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Uma estrela
Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em
dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos
recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom
sentir as grandes fatias despregarem-se da areia, dos muros ou dos
troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira.
Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que hoje
se chamaria as estruturas, ou mesmo as infraestruturas, junto da
parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas
de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao
mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde, os rios e os lagos, com
bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes,
caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo.
Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.
Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A
cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que
era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica
ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia,
passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista batizava nas
águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser o Sinai ou talvez o último lugar onde Moisés, sem lá
entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel.
Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro
comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava
à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas
não, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para
trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns
amigos, todos a caminho de Belém.
— E a avó? — perguntava eu.
— Eu já estou velha para essas andanças.
De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais
rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam
cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda
não se via a cabana, nem Maria, nem José.
Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas.
— Esta é a estrela — dizia a avó.
Era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos,
explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau.
Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do
fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os
mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente/Já chegaram a Belém.”
— Não chegaram nada — atalhava a avó — ainda não.
Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-os
um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais
cedo a avó ia pôr a cabana.
Mas ela descobria.
— Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.
Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a
estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à
janela e via a projeção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma
estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na
sala, na Judeia, talvez dentro de nós.
Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão (nós dizíamos
forro), abria uma velha arca e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre com
lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.
— Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós.
Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José.
A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.
À noite, quando regressávamos da Missa do Galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente
estávamos em Belém.
A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde
Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos
animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino
o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e
vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não éramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em
carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio,
brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós.
Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos
chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente,
Magos, não consegui deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeira mágica, era a avó. Era ela que
fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa, levava-nos a todos até Belém. O
cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para
Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de
nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia, Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até
Belém.
Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal, os revolucionários ficavam tristes e
nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa
deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo
os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses
conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse
mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios é o de se sentir
estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as
crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas
vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo
aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre
perdido.
Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui
capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada num sexto andar duma velha rua do
Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrô onde costumava comer uma
omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários
no bistrô, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para
partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo.
— Conta uma história de Natal do teu país — pediu o velho.
— Só se for a do presépio da minha avó.
— Então conta.
Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua, o africano
apontou para o céu e disse-me:
— Olha.
E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da
avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros
três.
Então eu perguntei ao africano como se chamava. Ele respondeu:
— Baltazar.
Perguntei ao velho e ele disse:
— Melchior.
E sem que sequer eu lhe perguntasse, o eslavo disse:
— O meu nome é Gaspar.
Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do
Oriente, Magos, diria o meu pai.
— E agora? — perguntei a Baltazar.
— Agora — respondeu o africano apontando a estrela — agora vamos para Belém.
Manuel Alegre
O Natal em que fiquei rica
Ser pobre e satisfeito é ser rico. E bastante rico.
William Shakespeare
Havia uma árvore naquele Natal. Não tão grande e frondosa como outras, mas estava pejada
de enfeites e tesouros e resplandecia de luzes. Havia presentes, também. Alegremente embrulhados
em papel vermelho ou verde, com etiquetas coloridas e fitas. Mas não tantos presentes como de
costume. Eu já tinha reparado que a minha pilha de presentes era muito pequena.
Nós não éramos pobres. Mas os tempos eram difíceis, os empregos escassos, o dinheiro à
justa. A minha mãe e eu partilhávamos uma casa com a minha avó e com os meus tios. Naquele
ano da Depressão, toda a gente espaçava refeições, levava sanduíches para o trabalho e ia a pé
para poupar nos bilhetes de autocarro. Anos antes da Segunda Guerra Mundial, já vivíamos no dia-
a-dia, como muitas outras famílias, o que então se iria ouvir como slogan: “Usa-o, aproveita-o ao
máximo; faz com que funcione, ou passa sem ele.”
Havia poucas escolhas. Compreendia pois porque era tão pequeno o meu monte de
presentes. Compreendia, mas sentia, ainda assim, uma ponta de pesar à mistura com um complexo
de culpa. Sabia que não poderia haver surpresas empolgantes naquelas poucas caixas
vistosamente embrulhadas. E sabia que uma delas tinha um livro. A minha mãe arranjava sempre
um livro para mim. Mas nada de vestidos novos, camisolas ou um roupão acolchoado e quentinho.
Nenhum dos miminhos tão desejados na altura do Natal…
Havia uma caixa com o meu nome da parte da minha avó. Guardei-a para o fim. Talvez fosse
uma camisola nova, talvez um vestido — um vestido azul. A minha avó e eu gostávamos ambas de
lindos vestidos e de todas as tonalidades de azul. Soltando os devidos “Ohs” e “Ahs” ao ver a
aromática barra de sabonete feito de mel, as luvas vermelhas, o já esperado livro (um novo da
Nancy Drew!), rapidamente cheguei àquele último embrulho. Dei por mim a sentir uma centelha do
entusiasmo do Natal… Era uma caixa bastante grande. Com vergonha de mim mesma por ser tão
gananciosa, por esperar receber um vestido ou uma camisola (mas esperando na mesma!), abri a
caixa.
Meias! Só meias! Soquetes, meias altas, até mesmo um par daquelas meias horrorosas de
algodão branco que estavam sempre a escorregar e se enrodilhavam em volta dos joelhos.
Esperando que ninguém tivesse dado conta do desapontamento, peguei num dos quatro
pares e agradeci à minha avó, com um grande sorriso. Ela também sorria. Não com o seu sorriso
educado e distraído de “Sim, querida,” mas com o seu sorriso feliz e radiante, de “Isto são coisas
importantes para uma mulher!” Será que me esquecera de alguma coisa? Olhei de novo para a
caixa no chão — nada, a não ser as meias. Só que agora eu conseguia ver que havia outro par por
debaixo do que eu tinha pegado. Duas camadas de meias. E mais uma! Três camadas de meias!
A sorrir de verdade, comecei a retirá-las da caixa. Meias cor-de-rosa, meias brancas, meias
verdes, meias de todos os tons inimagináveis de azul. Toda a gente estava a olhar, rindo comigo,
enquanto eu atirava as meias ao ar e as contava. Doze pares de meias!
Levantei-me e dei um abraço tão apertado à minha avó que até nos doeu às duas. “Feliz
Natal, menina Joan!” disse ela. “Agora, todos os dias, terás muitas escolhas a fazer. Estás rica,
minha querida! ” E era verdade. Naquele Natal e durante todo o ano, todas as manhãs, eu escolhia
do meu elegante armário da roupa interior qual o par de meias a usar. E sentia-me rica. E ainda
sinto!
Mais tarde, a minha mãe disse-me que a minha avó tinha andado a esconder aquelas meias
durante quase um ano — poupando todas as moedinhas, comprando um par de cada vez. Um dia,
tendo visto um lindo par de meias azuis com as beiras elásticas bordadas à mão, ela pedira mesmo
ao compreensivo vendedor para deixar um sinal a reservá-las durante três semanas.
Dentro daquela caixa estava embrulhado um ano de amor.
Foi um Natal que eu nunca esquecerei.
A prenda da minha avó mostrou-me como as pequenas coisas podem ser importantes.
E como o amor nos faz a todos imensamente ricos.
Joan Cinelli
Jack Canfield & Mark Victor Hansen
Chicken Soup for the Soul – Christmas Cheer
Chicken Soup for the Soul Publishing, LLC, 2008
(Tradução e adaptação)
A esperança brilha como um diamante
— Já não se vê a Sr.ª Bravoure ir comprar o jornal.
— A Sr.ª Bravoure tem um ar triste. Compreende-se.
Depois do que passou nestes seis meses.
— A Sr.ª Bravoure não anda bem. Já não liga ao jardim.
Junto da casa tapada pela sebe, o coro da vizinhança
aumenta o seu murmúrio de amizade. Mas a Sr.ª Bravoure não tem cura. Para falar a verdade:
não se preocupa com nada. Juntamente com o seu velho, com o seu companheiro, enterrou o
prazer de existir no dia a dia: a primeira chávena de café tomada lado a lado na varanda com a
janela escancarada sobre o jardim, o jornal longamente comentado na cozinha iluminada por
um ramo de chagas cor de laranja, as compras feitas em amena cavaqueira na mercearia, os
serviços prestados a este e àquele, a expedição mensal à cidade próxima para se encontrarem
com a neta recém-casada, o cheiro dos crepes à quarta-feira – um hábito herdado das merendas
de antigamente, quando o pequeno (que tem agora cinquenta anos) partilhava da vida deles – a
missa das seis da tarde na igreja matriz, o telejornal…
Já não tem gosto em nada. Ela, que atravessou com tanta valentia a doença prolongada de
Paulo, o seu marido – “Tem mais três meses, no máximo” prevenira o médico do hospital; à
força de cuidados, ela prolongou-os por mais seis meses – ela, que lhe deu a mão até ao último
instante com um sorriso corajoso, não para lhe mentir, mas para ele não se sentir demasiado
culpado por lhe tornar os dias pesados, por a deixar pelo caminho. E eis que agora se vai
abaixo.
A Sr.ª Bravoure já nem se reconhece, nem sabe onde estará a energia, o seu dinamismo por
todos conhecido. Um grande buraco negro. De noite, sonha: as suas mãos escorregam na parede
a que tenta agarrar-se para subir. Não há nada a fazer. Nem as visitas calorosas, nem as cartas
de encorajamento, nem as atenções com que uns e outros a rodeiam. Ouve as palavras deles,
sim, mas como um murmúrio longínquo. Mordisca com a ponta dos lábios a tarte ainda quente,
lê cada vez com mais dificuldade os postais enviados de Itália pelo filho. Tudo fica de fora sem
a atingir.
“Desta vez desci um degrau da escada.”
Nunca esqueceu aquela representação simbólica da vida, observada no museu das artes
populares, por altura de uma visita com o marido (há quanto tempo isso foi?)
— Sr.ª Bravoure, porque não se anima? Não devia ficar assim sozinha. Venha tomar o café a
minha casa, é descafeinado.
— Muito obrigada, Sr.ª Lara, agora não. Ainda não acabei de separar os fatos do meu Paulo.
A Sr.ª Bravoure sabe muito bem que ainda não é hoje que vai realizar aquela tarefa superior
às suas forças. Vai ficar sentada na penumbra e esperar, nem ela sabe bem o quê, e, com
certeza, amanhã será igual.
Quem estará a tocar à campainha a esta hora? “Depois das onze horas, não abra a porta a
ninguém”, recomenda-lhe o filho em todas as cartas. “Há por aí pessoas mal-intencionadas”.
Mas a campainha continua a tocar e a Sr.ª Bravoure não resiste. Pega no casaco à entrada,
acende a luz do pátio e corre até à grade de madeira que já devia ter sido pintada. Uma silhueta
um pouco volumosa… uma mulher.
— Maria!
Caíram nos braços uma da outra. Ao apertar Maria contra si, a Sr.ª Bravoure sentiu-lhe o
ventre redondo de grávida.
— Maria! Bons olhos te vejam! Não contava contigo a esta hora… Vá, entra!
A Sr.ª Bravoure retomou a sua natural vivacidade para tirar o casaco da jovem, aquecer água,
acender as luzes.
— Não tens frio? Posso aumentar o aquecimento.
Segura as perguntas impacientes.
— Comes uma sopinha de ervilhas?
— Dá-me licença que me deite um bocadinho?
— Estás em tua casa, Maria.
Paulo não suportava que nenhuma criança ou Maria se deitassem no canapé da sala de
visitas.
— Isso não se faz — protestava ele.
— Mas, Paulo, não faz mal a ninguém e bem vês que ela está cansada!
A Sr.ª Bravoure dirigia-se mentalmente ao ausente, como faz cada vez com mais frequência.
Uma recordação de infância: a avó – que resmungava sozinha na cozinha. “Tenho de estar
atenta. Vou acabar por ficar meio maluca.”
Deitada, Maria recompõe-se. Terá sido a sopa com que se deleitava durante os meses em
que partilhara a vida do casal?
O diretor da escola tinha anunciado, pouco à vontade:
— O Sr. e a Sr.ª Bravoure podiam prestar-me um serviço? Acolher por seis meses uma
professora provisória, assegurar-lhe estadia e alimentação. Como sabem, não há hotel na aldeia
e eu ficava tranquilo se ela ficasse em vossa casa. É muito jovem.
Disseram sim sem hesitar: o quarto do filho continuava vazio.
Assim surgira Maria: as suas saias floridas, o seu entusiasmo, as buzinadelas, as pilhas de
cadernos para corrigir.
— Sr. Paulo, o senhor, que tem uma boa ortografia, será que podia dar uma olhadela a estes
ditados? Ainda tenho uma aula para acabar de preparar para amanhã.
Enquanto preparava a refeição da noite, a Sr.ª Bravoure regozijava-se ao ver Paulo pôr os
óculos, munir-se de uma caneta Bic vermelha e consultar o dicionário. Ela sorria quando o
ouvia indignar-se:
— Não é possível! Eles estão a fazer de propósito! No meu tempo…
— Ainda têm de aprender, Sr. Paulo. É para isso que vêm à escola. E depois gostam mais de
ver a telenovela do que estudar a gramática.
Seis meses, tinha dito o diretor. Os Bravoure desejavam que a substituição se prolongasse,
mas o professor, já restabelecido, retomara o seu posto e Maria, sem trabalho, tinha aceite um
compromisso em África. Tinham-na acompanhado à estação. Riam, mas nenhum dos três se
sentia à vontade.
— Escrevo-lhes já amanhã, prometo! — gritava Maria pela janela, enquanto o comboio ia
ganhando velocidade.
Cumprira o que prometera durante um ano. Envelopes aéreos chegaram à caixa do correio e
mantiveram-nos ao corrente das atividades de Maria. De facto, ela quase não tinha outra família
a não ser eles, visto que, depois da morte da mãe, o pai se afastara lentamente dela para se
dedicar aos filhos pequenos nascidos de um segundo casamento.
Depois, o correio começou a rarear. Uma breve mensagem pelo Natal: “Tenho-vos presentes
no meu pensamento”. Talvez tenha uma paixão, sugerira Paulo, com os olhos postos no mapa
detalhado da região onde Maria exercia os seus talentos.
A Sr.ª Bravoure lembra-se daquela rapariga, de cabeleira loura a esvoaçar quando corria:
“Vou chegar atrasada! Até ao meio-dia…” e o portão já estava a bater.
Estes jovens são incapazes de acordar a horas – dizia Paulo mal-humorado.
— É porque esteve a trabalhar até à meia-noite com os preparativos para o dia da Mãe,
Paulo.
A Sr.ª Bravoure pergunta:
— Quando é que a criança vai nascer?
— No princípio de janeiro. Estou com medo…
É a mesma Maria ousada e sem medo que disse aquilo? A Sr.ª Bravoure observa o rosto
marcado pelas manchas da gravidez sob o tufo de cabelos macios, presos por um elástico.
— De que tens medo, Maria?
E é o dilúvio, as lágrimas tanto tempo contidas. Vem tudo arrastado pela corrente: em
África, o enfermeiro admirado, amado, desaparecido, o período atrasado, a suspeita de
gravidez, o diálogo com esta criança que já mexe e que nada pedira, a anemia e o regresso
forçado ao país, a desorientação e, de repente, a esperança: “O Sr. e a Sr.ª Paulo”. Na estação, o
empregado reconhecera-a e informara-a da morte do Sr. Bravoure. Demasiado tarde para recuar
caminho.
— Está-se bem em sua casa.
A Sr.ª Bravoure olha para a sala de visitas aquecida pelas três lâmpadas. “Amanhã tenho de
substituir o ramo das flores secas. Não, vou ao mercado comprar ásteres.”
— Queres crepes para a noite?
— Como é que adivinhou? — Maria admira-se. — A criança vai sentir o cheirinho. É um
rapaz. A ecografia é nítida. Posso voltar a ocupar o meu quarto?
— A Sr.ª Bravoure recuperou o ânimo desde que a filha – bem, é como se fosse – regressou.
Já voltou ao que era.
— Eu reparei. Maria está quase no fim do tempo, não?
— Estou a tricotar um casaquinho para o menino.
Murmúrios. Vozes conhecidas. Fadas à volta de um berço.
Na noite de Natal, quando começava com os preparativos para a ceia a duas, Maria perdeu as
águas. A Sr.ª Bravoure acompanhou-a na ambulância até à maternidade da cidade.
— O seu companheiro não está presente para a acompanhar na sala de parto? — perguntou a
parteira de serviço.
— É a minha avó que vai ficar ao meu lado — soprou Maria entre duas contrações.
À meia-noite, a Sr.ª Bravoure, extenuada, tem nos braços um minúsculo Paulo aos berros.
Natal. Nasceu-nos um menino.
Colette Nys-Mazure
Contes d’Espérance
Paris, Desclée de Brouwer, 1998
A manhã do Dia de Natal
Rob tinha quinze anos e vivia numa quinta. Todas as
madrugadas se arrastava para fora da cama para ajudar a mungir.
Às vezes, sentia que o esforço era demasiado. Rob gostava do pai.
Não sabia até que ponto, quando um dia, um pouco antes do Natal,
ouviu o pai a dizer à mãe
― Mary, custa-me muito chamar o Rob de manhã. Ele está a
crescer muito depressa e precisa de dormir. Gostava de conseguir
desembaraçar-me sozinho.
― Mas não consegues, Adam.
A voz da mãe era determinada.
― Eu sei ― disse o pai lentamente ― mas a verdade é que me custa mesmo ter de o chamar.
Ao ouvir estas palavras, Rob sentiu algo a mexer dentro dele: o pai amava-o! Nunca antes
pensara nisso. Passou a levantar-se mais depressa. O sono fazia-o tropeçar e vestia a roupa com os
olhos bem fechados. Mas, mesmo assim, levantava-se.
Na véspera de Natal do ano em que fazia quinze anos, estava deitado a olhar pela janela do
sótão e a desejar ter um melhor presente para o pai do que uma gravata de dez cêntimos comprada
na loja. Lá fora, as estrelas brilhavam, e havia uma em particular que lhe parecia ser a Estrela de
Belém.
― Pai ― perguntara uma vez ― o que é um estábulo?
― É apenas um celeiro como o nosso ― respondera o pai.
Então Jesus nascera num celeiro, e fora para um celeiro que os pastores e os reis magos se
tinham dirigido, com os seus presentes de Natal. Ficou siderado com a ideia. Porque não dar um
presente especial ao pai? Podia levantar-se cedo, mais cedo do que as quatro horas, e esgueirar-se
para o celeiro para mungir. Faria tudo – mungir e limpar – sozinho. Quando o pai chegasse, veria
tudo já feito. E saberia quem o fizera.
Nessa noite, deve ter acordado umas vinte vezes. Às três menos um quarto, levantou-se e
vestiu-se. Desceu silenciosamente as escadas, tendo especial cuidado com as tábuas que rangiam,
e saiu. Uma grande estrela cor de ouro avermelhado pairava por cima do celeiro. As vacas olhavam-
no, sonolentas e surpreendidas. Nunca antes mungira sozinho, mas parecia fácil. Não parava de
pensar na surpresa que o pai teria. Sorria e mungia com segurança, deitando para a selha dois
fortes jatos, espumosos e perfumados. As vacas estavam surpreendidas mas anuíam. Era a primeira
vez que se portavam bem, como se soubessem que era Natal. A tarefa foi desempenhada com mais
facilidade do que habitualmente. Pela primeira vez, mungir não era penoso. Era algo de diferente:
um presente para um pai que o amava. De volta ao quarto, só teve tempo de tirar a roupa no escuro
e de saltar para a cama, porque já ouvia o pai a levantar-se. Cobriu a cabeça com os lençóis para
silenciar a respiração ofegante. A porta abriu-se.
― Rob! ― chamou o pai. ― Temos de nos levantar, filho, mesmo sendo Natal.
― ‘Tá bem ― disse com sono.
― Vou indo ― disse o pai. ― Vou pondo as coisas a andar.
A porta fechou-se e Rob ficou quieto, a rir com os seus botões. Os minutos nunca mais
passavam – dez, quinze, não sabia quantos – até que ouviu de novo os passos do pai.
― Rob!
― Sim, Pai?
O pai estava a rir, um riso esquisito, soluçante.
― Pensavas que me enganavas, não?
― É por ser Natal, Pai!
O pai sentou-se na cama e apertou-o contra si, num grande abraço. Estava escuro e não
conseguiam ver os rostos um do outro.
― Agradeço-te, filho. Nunca ninguém fez coisa mais bonita…
― Oh, Pai.
Não sabia o que dizer. O seu coração transbordava de amor.
― Bom, parece que posso voltar para a cama ― disse o pai, volvido um momento. ―
Espera…estás a ouvir? Os pequeninos já estão a acordar. Agora que penso nisso, nunca vos vi a
olhar pela primeira vez para a árvore de Natal. Estava sempre no celeiro. Anda daí!
Rob levantou-se, vestiu-se de novo e desceram para ver a árvore de Natal. Depressa o Sol
tomou o lugar da estrela. Oh, que Natal aquele, e como o seu coração quase rebentou de timidez e
alegria quando o pai contou à mãe e aos mais novos que ele, Rob, se tinha levantado sozinho.
― O melhor presente de Natal que alguma vez tive, e hei de recordá-lo, filho, todos os anos na
manhã de Natal, enquanto for vivo.
Pearl S. Buck
As luzes de Natal
Antes de o meu pai morrer, o Natal era uma época mágica nos longos e escuros invernos de
Bathrurst, em New Brunswick. Os dias frios e tempestuosos começavam cedo, logo no fim de
setembro. A dada altura, acendiam-se as luzes de Natal e a expectativa crescia. Por alturas da
véspera de Natal, o vulgar pinheiro que o meu pai arrastara até nossa casa dez dias antes adquiria
uma vida própria, plena de magia e de luz. O seu brilho era de tal forma maravilhoso que conseguia,
sozinho, afastar toda a escuridão do inverno.
Na véspera de Natal, pouco antes da meia-noite, agasalhávamo-nos bem e íamos à missa do
galo. A beleza do som do coro causava-me arrepios e, quando a minha irmã mais velha, que era
solista, cantava Noite Feliz, a minha face corava de orgulho.
No dia de Natal de manhã, eu era o primeiro a levantar. Saía da cama atabalhoadamente e
descia em direção ao brilho intenso da sala de estar. Embora tentasse manter-me direito, os olhos
cheios de sono faziam-me cambalear. Quando entrava na sala, via-me diante do esplendor do Natal.
Os meus olhos toldados e cheios de sono criavam uma auréola à volta de cada luz, amplificando-a e
aquecendo-a. Após uns breves instantes, esfregava os olhos e via uma infinidade de fitas e laços e
um amontoado de presentes coloridos. Nunca me esquecerei da sensação do primeiro vislumbre
dessa manhã. Após alguns minutos a sós com a magia do Natal, ia buscar os meus irmãos e juntos
acordávamos os nossos pais.
Certa noite de novembro, quando faltava um mês para o Natal, eu estava sentado à mesa da
sala de jantar a jogar o Solitário. A minha mãe estava ocupada na cozinha, mas, de vez em quando,
aproximava-se da sala de estar para ouvir o seu programa de rádio preferido. Embora estivesse
escuro e frio lá fora, o interior da casa estava agradável. O meu pai tinha-me prometido que à noite
jogaríamos as cartas, mas já estava quase na hora de ir para a cama e ele ainda não tinha chegado.
Quando o ouvi entrar pela porta da cozinha, levantei-me de um salto e fui ao seu encontro. Embora
lançasse um olhar preocupado à minha mãe, o que achei estranho, abraçou-me quando corri para
os seus braços. Adorava abraçar o meu pai numa noite de inverno. O casaco grosso e frio
comprimia-se contra a minha cara e o cheiro do gelo misturava-se com o cheiro da lã.
Só que desta vez foi diferente. Depois dos segundos iniciais do abraço habitual, o seu corpo
começou a ficar hirto. Fiquei um pouco assustado com esta reação anormal e senti-me aliviado
quando a minha mãe me arrancou dos braços dele. Naquela altura, não compreendi que o meu pai
acabava de sofrer um enfarte. Pediram-me para descer para o quarto de jogos e para brincar com os
meus irmãos. Do fundo da escada, vi chegar o médico e o padre. Mais tarde, vi os enfermeiros
entrar e depois vi-os sair, transportando uma maca coberta com uma manta vermelha. Não chorei na
noite da morte do meu pai, nem no dia do funeral. Não que reprimisse as lágrimas. Simplesmente,
não tinha lágrimas para chorar.
Na manhã do dia de Natal, como habitualmente, fui o primeiro a levantar-me. Mas este ano
era diferente. A manhã já despontava no céu. Mais acordado do que de costume, desci para a sala
de estar. Só me apercebi de que havia algo de estranho quando entrei na sala. Em vez de ficar
ofuscado com as luzes brilhantes, conseguia ver tudo com nitidez naquela sala sombria. Conseguia
ver o pinheiro, os presentes e até, através da janela, um pouco do exterior. O meu pai já não estava
presente para assegurar que as luzes do pinheiro tinham ficado acesas. Quebrara-se a magia do
Natal da minha infância.
Entretanto, os anos passaram. Durante a minha juventude, voluntariei-me sempre para
trabalhar no Natal. O dia de Natal não era bom, nem era mau. Era mais um dia cinzento de inverno,
com a vantagem de receber algum dinheiro extra pelo facto de trabalhar.
Depois apaixonei-me e casei-me. O primeiro Natal do nosso filho foi o melhor que eu tinha
tido em vinte anos. À medida que ele foi crescendo, o Natal foi melhorando. Quando a nossa filha
nasceu, já recuperáramos algumas tradições familiares e o Natal tornou-se, de novo, uma época
maravilhosa. Era divertido esperar pelo Natal, ver a excitação das crianças e, acima de tudo, passar
o dia de Natal com a minha família. Na véspera de Natal, continuei a tradição iniciada pelo meu pai e
deixava as luzes do pinheiro ligadas naquela noite para que, de manhã, as crianças pudessem viver
aquela experiência maravilhosa.
Numa noite de Natal, tinha o meu filho nove anos, a mesma idade que eu tinha quando o meu
pai faleceu, enquanto via a missa do galo na televisão adormeci no sofá. O coro cantava lindamente
e a última coisa de que me lembro foi de desejar ouvir outra vez a minha irmã a entoar Noite Feliz.
Acordei de manhã cedo com o barulho que o meu filho fazia enquanto descia para a sala de
jantar. Vi-o parar e olhar o pinheiro, boquiaberto. Então, lembrei-me da minha infância e soube que o
meu pai me tinha amado da mesma forma que eu amava o meu filho. Soube que ele tinha sentido
por mim uma mistura de orgulho, de alegria e de amor ilimitado. E, naquele instante, soube como me
tinha zangado com o meu pai por ele ter morrido e quanto amor tinha escondido durante toda a
minha vida por causa desse sentimento de raiva.
Senti-me um rapazinho, cujas lágrimas estavam prestes a brotar, e não havia palavras para
exprimir a imensa pena e a alegria irresistível que experimentava em simultâneo. Esfreguei os olhos
com as costas da mão para ver melhor. Com os olhos húmidos e a visão toldada, olhei para o meu
filho que estava diante do pinheiro. Meu Deus, que pinheiro magnífico! Era o pinheiro da minha
infância.
Através das lágrimas, as luzes do pinheiro irradiavam um brilho quente e cintilante. Os
amarelos, verdes, vermelhos e azuis, tremeluzentes e suaves, envolveram-nos. Tinham-me sido
roubados pela morte do meu pai. Mas, ao amar o meu filho tanto quanto o meu pai me amara, pude
ver, uma vez mais, as luzes de Natal. E, a partir desse dia, recuperei toda a magia e alegria do
Natal.
Michael Hogan
A Arvorezinha Descontente
Era uma vez, numa pequena floresta, uma arvorezinha que vivia junto a tantas
outras árvores, umas altas, outras baixas, algumas eretas, outras com troncos
retorcidos, mas, ela estava sempre insatisfeita. Essa arvorezinha, tanto no verão quanto
no inverno, não tinha folha alguma, tinha agulhas apenas. As agulhas picavam. Nem
esquilos corriam por seu delgado tronco, nem pássaros nela pousavam, nenhuma borboleta
colorida ou uma pequena abelha, ali descansavam. A árvore descontente com a sua sorte
assim falou:
“Todas as outras árvores têm folhas verdes e bonitas que até mesmo mudam de
cor com o passar dos meses, eu, porém só tenho agulhas, ninguém, ninguém mesmo, toca
em mim. Ah, se eu pudesse fazer um pedido, se um desejo meu pudesse ser realizado, eu
gostaria de ter as folhas de puro ouro!”
Quando chegou a noite, a arvorezinha adormeceu. Na manhã seguinte acordou e viu
que tinha folhas de ouro, era um assombro! Disse a arvorezinha:
“Agora estou orgulhosa de mim, ninguém no bosque tem folhas assim!”
Mas quando a tarde caiu, pela floresta passou um larápio, saco às costas, barba
imensa escondendo o rosto. Ele logo viu o ouro brilhando, foi lá, arrancou as folhas todas
dos galhos, colocou-as no saco e saiu sem fazer ruído, deixando para trás a pobre árvore
despida, desnuda, chorosa.
“Sinto pela perda das lindas folhas, mas, muito mais sinto vergonha de estar assim
despida, as outras árvores todas tem sua roupagem verde e eu...que tenho eu? Se eu
pudesse fazer mais um pedido, se mais um desejo meu pudesse ser realizado, eu gostaria
de ter folhas de vidro!”
Chegou a noite, outra vez a arvorezinha adormeceu. Na manhã seguinte acordou
novamente e tinha, toda ela, delicadas folhas de vidro. Uma verdadeira maravilha! Disse a
arvorezinha:
“Estou contente, nenhuma árvore da floresta cintila tão lindamente!”
Foi quando veio um vendaval, zunindo, assobiando. Rodopiou, por entre as árvores
correu e as folhas de vidro dos galhos varreu. No chão jaziam os cacos de vidro das,
outrora, lindas folhas cintilantes. A arvorezinha, disse sentida:
“Minhas lindas folhas são cacos caídos no chão, as outras árvores, perderam
algumas, mas as copas continuam verdes e viçosas. Ah, se eu pudesse fazer mais um
pedido, se mais um desejo meu pudesse ser realizado, eu gostaria de ser como as outras
árvores e ter muitas folhas verdes!”
Chegou a noite, a arvorezinha adormeceu. De manhã, novamente acordou: tinha
folhas verdes e viçosas. E ela riu de contentamento. E disse:
“Tenho folhas como as outras árvores, sou igualzinha a elas. Não preciso mais ter
vergonha, nem inveja!”
E assim o dia passou. Tudo estava perfeito. Mas eis que vem pela floresta, mamãe
cabra, o ubre cheio de leite para amamentar seus cabritinhos. Procurava por capim e
ervas para alimentar seus filhinhos. Viu as folhas de verde viçoso, não perguntou, não
pediu licença, simplesmente mordeu, mastigou, mordeu, mastigou e no final, na
arvorezinha, nada sobrou! A arvorezinha, outra vez toda desnuda, disse baixinho para si
mesma:
“Não tenho maiores anseios, não penso em folhas verdes, amarelas, vermelhas, tudo
o que eu gostaria é de ter as minhas antigas agulhas de volta!”
Triste, a arvorezinha adormeceu e triste ela acordou. E quando o sol a veio
aquecer, ela se olhou e, de repente, começou a rir, a rir, a gargalhar! As outras árvores a
olharam espantadas e começaram também a rir, a rir dela, mas ela nem se incomodou. Por
que ria tanto a arvorezinha? E por que riram dela as outras árvores da floresta? Quem
adivinha?
Numa só noite, enquanto dormia, ela ganhou de volta todas as suas muitas agulhas!
Não acredita? Vá vê-la na pequena floresta. Lá está ela, recoberta de agulhas, para que
todos a possam olhar. Vá vê-la, mas, é melhor não a tocar!
Edith Asbeck (baseada em antiga poesia de Friederich Rückert)
São Nicolau
Muito longe, no Oriente, vivia um bispo piedoso chamado Nicolau.
Certo dia, ouviu contar que no Ocidente havia uma cidade, onde todas as pessoas sofriam
grande fome, inclusive as crianças. Nicolau chamou então os seus servos que o amavam muito e
falou- lhes:
-Tragam-me frutas dos seus pomares e colheitas dos seus campos para que possamos
saciar os famintos.
Os servos trouxeram cestas com maçãs e nozes. Em cima colocaram pão com mel feito
pelas mulheres do lugar. Trouxeram também sacos cheios de grãos dourados de trigo. O bispo
Nicolau ordenou que todas as dádivas fossem levadas num navio.
Era um navio grande e bonito, todo branco e a sua vela era azul, como o azul do céu e do
manto do bispo Nicolau. O vento soprou na vela do navio para que ele andasse, e quando o vento
se cansou, os servos pegaram os remos e levaram o barco para o Ocidente. Viajaram muito
tempo: sete dias e sete noites.
Quando chegaram à grande cidade, era noite e não se via ninguém nas ruas, mas as luzes
brilhavam pelas janelas das casas. O bispo Nicolau bateu numa janela. A mãe que morava na casa
pensou ser um viajante pedindo abrigo e mandou o filho abrir a porta. Não havia ninguém na
frente da porta. A criança correu até a janela. Também não viu ninguém, mas encontrou uma
cesta cheia de nozes e maçãs vermelhas e amarelas, e não faltavam os pães de mel. Ao lado da
cesta havia um saco repleto de grãos dourados de trigo.
Todas as pessoas comeram das dádivas e ficaram fortes e alegres. Agora São Nicolau
está no céu.
Todos os anos, na data de seu aniversário, ele viaja para a Terra, monta seu cavalo branco
e vai de estrela em estrela. Lá encontra a Virgem Maria: ela recolhe fios de ouro e de prata para
fazer a camisinha de Jesus. Maria então diz- lhe:
- Querido São Nicolau, volte para as crianças, leve tuas dádivas e diz-lhes que o Natal, o
nascimento do Menino Jesus, se aproxima.
Conto extraído do livro Erziehungskumst de Emmy Proske
Tradução : Barbara Trommer
Prenda de Natal
Quando o Mário chegou a casa, a Bia foi logo ao seu encontro:
- Emprestas-me a tua caneta?
A caneta de Mário não era uma caneta qualquer: era a caneta que o avô lhe tinha oferecido no
Natal e por isso, se alguém a estragasse ou perdesse, nenhuma outra a podia substituir.
Para falar verdade, ele tinha pedido ao avô um iPod. Mas o avô, que ouvia pouco e não sabia
muito de novas tecnologias, não entendeu o pedido. E a avó, que estava mesmo ao lado dele, levantou a
cabeça do tricô e respondeu logo:
- Pode, claro que o avô pode dar-te o que tu lhe pedires! Ninguém como ele para te fazer todas as
vontades...
Só no momento de desembrulhar os presentes é que Mário deu pelo engano. Claro que sentiu um
certo desapontamento: já se estava a ver no quarto a ouvir toda a música que lhe apetecesse, sem ter de
aturar nenhuma daquelas cantigas horríveis de que Bia gostava tanto. Mas depressa se recompôs: Mário
gostava muito do avô, e nunca diria nada que o pudesse aborrecer. E a caneta era muito bonita. Fazia-o
sentir-se muito crescido: nenhum amigo seu lá da escola tinha uma caneta. Escreviam todos com
esferográficas, cada uma mais feia do que a outra...
- Então, emprestas ou não?
- Com uma condição... - disse Mário.
Bia olhou para ele desconfiada. Mário esperou alguns minutos, sorriu e depois exclamou:
- Hoje sou eu que escolho a música!
Alice Vieira, in Livro com Cheiro a Baunilha
O Natal das bruxas
No castelo tenebroso, estava um ambiente de cortar à faca! As três bruxas não faziam outra coisa senão
resmungar, lamentar-se e dar largas à fúria, com pontapés nos gatos e vassouradas nos morcegos.
- Não há dúvida! - berrava a mais velha. - Vivemos aqui há séculos e nunca o Pai Natal se lembrou de nós!
- Nunca, por nunca ser, tivemos um presente no sapatinho!
- No sapatinho? Tu queres dizer é no sapatão. Ora olha bem para o tamanho do teu pé. Calças para aí o
quarenta e quatro – respondeu-lhe a irmã mais nova, cheia de maldade, ou não se chamasse ela Rosa Maldosa.
Ao ouvir aquilo, Rita Maldita saltou de trás do caldeirão onde borbulhavam poções maléficas e deu-lhe um
estalo.
- Toma que é para aprenderes. Já sabes que não tolero que falem do tamanho dos meus pés!
A outra não se ficou e puxou-lhe os cabelos com toda a força. Seguiu-se uma das cenas habituais. Faísca
daqui, faísca de acolá, bombardearam-se com doses maciças de choques elétricos e insultos da pior espécie.
- És horrorosa, Rosa Maldosa!
- E tu nem chegas a ser parva...és parvalhita, Rita Maldita!
A irmã do meio assistia, abanando a cabeça com visível enfado. Como é que haviam de ter presentes, se se
portavam daquela maneira? Brigas constantes afugentavam qualquer Pai Natal bem-intencionado. Gostaria de
lhes fazer ver que assim não ganhavam nada. Mas sabendo que qualquer argumento seria inútil, agiu à sua
maneira: puxou a corrente que segurava o caldeirão e, com um gesto seco e firme, plof!, despejou-lhes o líquido
verde em cima.
- Ai!! - berravam ambas, enquanto sacudiam a roupa encharcada em óleo e enxofre repletos de rabos de
lagarto e pernas de rã. - Destruíste a nossa poção mágica!
- Claro que destruí! Vocês já sabem como eu sou!
- Sabemos, sim, Conceição Maldição! Nenhum outro nome te assentaria melhor.
Se não fossem bruxas, a zanga acabava de outra forma. Mas eram. E não há nada mais estimulante para
uma bruxa do que um banho malcheiroso e a escaldar. As duas irmãs ainda não se tinham desembaraçado da
mistela pegajosa, já engendravam planos formidáveis, que a outra aceitou com grande entusiasmo.
- Vamos ao Pólo Norte dizer umas verdades ao Pai Natal!
- Boa ideia!
- Eu cá não saio do armazém sem escolher um presentão. E quero-o embrulhado num papel bonito.
- E laço de cor viva!
- Pois. E cartãozinho com o nome escrito...
-Sim, sim!
-Hi! Hi! Hi!
Num ápice, foram ao baú onde guardavam as casacas de toupeira para ocasiões muito especiais e
agasalharam-se. Não era preciso deitarem-se a adivinhar. Sabiam que o vento daquelas bandas era gélido!
Depois assobiaram para chamar as vassouras, montaram e lá foram pela janela fora! Nenhuma confessou,
mas iam radiantes!
A viagem foi mais rápida do que esperavam, porque o tal vento gélido soprava de feição. E não lhes custou
nada darem com o sítio, pois o armazém dos presentes erguia-se na ala de um bosque magnífico, em que todas
as árvores eram árvores de Natal. E cada uma mais bonita do que a outra! Bolas, laços, fios, chocolates, tudo
pendurado com gosto e requinte. Havia também luzinhas de cores diferentes, umas fixas, outras a piscar, como
nos aeroportos. Aterraram portanto sem dificuldade e foram entrando sem pedir licença.
O Pai Natal, coitado, quando as viu pela frente teve um baque. Que lhe quereriam aquelas três loucas? O
mais certo era virem empatá-lo e o pior é que já só tinha uma semana para organizar os lotes das prendas.
Tentou encontrar uma boa desculpa para as mandar embora, mas elas não lhe deram tempo e desataram numa
gritaria infernal.
- Viemos protestar!
- Exigimos justiça!
- Nós também temos direito. Queremos prendas!
- Prendas como as outras pessoas!
- Não temos culpa de sermos bruxas.
- Nascemos assim, temos que fazer maldades.
- Foi por isso mesmo que nos deram estes nomes começados por mal: Maldosa, Maldita, Maldição!
O pobre velhote deitou as mãos à cabeça. Que havia de fazer para se ver livre delas?
- Vocês sabem muito bem que não posso dar presentes a quem faz patifarias - arriscou com voz débil.
A resposta veio sem frases que se atropelavam num frenesim:
- Patifarias? Patifarias não!
- Asneiras! Pequenos disparates como toda a gente.
- Claro! Somos bruxas, fazemos bruxarias.
- Tudo coisas sem importância: poções para tornar amargo qualquer doce, pozinhos para as crianças
poderem arreliar as pessoas mais velhas ou xaropes para as pessoas mais velhas obrigarem os mais novos a
irem para a cama.
- Só usamos produtos de primeira qualidade! Unhas de dragão, patas de morcego, asas de mosca ...
- Ou de vespa!
- É verdade, já me esquecia - disse Rosa Maldosa como quem cai em si. - Onde é que vocês puseram o
meu frasco de asas de vespa?
- Não sei. Eu não mexo nas tuas coisas.
- Nem eu.
- Mexem sim, mentirosas! Não posso ter nada que vocês não gastem. E nem sequer pedem autorização!
Receando que discutissem toda a noite, o Pai Natal ordenou:
- Calem-se! Se não se calarem imediatamente garanto-vos que nunca na vida hão de receber um presente.
A ameaça funcionou. Muito juntas foram-se chegando para ele. Pela conversa, pareceu-lhes que encarava a
hipótese de as presentear.
- Vão-se embora - pediu o Pai Natal, agora mais calmo. Deixem-me trabalhar sossegado.
Não prometera nada, mas havia qualquer coisa no tom de voz que lhes deu esperança. Esperança de ver
um daqueles lindos embrulhos cair pela chaminé.
Abandonaram então os modos agressivos, despediram-se e retomaram viagem.
De regresso ao castelo tenebroso, lembraram-se que as vassouras podiam ser usadas para outros fins que
não o voo e, pela primeira vez em séculos, limparam teias de aranha, caganitas de rato e camadas de pó
acumulado nos cantos, pondo grande esmero nas pedras da chaminé que ficaram rebrilhando sem uma ponta de
fuligem. Depois, que longa espera! Nunca mais chegava a noite de Natal. Nunca mais chegava a hora de saber
se desta vez, sim, seriam contempladas. Mas valeu a penal Era meia-noite em ponto quando ouviram uma
restolhada sobre as telhas. Pé ante pé foram espreitar e, oh! maravilha! as renas lá iam deslizando pelo céu ao
som dos guizos que tilintavam.
Do Pai Natal só se via a silhueta gorda e o bafo de vapor provocado pelas risadas alegres de quem está
satisfeito com a sua missão. Na chaminé desciam lentamente três embrulhos, tão lindos como nunca tinham visto
outros!
Ansiosas, precipitaram-se para saber qual era o seu. E o coração derreteu-se-lhes quando deram com os
olhos nos cartõezinhos:
- Oh! Já viste o que o Pai Natal escreveu?
- Que querido!
- Adoro o Pai Natal!
- É o velho mais simpático do universo!
A alegria tinha razão de ser. O Pai Natal, em vez de usar os nomes delas, escolhera outros mais a seu
gosto: Rita Bonita, Rosa Cheirosa, Conceição Bom-Coração.
Nunca ninguém lhes tinha chamado assim e sentiram-se tão felizes que, por um momento, desejaram
proceder como o Pai Natal, apeteceu-lhes alterar as coisas, substituir malefícios por benefícios, enfim, apeteceu
lhes deixar de ser bruxas.
Mas quem é que pode fugir ao seu destino?
Ainda não tinha batido a uma hora, já andavam à bulha com inveja do presente das irmãs.
Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, O Natal das Bruxas
A menina dos fósforos
Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última
noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo.
Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora,
com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos,
mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e
ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para
fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um
garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar. Por isso, a
rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio. Levava no avental uma quantidade de
fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: «- Quem compra
fósforos bons e baratos?»
Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não
conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas.
Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se
encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus
cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à
rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava.
Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não
tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia
apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia
calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de
terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores.
Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe
faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos!
Pegou num fósforo e…Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama
quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas… que luz era aquela? A
menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com
um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão
bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se
apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo
queimado na mão.
Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-
se transparente como tule. E a rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava
coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e mesmo no meio da mesa havia um
ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro
apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua
frente a parede negra e fria.
E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou junto de uma enorme árvore de
Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta
envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e
figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A
menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal
começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu.
Uma estrela maior do que as outras desceu em direção à terra, deixando atrás de si um comprido
rasto de luz. «Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única
pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma
estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu.»
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a
avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade! «- Avó!», gritou a menina, «- Leva-
me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como
o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda.»
Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a
avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse
dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés
da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio,
nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.
Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma
rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios…morta de frio, na última noite do ano. O dia
de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de
fósforos. «- Coitadinha, parece que tentou aquecer-se!» exclamou alguém. Mas nunca ninguém
soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na
companhia da avó, no Ano Novo.
Hans Christian Andersen
As filhós de Natal
Era uma vez uma velhinha que morava na última casa da aldeia, e como sempre
acontece às pessoas que vivem sós, costumava pensar em voz alta.
O tempo do Natal estava a chegar e a velhinha certo dia lamentou-se:
- Ai, já amanhã é a véspera de Natal e pela primeira vez na minha vida não vou comer
filhós! Mas como havia eu de as amassar? Não tenho força nestes braços para pegar na
abóbora que está em cima do muro...Não posso subir a uma escada para apanhar laranjas...0
reumatismo não me deixa ir ao moinho buscar farinha, nem à loja comprar azeite...Para mais,
as malucas das galinhas escondem as ovos lá pelos campos...E o mel acabou-se quando me
constipei e tive de o tomar às colheres para curar a tosse.
Dizia aquilo, mas bem se via que estava triste, porque gostava muito de filhós. Todos os
velhinhos gostam de coisas doces. Naturalmente porque já têm poucos dentes e os doces
derretem-se na boca sem ser preciso mastigá-los.
Um cão que passava em frente da casa, ouviu-a e ficou cheio de pena.
- Coitada da velhinha! Se eu pudesse, ajudava-a...
Olhou para o muro e viu a abóbora grande, redonda, cor-de-rosa.
- Sou muito bem capaz de a atirar ao chão - ladrou o cão lá para consigo. – Assim
soubesse trepar às árvores que também lhe apanhava as laranjas. Foi então que se lembrou
do gato que andava em cima do telhado e chamou-o:
-Ó gato, queres ajudar a velhinha a fazer filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Podes trepar à laranjeira e apanhar-lhe duas laranjas.
0 gato miou logo que sim, e o cão contou-lhe o que também pensava fazer.
- Bom, mas ainda falta a farinha.
- Pois falta! - ladrou o cão.
- Há por aí um rato que deve conhecer todos os cantos do moinho e pode arranjá-la.
Vou falar com ele.
E o gato pôs-se à procura do rato. Não foi difícil encontrá-lo, a espreitar à entrada do
seu buraquinho.
-Ó rato, queres ajudar a velhinha a fazer filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Podes ir ao moinho e trazer-lhe farinha.
O rato soltou dois guinchinhos que queriam dizer "sim, sim", mas perguntou por sua
vez:
- E o azeite?
- É verdade! Falta o azeite ainda.
- Eu conheço uma coruja que mora na torre da igreja. Talvez ela consiga arranjar algum.
Vou pedir-lho.
E o rato meteu por um carreirinho que ia ter à igreja da aldeia. Subiu os degraus da
torre, e lá no alto foi encontrar a coruja a dormitar. Chamou por ela:
- Ó coruja, queres ajudar a velhinha a fazer as filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Podias dar-lhe uma pinguinha de azeite.
- O azeite não é meu, é de Nosso Senhor; mas como é para a velhinha festejar o Natal,
tenho a certeza de que Ele não se vai importar. Que eu para mim nunca Lhe bebi nem uma
gota, apesar do que muita gente pensa a meu respeito.
- Bom. O azeite está garantido.
- Sim, mas então os ovos? - piou a coruja.
- Pois é, faltam ainda os ovos, mas as malucas das galinhas escondem-nos bem
escondidos.
- Talvez o milhafre que vê muito bem ao longe possa dar um jeito. Nós ainda somos
parentes; vou falar com ale.
E a coruja foi em busca do milhafre. Custava-lhe um bocado a aguentar nos olhos a
claridade do dia a que não estava habituada, mas para ajudar a velhinha, valia a pena o
sacrifício. Lá muito no alto, ao pé das nuvens, viu um milhafre a peneirar, de asas abertas.
Peneirar, chama-se ao voo quase parado dos milhafres, quando andam à procura de caça.
- Ó milhafre! - gritou a coruja. Tu queres ajudar a velhinha a fazer as filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Vê se descobres o sítio onde as galinhas escondem os ovos.
- Está bem — respondeu o milhafre. Mas onde se vai arranjar o mel?
- É verdade! 0 mel...
- Deixa que eu pergunto às galinhas se por acaso viram alguma abelha.
Enquanto a coruja voltava para a sua torre, o milhafre começou lentamente a descer lá
dos altos, sempre de olhos bem abertos até que por fim avistou três ovos escondidos numas
moitas. Baixou mais e veio pousar num terreno onde uma galinha depenicava.
- Olá, galinha! Queres ajudar a velhinha a fazer as filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Oferecendo-lhe alguns dos teus ovos.
- Com todo o gosto – cacarejou a galinha. – Mas ainda falta outra coisa, que é o mel.
- Já tinha pensado o mesmo. Não encontraste por aí nenhuma abelha?
- As abelhas no Inverno pouco saem do cortiço... Mas agora me lembro de que vi uma
delas, meio entorpecida de frio, acolá nas urzes. Assim lá esteja ainda.
E a galinha dirigiu-se ao sítio indicado, pezinho cauteloso à frente um do outro,
cabecinha à banda ora virada à direita, ora virada à esquerda. A abelha continuava, sonolenta
e friorenta, poisada numa haste.
- Ó abelha, queres ajudar a velhinha a fazer as filhós?
- Eu?! De que maneira?
- Dando-lhe um bocadinho de me! É só o que falta.
– Nesta altura do ano há pouco, mas temos ainda uma pequena reserva, e como é só
para uma pessoa, arranja-se. Vou buscá-lo – zumbiu a abelha, levantando voo com alguma
dificuldade.
– Se tens frio e estás cansada, pousa na minha cabeça que eu levo-te ao cortiço –
ofereceu a galinha.
– Aceito e agradeço – respondeu a abelha.
Na véspera de Natal, quando a velhinha se levantou foi encontrar na cozinha a abóbora,
as laranjas, a farinha, o azeite, os ovos e o mel necessários para fazer as suas filhós. (Não me
perguntem como foi que os animais transportaram tudo para ali. Nas histórias estas coisas
acontecem, mas ninguém sabe como...)
– Milagre de Natal! – exclamou a velhinha.
E foi cozer a abóbora, descascar as laranjas, amassar os ovos com a farinha, fritar as
filhós… e à ceia enquanto as comia, regadas com mel, repetia sempre:
– Milagre de Natal! Milagre de Natal!
Para mim, o verdadeiro milagre de Natal foi outro: foi o cão não ter mordido no gato, o
gato e a coruja não terem querido comer o rato, o milhafre não ter levado a galinha, a galinha
não ter comido a abelha, a abelha não a ter picado e todos, sem desconfiança uns dos outros
e em paz, terem juntado a sua boa vontade para que a velhinha pudesse comer as suas filhós
na noite santa de Natal.
Antoine de Saint-Exupéry
Uma estrela atrás da porta
A senhora Docelinda tinha um nome tão mal posto!
Não lhe dizia com a alma, nem lhe dizia com o rosto.
Fora engano dos padrinhos o batizarem-na assim, visto que ela era embirrenta e de coração ruim.
Que mulher tão barulhenta! Que feitio mais rezingão! Chamaram-lhe doce, a ela? Só por troca. A
Docelinda, azeda como limão!
E como quem é azeda tem sempre a testa franzida e a cara toda amarela ou cinzenta cor de greda, a
tal Docelinda era a criatura mais feia que havia na sua aldeia.
Viesse pedir-lhe alguém:
- Ó vizinha, dá-me lume?
Respondia logo pronta, com os maus modos do costume:
- Não tenho nem uma brasa!
E a pobre da vizinha voltava com frio para casa. Se outra lhe batia à porta:
- Tem um pezinho de salsa?
- Eu hoje não fui à horta! E que fosse!... A dar aos outros o que é meu, estava servida. Ainda acabava
descalça!
Vinha a velha tia Marta, que tinha o neto na tropa, a pedir com humildade:
- Recebi hoje uma carta... Se a senhora Docelinda me fizesse a caridade de ma ler...
- Tenha paciência. Agora estou ocupada. Há de haver aí na aldeia muita gente que lha leia.
E os que na aldeia moravam, uns para os outros comentavam:
- Ai, credo! Que mulher esta! Não dá nada.
- Nem empresta. Passa-lhe um desgraçadinho mesmo diante da porta, pois pensam que ela se
importa? Que lhe dá um tostãozinho?
E a "boa-tarde"? O "bom-dia"? Nunca lhe saem da boca. Daquela boca fechada. Nunca diz "se faz
favor"; nem sequer "muito obrigada".
Compadre quer que lhe diga: a Docelinda da Encosta não tem uma só amiga.
Pois quem é que dela gosta? Repare vossemecê numa coisa que acontece: é costume cá da gente, às
pessoas que conhece, mesmo sem ser seu parente, tratá-las por tio ou tia. Ora diga francamente se a
alguém apetecia tratá-la desta maneira?
Desde a fonte até ao rio, as línguas do mulherio não paravam de falar, e a senhora Docelinda ia
atirando com as portas e dando respostas tortas aos que a iam procurar. Más palavras e maus modos
era o que tinha para todos. Sempre azeda e mal disposta, torcendo a tudo o nariz, a Docelinda da
Encosta afinal era infeliz porque tinha a alma dura, seca, peca e toda escura.
Até que chegou Dezembro, o mês mais lindo do ano. É um mês frio? Ora, ora: nisso é que está o
engano. Como pode haver friagem, se há calor no coração? É a verdadeira razão, é a razão principal que
o mundo vem aquecer: porque é o mês do Natal e que Jesus vai nascer.
Os meninos da doutrina andavam a ensaiar uma canção pequenina que na festa iam cantar.
- Manuel, Celeste, Inês e tu, Joaquim, vamos cantar outra vez para ficar bem aprendida do princípio
até ao fim. E, afinal, Senhor Padre, quando é que se arma a lapinha?
- Se me querem ajudar, já não há tempo a perder. Pode-se já começar.
- Eu quero.
- Eu quero.
- Eu também.
Foram buscar o caixote das figurinhas de barro, o João e o Manuel.
-Ora cá as temos todas embrulhadas em papel. Um rei mago... Uma pastora...Olha aqui está o
burrinho. Três ovelhas... Outro rei... O moleiro ou o moinho...
- Esta é a Nossa Senhora. E o S. José, onde está?
- Não tenhas pressa, Joaquim. A seu tempo aparecerá.
- Olha o Menino Jesus! Como é lindo e rosadinho! Se eu soubesse fazer malha, fazia-lhe um
casaquinho.
- Aqui ao fundo, na palha, ponho o burro e a vaquinha, mais um pastor... Mais um rei... Com estes
já faz os três; onde é que os ponho?
- Não sei.
- Aqui ficam bem, Inês.
- Cá temos o S. José de que andavas à procura. Ah! Mas que cabeça a minha! Ainda não temos
verdura!
Foram buscar buxo e hera, a Celeste e o João, mais um ramo de azevinho; mas de musgo para o
chão era preciso também arranjar um bocadinho.
Disse o João:
- Sei de um sítio onde há de haver todo o que a gente quiser.
Disse a Celeste:
- E haverá? Anda comigo acolá ao princípio da encosta. No muro da Docelinda há musgo como um
veludo.
- E se ela nos vê? Vai tudo raso. Já estou a tremer.
- Ela nunca limpa os muros, para não gastar com isso. A gente sem pedir paga, presta-lhe o mesmo
serviço. Até é para agradecer. Tenho aqui um canivete; corta o musgo num instante.
Nisto abriu-se uma janela. Era a Docelinda. Era ela!
- Que é lá isso, ó meu tratante! Girem daqui! Os dois! Já.
- Mas a gente não fez mal... Vinha só apanhar musgo para o presépio de Natal...
- Não quero saber de razões! Seus patifes! Seus ladrões! Toca a andar, senão vou lá!
A Celeste e o João foram-se embora a correr, pela encosta até à estrada. O céu pôs-se a escurecer,
anunciando trovoada. A Docelinda, zangada com os dois pobres garotos, em casa barafustava:
- Os atrevidos! Marotos! Não queriam eles mais nada!
Ouviu-se um grande trovão:
- Santa Barbara! Deus meu! É trovoada decerto... Ai, outro trovão mais perto! Até a casa tremeu.
Olhou para o lado, e que viu atrás da porta a luzir? Era uma luz, pisca-pisca... Seria alguma faísca
que ali viera cair? E uma voz suave dizia:
- Desculpa, dá-me licença?
- Quem será a atrevida que se esconde ali atrás? Ande lá à sua vida e deixe-me cá em paz.
- Sou uma estrela...
- Uma estrela?!!! Ora adeus, sua impostora! Saia já daí para fora, senão dou-lhe com uma vassoura!
Mas parou, admirada! A vassoura ficou cheia de uma poeira doirada, como se fosse uma teia de
aranha de ouro!
- É bruxedo!
- Sossegue, não tenha medo. Vou explicar-lhe quem sou eu. Sou uma estrela cadente que andava a
correr pelo céu...Mas veio uma trovoada...Eu assustei-me e fugi. Muito aflita e já cansada, entrei, e
abriguei-me aqui. Chove ainda tanto lá fora. Por Deus, não me mande embora.
- Uma coisa tão esquisita só a mim acontecia! Mas quem é que me acredita se eu contar isto algum
dia?
- Não precisa de contar. É um segredo só nosso.
- Não. Vai-te embora daqui; não podes ficar.
- Não posso?
- Que é que eu fazia de ti? Não me ajudas a varrer, nem a lavar ou comer, nem a fazer o comer, nem
mesmo a tratar da horta.
- Era lindo possuir uma estrela atrás da porta!
- Oh! Que serventia tem?
- Posso ajudá-la daqui, e penso que muito bem. Tem a testa tão franzida! Porquê? E nunca se ri?
Também não sabe cantar? Gostava de a ensinar. É tão fácil experimentar... Quando estiver aborrecida,
ou triste, ou até zangada, verá como isso a conforta, pense em mim que estou escondida, aqui por
detrás da porta. Posso até, se preferir e a coisa correr mal, ligeiramente tossir para lhe fazer sinal. Quer
aceitar a experiência?
- Que disparate! Que asneira, entrar nessa brincadeira!
- Com bons modos no falar e um pouquinho de paciência... Assim só...deste tamanho...
- Está bem...se tens empenho.
Entretanto, à mesma hora, em casa da tia Aurora, dizia ela ao marido:
- Ora esta! Já não tenho nem um fiozinho de azeite para fritar as filhós. E o Zé da loja já vendeu
todo o que havia!
- Pede a alguém que to ceda. A Docelinda, talvez.
- A Docelinda?!! Essa azeda?!!
- Podias experimentar, pergunta-lhe e logo vês.
Vai daí a tia Aurora bateu ao portão fechado.
- Quem será a maçadora? - resmungou a Docelinda.
Mas a estrela estava atenta:
- Ah, ah, olhe o combinado!
- Não estou habituada ainda. Então, o que hei de fazer?
- Vá abrir p'ra ver quem é. Se estiver atrapalhada, lembre-se de que estou ao pé.
Foi a Docelinda abrir e ouviu a Aurora pedir:
- Vizinha, faça o favor, tem azeite que me venda? Já se acabou o da tenda. Logo à noite é a
consoada e as filhós estão por fritar...
- Azeite! Mas quem lhe disse que eu o tinha para lhe dar? - disse logo a Docelinda.
- Assim não, que é rabugice - segredou a estrela linda.
A Docelinda emendou:
- Espere aí... Talvez se arranje. Traz aí para onde o deite?
E foi buscar o azeite. Quando a tia Aurora saiu, a estrelinha aplaudiu com a sua luz pisca-pisca:
- Bravo! Para começar não se saiu nada mal. Mas podia desejar também um feliz Natal.
- Pronto. A conversa acabou - disse a Docelinda, arisca. E o jantar que está ao lume, se calhar já se
queimou!
Na cozinha grande e fria, a Docelinda comeu. Depois levantou a mesa. Atrás da porta luzia, muito
viva, muita acesa, a estrela vinda do céu.
- Não vai à missa do Galo? - Perguntou ela, baixinho.
- Com poucas pessoas falo. E está tão mau o caminho. Não vou por aí assim, aos tropeções sem ter
luz.
- Pois quê?! Queria ir sem mim ao presépio de Jesus? Estou pronta para a guiar. Escute bem o que
lhe digo: tem uma lanterna, não tem? Eu meto-me dentro dela. Pode levar-me consigo.
Deste modo a Docelinda, com a lanterna na mão e dentro dela a estrelinha, desceu à povoação.
A igreja estava cheia, com toda a gente da aldeia.
- Parece que estou no céu! Nunca vi coisa mais linda!
- Então faça como eu: cante também, Docelinda - disse-lhe a estrela em segredo.
- Eu?! Tenho vergonha. E medo. Porque sou desafinada.
- Experimente, não custa nada.
E a Docelinda cantou. Por fim, a missa acabou. Todo o povo no portal desejava boas festas:
- Feliz e santo Natal!
- Boas festas, Docelinda. Inda bem que está presente. Não quer ir à nossa casa para consoar com a
gente? - convidou a tia Aurora. - Venha provar as filhós fritinhas no seu azeite.
A Docelinda hesitava, mas a estrela aconselhava, brilhando:
- Vá lá... Aceite.
Foi uma ceia feliz, com todos à volta dela:
- Coma agora um bocadinho de arroz doce com canela.
- Oferece-lhe pinhões.
- E um copo de vinho fino?
- Já provou dos coscorões?
- Vossemecês são tão bons - dizia ela, envergonhada. - Têm tanta gentileza... Não quero mais nada,
obrigada.
- A gente tem muito gosto em sentá-la à nossa mesa.
- E dizíamos, nós, dantes...Desculpe mas era isso: que a senhora Docelinda picava como um ouriço.
E que tinha a voz azeda como sumo de limão! Vê como a gente se engana?
Docelinda concordou:
- Pois tinham toda a razão. Inda não há muitas horas eu era assim tal e qual. Mas tive uma boa
estrela nesta noite de Natal.
- E agora tem-nos a nós. Viva a tia Docelinda, mais linda do que uma estrela e mais doce do que as
filhós!
Nunca mais a Docelinda deu uma resposta torta. Tinha sempre a ajudá-la a estrelinha atrás da
porta.
Isabel Mendonça Soares
A noite de Natal
O amigo
Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta. No jardim
havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era
debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas
casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os
anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa
maior e mais complicada para o rei dos anões.
Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham
brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses
meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente
amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso
no seu jardim.
E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só
sabia estar sozinha.
Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de outubro.
Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava
todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas.
Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O
coração de Joana deu um pulo na garganta.
- Ah! – disse ela.
E pensou:
“Parece um amigo. É exatamente igual a um amigo.” E do alto do muro
chamou-o:
- Bom dia!
O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:
- Bom dia!
Ficaram os dois um momento calados. Depois Joana perguntou:
- Como é que te chamas?
- Manuel – respondeu o garoto.
- Eu chamo-me Joana.
E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao
longe o sino de uma quinta.
Até que o garoto disse:
- O teu jardim é muito bonito.
- É, vem ver.
Joana desceu do muro e foi abrir o portão.
E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada coisa.
Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as
laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa
da lenha onde dormia um gato. E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as
flores.
- É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente.
- Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob a
sombra redonda do cedro.
A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às
vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar. Joana foi
buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos
anões.
Brincaram assim durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma fábrica.
- Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora.
- Onde é que tu moras?
- Além nos pinhais.
- É lá a tua casa?
- É, mas não é bem uma casa.
- Então?
- O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha
todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.
- Mas à noite onde é que dormes?
- O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um
burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.
- E onde é que brincas?
- Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu
brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos,
com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as
ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.
- Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.
E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana
esperava-o empoleirada em cima do muro.
Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro. E foi
assim que Joana encontrou um amigo.
Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele
passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na
palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.
A festa
Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de
verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a
escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as
pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a
porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os
copos.
Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de
madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas
que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia
sombras e brilhos. Era como o interior de uma taverna cheia de maravilhas e
segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a
vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos,
caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e
uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de
Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.
Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário.
Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse
espreitar entre as duas portas.
Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos.
Saíam claros, transparentes e brilhantes, tilintando no tabuleiro. E para Joana
aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.
Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e
luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que
do fundo de um armário.
A estrela
Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As
árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos
iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela
hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas,
dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam
pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a
olhavam e a ouviam como pessoas.
“Tenho medo”, pensou ela. Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar
para nada.
Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois
muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros
nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e
toda brilhante. O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a
massa escura dos pinhais.
“Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana. Mas continuou a
caminhar.
Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um
curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.
“Tenho frio”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar.
À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que
ficou enorme.
Joana parou um instante no meio dos campos.
“Para que lado ficará a cabana?”, pensou ela.
E olhava em todas as direções à procura de um rasto.
Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua
frente não havia rasto.
“Como é que hei de encontrar o caminho?”, perguntava ela.
E levantou a cabeça.
Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava. “Esta estrela
parece um amigo”, pensou ela.
E começou a seguir a estrela.
Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda
à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com grandes
gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar
frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana
teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de todas as
sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.
Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.
“Será um lobo?”, pensou.
Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre
os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.
“Será um ladrão?”, pensou.
Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma
coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de
diamantes.
- Boa noite – disse Joana.
- Boa noite – disse o rei. – Como te chamas?
- Eu, Joana – disse ela.
- Eu chamo-me Melchior – disse o rei.
E perguntou:
- Onde vais sozinha a esta hora da noite?
- Vou com a estrela – disse ela.
- Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela.
Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas.
Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E
por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de
extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se
tinha espalhado sobre a Terra.
E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o
burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida.
Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Joana olhava, olhava, olhava.
Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel. Um dos primos puxou-a por um
braço.
- Joana, ali estão os teus presentes.
Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros
cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas. À sua volta todos riam e
conversavam.
Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao
mesmo tempo.
E Joana pensava:
- Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.
E a festa do Natal continuava.
As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a conversar e as
crianças sentaram-se no chão a brincar.
Até que alguém disse:
- São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas das crianças se
irem deitar.
Então as pessoas começaram a sair.
O pai e a mãe de Joana também saíram.
- Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram eles.
E a porta fechou-se.
Daí a um instante saíram as criadas.
A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a
velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.
- Bom Natal, Gertrudes – disse Joana.
- Bom Natal – respondeu a Gertrudes.
Joana calou-se um momento. Depois perguntou:
- Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
- O que é que eu disse?
- Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não
têm presentes.
- Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem
árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres.
Têm a pobreza.
- Mas então o Natal dele como foi?
- Foi como nos outros dias.
- E como é nos outros dias?
- Uma sopa e um bocado de pão.
- Gertrudes, isso é verdade?
- Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar
porque estamos quase na meia-noite.
- Boa noite – disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam
em cima da cama. Joana olhou-os um por um e pensava:
- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os
presentes que eu queria. Deram-me tudo o que eu queria. Mas ao Manuel ninguém
deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar
o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa
que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
“Que frio lá deve estar!”, pensava ela.
“Que escuro lá deve estar!”, pensava ela.
“Que triste lá deve estar!”, pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel
dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
- Amanhã vou-lhe dar os meus presentes – disse ela.
Depois suspirou e pensou:
“Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.”
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém
passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se
uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da
meia-noite.
“Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para
que ele tenha presentes na Noite de Natal.”
Foi ao armário, tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de
tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e
com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na
cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e
saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.
Depois atravessou o jardim. O Alex e a Chiribita ladraram.
- Sou eu, sou eu – disse Joana.
E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.
Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.
E juntos seguiram através do pinhal. E de novo Joana ouviu passos. E um vulto
surgiu entre as sombras da noite.
Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande
manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.
- Boa noite – disse ela. – Chamo-me Joana e vou com a estrela.
- Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é
Gaspar.
E seguiram juntos através dos pinhais.
E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu
entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.
Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto
verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.
- Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.
- Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.
E juntos seguiram os quatro através da noite.
No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as
árvores e os grandes mantos bordados dos três reis do Oriente brilhavam entre as
sombras verdes, roxas e azuis.
Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa
claridade a estrela parou. E continuaram a caminhar.
Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um
casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o
casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.
E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o
burro e dormia sorrindo.
Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha
nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.
E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar. Era assim, à luz dos
anjos, o Natal do Manuel.
- Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio!
- Sim – disse o rei Baltasar -, aqui é como no presépio.
Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.
Sophia de Mello Breyner Andresen, A Noite de Natal
A Carta ao Pai Natal
Na véspera de Natal, ouvindo a neve cair,
Deito-me no chão para uma carta redigir.
Antes de começar, penso no que vou escrever
E no que o Pai Natal me poderá oferecer.
Depois de escrever os meus pedidos,
Pus o meu nome e mandei beijinhos repetidos.
Fui até à sala e junto da lareira cheguei,
E, pela chaminé, a minha carta enviei.
Como chegam ao Pólo Norte é coisa que não sei.
Mas, quando descobrir, é claro que to direi.
Que é pela chaminé, é normal!
Mas como chegarão à terra do Pai Natal?
Nessa noite de Inverno, enquanto a casa dormia,
Deitei-me na minha cama – nem um som se ouvia!
Sonhei com o Pai Natal, com o tão desejado presente
E como de manhã ao acordar iria ficar contente.
De repente, onde estaria eu?
Algures na neve, num país que não era meu!
No meio da neve vi uma cabaninha.
Tremendo de frio, espreitei por uma janelinha.
É a casa do pai Natal! Tenho de lá entrar!
Ninguém me verá, se for devagar!
Pé ante pé terei de entrar,
Para ver os presentes ainda por embrulhar.
Olá…o Pai Natal a ler as cartas que recebeu!
E a minha ali no chão! Será que já a leu?
Na parede está um mapa-mundo,
Para que a todas as casas chegue num segundo.
Há também desenhos de todo o tipo de chaminés,
Que o Pai Natal estuda, com o gato a seus pés.
Como estão ocupados os duendes nas suas tarefas!
Um constrói uma bonita casa de bonecas.
Outro pinta um comboio de brincar.
E outro cola as asas para o avião poder voar.
E outro ainda anda numa bonita bicicleta!
Aquela que é a minha prenda predileta!
Eis a sala onde os presentes são empilhados,
E com bonitos laçarotes e papéis são embrulhados.
E para que todos os presentes cheguem à meta,
Em todos é colocada uma bonita etiqueta.
A azáfama é grande por todo o lado;
Os duendes trabalham depressa, com muito cuidado.
No quarto do Pai Natal está tudo preparado.
Os duendes trabalharam muito, está tudo engomado.
Gorro escovadinho e as calças bem passadas,
Botas brilhantes e muito bem engraxadas.
Este quarto, penso eu, é muito importante,
Pois o Pai Natal tem de estar muito elegante!
De volta à oficina, a passadeira para de repente.
Lá se foi um dos parafusos da corrente!
Os duendes não sabem o que fazer – que preocupação!
Mas chega o Pai Natal para tratar da reparação.
Num instante, a passadeira volta a trabalhar,
Para lá para fora os presentes levar.
Fora do estábulo, as renas comem um biscoito,
Conto-as uma a uma e, sim, são mesmo oito!
De cascos polidos e guizos brilhantes,
Lá irão elas viajar para terras distantes.
De pelo escovado, preparam a partida,
Pois está a chegar a hora da despedida.
No trenó, a abarrotar, não cabe nem mais um presente.
De rédeas na mão, o Pai Natal grita: “Toca a andar! Em frente!”
Bem lá no alto, por cima das nuvens, lá vão pelo céu,
Por entre a noite e as estrelas no seu lindo véu.
E, quando das casas se aproximam, é preciso abrandar,
para o Pai Natal saltar e pela chaminé entrar.
Quando acordei, o dia de Natal tinha chegado.
E, como no meu sonho, o Pai Natal tinha cá estado!
Ao pé da cama muitas prendas há:
Livro, comboio…, estão todas lá!
E lá está a bicicleta! É bonita que se farta!
De certeza que o Pai Natal leu a minha carta!
Parragon Books,
trad. e adapt. Por Marta Jacinto
A noite em que prenderam o Pai Natal
O velho Pascoal tinha uma barba comprida, branca, muito branca, e lhe caía em tumulto pelo peito. Estilo?
Não: era desleixo, desleixo mesmo, puríssima, genuína miséria. Mas foi por causa daquela barba que ele
conseguiu trabalho. Por isso e por ter nascido albino1, pele de osga2 e piscos olhinhos cor-de-rosa, sempre
escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros. Naquela época, já nem pensava mais em arranjar
emprego, certo de que morreria em breve numa rua qualquer da cidade, mais de tristeza que de fome, pois para
se alimentar bastava-lhe a sopa que todas as noites lhe dava o general, e uma ou outra côdea de pão descoberta
nos contentores. À noite dormia na cervejaria, na mesa de bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do general,
e sonhava com a piscina.
Tinha trabalhado quarenta anos na piscina - desde o primeiro dia! - como zelador. Sabia ler, contar e ainda
todas as devoções que aprendera na Missão, sem falar na honestidade, higiene, amor ao trabalho. Os brancos
gostavam dele, era Pascoal para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças pequenas, alguns até o
convidavam para jogar futebol (foi um bom guarda-redes), outros segredavam confidências, pediam o quarto
emprestado para fazer namoros.
O quarto de Pascoal ficava junto aos vestiários masculinos. Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe
palmadas nas costas:
-Pascoal, o único preto em Angola que tem casa com piscina.
Riam-se:
-Pascoal, o preto mais branco de África. Contavam piadas sobre albinos:
-Conheces aquela do soba3, no Dia da Raça4, que foi convidado para discursar?
O gajo subiu ao palanque, afinou a voz e começou: ''Aqui em Angola somos todos portugueses, brancos,
pretos, mulatos e albinos, todos portugueses".
Os pretos, pelo contrário, não gostavam de Pascoal. As mulheres muxoxavam5, cuspiam quando ele
passava, ou, pior do que isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças saltavam o muro, madrugadinha, e
lançavam-se à piscina. Ele tinha de se levantar, em cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma espingarda
de chumbo, uma pressão-de-ar em segunda mão, e passou a disparar contra elas, emboscado por detrás das
acácias.
Quando os portugueses fugiram, Pascoal compreendeu que os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu
com desgosto à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, ao saque das casas. O que mais lhe custou, nos meses
seguintes, foi vê-los entrar na piscina, camarada para aqui, camarada para ali, como se já ninguém tivesse nome.
As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal expulsava a tiros de pressão-de-ar, faziam chichi do alto das
pranchas. Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte, nem no outro, nem nunca mais. O
cloro acabou pouco depois. A piscina murchou. Ficou amarela, de um amarelo baço, ficou ainda mais baça, e
subitamente encheu-se de rãs. Ao princípio Pascoal tentou combater a invasão indo buscar a espingarda. Não
resultou. Quanto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes, enormes, que nas noites de lua cheia
cantavam até de madrugada, abafando o eco dos tiros, ao longe, e o latido dos cães.
Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade começou a morrer. África - vamos
chamar-lhe assim - voltou a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas6 nos quintais. Acenderam-se
fogueiras nos jardins. O capim7 rompeu o asfalto, invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres pilavam8
milho nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos. Pianos deram excelentes coelheiras.
Gerações de cabras cresceram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em literatura francesa,
umas, outras em finanças ou arquitetura. Pascoal esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que
tinha e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina:
- Amiga - disse-lhe -, é só por alguns meses. Vou vender ovos, vendo os pintos e compro água boa,
compro cloro, vais voltar a ser bonita como antigamente.
Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma tarde apareceram soldados e levaram as
galinhas. Pascoal não disse nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa.
- Esse albino está armado em arrogante - irritou-se um soldado. - Deve pensar que é branco, vejam só,
um branco de imitação.
Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina. Meses depois, vieram outros soldados. Tinham-
lhes dito que ali havia um albino que criava galinhas, e como não encontraram nenhuma, é claro, bateram-lhe
também.
A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam a cidade, o que restava dela, durante
cinquenta e cinco dias. Ao trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante semanas, andou
Pascoal à deriva por entre os escombros.
Uma vez apareceram três homens de jipe, um branco, um mulato, um preto, e todos de casaco e gravata.
- Meu Deus, meu Deus! - lamentou o mulato, fazendo com a mão um largo gesto de desânimo. -Foi um
urbicídio isto, um urbicídio.
Pascoal não sabia o significado da palavra mas gostou dela. "Foi um urbicídio", repetiu, e ainda hoje,
sempre que se lembra da piscina, fica horas a remoer aquela frase: "foi um urbicídio, aquilo, um urbicídio".
Uma tropa de brancos muito estrangeiros, todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa madrugada de
chuva e trouxe-o para Luanda. Ficou dois dias no hospital, onde lhe trataram das feridas e lhe deram de
comer. Depois mandaram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era dezembro e fazia muito
calor, o indiano do novo supermercado, na Mutamba, veio falar com ele:
- Precisamos de um Pai Natal- disse-lhe -, contigo poupávamos na barba e, além disso, como tens um
tipo nórdico, ficava a coisa mais autêntica. Estamos a dar três milhões por dia9. Serve?
A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na
cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barriga. Pascoal sofria com
o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos sentia-se feliz. Assim
vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma
organização não governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja. "Sou o
Pai Natal cambulador", explicou ao general.
Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade deste século: gente contratada para aliciar
clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele trabalho. As
crianças corriam para ele de braços abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca
nenhuma mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com deferência:
- Boa tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas?
O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para
tocar o saco.
Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças:
- Paizinho Natal- implorou -, me dá um balão.
Pascoal tinha instruções severas para só oferecer preservativos às crianças acompanhadas, e
mesmo assim dependia do aspeto da companhia. O contrato era claro: meninos da rua deviam ser
enxotados.
Ao fim da segunda semana, quando a loja fechou, Pascoal decidiu não tirar o disfarce e foi
naquele escândalo para a cervejaria. O general viu-o e não disse nada. Serviu-lhe a sopa em silêncio.
- Faz muita miséria neste país - queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa -, o crime
recompensa.
Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora muito bonita descer do céu e pousar na
beira da mesa de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas brilhantes e uma coroa
dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como se ela fosse um candeeiro.
- Tu és o Pai Natal- disse-lhe a senhora. - Mandei-te aqui para ajudar os meninos despardalados.
Vai à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças.
O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da mesa de bilhar, flutuava uma poeira
incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor mas não conseguiu adormecer. Levantou-se, vestiu-se
de Pai Natal, pegou no saco e saiu para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava,
enorme na praça deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra principal, cada uma
no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso entediado. Na outra montra estavam os monstros
mecânicos, as pistolas de plástico, os carrinhos elétricos. Pascoal sabia que se partisse o vidro dessa
montra, conseguiria passar a mão através das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o
vidro. Já estava a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu um polícia. No mesmo
instante, atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e Pascoal viu a senhora, a sorrir para ele,
flutuando sobre o lume das flores. a polícia não pareceu dar por nada.
- Velho sem vergonha - gritou. - Vais dizer-me o que levas nesse saco?
Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se a dizer:
- São rosas, senhor.
O polícia olhou-o confuso:
- Rosas? O velho está cacimbado10...
Deu-lhe uma chapada com as costas da mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à cabeça dele
e gritou:
- São rosas? Então mostra-me lá essas rosas!
O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para a acácia em flor e viu outra vez a
senhora sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no saco e despejou-o aos pés
do guarda.
Eram rosas, realmente - de plástico.
Mas eram rosas.
José Eduardo Agualusa, in Fronteiras Perdidas
Glossário:
1.albino: pessoa que apresenta uma anomalia genética que consiste na falta total de pigmento em zonas superficiais do corpo. 2.osga:
réptil de pequeno porte que vive nas regiões quentes do planeta, tem as extremidades dos dedos alongadas em formações discóides,
trepa pelos muros e paredes, introduzindo-se frequentemente nas habitações. Tem a pele de um branco quase transparente. 3.soba -
autoridade em Angola. 4. O dia 10 de Junho, que é hoje o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, era chamado,
no regime salazarista, o Dia da Raça e era aproveitado para determinadas cerimónias oficiais de propaganda e actos de regime.
5.muxoxar - soltar estalos com a língua (muxoxos) para mostrar desdém ou pouco caso em relação a pessoa ou coisa. 6.cacimba -
buraco que se cava até atingir um lençol subterrâneo para recolher a água. 7.capim - nome que é dado em África e no Brasil a várias
plantas, em geral, gramíneas. 8.pilar - moer ou pisar grão no pilão {espécie de almofariz de madeira dura, mas em tamanho maior]. 9.
Na época em que se passa a história, o valor do kuanza - a moeda angolana - era, aproximadamente, o seguinte: 1 milhão de kuanzas
= 500 escudos (isto é, cerca de 2.5 €). 10.cacimbado –(fig.) um tanto maluco.
EU SEI TUDO SOBRE O PAI NATAL
Os crescidos dizem
que o Pai Natal não existe.
Mas eu não acredito neles.
Então se o Pai Natal não existe,
quem é que traz os presentes todos os anos?
Os crescidos dizem
que ninguém consegue descer pela chaminé.
Sobretudo com um saco tão grande às costas.
Mas eu sei que é possível.
O mais difícil é subir.
Os crescidos dizem
que o Pai Natal não tem tempo
para ler as cartas de todos os meninos.
Dizem que são tantas que nem se consegue contá-las.
Mas eu sei que ele as lê,
porque nunca se engana nos presentes.
Os crescidos dizem
que os trenós não podem voar pelos céus,
nem aterram nos telhados das casas.
Mas eu digo que eles estão enganados,
porque são as renas que voam e não os trenós.
Os crescidos dizem
que o Pai Natal não pode estar em todas as lojas ao mesmo tempo.
Mas eu acho que isso é um disparate,
porque toda a gente sabe
que os Pais Natais das lojas são a fingir!
Os crescidos dizem
que o Pai Natal, se existisse,
nunca poderia entrar nas casas que não têm chaminé.
Mas eu acho que o importante não é a chaminé.
O que importa é a árvore de Natal.
Os crescidos dizem
que o Pai Natal nunca teria tempo
para embrulhar os presentes de todos os meninos.
Mas eu tenho a certeza
de que a Mãe Natal e os duendes lhe dão uma ajuda.
Os crescidos dizem
que é muito estranho
o Pai Natal nunca envelhecer.
Mas eu sei a verdade.
Ele envelhece mas, como tem barba e cabelos brancos, não se nota.
Os crescidos dizem
que, se o Pai Natal entrasse mesmo nas casas, já alguém o teria visto.
Mas um dia eu fiquei à espera dele, escondido debaixo dos cobertores.
Ouvi os seus passos, mas tive medo de ir ver.
Os crescidos dizem
que o Pai Natal nunca aparece. E que isso é só uma história que os pais contam aos filhos.
Mas eu acho que eles não estão a pensar muito bem.
Se não é ele, quem é que leva as cenouras
que eu lhe deixo ao pé da árvore de Natal para ele dar às renas?
Os crescidos dizem
que, ao passar pelos países quentes, que o Pai Natal teria demasiado calor com o seu casaco
vermelho.
Mas eu acho que eles não têm razão,
porque à noite, no céu, faz sempre um bocadinho de frio.
Os crescidos dizem
que só os meninos pequenos acreditam no Pai Natal.
Mas eu sei que eles estão enganados.
Se o Pai Natal não existe,
por que razão estão sempre a falar dele?
Nathalie Delebarre, in Eu sei tudo sobre o Pai Natal
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Histórias de Natal

  • 1. Uma estrela Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despregarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que hoje se chamaria as estruturas, ou mesmo as infraestruturas, junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde, os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém. Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista batizava nas águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser o Sinai ou talvez o último lugar onde Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém. — E a avó? — perguntava eu. — Eu já estou velha para essas andanças. De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem Maria, nem José. Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas.
  • 2. — Esta é a estrela — dizia a avó. Era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau. Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente/Já chegaram a Belém.” — Não chegaram nada — atalhava a avó — ainda não. Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-os um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria. — Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo. Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projeção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós. Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão (nós dizíamos forro), abria uma velha arca e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José. — Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós. Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto. À noite, quando regressávamos da Missa do Galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém. A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não éramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente, Magos, não consegui deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeira mágica, era a avó. Era ela que
  • 3. fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa, levava-nos a todos até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia, Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém. Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal, os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido. Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada num sexto andar duma velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrô onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrô, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. — Conta uma história de Natal do teu país — pediu o velho. — Só se for a do presépio da minha avó. — Então conta. Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua, o africano apontou para o céu e disse-me: — Olha. E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três. Então eu perguntei ao africano como se chamava. Ele respondeu: — Baltazar. Perguntei ao velho e ele disse: — Melchior.
  • 4. E sem que sequer eu lhe perguntasse, o eslavo disse: — O meu nome é Gaspar. Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai. — E agora? — perguntei a Baltazar. — Agora — respondeu o africano apontando a estrela — agora vamos para Belém. Manuel Alegre
  • 5. O Natal em que fiquei rica Ser pobre e satisfeito é ser rico. E bastante rico. William Shakespeare Havia uma árvore naquele Natal. Não tão grande e frondosa como outras, mas estava pejada de enfeites e tesouros e resplandecia de luzes. Havia presentes, também. Alegremente embrulhados em papel vermelho ou verde, com etiquetas coloridas e fitas. Mas não tantos presentes como de costume. Eu já tinha reparado que a minha pilha de presentes era muito pequena. Nós não éramos pobres. Mas os tempos eram difíceis, os empregos escassos, o dinheiro à justa. A minha mãe e eu partilhávamos uma casa com a minha avó e com os meus tios. Naquele ano da Depressão, toda a gente espaçava refeições, levava sanduíches para o trabalho e ia a pé para poupar nos bilhetes de autocarro. Anos antes da Segunda Guerra Mundial, já vivíamos no dia- a-dia, como muitas outras famílias, o que então se iria ouvir como slogan: “Usa-o, aproveita-o ao máximo; faz com que funcione, ou passa sem ele.” Havia poucas escolhas. Compreendia pois porque era tão pequeno o meu monte de presentes. Compreendia, mas sentia, ainda assim, uma ponta de pesar à mistura com um complexo de culpa. Sabia que não poderia haver surpresas empolgantes naquelas poucas caixas vistosamente embrulhadas. E sabia que uma delas tinha um livro. A minha mãe arranjava sempre um livro para mim. Mas nada de vestidos novos, camisolas ou um roupão acolchoado e quentinho. Nenhum dos miminhos tão desejados na altura do Natal… Havia uma caixa com o meu nome da parte da minha avó. Guardei-a para o fim. Talvez fosse uma camisola nova, talvez um vestido — um vestido azul. A minha avó e eu gostávamos ambas de lindos vestidos e de todas as tonalidades de azul. Soltando os devidos “Ohs” e “Ahs” ao ver a aromática barra de sabonete feito de mel, as luvas vermelhas, o já esperado livro (um novo da Nancy Drew!), rapidamente cheguei àquele último embrulho. Dei por mim a sentir uma centelha do entusiasmo do Natal… Era uma caixa bastante grande. Com vergonha de mim mesma por ser tão gananciosa, por esperar receber um vestido ou uma camisola (mas esperando na mesma!), abri a caixa. Meias! Só meias! Soquetes, meias altas, até mesmo um par daquelas meias horrorosas de algodão branco que estavam sempre a escorregar e se enrodilhavam em volta dos joelhos. Esperando que ninguém tivesse dado conta do desapontamento, peguei num dos quatro pares e agradeci à minha avó, com um grande sorriso. Ela também sorria. Não com o seu sorriso educado e distraído de “Sim, querida,” mas com o seu sorriso feliz e radiante, de “Isto são coisas importantes para uma mulher!” Será que me esquecera de alguma coisa? Olhei de novo para a caixa no chão — nada, a não ser as meias. Só que agora eu conseguia ver que havia outro par por debaixo do que eu tinha pegado. Duas camadas de meias. E mais uma! Três camadas de meias!
  • 6. A sorrir de verdade, comecei a retirá-las da caixa. Meias cor-de-rosa, meias brancas, meias verdes, meias de todos os tons inimagináveis de azul. Toda a gente estava a olhar, rindo comigo, enquanto eu atirava as meias ao ar e as contava. Doze pares de meias! Levantei-me e dei um abraço tão apertado à minha avó que até nos doeu às duas. “Feliz Natal, menina Joan!” disse ela. “Agora, todos os dias, terás muitas escolhas a fazer. Estás rica, minha querida! ” E era verdade. Naquele Natal e durante todo o ano, todas as manhãs, eu escolhia do meu elegante armário da roupa interior qual o par de meias a usar. E sentia-me rica. E ainda sinto! Mais tarde, a minha mãe disse-me que a minha avó tinha andado a esconder aquelas meias durante quase um ano — poupando todas as moedinhas, comprando um par de cada vez. Um dia, tendo visto um lindo par de meias azuis com as beiras elásticas bordadas à mão, ela pedira mesmo ao compreensivo vendedor para deixar um sinal a reservá-las durante três semanas. Dentro daquela caixa estava embrulhado um ano de amor. Foi um Natal que eu nunca esquecerei. A prenda da minha avó mostrou-me como as pequenas coisas podem ser importantes. E como o amor nos faz a todos imensamente ricos. Joan Cinelli Jack Canfield & Mark Victor Hansen Chicken Soup for the Soul – Christmas Cheer Chicken Soup for the Soul Publishing, LLC, 2008 (Tradução e adaptação)
  • 7. A esperança brilha como um diamante — Já não se vê a Sr.ª Bravoure ir comprar o jornal. — A Sr.ª Bravoure tem um ar triste. Compreende-se. Depois do que passou nestes seis meses. — A Sr.ª Bravoure não anda bem. Já não liga ao jardim. Junto da casa tapada pela sebe, o coro da vizinhança aumenta o seu murmúrio de amizade. Mas a Sr.ª Bravoure não tem cura. Para falar a verdade: não se preocupa com nada. Juntamente com o seu velho, com o seu companheiro, enterrou o prazer de existir no dia a dia: a primeira chávena de café tomada lado a lado na varanda com a janela escancarada sobre o jardim, o jornal longamente comentado na cozinha iluminada por um ramo de chagas cor de laranja, as compras feitas em amena cavaqueira na mercearia, os serviços prestados a este e àquele, a expedição mensal à cidade próxima para se encontrarem com a neta recém-casada, o cheiro dos crepes à quarta-feira – um hábito herdado das merendas de antigamente, quando o pequeno (que tem agora cinquenta anos) partilhava da vida deles – a missa das seis da tarde na igreja matriz, o telejornal… Já não tem gosto em nada. Ela, que atravessou com tanta valentia a doença prolongada de Paulo, o seu marido – “Tem mais três meses, no máximo” prevenira o médico do hospital; à força de cuidados, ela prolongou-os por mais seis meses – ela, que lhe deu a mão até ao último instante com um sorriso corajoso, não para lhe mentir, mas para ele não se sentir demasiado culpado por lhe tornar os dias pesados, por a deixar pelo caminho. E eis que agora se vai abaixo. A Sr.ª Bravoure já nem se reconhece, nem sabe onde estará a energia, o seu dinamismo por todos conhecido. Um grande buraco negro. De noite, sonha: as suas mãos escorregam na parede a que tenta agarrar-se para subir. Não há nada a fazer. Nem as visitas calorosas, nem as cartas de encorajamento, nem as atenções com que uns e outros a rodeiam. Ouve as palavras deles, sim, mas como um murmúrio longínquo. Mordisca com a ponta dos lábios a tarte ainda quente, lê cada vez com mais dificuldade os postais enviados de Itália pelo filho. Tudo fica de fora sem a atingir. “Desta vez desci um degrau da escada.” Nunca esqueceu aquela representação simbólica da vida, observada no museu das artes populares, por altura de uma visita com o marido (há quanto tempo isso foi?)
  • 8. — Sr.ª Bravoure, porque não se anima? Não devia ficar assim sozinha. Venha tomar o café a minha casa, é descafeinado. — Muito obrigada, Sr.ª Lara, agora não. Ainda não acabei de separar os fatos do meu Paulo. A Sr.ª Bravoure sabe muito bem que ainda não é hoje que vai realizar aquela tarefa superior às suas forças. Vai ficar sentada na penumbra e esperar, nem ela sabe bem o quê, e, com certeza, amanhã será igual. Quem estará a tocar à campainha a esta hora? “Depois das onze horas, não abra a porta a ninguém”, recomenda-lhe o filho em todas as cartas. “Há por aí pessoas mal-intencionadas”. Mas a campainha continua a tocar e a Sr.ª Bravoure não resiste. Pega no casaco à entrada, acende a luz do pátio e corre até à grade de madeira que já devia ter sido pintada. Uma silhueta um pouco volumosa… uma mulher. — Maria! Caíram nos braços uma da outra. Ao apertar Maria contra si, a Sr.ª Bravoure sentiu-lhe o ventre redondo de grávida. — Maria! Bons olhos te vejam! Não contava contigo a esta hora… Vá, entra! A Sr.ª Bravoure retomou a sua natural vivacidade para tirar o casaco da jovem, aquecer água, acender as luzes. — Não tens frio? Posso aumentar o aquecimento. Segura as perguntas impacientes. — Comes uma sopinha de ervilhas? — Dá-me licença que me deite um bocadinho? — Estás em tua casa, Maria. Paulo não suportava que nenhuma criança ou Maria se deitassem no canapé da sala de visitas. — Isso não se faz — protestava ele. — Mas, Paulo, não faz mal a ninguém e bem vês que ela está cansada! A Sr.ª Bravoure dirigia-se mentalmente ao ausente, como faz cada vez com mais frequência. Uma recordação de infância: a avó – que resmungava sozinha na cozinha. “Tenho de estar atenta. Vou acabar por ficar meio maluca.” Deitada, Maria recompõe-se. Terá sido a sopa com que se deleitava durante os meses em que partilhara a vida do casal? O diretor da escola tinha anunciado, pouco à vontade:
  • 9. — O Sr. e a Sr.ª Bravoure podiam prestar-me um serviço? Acolher por seis meses uma professora provisória, assegurar-lhe estadia e alimentação. Como sabem, não há hotel na aldeia e eu ficava tranquilo se ela ficasse em vossa casa. É muito jovem. Disseram sim sem hesitar: o quarto do filho continuava vazio. Assim surgira Maria: as suas saias floridas, o seu entusiasmo, as buzinadelas, as pilhas de cadernos para corrigir. — Sr. Paulo, o senhor, que tem uma boa ortografia, será que podia dar uma olhadela a estes ditados? Ainda tenho uma aula para acabar de preparar para amanhã. Enquanto preparava a refeição da noite, a Sr.ª Bravoure regozijava-se ao ver Paulo pôr os óculos, munir-se de uma caneta Bic vermelha e consultar o dicionário. Ela sorria quando o ouvia indignar-se: — Não é possível! Eles estão a fazer de propósito! No meu tempo… — Ainda têm de aprender, Sr. Paulo. É para isso que vêm à escola. E depois gostam mais de ver a telenovela do que estudar a gramática. Seis meses, tinha dito o diretor. Os Bravoure desejavam que a substituição se prolongasse, mas o professor, já restabelecido, retomara o seu posto e Maria, sem trabalho, tinha aceite um compromisso em África. Tinham-na acompanhado à estação. Riam, mas nenhum dos três se sentia à vontade. — Escrevo-lhes já amanhã, prometo! — gritava Maria pela janela, enquanto o comboio ia ganhando velocidade. Cumprira o que prometera durante um ano. Envelopes aéreos chegaram à caixa do correio e mantiveram-nos ao corrente das atividades de Maria. De facto, ela quase não tinha outra família a não ser eles, visto que, depois da morte da mãe, o pai se afastara lentamente dela para se dedicar aos filhos pequenos nascidos de um segundo casamento. Depois, o correio começou a rarear. Uma breve mensagem pelo Natal: “Tenho-vos presentes no meu pensamento”. Talvez tenha uma paixão, sugerira Paulo, com os olhos postos no mapa detalhado da região onde Maria exercia os seus talentos. A Sr.ª Bravoure lembra-se daquela rapariga, de cabeleira loura a esvoaçar quando corria: “Vou chegar atrasada! Até ao meio-dia…” e o portão já estava a bater. Estes jovens são incapazes de acordar a horas – dizia Paulo mal-humorado. — É porque esteve a trabalhar até à meia-noite com os preparativos para o dia da Mãe, Paulo.
  • 10. A Sr.ª Bravoure pergunta: — Quando é que a criança vai nascer? — No princípio de janeiro. Estou com medo… É a mesma Maria ousada e sem medo que disse aquilo? A Sr.ª Bravoure observa o rosto marcado pelas manchas da gravidez sob o tufo de cabelos macios, presos por um elástico. — De que tens medo, Maria? E é o dilúvio, as lágrimas tanto tempo contidas. Vem tudo arrastado pela corrente: em África, o enfermeiro admirado, amado, desaparecido, o período atrasado, a suspeita de gravidez, o diálogo com esta criança que já mexe e que nada pedira, a anemia e o regresso forçado ao país, a desorientação e, de repente, a esperança: “O Sr. e a Sr.ª Paulo”. Na estação, o empregado reconhecera-a e informara-a da morte do Sr. Bravoure. Demasiado tarde para recuar caminho. — Está-se bem em sua casa. A Sr.ª Bravoure olha para a sala de visitas aquecida pelas três lâmpadas. “Amanhã tenho de substituir o ramo das flores secas. Não, vou ao mercado comprar ásteres.” — Queres crepes para a noite? — Como é que adivinhou? — Maria admira-se. — A criança vai sentir o cheirinho. É um rapaz. A ecografia é nítida. Posso voltar a ocupar o meu quarto? — A Sr.ª Bravoure recuperou o ânimo desde que a filha – bem, é como se fosse – regressou. Já voltou ao que era. — Eu reparei. Maria está quase no fim do tempo, não? — Estou a tricotar um casaquinho para o menino. Murmúrios. Vozes conhecidas. Fadas à volta de um berço. Na noite de Natal, quando começava com os preparativos para a ceia a duas, Maria perdeu as águas. A Sr.ª Bravoure acompanhou-a na ambulância até à maternidade da cidade. — O seu companheiro não está presente para a acompanhar na sala de parto? — perguntou a parteira de serviço. — É a minha avó que vai ficar ao meu lado — soprou Maria entre duas contrações. À meia-noite, a Sr.ª Bravoure, extenuada, tem nos braços um minúsculo Paulo aos berros. Natal. Nasceu-nos um menino. Colette Nys-Mazure Contes d’Espérance Paris, Desclée de Brouwer, 1998
  • 11. A manhã do Dia de Natal Rob tinha quinze anos e vivia numa quinta. Todas as madrugadas se arrastava para fora da cama para ajudar a mungir. Às vezes, sentia que o esforço era demasiado. Rob gostava do pai. Não sabia até que ponto, quando um dia, um pouco antes do Natal, ouviu o pai a dizer à mãe ― Mary, custa-me muito chamar o Rob de manhã. Ele está a crescer muito depressa e precisa de dormir. Gostava de conseguir desembaraçar-me sozinho. ― Mas não consegues, Adam. A voz da mãe era determinada. ― Eu sei ― disse o pai lentamente ― mas a verdade é que me custa mesmo ter de o chamar. Ao ouvir estas palavras, Rob sentiu algo a mexer dentro dele: o pai amava-o! Nunca antes pensara nisso. Passou a levantar-se mais depressa. O sono fazia-o tropeçar e vestia a roupa com os olhos bem fechados. Mas, mesmo assim, levantava-se. Na véspera de Natal do ano em que fazia quinze anos, estava deitado a olhar pela janela do sótão e a desejar ter um melhor presente para o pai do que uma gravata de dez cêntimos comprada na loja. Lá fora, as estrelas brilhavam, e havia uma em particular que lhe parecia ser a Estrela de Belém. ― Pai ― perguntara uma vez ― o que é um estábulo? ― É apenas um celeiro como o nosso ― respondera o pai. Então Jesus nascera num celeiro, e fora para um celeiro que os pastores e os reis magos se tinham dirigido, com os seus presentes de Natal. Ficou siderado com a ideia. Porque não dar um presente especial ao pai? Podia levantar-se cedo, mais cedo do que as quatro horas, e esgueirar-se para o celeiro para mungir. Faria tudo – mungir e limpar – sozinho. Quando o pai chegasse, veria tudo já feito. E saberia quem o fizera. Nessa noite, deve ter acordado umas vinte vezes. Às três menos um quarto, levantou-se e vestiu-se. Desceu silenciosamente as escadas, tendo especial cuidado com as tábuas que rangiam, e saiu. Uma grande estrela cor de ouro avermelhado pairava por cima do celeiro. As vacas olhavam- no, sonolentas e surpreendidas. Nunca antes mungira sozinho, mas parecia fácil. Não parava de pensar na surpresa que o pai teria. Sorria e mungia com segurança, deitando para a selha dois fortes jatos, espumosos e perfumados. As vacas estavam surpreendidas mas anuíam. Era a primeira vez que se portavam bem, como se soubessem que era Natal. A tarefa foi desempenhada com mais facilidade do que habitualmente. Pela primeira vez, mungir não era penoso. Era algo de diferente: um presente para um pai que o amava. De volta ao quarto, só teve tempo de tirar a roupa no escuro
  • 12. e de saltar para a cama, porque já ouvia o pai a levantar-se. Cobriu a cabeça com os lençóis para silenciar a respiração ofegante. A porta abriu-se. ― Rob! ― chamou o pai. ― Temos de nos levantar, filho, mesmo sendo Natal. ― ‘Tá bem ― disse com sono. ― Vou indo ― disse o pai. ― Vou pondo as coisas a andar. A porta fechou-se e Rob ficou quieto, a rir com os seus botões. Os minutos nunca mais passavam – dez, quinze, não sabia quantos – até que ouviu de novo os passos do pai. ― Rob! ― Sim, Pai? O pai estava a rir, um riso esquisito, soluçante. ― Pensavas que me enganavas, não? ― É por ser Natal, Pai! O pai sentou-se na cama e apertou-o contra si, num grande abraço. Estava escuro e não conseguiam ver os rostos um do outro. ― Agradeço-te, filho. Nunca ninguém fez coisa mais bonita… ― Oh, Pai. Não sabia o que dizer. O seu coração transbordava de amor. ― Bom, parece que posso voltar para a cama ― disse o pai, volvido um momento. ― Espera…estás a ouvir? Os pequeninos já estão a acordar. Agora que penso nisso, nunca vos vi a olhar pela primeira vez para a árvore de Natal. Estava sempre no celeiro. Anda daí! Rob levantou-se, vestiu-se de novo e desceram para ver a árvore de Natal. Depressa o Sol tomou o lugar da estrela. Oh, que Natal aquele, e como o seu coração quase rebentou de timidez e alegria quando o pai contou à mãe e aos mais novos que ele, Rob, se tinha levantado sozinho. ― O melhor presente de Natal que alguma vez tive, e hei de recordá-lo, filho, todos os anos na manhã de Natal, enquanto for vivo. Pearl S. Buck
  • 13. As luzes de Natal Antes de o meu pai morrer, o Natal era uma época mágica nos longos e escuros invernos de Bathrurst, em New Brunswick. Os dias frios e tempestuosos começavam cedo, logo no fim de setembro. A dada altura, acendiam-se as luzes de Natal e a expectativa crescia. Por alturas da véspera de Natal, o vulgar pinheiro que o meu pai arrastara até nossa casa dez dias antes adquiria uma vida própria, plena de magia e de luz. O seu brilho era de tal forma maravilhoso que conseguia, sozinho, afastar toda a escuridão do inverno. Na véspera de Natal, pouco antes da meia-noite, agasalhávamo-nos bem e íamos à missa do galo. A beleza do som do coro causava-me arrepios e, quando a minha irmã mais velha, que era solista, cantava Noite Feliz, a minha face corava de orgulho. No dia de Natal de manhã, eu era o primeiro a levantar. Saía da cama atabalhoadamente e descia em direção ao brilho intenso da sala de estar. Embora tentasse manter-me direito, os olhos cheios de sono faziam-me cambalear. Quando entrava na sala, via-me diante do esplendor do Natal. Os meus olhos toldados e cheios de sono criavam uma auréola à volta de cada luz, amplificando-a e aquecendo-a. Após uns breves instantes, esfregava os olhos e via uma infinidade de fitas e laços e um amontoado de presentes coloridos. Nunca me esquecerei da sensação do primeiro vislumbre dessa manhã. Após alguns minutos a sós com a magia do Natal, ia buscar os meus irmãos e juntos acordávamos os nossos pais. Certa noite de novembro, quando faltava um mês para o Natal, eu estava sentado à mesa da sala de jantar a jogar o Solitário. A minha mãe estava ocupada na cozinha, mas, de vez em quando, aproximava-se da sala de estar para ouvir o seu programa de rádio preferido. Embora estivesse escuro e frio lá fora, o interior da casa estava agradável. O meu pai tinha-me prometido que à noite jogaríamos as cartas, mas já estava quase na hora de ir para a cama e ele ainda não tinha chegado. Quando o ouvi entrar pela porta da cozinha, levantei-me de um salto e fui ao seu encontro. Embora lançasse um olhar preocupado à minha mãe, o que achei estranho, abraçou-me quando corri para os seus braços. Adorava abraçar o meu pai numa noite de inverno. O casaco grosso e frio comprimia-se contra a minha cara e o cheiro do gelo misturava-se com o cheiro da lã. Só que desta vez foi diferente. Depois dos segundos iniciais do abraço habitual, o seu corpo começou a ficar hirto. Fiquei um pouco assustado com esta reação anormal e senti-me aliviado quando a minha mãe me arrancou dos braços dele. Naquela altura, não compreendi que o meu pai acabava de sofrer um enfarte. Pediram-me para descer para o quarto de jogos e para brincar com os meus irmãos. Do fundo da escada, vi chegar o médico e o padre. Mais tarde, vi os enfermeiros entrar e depois vi-os sair, transportando uma maca coberta com uma manta vermelha. Não chorei na noite da morte do meu pai, nem no dia do funeral. Não que reprimisse as lágrimas. Simplesmente, não tinha lágrimas para chorar. Na manhã do dia de Natal, como habitualmente, fui o primeiro a levantar-me. Mas este ano era diferente. A manhã já despontava no céu. Mais acordado do que de costume, desci para a sala de estar. Só me apercebi de que havia algo de estranho quando entrei na sala. Em vez de ficar ofuscado com as luzes brilhantes, conseguia ver tudo com nitidez naquela sala sombria. Conseguia ver o pinheiro, os presentes e até, através da janela, um pouco do exterior. O meu pai já não estava presente para assegurar que as luzes do pinheiro tinham ficado acesas. Quebrara-se a magia do Natal da minha infância. Entretanto, os anos passaram. Durante a minha juventude, voluntariei-me sempre para trabalhar no Natal. O dia de Natal não era bom, nem era mau. Era mais um dia cinzento de inverno, com a vantagem de receber algum dinheiro extra pelo facto de trabalhar. Depois apaixonei-me e casei-me. O primeiro Natal do nosso filho foi o melhor que eu tinha tido em vinte anos. À medida que ele foi crescendo, o Natal foi melhorando. Quando a nossa filha nasceu, já recuperáramos algumas tradições familiares e o Natal tornou-se, de novo, uma época maravilhosa. Era divertido esperar pelo Natal, ver a excitação das crianças e, acima de tudo, passar o dia de Natal com a minha família. Na véspera de Natal, continuei a tradição iniciada pelo meu pai e deixava as luzes do pinheiro ligadas naquela noite para que, de manhã, as crianças pudessem viver aquela experiência maravilhosa.
  • 14. Numa noite de Natal, tinha o meu filho nove anos, a mesma idade que eu tinha quando o meu pai faleceu, enquanto via a missa do galo na televisão adormeci no sofá. O coro cantava lindamente e a última coisa de que me lembro foi de desejar ouvir outra vez a minha irmã a entoar Noite Feliz. Acordei de manhã cedo com o barulho que o meu filho fazia enquanto descia para a sala de jantar. Vi-o parar e olhar o pinheiro, boquiaberto. Então, lembrei-me da minha infância e soube que o meu pai me tinha amado da mesma forma que eu amava o meu filho. Soube que ele tinha sentido por mim uma mistura de orgulho, de alegria e de amor ilimitado. E, naquele instante, soube como me tinha zangado com o meu pai por ele ter morrido e quanto amor tinha escondido durante toda a minha vida por causa desse sentimento de raiva. Senti-me um rapazinho, cujas lágrimas estavam prestes a brotar, e não havia palavras para exprimir a imensa pena e a alegria irresistível que experimentava em simultâneo. Esfreguei os olhos com as costas da mão para ver melhor. Com os olhos húmidos e a visão toldada, olhei para o meu filho que estava diante do pinheiro. Meu Deus, que pinheiro magnífico! Era o pinheiro da minha infância. Através das lágrimas, as luzes do pinheiro irradiavam um brilho quente e cintilante. Os amarelos, verdes, vermelhos e azuis, tremeluzentes e suaves, envolveram-nos. Tinham-me sido roubados pela morte do meu pai. Mas, ao amar o meu filho tanto quanto o meu pai me amara, pude ver, uma vez mais, as luzes de Natal. E, a partir desse dia, recuperei toda a magia e alegria do Natal. Michael Hogan
  • 15. A Arvorezinha Descontente Era uma vez, numa pequena floresta, uma arvorezinha que vivia junto a tantas outras árvores, umas altas, outras baixas, algumas eretas, outras com troncos retorcidos, mas, ela estava sempre insatisfeita. Essa arvorezinha, tanto no verão quanto no inverno, não tinha folha alguma, tinha agulhas apenas. As agulhas picavam. Nem esquilos corriam por seu delgado tronco, nem pássaros nela pousavam, nenhuma borboleta colorida ou uma pequena abelha, ali descansavam. A árvore descontente com a sua sorte assim falou: “Todas as outras árvores têm folhas verdes e bonitas que até mesmo mudam de cor com o passar dos meses, eu, porém só tenho agulhas, ninguém, ninguém mesmo, toca em mim. Ah, se eu pudesse fazer um pedido, se um desejo meu pudesse ser realizado, eu gostaria de ter as folhas de puro ouro!” Quando chegou a noite, a arvorezinha adormeceu. Na manhã seguinte acordou e viu que tinha folhas de ouro, era um assombro! Disse a arvorezinha: “Agora estou orgulhosa de mim, ninguém no bosque tem folhas assim!” Mas quando a tarde caiu, pela floresta passou um larápio, saco às costas, barba imensa escondendo o rosto. Ele logo viu o ouro brilhando, foi lá, arrancou as folhas todas dos galhos, colocou-as no saco e saiu sem fazer ruído, deixando para trás a pobre árvore despida, desnuda, chorosa. “Sinto pela perda das lindas folhas, mas, muito mais sinto vergonha de estar assim despida, as outras árvores todas tem sua roupagem verde e eu...que tenho eu? Se eu pudesse fazer mais um pedido, se mais um desejo meu pudesse ser realizado, eu gostaria de ter folhas de vidro!” Chegou a noite, outra vez a arvorezinha adormeceu. Na manhã seguinte acordou novamente e tinha, toda ela, delicadas folhas de vidro. Uma verdadeira maravilha! Disse a arvorezinha: “Estou contente, nenhuma árvore da floresta cintila tão lindamente!” Foi quando veio um vendaval, zunindo, assobiando. Rodopiou, por entre as árvores correu e as folhas de vidro dos galhos varreu. No chão jaziam os cacos de vidro das, outrora, lindas folhas cintilantes. A arvorezinha, disse sentida: “Minhas lindas folhas são cacos caídos no chão, as outras árvores, perderam algumas, mas as copas continuam verdes e viçosas. Ah, se eu pudesse fazer mais um pedido, se mais um desejo meu pudesse ser realizado, eu gostaria de ser como as outras árvores e ter muitas folhas verdes!” Chegou a noite, a arvorezinha adormeceu. De manhã, novamente acordou: tinha folhas verdes e viçosas. E ela riu de contentamento. E disse: “Tenho folhas como as outras árvores, sou igualzinha a elas. Não preciso mais ter vergonha, nem inveja!” E assim o dia passou. Tudo estava perfeito. Mas eis que vem pela floresta, mamãe cabra, o ubre cheio de leite para amamentar seus cabritinhos. Procurava por capim e ervas para alimentar seus filhinhos. Viu as folhas de verde viçoso, não perguntou, não pediu licença, simplesmente mordeu, mastigou, mordeu, mastigou e no final, na
  • 16. arvorezinha, nada sobrou! A arvorezinha, outra vez toda desnuda, disse baixinho para si mesma: “Não tenho maiores anseios, não penso em folhas verdes, amarelas, vermelhas, tudo o que eu gostaria é de ter as minhas antigas agulhas de volta!” Triste, a arvorezinha adormeceu e triste ela acordou. E quando o sol a veio aquecer, ela se olhou e, de repente, começou a rir, a rir, a gargalhar! As outras árvores a olharam espantadas e começaram também a rir, a rir dela, mas ela nem se incomodou. Por que ria tanto a arvorezinha? E por que riram dela as outras árvores da floresta? Quem adivinha? Numa só noite, enquanto dormia, ela ganhou de volta todas as suas muitas agulhas! Não acredita? Vá vê-la na pequena floresta. Lá está ela, recoberta de agulhas, para que todos a possam olhar. Vá vê-la, mas, é melhor não a tocar! Edith Asbeck (baseada em antiga poesia de Friederich Rückert)
  • 17. São Nicolau Muito longe, no Oriente, vivia um bispo piedoso chamado Nicolau. Certo dia, ouviu contar que no Ocidente havia uma cidade, onde todas as pessoas sofriam grande fome, inclusive as crianças. Nicolau chamou então os seus servos que o amavam muito e falou- lhes: -Tragam-me frutas dos seus pomares e colheitas dos seus campos para que possamos saciar os famintos. Os servos trouxeram cestas com maçãs e nozes. Em cima colocaram pão com mel feito pelas mulheres do lugar. Trouxeram também sacos cheios de grãos dourados de trigo. O bispo Nicolau ordenou que todas as dádivas fossem levadas num navio. Era um navio grande e bonito, todo branco e a sua vela era azul, como o azul do céu e do manto do bispo Nicolau. O vento soprou na vela do navio para que ele andasse, e quando o vento se cansou, os servos pegaram os remos e levaram o barco para o Ocidente. Viajaram muito tempo: sete dias e sete noites. Quando chegaram à grande cidade, era noite e não se via ninguém nas ruas, mas as luzes brilhavam pelas janelas das casas. O bispo Nicolau bateu numa janela. A mãe que morava na casa pensou ser um viajante pedindo abrigo e mandou o filho abrir a porta. Não havia ninguém na frente da porta. A criança correu até a janela. Também não viu ninguém, mas encontrou uma cesta cheia de nozes e maçãs vermelhas e amarelas, e não faltavam os pães de mel. Ao lado da cesta havia um saco repleto de grãos dourados de trigo. Todas as pessoas comeram das dádivas e ficaram fortes e alegres. Agora São Nicolau está no céu. Todos os anos, na data de seu aniversário, ele viaja para a Terra, monta seu cavalo branco e vai de estrela em estrela. Lá encontra a Virgem Maria: ela recolhe fios de ouro e de prata para fazer a camisinha de Jesus. Maria então diz- lhe: - Querido São Nicolau, volte para as crianças, leve tuas dádivas e diz-lhes que o Natal, o nascimento do Menino Jesus, se aproxima. Conto extraído do livro Erziehungskumst de Emmy Proske Tradução : Barbara Trommer
  • 18. Prenda de Natal Quando o Mário chegou a casa, a Bia foi logo ao seu encontro: - Emprestas-me a tua caneta? A caneta de Mário não era uma caneta qualquer: era a caneta que o avô lhe tinha oferecido no Natal e por isso, se alguém a estragasse ou perdesse, nenhuma outra a podia substituir. Para falar verdade, ele tinha pedido ao avô um iPod. Mas o avô, que ouvia pouco e não sabia muito de novas tecnologias, não entendeu o pedido. E a avó, que estava mesmo ao lado dele, levantou a cabeça do tricô e respondeu logo: - Pode, claro que o avô pode dar-te o que tu lhe pedires! Ninguém como ele para te fazer todas as vontades... Só no momento de desembrulhar os presentes é que Mário deu pelo engano. Claro que sentiu um certo desapontamento: já se estava a ver no quarto a ouvir toda a música que lhe apetecesse, sem ter de aturar nenhuma daquelas cantigas horríveis de que Bia gostava tanto. Mas depressa se recompôs: Mário gostava muito do avô, e nunca diria nada que o pudesse aborrecer. E a caneta era muito bonita. Fazia-o sentir-se muito crescido: nenhum amigo seu lá da escola tinha uma caneta. Escreviam todos com esferográficas, cada uma mais feia do que a outra... - Então, emprestas ou não? - Com uma condição... - disse Mário. Bia olhou para ele desconfiada. Mário esperou alguns minutos, sorriu e depois exclamou: - Hoje sou eu que escolho a música! Alice Vieira, in Livro com Cheiro a Baunilha
  • 19. O Natal das bruxas No castelo tenebroso, estava um ambiente de cortar à faca! As três bruxas não faziam outra coisa senão resmungar, lamentar-se e dar largas à fúria, com pontapés nos gatos e vassouradas nos morcegos. - Não há dúvida! - berrava a mais velha. - Vivemos aqui há séculos e nunca o Pai Natal se lembrou de nós! - Nunca, por nunca ser, tivemos um presente no sapatinho! - No sapatinho? Tu queres dizer é no sapatão. Ora olha bem para o tamanho do teu pé. Calças para aí o quarenta e quatro – respondeu-lhe a irmã mais nova, cheia de maldade, ou não se chamasse ela Rosa Maldosa. Ao ouvir aquilo, Rita Maldita saltou de trás do caldeirão onde borbulhavam poções maléficas e deu-lhe um estalo. - Toma que é para aprenderes. Já sabes que não tolero que falem do tamanho dos meus pés! A outra não se ficou e puxou-lhe os cabelos com toda a força. Seguiu-se uma das cenas habituais. Faísca daqui, faísca de acolá, bombardearam-se com doses maciças de choques elétricos e insultos da pior espécie. - És horrorosa, Rosa Maldosa! - E tu nem chegas a ser parva...és parvalhita, Rita Maldita! A irmã do meio assistia, abanando a cabeça com visível enfado. Como é que haviam de ter presentes, se se portavam daquela maneira? Brigas constantes afugentavam qualquer Pai Natal bem-intencionado. Gostaria de lhes fazer ver que assim não ganhavam nada. Mas sabendo que qualquer argumento seria inútil, agiu à sua maneira: puxou a corrente que segurava o caldeirão e, com um gesto seco e firme, plof!, despejou-lhes o líquido verde em cima. - Ai!! - berravam ambas, enquanto sacudiam a roupa encharcada em óleo e enxofre repletos de rabos de lagarto e pernas de rã. - Destruíste a nossa poção mágica! - Claro que destruí! Vocês já sabem como eu sou! - Sabemos, sim, Conceição Maldição! Nenhum outro nome te assentaria melhor. Se não fossem bruxas, a zanga acabava de outra forma. Mas eram. E não há nada mais estimulante para uma bruxa do que um banho malcheiroso e a escaldar. As duas irmãs ainda não se tinham desembaraçado da mistela pegajosa, já engendravam planos formidáveis, que a outra aceitou com grande entusiasmo. - Vamos ao Pólo Norte dizer umas verdades ao Pai Natal! - Boa ideia! - Eu cá não saio do armazém sem escolher um presentão. E quero-o embrulhado num papel bonito. - E laço de cor viva! - Pois. E cartãozinho com o nome escrito... -Sim, sim! -Hi! Hi! Hi! Num ápice, foram ao baú onde guardavam as casacas de toupeira para ocasiões muito especiais e agasalharam-se. Não era preciso deitarem-se a adivinhar. Sabiam que o vento daquelas bandas era gélido! Depois assobiaram para chamar as vassouras, montaram e lá foram pela janela fora! Nenhuma confessou, mas iam radiantes! A viagem foi mais rápida do que esperavam, porque o tal vento gélido soprava de feição. E não lhes custou nada darem com o sítio, pois o armazém dos presentes erguia-se na ala de um bosque magnífico, em que todas as árvores eram árvores de Natal. E cada uma mais bonita do que a outra! Bolas, laços, fios, chocolates, tudo pendurado com gosto e requinte. Havia também luzinhas de cores diferentes, umas fixas, outras a piscar, como nos aeroportos. Aterraram portanto sem dificuldade e foram entrando sem pedir licença. O Pai Natal, coitado, quando as viu pela frente teve um baque. Que lhe quereriam aquelas três loucas? O mais certo era virem empatá-lo e o pior é que já só tinha uma semana para organizar os lotes das prendas. Tentou encontrar uma boa desculpa para as mandar embora, mas elas não lhe deram tempo e desataram numa gritaria infernal. - Viemos protestar! - Exigimos justiça! - Nós também temos direito. Queremos prendas! - Prendas como as outras pessoas! - Não temos culpa de sermos bruxas.
  • 20. - Nascemos assim, temos que fazer maldades. - Foi por isso mesmo que nos deram estes nomes começados por mal: Maldosa, Maldita, Maldição! O pobre velhote deitou as mãos à cabeça. Que havia de fazer para se ver livre delas? - Vocês sabem muito bem que não posso dar presentes a quem faz patifarias - arriscou com voz débil. A resposta veio sem frases que se atropelavam num frenesim: - Patifarias? Patifarias não! - Asneiras! Pequenos disparates como toda a gente. - Claro! Somos bruxas, fazemos bruxarias. - Tudo coisas sem importância: poções para tornar amargo qualquer doce, pozinhos para as crianças poderem arreliar as pessoas mais velhas ou xaropes para as pessoas mais velhas obrigarem os mais novos a irem para a cama. - Só usamos produtos de primeira qualidade! Unhas de dragão, patas de morcego, asas de mosca ... - Ou de vespa! - É verdade, já me esquecia - disse Rosa Maldosa como quem cai em si. - Onde é que vocês puseram o meu frasco de asas de vespa? - Não sei. Eu não mexo nas tuas coisas. - Nem eu. - Mexem sim, mentirosas! Não posso ter nada que vocês não gastem. E nem sequer pedem autorização! Receando que discutissem toda a noite, o Pai Natal ordenou: - Calem-se! Se não se calarem imediatamente garanto-vos que nunca na vida hão de receber um presente. A ameaça funcionou. Muito juntas foram-se chegando para ele. Pela conversa, pareceu-lhes que encarava a hipótese de as presentear. - Vão-se embora - pediu o Pai Natal, agora mais calmo. Deixem-me trabalhar sossegado. Não prometera nada, mas havia qualquer coisa no tom de voz que lhes deu esperança. Esperança de ver um daqueles lindos embrulhos cair pela chaminé. Abandonaram então os modos agressivos, despediram-se e retomaram viagem. De regresso ao castelo tenebroso, lembraram-se que as vassouras podiam ser usadas para outros fins que não o voo e, pela primeira vez em séculos, limparam teias de aranha, caganitas de rato e camadas de pó acumulado nos cantos, pondo grande esmero nas pedras da chaminé que ficaram rebrilhando sem uma ponta de fuligem. Depois, que longa espera! Nunca mais chegava a noite de Natal. Nunca mais chegava a hora de saber se desta vez, sim, seriam contempladas. Mas valeu a penal Era meia-noite em ponto quando ouviram uma restolhada sobre as telhas. Pé ante pé foram espreitar e, oh! maravilha! as renas lá iam deslizando pelo céu ao som dos guizos que tilintavam. Do Pai Natal só se via a silhueta gorda e o bafo de vapor provocado pelas risadas alegres de quem está satisfeito com a sua missão. Na chaminé desciam lentamente três embrulhos, tão lindos como nunca tinham visto outros! Ansiosas, precipitaram-se para saber qual era o seu. E o coração derreteu-se-lhes quando deram com os olhos nos cartõezinhos: - Oh! Já viste o que o Pai Natal escreveu? - Que querido! - Adoro o Pai Natal! - É o velho mais simpático do universo! A alegria tinha razão de ser. O Pai Natal, em vez de usar os nomes delas, escolhera outros mais a seu gosto: Rita Bonita, Rosa Cheirosa, Conceição Bom-Coração. Nunca ninguém lhes tinha chamado assim e sentiram-se tão felizes que, por um momento, desejaram proceder como o Pai Natal, apeteceu-lhes alterar as coisas, substituir malefícios por benefícios, enfim, apeteceu lhes deixar de ser bruxas. Mas quem é que pode fugir ao seu destino? Ainda não tinha batido a uma hora, já andavam à bulha com inveja do presente das irmãs. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, O Natal das Bruxas
  • 21. A menina dos fósforos Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar. Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio. Levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: «- Quem compra fósforos bons e baratos?» Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava. Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e…Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas… que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão. Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou- se transparente como tule. E a rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria. E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou junto de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz. «Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu.» Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade! «- Avó!», gritou a menina, «- Leva- me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda.» Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse
  • 22. dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus. Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios…morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. «- Coitadinha, parece que tentou aquecer-se!» exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo. Hans Christian Andersen
  • 23. As filhós de Natal Era uma vez uma velhinha que morava na última casa da aldeia, e como sempre acontece às pessoas que vivem sós, costumava pensar em voz alta. O tempo do Natal estava a chegar e a velhinha certo dia lamentou-se: - Ai, já amanhã é a véspera de Natal e pela primeira vez na minha vida não vou comer filhós! Mas como havia eu de as amassar? Não tenho força nestes braços para pegar na abóbora que está em cima do muro...Não posso subir a uma escada para apanhar laranjas...0 reumatismo não me deixa ir ao moinho buscar farinha, nem à loja comprar azeite...Para mais, as malucas das galinhas escondem as ovos lá pelos campos...E o mel acabou-se quando me constipei e tive de o tomar às colheres para curar a tosse. Dizia aquilo, mas bem se via que estava triste, porque gostava muito de filhós. Todos os velhinhos gostam de coisas doces. Naturalmente porque já têm poucos dentes e os doces derretem-se na boca sem ser preciso mastigá-los. Um cão que passava em frente da casa, ouviu-a e ficou cheio de pena. - Coitada da velhinha! Se eu pudesse, ajudava-a... Olhou para o muro e viu a abóbora grande, redonda, cor-de-rosa. - Sou muito bem capaz de a atirar ao chão - ladrou o cão lá para consigo. – Assim soubesse trepar às árvores que também lhe apanhava as laranjas. Foi então que se lembrou do gato que andava em cima do telhado e chamou-o: -Ó gato, queres ajudar a velhinha a fazer filhós? - Eu?! De que maneira? - Podes trepar à laranjeira e apanhar-lhe duas laranjas. 0 gato miou logo que sim, e o cão contou-lhe o que também pensava fazer. - Bom, mas ainda falta a farinha. - Pois falta! - ladrou o cão. - Há por aí um rato que deve conhecer todos os cantos do moinho e pode arranjá-la. Vou falar com ele. E o gato pôs-se à procura do rato. Não foi difícil encontrá-lo, a espreitar à entrada do seu buraquinho. -Ó rato, queres ajudar a velhinha a fazer filhós? - Eu?! De que maneira? - Podes ir ao moinho e trazer-lhe farinha. O rato soltou dois guinchinhos que queriam dizer "sim, sim", mas perguntou por sua vez: - E o azeite? - É verdade! Falta o azeite ainda. - Eu conheço uma coruja que mora na torre da igreja. Talvez ela consiga arranjar algum. Vou pedir-lho. E o rato meteu por um carreirinho que ia ter à igreja da aldeia. Subiu os degraus da torre, e lá no alto foi encontrar a coruja a dormitar. Chamou por ela: - Ó coruja, queres ajudar a velhinha a fazer as filhós? - Eu?! De que maneira? - Podias dar-lhe uma pinguinha de azeite.
  • 24. - O azeite não é meu, é de Nosso Senhor; mas como é para a velhinha festejar o Natal, tenho a certeza de que Ele não se vai importar. Que eu para mim nunca Lhe bebi nem uma gota, apesar do que muita gente pensa a meu respeito. - Bom. O azeite está garantido. - Sim, mas então os ovos? - piou a coruja. - Pois é, faltam ainda os ovos, mas as malucas das galinhas escondem-nos bem escondidos. - Talvez o milhafre que vê muito bem ao longe possa dar um jeito. Nós ainda somos parentes; vou falar com ale. E a coruja foi em busca do milhafre. Custava-lhe um bocado a aguentar nos olhos a claridade do dia a que não estava habituada, mas para ajudar a velhinha, valia a pena o sacrifício. Lá muito no alto, ao pé das nuvens, viu um milhafre a peneirar, de asas abertas. Peneirar, chama-se ao voo quase parado dos milhafres, quando andam à procura de caça. - Ó milhafre! - gritou a coruja. Tu queres ajudar a velhinha a fazer as filhós? - Eu?! De que maneira? - Vê se descobres o sítio onde as galinhas escondem os ovos. - Está bem — respondeu o milhafre. Mas onde se vai arranjar o mel? - É verdade! 0 mel... - Deixa que eu pergunto às galinhas se por acaso viram alguma abelha. Enquanto a coruja voltava para a sua torre, o milhafre começou lentamente a descer lá dos altos, sempre de olhos bem abertos até que por fim avistou três ovos escondidos numas moitas. Baixou mais e veio pousar num terreno onde uma galinha depenicava. - Olá, galinha! Queres ajudar a velhinha a fazer as filhós? - Eu?! De que maneira? - Oferecendo-lhe alguns dos teus ovos. - Com todo o gosto – cacarejou a galinha. – Mas ainda falta outra coisa, que é o mel. - Já tinha pensado o mesmo. Não encontraste por aí nenhuma abelha? - As abelhas no Inverno pouco saem do cortiço... Mas agora me lembro de que vi uma delas, meio entorpecida de frio, acolá nas urzes. Assim lá esteja ainda. E a galinha dirigiu-se ao sítio indicado, pezinho cauteloso à frente um do outro, cabecinha à banda ora virada à direita, ora virada à esquerda. A abelha continuava, sonolenta e friorenta, poisada numa haste. - Ó abelha, queres ajudar a velhinha a fazer as filhós? - Eu?! De que maneira? - Dando-lhe um bocadinho de me! É só o que falta. – Nesta altura do ano há pouco, mas temos ainda uma pequena reserva, e como é só para uma pessoa, arranja-se. Vou buscá-lo – zumbiu a abelha, levantando voo com alguma dificuldade. – Se tens frio e estás cansada, pousa na minha cabeça que eu levo-te ao cortiço – ofereceu a galinha. – Aceito e agradeço – respondeu a abelha. Na véspera de Natal, quando a velhinha se levantou foi encontrar na cozinha a abóbora, as laranjas, a farinha, o azeite, os ovos e o mel necessários para fazer as suas filhós. (Não me perguntem como foi que os animais transportaram tudo para ali. Nas histórias estas coisas acontecem, mas ninguém sabe como...)
  • 25. – Milagre de Natal! – exclamou a velhinha. E foi cozer a abóbora, descascar as laranjas, amassar os ovos com a farinha, fritar as filhós… e à ceia enquanto as comia, regadas com mel, repetia sempre: – Milagre de Natal! Milagre de Natal! Para mim, o verdadeiro milagre de Natal foi outro: foi o cão não ter mordido no gato, o gato e a coruja não terem querido comer o rato, o milhafre não ter levado a galinha, a galinha não ter comido a abelha, a abelha não a ter picado e todos, sem desconfiança uns dos outros e em paz, terem juntado a sua boa vontade para que a velhinha pudesse comer as suas filhós na noite santa de Natal. Antoine de Saint-Exupéry
  • 26. Uma estrela atrás da porta A senhora Docelinda tinha um nome tão mal posto! Não lhe dizia com a alma, nem lhe dizia com o rosto. Fora engano dos padrinhos o batizarem-na assim, visto que ela era embirrenta e de coração ruim. Que mulher tão barulhenta! Que feitio mais rezingão! Chamaram-lhe doce, a ela? Só por troca. A Docelinda, azeda como limão! E como quem é azeda tem sempre a testa franzida e a cara toda amarela ou cinzenta cor de greda, a tal Docelinda era a criatura mais feia que havia na sua aldeia. Viesse pedir-lhe alguém: - Ó vizinha, dá-me lume? Respondia logo pronta, com os maus modos do costume: - Não tenho nem uma brasa! E a pobre da vizinha voltava com frio para casa. Se outra lhe batia à porta: - Tem um pezinho de salsa? - Eu hoje não fui à horta! E que fosse!... A dar aos outros o que é meu, estava servida. Ainda acabava descalça! Vinha a velha tia Marta, que tinha o neto na tropa, a pedir com humildade: - Recebi hoje uma carta... Se a senhora Docelinda me fizesse a caridade de ma ler... - Tenha paciência. Agora estou ocupada. Há de haver aí na aldeia muita gente que lha leia. E os que na aldeia moravam, uns para os outros comentavam: - Ai, credo! Que mulher esta! Não dá nada. - Nem empresta. Passa-lhe um desgraçadinho mesmo diante da porta, pois pensam que ela se importa? Que lhe dá um tostãozinho? E a "boa-tarde"? O "bom-dia"? Nunca lhe saem da boca. Daquela boca fechada. Nunca diz "se faz favor"; nem sequer "muito obrigada". Compadre quer que lhe diga: a Docelinda da Encosta não tem uma só amiga. Pois quem é que dela gosta? Repare vossemecê numa coisa que acontece: é costume cá da gente, às pessoas que conhece, mesmo sem ser seu parente, tratá-las por tio ou tia. Ora diga francamente se a alguém apetecia tratá-la desta maneira? Desde a fonte até ao rio, as línguas do mulherio não paravam de falar, e a senhora Docelinda ia atirando com as portas e dando respostas tortas aos que a iam procurar. Más palavras e maus modos era o que tinha para todos. Sempre azeda e mal disposta, torcendo a tudo o nariz, a Docelinda da Encosta afinal era infeliz porque tinha a alma dura, seca, peca e toda escura. Até que chegou Dezembro, o mês mais lindo do ano. É um mês frio? Ora, ora: nisso é que está o engano. Como pode haver friagem, se há calor no coração? É a verdadeira razão, é a razão principal que o mundo vem aquecer: porque é o mês do Natal e que Jesus vai nascer. Os meninos da doutrina andavam a ensaiar uma canção pequenina que na festa iam cantar. - Manuel, Celeste, Inês e tu, Joaquim, vamos cantar outra vez para ficar bem aprendida do princípio até ao fim. E, afinal, Senhor Padre, quando é que se arma a lapinha? - Se me querem ajudar, já não há tempo a perder. Pode-se já começar. - Eu quero. - Eu quero. - Eu também.
  • 27. Foram buscar o caixote das figurinhas de barro, o João e o Manuel. -Ora cá as temos todas embrulhadas em papel. Um rei mago... Uma pastora...Olha aqui está o burrinho. Três ovelhas... Outro rei... O moleiro ou o moinho... - Esta é a Nossa Senhora. E o S. José, onde está? - Não tenhas pressa, Joaquim. A seu tempo aparecerá. - Olha o Menino Jesus! Como é lindo e rosadinho! Se eu soubesse fazer malha, fazia-lhe um casaquinho. - Aqui ao fundo, na palha, ponho o burro e a vaquinha, mais um pastor... Mais um rei... Com estes já faz os três; onde é que os ponho? - Não sei. - Aqui ficam bem, Inês. - Cá temos o S. José de que andavas à procura. Ah! Mas que cabeça a minha! Ainda não temos verdura! Foram buscar buxo e hera, a Celeste e o João, mais um ramo de azevinho; mas de musgo para o chão era preciso também arranjar um bocadinho. Disse o João: - Sei de um sítio onde há de haver todo o que a gente quiser. Disse a Celeste: - E haverá? Anda comigo acolá ao princípio da encosta. No muro da Docelinda há musgo como um veludo. - E se ela nos vê? Vai tudo raso. Já estou a tremer. - Ela nunca limpa os muros, para não gastar com isso. A gente sem pedir paga, presta-lhe o mesmo serviço. Até é para agradecer. Tenho aqui um canivete; corta o musgo num instante. Nisto abriu-se uma janela. Era a Docelinda. Era ela! - Que é lá isso, ó meu tratante! Girem daqui! Os dois! Já. - Mas a gente não fez mal... Vinha só apanhar musgo para o presépio de Natal... - Não quero saber de razões! Seus patifes! Seus ladrões! Toca a andar, senão vou lá! A Celeste e o João foram-se embora a correr, pela encosta até à estrada. O céu pôs-se a escurecer, anunciando trovoada. A Docelinda, zangada com os dois pobres garotos, em casa barafustava: - Os atrevidos! Marotos! Não queriam eles mais nada! Ouviu-se um grande trovão: - Santa Barbara! Deus meu! É trovoada decerto... Ai, outro trovão mais perto! Até a casa tremeu. Olhou para o lado, e que viu atrás da porta a luzir? Era uma luz, pisca-pisca... Seria alguma faísca que ali viera cair? E uma voz suave dizia: - Desculpa, dá-me licença? - Quem será a atrevida que se esconde ali atrás? Ande lá à sua vida e deixe-me cá em paz. - Sou uma estrela... - Uma estrela?!!! Ora adeus, sua impostora! Saia já daí para fora, senão dou-lhe com uma vassoura! Mas parou, admirada! A vassoura ficou cheia de uma poeira doirada, como se fosse uma teia de aranha de ouro! - É bruxedo! - Sossegue, não tenha medo. Vou explicar-lhe quem sou eu. Sou uma estrela cadente que andava a correr pelo céu...Mas veio uma trovoada...Eu assustei-me e fugi. Muito aflita e já cansada, entrei, e abriguei-me aqui. Chove ainda tanto lá fora. Por Deus, não me mande embora. - Uma coisa tão esquisita só a mim acontecia! Mas quem é que me acredita se eu contar isto algum dia?
  • 28. - Não precisa de contar. É um segredo só nosso. - Não. Vai-te embora daqui; não podes ficar. - Não posso? - Que é que eu fazia de ti? Não me ajudas a varrer, nem a lavar ou comer, nem a fazer o comer, nem mesmo a tratar da horta. - Era lindo possuir uma estrela atrás da porta! - Oh! Que serventia tem? - Posso ajudá-la daqui, e penso que muito bem. Tem a testa tão franzida! Porquê? E nunca se ri? Também não sabe cantar? Gostava de a ensinar. É tão fácil experimentar... Quando estiver aborrecida, ou triste, ou até zangada, verá como isso a conforta, pense em mim que estou escondida, aqui por detrás da porta. Posso até, se preferir e a coisa correr mal, ligeiramente tossir para lhe fazer sinal. Quer aceitar a experiência? - Que disparate! Que asneira, entrar nessa brincadeira! - Com bons modos no falar e um pouquinho de paciência... Assim só...deste tamanho... - Está bem...se tens empenho. Entretanto, à mesma hora, em casa da tia Aurora, dizia ela ao marido: - Ora esta! Já não tenho nem um fiozinho de azeite para fritar as filhós. E o Zé da loja já vendeu todo o que havia! - Pede a alguém que to ceda. A Docelinda, talvez. - A Docelinda?!! Essa azeda?!! - Podias experimentar, pergunta-lhe e logo vês. Vai daí a tia Aurora bateu ao portão fechado. - Quem será a maçadora? - resmungou a Docelinda. Mas a estrela estava atenta: - Ah, ah, olhe o combinado! - Não estou habituada ainda. Então, o que hei de fazer? - Vá abrir p'ra ver quem é. Se estiver atrapalhada, lembre-se de que estou ao pé. Foi a Docelinda abrir e ouviu a Aurora pedir: - Vizinha, faça o favor, tem azeite que me venda? Já se acabou o da tenda. Logo à noite é a consoada e as filhós estão por fritar... - Azeite! Mas quem lhe disse que eu o tinha para lhe dar? - disse logo a Docelinda. - Assim não, que é rabugice - segredou a estrela linda. A Docelinda emendou: - Espere aí... Talvez se arranje. Traz aí para onde o deite? E foi buscar o azeite. Quando a tia Aurora saiu, a estrelinha aplaudiu com a sua luz pisca-pisca: - Bravo! Para começar não se saiu nada mal. Mas podia desejar também um feliz Natal. - Pronto. A conversa acabou - disse a Docelinda, arisca. E o jantar que está ao lume, se calhar já se queimou! Na cozinha grande e fria, a Docelinda comeu. Depois levantou a mesa. Atrás da porta luzia, muito viva, muita acesa, a estrela vinda do céu. - Não vai à missa do Galo? - Perguntou ela, baixinho. - Com poucas pessoas falo. E está tão mau o caminho. Não vou por aí assim, aos tropeções sem ter luz. - Pois quê?! Queria ir sem mim ao presépio de Jesus? Estou pronta para a guiar. Escute bem o que lhe digo: tem uma lanterna, não tem? Eu meto-me dentro dela. Pode levar-me consigo. Deste modo a Docelinda, com a lanterna na mão e dentro dela a estrelinha, desceu à povoação.
  • 29. A igreja estava cheia, com toda a gente da aldeia. - Parece que estou no céu! Nunca vi coisa mais linda! - Então faça como eu: cante também, Docelinda - disse-lhe a estrela em segredo. - Eu?! Tenho vergonha. E medo. Porque sou desafinada. - Experimente, não custa nada. E a Docelinda cantou. Por fim, a missa acabou. Todo o povo no portal desejava boas festas: - Feliz e santo Natal! - Boas festas, Docelinda. Inda bem que está presente. Não quer ir à nossa casa para consoar com a gente? - convidou a tia Aurora. - Venha provar as filhós fritinhas no seu azeite. A Docelinda hesitava, mas a estrela aconselhava, brilhando: - Vá lá... Aceite. Foi uma ceia feliz, com todos à volta dela: - Coma agora um bocadinho de arroz doce com canela. - Oferece-lhe pinhões. - E um copo de vinho fino? - Já provou dos coscorões? - Vossemecês são tão bons - dizia ela, envergonhada. - Têm tanta gentileza... Não quero mais nada, obrigada. - A gente tem muito gosto em sentá-la à nossa mesa. - E dizíamos, nós, dantes...Desculpe mas era isso: que a senhora Docelinda picava como um ouriço. E que tinha a voz azeda como sumo de limão! Vê como a gente se engana? Docelinda concordou: - Pois tinham toda a razão. Inda não há muitas horas eu era assim tal e qual. Mas tive uma boa estrela nesta noite de Natal. - E agora tem-nos a nós. Viva a tia Docelinda, mais linda do que uma estrela e mais doce do que as filhós! Nunca mais a Docelinda deu uma resposta torta. Tinha sempre a ajudá-la a estrelinha atrás da porta. Isabel Mendonça Soares
  • 30. A noite de Natal O amigo Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta. No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões. Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim. E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha. Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de outubro. Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta. - Ah! – disse ela. E pensou: “Parece um amigo. É exatamente igual a um amigo.” E do alto do muro chamou-o: - Bom dia! O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu: - Bom dia! Ficaram os dois um momento calados. Depois Joana perguntou: - Como é que te chamas? - Manuel – respondeu o garoto. - Eu chamo-me Joana. E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse: - O teu jardim é muito bonito. - É, vem ver. Joana desceu do muro e foi abrir o portão. E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa
  • 31. da lenha onde dormia um gato. E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores. - É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente. - Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro. A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar. Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões. Brincaram assim durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma fábrica. - Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora. - Onde é que tu moras? - Além nos pinhais. - É lá a tua casa? - É, mas não é bem uma casa. - Então? - O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa. - Mas à noite onde é que dormes? - O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também. - E onde é que brincas? - Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte. - Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo. E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro. Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro. E foi assim que Joana encontrou um amigo. Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha. A festa Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal. E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada. Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.
  • 32. Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma taverna cheia de maravilhas e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas. Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas. Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes, tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas. Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário. A estrela Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas. “Tenho medo”, pensou ela. Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada. Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante. O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais. “Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar. Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca. “Tenho frio”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar. À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme. Joana parou um instante no meio dos campos. “Para que lado ficará a cabana?”, pensou ela. E olhava em todas as direções à procura de um rasto.
  • 33. Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto. “Como é que hei de encontrar o caminho?”, perguntava ela. E levantou a cabeça. Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava. “Esta estrela parece um amigo”, pensou ela. E começou a seguir a estrela. Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela. Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos. “Será um lobo?”, pensou. Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro. “Será um ladrão?”, pensou. Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes. - Boa noite – disse Joana. - Boa noite – disse o rei. – Como te chamas? - Eu, Joana – disse ela. - Eu chamo-me Melchior – disse o rei. E perguntou: - Onde vais sozinha a esta hora da noite? - Vou com a estrela – disse ela. - Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela. Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra. E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia. Joana olhava, olhava, olhava. Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel. Um dos primos puxou-a por um braço. - Joana, ali estão os teus presentes. Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas. À sua volta todos riam e conversavam. Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao mesmo tempo.
  • 34. E Joana pensava: - Talvez o Manuel tenha tido um automóvel. E a festa do Natal continuava. As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar. Até que alguém disse: - São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas das crianças se irem deitar. Então as pessoas começaram a sair. O pai e a mãe de Joana também saíram. - Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram eles. E a porta fechou-se. Daí a um instante saíram as criadas. A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas. E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes. - Bom Natal, Gertrudes – disse Joana. - Bom Natal – respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou: - Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade? - O que é que eu disse? - Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes. - Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza. - Mas então o Natal dele como foi? - Foi como nos outros dias. - E como é nos outros dias? - Uma sopa e um bocado de pão. - Gertrudes, isso é verdade? - Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite. - Boa noite – disse Joana. E saiu da cozinha. Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um e pensava: - Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que eu queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada. E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais. “Que frio lá deve estar!”, pensava ela. “Que escuro lá deve estar!”, pensava ela. “Que triste lá deve estar!”, pensava.
  • 35. E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro. - Amanhã vou-lhe dar os meus presentes – disse ela. Depois suspirou e pensou: “Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.” Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal. Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite. “Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.” Foi ao armário, tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas. Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu. Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco. Depois atravessou o jardim. O Alex e a Chiribita ladraram. - Sou eu, sou eu – disse Joana. E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se. Então Joana abriu a porta do jardim e saiu. E juntos seguiram através do pinhal. E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite. Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras. - Boa noite – disse ela. – Chamo-me Joana e vou com a estrela. - Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar. E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros. Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta. - Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela. - Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar. E juntos seguiram os quatro através da noite. No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis. Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou. E continuaram a caminhar. Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.
  • 36. E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo. Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra. E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar. Era assim, à luz dos anjos, o Natal do Manuel. - Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio! - Sim – disse o rei Baltasar -, aqui é como no presépio. Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes. Sophia de Mello Breyner Andresen, A Noite de Natal
  • 37. A Carta ao Pai Natal Na véspera de Natal, ouvindo a neve cair, Deito-me no chão para uma carta redigir. Antes de começar, penso no que vou escrever E no que o Pai Natal me poderá oferecer. Depois de escrever os meus pedidos, Pus o meu nome e mandei beijinhos repetidos. Fui até à sala e junto da lareira cheguei, E, pela chaminé, a minha carta enviei. Como chegam ao Pólo Norte é coisa que não sei. Mas, quando descobrir, é claro que to direi. Que é pela chaminé, é normal! Mas como chegarão à terra do Pai Natal? Nessa noite de Inverno, enquanto a casa dormia, Deitei-me na minha cama – nem um som se ouvia! Sonhei com o Pai Natal, com o tão desejado presente E como de manhã ao acordar iria ficar contente. De repente, onde estaria eu? Algures na neve, num país que não era meu! No meio da neve vi uma cabaninha. Tremendo de frio, espreitei por uma janelinha. É a casa do pai Natal! Tenho de lá entrar! Ninguém me verá, se for devagar! Pé ante pé terei de entrar, Para ver os presentes ainda por embrulhar. Olá…o Pai Natal a ler as cartas que recebeu! E a minha ali no chão! Será que já a leu? Na parede está um mapa-mundo, Para que a todas as casas chegue num segundo. Há também desenhos de todo o tipo de chaminés, Que o Pai Natal estuda, com o gato a seus pés. Como estão ocupados os duendes nas suas tarefas! Um constrói uma bonita casa de bonecas. Outro pinta um comboio de brincar. E outro cola as asas para o avião poder voar. E outro ainda anda numa bonita bicicleta! Aquela que é a minha prenda predileta!
  • 38. Eis a sala onde os presentes são empilhados, E com bonitos laçarotes e papéis são embrulhados. E para que todos os presentes cheguem à meta, Em todos é colocada uma bonita etiqueta. A azáfama é grande por todo o lado; Os duendes trabalham depressa, com muito cuidado. No quarto do Pai Natal está tudo preparado. Os duendes trabalharam muito, está tudo engomado. Gorro escovadinho e as calças bem passadas, Botas brilhantes e muito bem engraxadas. Este quarto, penso eu, é muito importante, Pois o Pai Natal tem de estar muito elegante! De volta à oficina, a passadeira para de repente. Lá se foi um dos parafusos da corrente! Os duendes não sabem o que fazer – que preocupação! Mas chega o Pai Natal para tratar da reparação. Num instante, a passadeira volta a trabalhar, Para lá para fora os presentes levar. Fora do estábulo, as renas comem um biscoito, Conto-as uma a uma e, sim, são mesmo oito! De cascos polidos e guizos brilhantes, Lá irão elas viajar para terras distantes. De pelo escovado, preparam a partida, Pois está a chegar a hora da despedida. No trenó, a abarrotar, não cabe nem mais um presente. De rédeas na mão, o Pai Natal grita: “Toca a andar! Em frente!” Bem lá no alto, por cima das nuvens, lá vão pelo céu, Por entre a noite e as estrelas no seu lindo véu. E, quando das casas se aproximam, é preciso abrandar, para o Pai Natal saltar e pela chaminé entrar. Quando acordei, o dia de Natal tinha chegado. E, como no meu sonho, o Pai Natal tinha cá estado! Ao pé da cama muitas prendas há: Livro, comboio…, estão todas lá! E lá está a bicicleta! É bonita que se farta! De certeza que o Pai Natal leu a minha carta! Parragon Books, trad. e adapt. Por Marta Jacinto
  • 39. A noite em que prenderam o Pai Natal O velho Pascoal tinha uma barba comprida, branca, muito branca, e lhe caía em tumulto pelo peito. Estilo? Não: era desleixo, desleixo mesmo, puríssima, genuína miséria. Mas foi por causa daquela barba que ele conseguiu trabalho. Por isso e por ter nascido albino1, pele de osga2 e piscos olhinhos cor-de-rosa, sempre escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros. Naquela época, já nem pensava mais em arranjar emprego, certo de que morreria em breve numa rua qualquer da cidade, mais de tristeza que de fome, pois para se alimentar bastava-lhe a sopa que todas as noites lhe dava o general, e uma ou outra côdea de pão descoberta nos contentores. À noite dormia na cervejaria, na mesa de bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do general, e sonhava com a piscina. Tinha trabalhado quarenta anos na piscina - desde o primeiro dia! - como zelador. Sabia ler, contar e ainda todas as devoções que aprendera na Missão, sem falar na honestidade, higiene, amor ao trabalho. Os brancos gostavam dele, era Pascoal para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças pequenas, alguns até o convidavam para jogar futebol (foi um bom guarda-redes), outros segredavam confidências, pediam o quarto emprestado para fazer namoros. O quarto de Pascoal ficava junto aos vestiários masculinos. Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe palmadas nas costas: -Pascoal, o único preto em Angola que tem casa com piscina. Riam-se: -Pascoal, o preto mais branco de África. Contavam piadas sobre albinos: -Conheces aquela do soba3, no Dia da Raça4, que foi convidado para discursar? O gajo subiu ao palanque, afinou a voz e começou: ''Aqui em Angola somos todos portugueses, brancos, pretos, mulatos e albinos, todos portugueses". Os pretos, pelo contrário, não gostavam de Pascoal. As mulheres muxoxavam5, cuspiam quando ele passava, ou, pior do que isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças saltavam o muro, madrugadinha, e lançavam-se à piscina. Ele tinha de se levantar, em cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma espingarda de chumbo, uma pressão-de-ar em segunda mão, e passou a disparar contra elas, emboscado por detrás das acácias. Quando os portugueses fugiram, Pascoal compreendeu que os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu com desgosto à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, ao saque das casas. O que mais lhe custou, nos meses seguintes, foi vê-los entrar na piscina, camarada para aqui, camarada para ali, como se já ninguém tivesse nome. As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal expulsava a tiros de pressão-de-ar, faziam chichi do alto das pranchas. Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte, nem no outro, nem nunca mais. O cloro acabou pouco depois. A piscina murchou. Ficou amarela, de um amarelo baço, ficou ainda mais baça, e subitamente encheu-se de rãs. Ao princípio Pascoal tentou combater a invasão indo buscar a espingarda. Não resultou. Quanto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes, enormes, que nas noites de lua cheia cantavam até de madrugada, abafando o eco dos tiros, ao longe, e o latido dos cães. Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade começou a morrer. África - vamos chamar-lhe assim - voltou a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas6 nos quintais. Acenderam-se fogueiras nos jardins. O capim7 rompeu o asfalto, invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres pilavam8 milho nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos. Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de cabras cresceram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em literatura francesa, umas, outras em finanças ou arquitetura. Pascoal esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que tinha e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina: - Amiga - disse-lhe -, é só por alguns meses. Vou vender ovos, vendo os pintos e compro água boa, compro cloro, vais voltar a ser bonita como antigamente. Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma tarde apareceram soldados e levaram as galinhas. Pascoal não disse nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa.
  • 40. - Esse albino está armado em arrogante - irritou-se um soldado. - Deve pensar que é branco, vejam só, um branco de imitação. Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina. Meses depois, vieram outros soldados. Tinham- lhes dito que ali havia um albino que criava galinhas, e como não encontraram nenhuma, é claro, bateram-lhe também. A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam a cidade, o que restava dela, durante cinquenta e cinco dias. Ao trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante semanas, andou Pascoal à deriva por entre os escombros. Uma vez apareceram três homens de jipe, um branco, um mulato, um preto, e todos de casaco e gravata. - Meu Deus, meu Deus! - lamentou o mulato, fazendo com a mão um largo gesto de desânimo. -Foi um urbicídio isto, um urbicídio. Pascoal não sabia o significado da palavra mas gostou dela. "Foi um urbicídio", repetiu, e ainda hoje, sempre que se lembra da piscina, fica horas a remoer aquela frase: "foi um urbicídio, aquilo, um urbicídio". Uma tropa de brancos muito estrangeiros, todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa madrugada de chuva e trouxe-o para Luanda. Ficou dois dias no hospital, onde lhe trataram das feridas e lhe deram de comer. Depois mandaram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era dezembro e fazia muito calor, o indiano do novo supermercado, na Mutamba, veio falar com ele: - Precisamos de um Pai Natal- disse-lhe -, contigo poupávamos na barba e, além disso, como tens um tipo nórdico, ficava a coisa mais autêntica. Estamos a dar três milhões por dia9. Serve? A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barriga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização não governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja. "Sou o Pai Natal cambulador", explicou ao general. Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade deste século: gente contratada para aliciar clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca nenhuma mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com deferência: - Boa tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas? O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para tocar o saco. Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças: - Paizinho Natal- implorou -, me dá um balão. Pascoal tinha instruções severas para só oferecer preservativos às crianças acompanhadas, e mesmo assim dependia do aspeto da companhia. O contrato era claro: meninos da rua deviam ser enxotados. Ao fim da segunda semana, quando a loja fechou, Pascoal decidiu não tirar o disfarce e foi naquele escândalo para a cervejaria. O general viu-o e não disse nada. Serviu-lhe a sopa em silêncio. - Faz muita miséria neste país - queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa -, o crime recompensa. Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora muito bonita descer do céu e pousar na beira da mesa de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas brilhantes e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como se ela fosse um candeeiro.
  • 41. - Tu és o Pai Natal- disse-lhe a senhora. - Mandei-te aqui para ajudar os meninos despardalados. Vai à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças. O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da mesa de bilhar, flutuava uma poeira incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor mas não conseguiu adormecer. Levantou-se, vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme na praça deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra principal, cada uma no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso entediado. Na outra montra estavam os monstros mecânicos, as pistolas de plástico, os carrinhos elétricos. Pascoal sabia que se partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já estava a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu um polícia. No mesmo instante, atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e Pascoal viu a senhora, a sorrir para ele, flutuando sobre o lume das flores. a polícia não pareceu dar por nada. - Velho sem vergonha - gritou. - Vais dizer-me o que levas nesse saco? Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se a dizer: - São rosas, senhor. O polícia olhou-o confuso: - Rosas? O velho está cacimbado10... Deu-lhe uma chapada com as costas da mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à cabeça dele e gritou: - São rosas? Então mostra-me lá essas rosas! O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para a acácia em flor e viu outra vez a senhora sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no saco e despejou-o aos pés do guarda. Eram rosas, realmente - de plástico. Mas eram rosas. José Eduardo Agualusa, in Fronteiras Perdidas Glossário: 1.albino: pessoa que apresenta uma anomalia genética que consiste na falta total de pigmento em zonas superficiais do corpo. 2.osga: réptil de pequeno porte que vive nas regiões quentes do planeta, tem as extremidades dos dedos alongadas em formações discóides, trepa pelos muros e paredes, introduzindo-se frequentemente nas habitações. Tem a pele de um branco quase transparente. 3.soba - autoridade em Angola. 4. O dia 10 de Junho, que é hoje o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, era chamado, no regime salazarista, o Dia da Raça e era aproveitado para determinadas cerimónias oficiais de propaganda e actos de regime. 5.muxoxar - soltar estalos com a língua (muxoxos) para mostrar desdém ou pouco caso em relação a pessoa ou coisa. 6.cacimba - buraco que se cava até atingir um lençol subterrâneo para recolher a água. 7.capim - nome que é dado em África e no Brasil a várias plantas, em geral, gramíneas. 8.pilar - moer ou pisar grão no pilão {espécie de almofariz de madeira dura, mas em tamanho maior]. 9. Na época em que se passa a história, o valor do kuanza - a moeda angolana - era, aproximadamente, o seguinte: 1 milhão de kuanzas = 500 escudos (isto é, cerca de 2.5 €). 10.cacimbado –(fig.) um tanto maluco.
  • 42. EU SEI TUDO SOBRE O PAI NATAL Os crescidos dizem que o Pai Natal não existe. Mas eu não acredito neles. Então se o Pai Natal não existe, quem é que traz os presentes todos os anos? Os crescidos dizem que ninguém consegue descer pela chaminé. Sobretudo com um saco tão grande às costas. Mas eu sei que é possível. O mais difícil é subir. Os crescidos dizem que o Pai Natal não tem tempo para ler as cartas de todos os meninos. Dizem que são tantas que nem se consegue contá-las. Mas eu sei que ele as lê, porque nunca se engana nos presentes. Os crescidos dizem que os trenós não podem voar pelos céus, nem aterram nos telhados das casas. Mas eu digo que eles estão enganados, porque são as renas que voam e não os trenós. Os crescidos dizem que o Pai Natal não pode estar em todas as lojas ao mesmo tempo. Mas eu acho que isso é um disparate, porque toda a gente sabe que os Pais Natais das lojas são a fingir! Os crescidos dizem que o Pai Natal, se existisse, nunca poderia entrar nas casas que não têm chaminé. Mas eu acho que o importante não é a chaminé. O que importa é a árvore de Natal. Os crescidos dizem que o Pai Natal nunca teria tempo para embrulhar os presentes de todos os meninos. Mas eu tenho a certeza de que a Mãe Natal e os duendes lhe dão uma ajuda.
  • 43. Os crescidos dizem que é muito estranho o Pai Natal nunca envelhecer. Mas eu sei a verdade. Ele envelhece mas, como tem barba e cabelos brancos, não se nota. Os crescidos dizem que, se o Pai Natal entrasse mesmo nas casas, já alguém o teria visto. Mas um dia eu fiquei à espera dele, escondido debaixo dos cobertores. Ouvi os seus passos, mas tive medo de ir ver. Os crescidos dizem que o Pai Natal nunca aparece. E que isso é só uma história que os pais contam aos filhos. Mas eu acho que eles não estão a pensar muito bem. Se não é ele, quem é que leva as cenouras que eu lhe deixo ao pé da árvore de Natal para ele dar às renas? Os crescidos dizem que, ao passar pelos países quentes, que o Pai Natal teria demasiado calor com o seu casaco vermelho. Mas eu acho que eles não têm razão, porque à noite, no céu, faz sempre um bocadinho de frio. Os crescidos dizem que só os meninos pequenos acreditam no Pai Natal. Mas eu sei que eles estão enganados. Se o Pai Natal não existe, por que razão estão sempre a falar dele? Nathalie Delebarre, in Eu sei tudo sobre o Pai Natal