1685, Paris, 1913, pp. 212 e 254-255. XXIV - Nas notas ao «Informe y relación» (F) indicam-se com algum pormenor as diferenças em relação ao texto da crónica do p.e Anguiano. XXV - RALPH M. WILTGEN, Gold Coast Mission History 1471-1880, 1956, pp. 96-97. XXVI - Não examinámos as referidas actas, mas baseamo-nos no resumo que delas é dado na ob. cit., na nota anterior, pp. 97-98. XXVII - LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 302. XXVIII - LABAT, ob. cit., v, p. 216. Avelino Teixeira da Mota, As Viagens do Bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné e a Cristianização dos Reis de Bissau, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1974