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Este é um trabalho baseado em lembranças verdadeiras que marcaram
positivamente a minha infância e, consequentemente, fizeram de certa forma com que
eu me tornasse o que sou hoje, onde tento passar àqueles que se dispuserem a lê-lo as
coisas boas que me fizeram feliz quando criança, dando-me como resultado uma cabeça
capaz de suportar as agruras da vida sem vir a pirar.
Pelo o que eu tenho observado neste mundo de tristezas e alegrias, as pessoas
que mais suportam as dores que os percalços da vida trazem em seu bojo, são as pessoas
que tiveram uma infância cheia de amor. Sem castrações, porém equilibrada a partir dos
esclarecimentos por parte dos seus pais ou responsáveis sobre as coisas que poderiam
fazer sem que tivessem, como consequência, algo que não gostaria.
E diante dessa liberdade que não dava qualquer direito à libertinagem, cresci
observando a beleza das coisas simples e me maravilhando com elas, de forma que até
hoje guardo, dentro de mim, os momentos de prazer que nos proporcionava aquela vida
na qual nenhum dos seus componentes, ou seja, nenhuma daquelas pessoas que
participaram da minha infância, de um modo geral, sonhava com muito mais do que
tinha. Éramos felizes. O que tínhamos que era quase nada em termo de conforto e
posses, nos bastava. E a Natureza, com toda a sua beleza, proporcionava-nos a
completude do nosso Ser.
E é com a mente repleta de amor que eu tento passar, a todos aqueles que
estiverem dispostos a ler este trabalho desprovido de grandes pretensões, as minhas
lembranças que foram a base da formação de mim mesma.
Brincando de roda, de anel, de boneca,
Aquelas crianças levadas da breca
Levavam a vida, felizes, a pular.
Estórias de alma ouviam a tremer:
Corações pulsando no peito, a bater,
Sem fechar os olhos – sem pestanejar.
5
Rosto lambuzado; olhos a sorrir;
Roupa remendada, rota e sem rirri1,
Sem nada pedir – nada a lhes faltar.
Doces corações prenhes de amor:
Não conhecem o ódio, a guerra, o horror,
Vivem! Tão só vivem! Sem nada almejar.
O Céu, para eles, está sempre azul!
O respeito é mútuo: velho ou novo... é tu.
Felizes! Libertos! Nada os faz parar.
E lhes digo a verdade:
Morro de saudades daquele lugar!
1 rirri – o mesmo que zíper (no Nordeste do Brasil).
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AS PRIMEIRAS LEMBRANÇAS
As árvores cobriam o caminho deixando que o luar atravessasse as brechas
entre a folhagem e formasse belíssimos desenhos na areia branca da beira do rio, que
mais parecia uma renda daquelas que Sinhá Porcina fazia na sua almofada de bilros e
que eu tanto admirava. Eram desenhos perfeitos.
Eu me encolhia toda, com medo das almas penadas que pudessem estar no
mourão2 da velha porteira que dava passagem na divisa das terras dos Davi e dos
“Cabeludos”, como, também, por trás do velho tronco de cajueiro que extremava as
duas terras e nos seus galhos recobertos com pimenta-do-reino, e procurava ir sempre
no meio da fila indiana que se formava devido a pequena largura dos caminhos que
ligavam os pequenos casebres daquele lugarzinho aconchegante, pelo menos para mim,
que reunia seus moradores no meio da rua, se é que se pode chamar aquilo de rua, que
era o caminho principal que servia aos tropeiros viajantes e aos feirantes que se
deslocavam dos pequenos lugarejos para as cidades mais próximas em dias de feira, e,
se noite de lua, contavam piadas picantes que eu mal entendia ou não entendia nada;
estórias de lobisomem; de mula-sem-cabeça, das quais saía um fogo enorme do
pescoço, e que seriam almas penadas de mulheres que tiveram algum caso amoroso com
padres; da cobra preta, um demônio em forma de cobra que atacava as mulheres e as
engravidavam (sempre mulheres casadas em quem o marido depositava toda a sua
confiança); da “caipora”, que tinha de ser chamada de “dona fulôzinha” e que lhe
oferecer sempre uma “peia de fumo” para que ela não surrasse o caçador, sem que ele a
pudesse ver, portanto sem nenhuma defesa, com os seus longos cabelos, e permitisse
que o mesmo adentrasse o mato e pudesse caçar sem a sua intervenção.
As estórias iam sendo desfiadas noite adentro. Quanto mais pavorosas, mais
emocionantes. Mas, ao sair dali, nenhuma das crianças queria ir atrás ou à frente da fila.
E arrepiados de medo não olhavam nem para trás nem para os lados. Mudas de terror. E
ao chegarem em casa, mal jogavam um pouco d’água nos pés para tirar o excesso de
2 Mourão – estacas grossas de madeira nas se fixam as porteiras ou cancelas (Nordeste do Brasil).
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areia, jogavam-se na rede já armada e cobriam-se com o velho lençol engendrado com
dois sacos de algodão cru, daqueles que serviam para o transporte do açúcar que era
pesado em arrobas, ensacado e vendido a granel (100, 200, 300 gramas, meio quilo...) e
que era mais encorpado que o saco de sal, fechavam os olhos com força e tentavam
dormir o mais rápido possível para fugir ao terror das personagens mitológicas
inculcadas em suas mentes jovens pelos mais antigos. Sonhavam com monstros míticos
que se modificavam, fugindo à sua originalidade, ao lhe serem acrescidas partes que
aquelas mentes jovens e criativas lhes davam durante o sonho. Mas, amanhã seria outro
dia! E o sol, certamente, espantaria todas as imagens monstruosas que a noite trouxera.
As árvores copadas de verde esmeralda
cobrindo o caminho deixava-o rendado
qual renda de bilro, formando um bordado
na areia branquinha da trilha minguada
da beira do rio, ora iluminada
pela lua cheia que vem ofertar
no início da noite seu belo luar
fazendo sonhar as jovens donzelas
com príncipes marítimos e com caravelas
que estão ancoradas na beira do mar.
As almas penadas, no velho mourão
da velha porteira que dava passagem
à fila indiana, chamadas visagem,
fazem bater forte o meu coração
medroso de alma e de assombração.
Porém não me impedem de participar
das rodas de histórias e de gargalhar
das piadas picantes que eu mal entendia
Porque se o adulto sorria, eu sorria
fingindo entender e querendo agradar.
Histórias que falam de casa assobrada;
da cobra demônio que sempre atacava
8
mulheres casadas e as engravidava;
de onça bravia, de alma penada,
"dona fulôzinha" que dava lapada
em quem se atrevesse no mato adentrar
pra prender um bicho ou para matar
sem antes lhe dar o que ela pedia:
a "peia de fumo". Assim se dizia.
A pele arrepia só de me lembrar.
O medo arrefece se a noite é de lua!
Mas mesmo sem lua quase nada muda
pois o candeeiro bem aceso ajuda
clareando um pouco a pequena rua
que, cheia de vozes, em meu ser atua
gravando lembranças que eu irei levar
pra sempre comigo, irão me marcar
com marcas gostosas de lembranças puras
dos meus - minha gente, das nossas culturas,
do cheiro gostoso daquele lugar.
Em casa, na rede que fora emendada
com saco de açúcar, como o cobertor
costurado à mão, esquecendo o pavor
por alguns momentos, todinha enrolada,
vou logo dormindo. Mas na madrugada
me mexo mostrando que estou a sonhar
com monstros formados pelo meu pensar
de jovem criativa que fica inventando
bichos mitológicos, com eles sonhando
até que o sol surge para os espantar.
São belas lembranças guardadas na mente
que o tempo presente não faz esquecer.
Lembranças antigas que fazem meu ser
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feliz e completo. Meu coração sente.
As boas lembranças, eu sei, faz o ente
crescer amoroso, sabendo ofertar
amor com sabença, sem exagerar.
Assim, minha alma sempre está feliz
no campo, na rua, no sítio, em Paris,
no ar ou na praia - na beira do mar.
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BRINCANDO DE CASINHA
Um novo dia surge e novas brincadeiras são criadas e acrescentadas às
já existentes. O cavalo de pau, formado por uma vara de marmeleiro ou por um velho
cabo de vassoura, já não é suficiente. Zezito cria um novo cavalo. Zezito é um artista na
extensão da palavra! Ele faz, com o tronco da palha do coqueiro, um pequeno cavalo
com a cabeça bem delineada onde modela: orelhas, olhos, boca, narinas..., numa
perfeição incrível. Faz os arreios com fibra de agave; o protetor do lombo do cavalo, o
esteirote, com junco; a cangalha com dois pequenos galhos em ípsilon (Y), papelão e
tecido, que dão o acabamento final; os caçuás, com cascos de caranguejo perfurados,
que serão pendurados à cangalha e servirão para o transporte das “mercadorias” que
levará aos domingos para vender na feira como fazem os adultos. Além disso, cria
também uma pequena cabeça de cavalo, com um acabamento ainda mais perfeito,
considerando-se a dificuldade do trabalho, tendo em vista o tamanho da mesma, e põe
no seu cavalo de pau, antes sem cabeça. Arreia-o, com cabresto e brida tão perfeitos
como eu jamais vi outra pessoa fazê-lo. E ele é o “pai”. É o “dono da casa”. É a
personagem que trabalha na roça, vai à feira vender o produto do seu trabalho e fazer as
compras de mantimentos para o sustento da família, mantimentos esses representados
por frutos silvestres, comestíveis ou não, que irão para as panelinhas de barro
manufaturadas pelas meninas do lugar que se utilizam para tal, do “barro de louça”
existente próximo ao Rio do Jerimum – pequeno córrego que corta o lugarejo de mesmo
nome, onde moram – onde cozerão, de mentirinha, em fogo imaginário, num fogareiro
improvisado com três pedras (paralelepípedo ou coisa que o valha, como bolões de
barro, por exemplo) as quais denominavam “trempes” (como ouviam chamar em casa) e
que formavam o suporte para as panelas onde se preparavam as comidas cozidas ao
fogo de lenha de forma geral.
E os meninos, que seriam os maridos e pais das bonecas que
representavam os filhos, passavam a maior parte do tempo – quando brincavam com as
meninas na brincadeira de “dona-de-casa”, correndo montando o seu cavalo-de-pau.
Enquanto as meninas varriam e arrumavam a “casa” (local que escolhiam para brincar e
que muitas vezes eram espaços sob pequenas árvores copadas), “cozinhavam” a
“comida” e cuidavam dos “filhos” – as bonecas que sempre carregavam consigo.
Eu era feliz! E tinha consciência disso!
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“EU VIM AQUI POR UMA APOSTA,
CASACA DE COURO PULE NAS MINHAS COSTAS!”
Mesmo nas noites sem luar, as brincadeiras eram divertidas. Nossas
mães, candeeiro à cabeça, num equilíbrio perfeito, e enganando o vento, encabeçavam a
fila em busca de um bom alpendre para entabular uma boa conversação para passar o
tempo antes de dormir. Muitas vezes os encontros eram na casa de farinha – a única do
lugar – não importando quem estivesse a fazer a farinhada. Todos se solidarizavam na
raspagem das mandiocas, que entrava noite adentro indo, por vezes, até o amanhecer do
dia seguinte, e que tinha por recompensa um pouco de massa e goma de mandioca,
fresquinhas, que seriam utilizadas na fabricação dos beijus que iriam substituir o pão no
café da manhã e no jantar durante alguns dias.
Enquanto isso a criançada, depois que enjoava de raspar mandioca,
soltava a faca, ferramenta essencial para tal, e corria para o terreiro da casa de farinha
que, também, era a estrada por onde todos caminhavam, e iam brincar. Isso, quando era
noite de lua cheia, pois no escuro não havia como extravasar suas energias, e ficavam
sentados no chão, à entrada, contando as travessuras do dia e admirando as estrelas que
em noite sem luar e sem muitas nuvens, mostravam-se na sua plenitude encantando os
nossos olhos.
Uma das brincadeiras mais concorridas pela molecada para uma noite
enluarada era a da “casaca de couro”.
Dizia-se que, nas casas abandonadas, as chamadas “taperas”, existia
uma personagem mítica – a “casaca-de-couro”, que seria alguém que teria morrido, um
vaqueiro talvez, e sua alma ficara penando e fazendo morada nas casas abandonadas. E
assim, formava-se um grupo que elegia um dos seus componentes, talvez o mais
corajoso, para ser o primeiro. Então o “corajoso” ia até a casa abandonada, enquanto o
resto da turma ficava a uma certa distância, e gritava: “Eu vim aqui por uma aposta,
casaca-de-couro pule nas minhas costas!” e disparava de volta ao grupo, numa carreira
desembalada, todo arrepiado e ouvindo as pisadas fortes da “casaca-de-couro” que o
perseguia. Às vezes o medo era tão grande que o moleque não conseguia correr,
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ficando pregado ao chão, aterrorizado, até que algum “peitudo” o fosse socorrer e
arrastá-lo de lá.
13
APELIDOS QUE NÃO PEGARAM
Os apelidos que procuram salientar alguns defeitos físicos das
crianças e dos adultos com o fim de provocar a ira dos apelidados, e que teriam como
resultado uma reação raivosa, que é o que espera a pessoa que apelida alguém, tem, ali,
um responsável maior por eles de um modo geral: o Manoel – o “Mané de Sindô”,
como é conhecido.
Ele põe apelidos na molecada de forma indiscriminada, sempre
buscando atingir o ponto mais fraco de cada um. Mas aquela gente boa, que sabe levar
tudo na brincadeira como se trouxesse em si uma sabedoria inata, faz com que os
apelidos não peguem.
E hoje, já não se sabe mais quem é “arroto choco”, “piaba crua”,
“barata d’água”, etc. Já que não pegou nenhum deles.
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A SORTE DO SAPO
Aquele sapo teve a grande sorte de encontrar, em seu caminho de
dores, alguém daquela estirpe.
Aconteceu num dia em que estávamos brincando, eu e minha amiga
de infância, a Angelina, e encontramos, por acaso, um sapo dentro de um barreiro – um
buraco de onde se tirava barro para serviços de alvenaria na casa onde ela morava que
era a casa dos seus avós, eu imagino, já que a terra em volta era dos mesmos.
O sapo estava muito doente. Alguém havia jogado água de sal no seu
lombo, e ele estava coberto de tapurus, os quais lhe teriam sido depositados pelas
moscas, e que lhes roíam as carnes que iam apodrecendo pouco a pouco. Angelina não
contou estórias! Pegou o sapo e o levou para casa, escondendo-o da sua mãe, que
poderia ter sido a própria autora daquela maldade, e cuidou do bicho até vê-lo são.
Este foi o maior exemplo de bondade que eu tive até hoje. E foi
praticado por uma menina a quem o povo da vizinhança considerava má, já que a
mesma era muito “malcriada”, segundo diziam aqueles que julgam sem conhecer a
verdade de cada um.
E não só isso me levava a admirar aquela menina, mas, também, a sua
capacidade de aprendizado e o seu capricho em tudo que fazia.
Quando brincávamos de boneca, era ela quem costurava as roupas das
suas e das minhas. Fazia vestidos perfeitos. Bem costurados (à mão), e sempre
acompanhando a moda. Lembro-me de um modelo de época que fez para uma das
minhas bruxas de pano, era o “mil e uma noites” - o godê (saia rodada sem costuras),
com um babado pregado na mesma e enfeitado com um debrum enviesado e largo, que
acabava com um laço bem feito!... Do lado esquerdo. Era lindo!!
Bons tempos, Angelina! Deus te dê tudo com que sempre sonhastes
15
O PIRES E A VELA
Esse é um caso que naquelas bandas era considerado corriqueiro, mas,
que me impressionou bastante. Tanto, que eu jamais o esqueci.
O meu irmão mais velho, José ou ”Nego”, que é o seu apelido, e pelo
qual é conhecido até hoje entre os familiares, era um cabra corajoso! Ele sempre
acompanhava nossa mãe quando ela necessitava deslocar-se do Jerimum à
Mamanguape3, numa viagem de sessenta quilômetros percorridos a pé por um caminho
estreito e entremeado de raízes de árvores, grandes e pequenas, que ladeavam a estreita
e única via de acesso que ligavam os raros e diminutos aglomerados de pequenas casitas
perdidas por entre o matagal que se estendia por toda a extensão de terra existente entre
os dois lugares aqui mencionados, tendo que enfrentar os perigos dali advindos,
principalmente à noite, quando a visibilidade era quase nula.
Certa noite, saindo sozinho de casa para ir visitar alguns amigos nas
proximidades, onde teria que transpor o Rio do Jerimum ( que é o mesmo que tem outro
nome na terra dos Azevedos4, no Município de Pedro Velho, já no Rio Grande do Norte,
o Rio Pirari que dá nome ao Povoado e que é economicamente trabalhado: onde há
açudes, barragens, e liberação do espaço para lavagem de roupas, tanto para os
moradores do lugar quanto para as pessoas das cidades e/ou povoados/comunidades
vizinhas, além de assistir às necessidades dos moradores/trabalhadores da Fazenda
Pirari através da pesca para a alimentação, mas que, no Sítio Jerimum, é estreito, não
oferecendo nenhum perigo para a molecada que usa e abusa dele) caminha em marcha
lenta, assobiando, como era seu costume, e, logo depois do rio, subindo uma pequena
elevação ladeada por uma vegetação não muito espessa que oferece, porém, pouca
visibilidade, ele vê algo que o deixa de cabelos em pé! Próximo à cacimba de Nedina5,
3 Mamanguape - Cidade da Paraíba a quem, na época, pertencia o Sítio Jerimum.
4 Azevedo – Família de fazendeiros importantes residentes(até hoje) no Município de Pedro Velho/RN e
adjacências.
5 Nedina – uma das mais antigas moradoras(proprietária de terras) do Sitio Travessia que fazia extrema
com o sítio Jerimum.
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de onde a maioria da população do lugarejo tira a água de beber, nas proximidades da
casa do seu amigo Manoel – o Mané de Sindô6, como era conhecido, um pires flutuando
no ar com uma vela acesa dentro do mesmo. Coisa do outro mundo!
A língua emboloou! Os pelos ficaram eriçados! Mas ele enfrentou a
“coisa do outro mundo”! E continuou seu caminho normalmente.
Assim disse-me ele.
APRENDENDO A LER
6 Sindô – Cantador de viola (cego) – esposo de Nedina e pai de Manoel (O Mane de Sindò).
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Que vontade de ir para a escola! Que vontade de aprender a ler! E
minha irmã mais velha, “Mamã”, como eu a chamo até hoje, decide levar-me com ela
para a Escola para aprender a ler.
Com apenas quatro ou cinco anos, considerada nova demais para tal,
mesmo assim ela, com o pouco dinheiro que conseguira na venda da farinha que ela
mesma produzira com o seu trabalho na roça, comprou-me o material necessário,
inclusive o fardamento, que eu amava: blusa branca e saia azul (no meio da perna e bem
pregueada), e lá fui eu, estourando de tanta felicidade! Num contentamento tão grande
que não sentia nem o cansaço causado pela distância percorrida de casa à escola e vice-
versa, que era de mais de quatro quilômetros, ou seja: oito quilômetros, quatro de ida e
mais quatro de volta.
Aos meus sete anos e nove meses, minha irmã, Mamã, que já tinha
mais de vinte anos, casou. Aí , eu já sabia ler, e cantava literatura de cordel (o “verso”)
para toda a vizinhança, balançando-me na rede do meu pai que estava sempre disponível
num dos armadores, aquele joelho de madeira fixado num dos cantos da sala da nossa
pequena casa de taipa.
E foi também nesse período, naquela escolinha onde aprendi a ler, que
eu conheci Jesus, o meu primeiro amor! Jesus era mais ou menos da minha idade, talvez
mais velho um pouco. Era filho de fazendeiros e sempre trazia lanche e balinhas (que
nós chamávamos de confeito), luxo ao qual eu não tinha acesso, e, após chupar seus
“confeitos”, ele me oferecia os papeizinhos que os embalavam, aos quais eu guardava
com muito carinho. Eu adorava Jesus. E contei desse sentimento lindo para minha mãe,
pedindo-lhe que guardasse segredo. Ela contou pra minha irmã, que contou pro resto do
mundo. E eu quase morro de chorar! E nunca mais dividi meus segredos com a minha
mãe nem com ninguém.
Logo depois de tudo isso, com o casamento da minha irmã Mamã,
com o que o marido a levou embora do Jerimum, eu fui junto. Fui morar em lagoa de
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Montanhas, município de Pedro Velho, no Estado do Rio Grande do Norte. Hoje, Lagoa
de Montanhas chama-se apenas Montanhas, emancipada desde 1964, acho eu.
O ANTICRISTO
19
Era assim que a minha mãe o chamava.
Era um banco velho de madeira, enegrecido pelo tempo e pela falta de
cuidados, talvez. Tinha mais ou menos dois metros e meio de comprimento. De uma
madeira resistente, talvez de lei, não sei! Rústico, com quatro pernas – duas em cada
cabeça (em forma de A- sem o traço do meio, ou de V - de ponta-cabeça), também de
madeira resistente, porém roliça, com três centímetros de diâmetro mais ou menos, e
sem acabamento.
Ficava no pequeno alpendre da nossa humilde casa de taipa de um
quarto; sala; corredor; sala de jantar, onde só havia um pote de barro com água de
cacimba, para beber, em um suporte também de barro; uma dispensa que guardava
apenas uma saca de palha de carnaúba, sempre com alguma farinha para a manutenção
da família, e algumas latas de querosene, daquelas de 20 litros, que estavam sempre
cheias de feijão ou de milho até a boca, e vedadas com sabão ou cera de abelha para
evitar os gorgulhos, pois era a semente para a plantação do ano seguinte; uma cozinha
inacabada, parecendo ter sido de propósito para que existisse uma melhor circulação de
ar, onde havia apenas os paus que serviam de base para a parede que não fora concluída,
fazendo com que se pudesse observar se chegasse alguém sem a pessoa pudesse ver
quem estava do lado de dentro.
Havia ainda, na sala, uma mesa também enegrecida pelo tempo, três
tamboretes nas mesmas condições, uma rede desarmada e pendurada a um canto da sala,
num armador formado por um “joelho” de madeira que surgia de dentro da parede de
taipa sem reboco e sem cal. E só à noite a rede era armada para dar descanso ao corpo
do meu velho pai, alquebrado pelo peso da enxada durante todo o dia de Segunda a
Sexta-feira, já que ele não trabalhava aos Sábados, em paga de uma promessa feita com
a obtenção de um pedido efetuado ao Santo de sua devoção, e nem aos Domingos, por
ser dia Santo conforme as leis da Santa Madre Igreja Católica e apostólica Romana.
Na sala, além da rede e da mesa com os três tamboretes enegrecidos
pela idade, havia uma mesinha com três pernas, sempre coberta com uma toalha branca
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(de crochê), flores frescas que eram tiradas diariamente do nosso “terreiro” no qual
minha mãe plantava uma boa variação delas, e velas que homenageavam as imagens e
quadros de Santos que cobriam uma boa parte da parede frontal da sala.
Na cozinha, apenas enxameada, havia um fogão a lenha, o mais
rústico possível: apenas um girau7 coberto com barro, e trempes que serviam de suporte
para uma única panela de cada vez; um girau de varas onde se lavava as panelas usadas
diariamente; um outro girau no canto da parede, ao qual denominávamos de “caritó” ,
que servia para guardar as latas: de café e de açúcar; o azeite de dendê, ou o de bati, que
serviam para as frituras; o sal, e o candeeiro a querosene que era feito com uma pequena
lata contendo um bico oco por onde saia o pavio de algodão que, encharcado pelo
querosene, era acendido para iluminar a casa e adjacências.
E, finalmente, no canto da parede, próximo à porta que dava acesso ao
terreiro de trás (o quintal), tal como na salinha que antecedia a cozinha, havia uma
forquilha de três pontas que servia de suporte ao pote d’água para gasto: cozinhar, lavar
louça, lavar o rosto pela manhã, e os pés à noite antes de dormir.
ESCAPEI FEDENDO!
7 Girau – uma espécie de mesa de paus entrançados
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Naquele dia eu escapei de ficar cega por milagre. É que minha irmã,
Mariquinha, olhando-me nos olhos pela primeira vez, quando eu tinha ainda alguns
meses de vida e ela uns oito anos por aí, descobriu que eles tinham uma cor diferente:
eram esverdeados, parecendo estarem cheios de pus. E pensando que a minha chatice,
choramingando sempre, devia ser por causa das dores que eu, certamente, sentia nos
olhos, cheia de compaixão, tirou, então, um espinho de laranjeira, daqueles bem fortes,
e já ia furá-los quando, para minha sorte, pensou que talvez fosse melhor deixar para
quando nossa mãe chegasse em casa e ela lhe dissesse da grande descoberta que fizera.
Escapei fedendo! Como dizem as pessoas do meu lugar. Pois
Mariquinha, quando pensava em fazer uma determinada coisa, era muito decidida!
Podendo-se dar como exemplo da sua segurança, uma que ela aprontou com a nossa
mãe, uma vez quando pegou o único vestido, “de festa” ,que esta última tinha, e o
cortou, inteirinho, para fazer roupas para as suas bonecas. Era o vestido das missas, dos
terços e novenas, e das festinhas. E minha mãe, quando viu o estrago, disse: - Minha
filha, como é que você fez isso com o meu vestido da missa? E, por isso, aquilo ficou.
Ainda numa outra feita, segundo ela mesma me contou, no momento
em que eu já estava fazendo este trabalho (quando o lia para ela) tinha, eu, apenas dois
anos e ela dez, quando me carregando em seu colo, levou-me para catar cambuí8 por
trás da nossa casa, onde o terreno, não muito pequeno, era coberto por espécie de mato
rasteiro e de pequeno porte, onde, certamente devia haver muitos insetos e, também,
uma pequena variedade de cobras, e vejam o que ocorreu: De repente, eu começo a
chorar sem consolo, e ela percebe então que o dedo mínimo de um das minhas mãos
estava muito inchado e arrouxeado, de um roxo muito forte. Já tendo presenciado, por
algumas vezes, como nosso pai agia, no caso de mordidas de insetos venenosos e
cobras, ela não contou estória, correu para casa e, lá chegando, mascou uma pele de
fumo e cuspiu-me em cima do dedo, que foi desinchando, desinchando,... ficando na sua
cor normal... E, finalmente, parei de chorar e tudo voltou ao seu devido lugar. Escapei
fedendo novamente. Não acham?
8 Cambuí (tupi kambuí) - pequena árvore da família das Mirtáceas (MICHAELLS 2000).
22
EU NÃO VOU! ELE VAI ME MORDER!!
23
Naquela tarde, saíramos do Jerimum para Montanhas, eu, minha mãe
e meu pai, já escurecendo. Quase à hora do Ângelus.
Estávamos ainda na parte do caminho ladeada por tabuleiros, que são
compostos por árvores de pequeno porte, matos rasteiros, capins e algumas árvores
antigas, mais altas que as outras. Bem no meio do caminho, eu vejo um pequeno
cachorro sentado e olhando na minha direção. Empaquei. Disse ao meu pai que não ia
passar por perto daquele cachorro, pois ele poderia morder-me. A sombra do anoitecer
ajudava a aperfeiçoar a imagem do pequeno cão. Meu pai tentou convencer-me de que
aquilo que eu estava vendo não era aquilo que eu estava pensando ver, mas eu não
acreditava em suas palavras. Ele, então, bateu fortemente com a sua bengala, um pau
que sempre o acompanhava nas pequenas viagens a pé que fazia só ou com minha mãe,
quebrando os frágeis galhinhos do pé de cambuí fazendo que os meus olhos vissem de
fato, que não havia nenhum cachorro naquele local.
E seguimos em frente, enfrentando apenas o ataque das mutucas, que
tinhas uma preferência especial por minhas pernas. Acho que elas apreciavam o sabor
do meu sangue, pois me seguiam mesmo depois de atravessarmos o povoado de
Campestre que antecedia o do nosso destino, Lagoa de Montanhas.
O BODE NO ALTO DO COQUEIRO
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Todos os dias minhas irmãs e eu descíamos para o córrego (o Rio do
Jerimum) que distava quase um quilômetro da nossa casa. Minhas irmãs, para lavarem a
louça e a roupa que fora usada durante um ou mais dias. Eu, para chafurdar dentro
d’água, baldeando-a e, com isso, levando alguns puxões de orelha da minha irmã mais
velha, Bernadete, também conhecida como Moça, e a quem eu chamava Mamã, sob os
cuidados da qual nos deixava nossa mãe,
Toda essa conversa, que mostra tão somente as lembranças boas da
minha infância aqui neste capítulo, é para falar de um fato ocorrido com a minha mãe
nas proximidades do tal córrego.
Vinha ela, pois, distraída, cantarolando algum cordel, que era o que
mais gostava de fazer, a caminho da cacimba de onde tirava água para beber, com pote
deitado em cima da rodilha, quando ouve o berro de um bode. Nada de que pudesse
espantar-se, se não percebesse que o berro vinha do alto de um dos coqueiros que
entremeavam o roçado de batata coquinho* e macaxeira à beira do rio.
- Meu Deus! Será possível uma coisa dessas?! Um bode trepado num
coqueiro!!
Mas logo viu que nada mais era do que um “xexéu de bananeira”, um
pássaro preto, de pequeno porte, com uma mancha branca entre o pescoço e a cabeça,
lembrando um anum – pelo tamanho, e que imita as vozes de alguns animais.
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A FÉ EM FORMA DE FLOR ou FLOR SOLITÁRIA
Às vezes, minha irmã do meio, Maria, a quem chamamos Mariquinha,
sumia. Ninguém sabia pra onde. E minha mãe muito atarefada com os afazeres de casa,
onde, além dos filhos, cuidava: de porcos, cabras e cabritos, galinhas, etc. que criava no
intuito de ajudar nas despesas extras que as festas de meio e final de ano acarretavam,
que era quando todo mundo queria roupas e sapatos novos, além de ajudar nosso pai na
roça, não percebia o sumiço da filha do meio que às vezes durava horas e horas.
Certo dia, percebendo, enfim, o sumiço da mana, mãe (é assim que a
chamo), saiu a sua procura. Como dizia ela: “botou o cavala atrás dela” e, não demorou
muito, a encontrou debaixo duma jaqueira ajoelhada rezando a Nossa Senhora. E
alguns dias depois, já sabendo onde encontrá-la, nossa mãe foi chamá-la, tendo em vista
a sua demora, mas ela não estava no local. Talvez estivesse brincando com alguma
amiguinha. Em seu lugar, ou melhor, no lugar em que ela sempre ajoelhava para rezar,
havia uma bela flor que encimava um longo caule desprovido de folhas.
E para minha mãe, foram as orações da mana que fizeram nascer
aquela linda flor naquele local e que, de acordo com o que pensava, o local estava
abençoado, sendo aquela flor uma prova disso.
A GROTA
26
A Grota, aquele lugarzinho isolado do resto do mundo, onde residia
minha amiguinha Bia, era maravilhosa! Não havia nenhuma outra casa por perto. Se
havia eu nunca vi. E quando estávamos lá, era como se fôssemos sozinhas no mundo.
Bia morava com o seu pai Anacleto, seus dois irmãos Miguel e Lauro, e sua irmã Irene
que logo casou e foi embora. Tinha mais uma irmã: Alzira, que eu não conhecia
pessoalmente. Um dos seus irmãos, eu acho que era o Miguel, tinha uma flexibilidade
nos membros inferiores, incrível. Parecia de circo. Colocava os dois pés no pescoço!
Um dia, ficou enganchado, sem conseguir sair daquela posição maluca, até que alguém
chegasse e resolvesse ajudá-lo. Aquilo foi constrangedor para ele, mas muito, muito
engraçado para a plateia, que se formara para ver o espetáculo, naquela areiazinha
branca que cobria o terreiro da frente da casa do Seu Zé Gomes, que era o dono da única
bodega9 existente no Jerimum naquela época, e que ficava bem centralizada, de fácil
acesso a todos os moradores do lugar. Hoje, há duas bodegas de pequeno porte no lugar.
Lembro que, certo dia, eu saí de casa sem dizer a minha irmã, Mamã,
a qual substituía a minha mãe em tudo e algo mais, pois ela me batia, quando eu
desobedecia, com um galho de manjerioba desfolhado, enquanto a minha mãe jamais
bateu em qualquer um dos seus filhos. Sim... Como eu ia dizendo: um dia eu saí de casa
com a minha amiga Bia, ainda na parte da manhã, nas primeiras horas do dia, e fomos
para a sua casa, na Grota, onde passamos o dia inteiro brincando, sem nos preocupar
com nada, enquanto, na minha casa, minha mãe, preocupada, encarregava à mana,
Mamã, de procurar-me, ao que ela obedecia prontamente, não sem antes se preparar. E,
de cipó a tiracolo, com o qual me exemplaria com gosto, como paga pela preocupação
que eu dera a nossa mãe, ela me cata, já ao anoitecer, quando eu, despreocupadamente,
vinha a caminho da nossa casa, sem nem imaginar o rebuliço que a minha inocente
ausência provocara.
No entanto, mesmo com um final tão infeliz, aquele dia, naquele
lugarzinho tranquilo, cercado de árvores sonoras devido a grande quantidade e
9 Bodega – aqui, o mesmo que mercearia – loja de gêneros alimentícios.
27
variedade de pássaros canoros, valeu a pena. Foi um dos melhores da minha vida.
Tanto, que o guardo até hoje na mente, num lugar de honra bem merecido.
BANHO DOS DEUSES
28
Na verdade, quando falo de “Banho dos Deuses”, o faço com
propriedade!
Ali no Jerimum, mesmo com as invasões dos usineiros, que tomaram
as terras dos pobres agricultores em troca de valores exíguos, ainda hoje se pode tomar
banho, em alguns lugares, em pelo, que é um banho bastante prazeroso pelo contato
direto com a Natureza. Porém, na minha infância, eu lembro bem, havia uma maior
liberdade para a molecada no geral, que tomava banho nua, sem nenhuma malícia, ou
maledicência por parte dos adultos, além de haver várias opções, tal como: a vertente,
uma espécie de lagoa ou lago, que tinha nascente própria, e que, também, tinha uma
ligação com o Rio do Jerimum pela proximidade existente entre ambos; a bica, próximo
à vertente, e que pertencia, juntamente com esta, à família Davi (família à qual minha
amiga Angelina pertencia), que era dona de grande parte das terras do Jerimum, e que
também tinha nascente própria, e era de onde os Davi e grande parte do povo do lugar
tiravam a água que bebiam, aparando no pote, na lata ou no cabaço, de uma pequena
bica feita com uma telha e que dera nome ao pequeno lago que se formara debaixo da
mesma, com uma água límpida que deixava ver, nitidamente, os pequeninos peixes que
a povoavam e a areia limpa, sem lodo, onde a molecada perdia até a hora de voltar para
casa, pulando e brincando naquele banho sem igual.
Mas, para que todos pudessem aproveitar as delícias daquele “banho
dos deuses”, havia respeito mútuo entre crianças e adultos, entre homens e mulheres,
etc. E quem quer que seja que se aproximasse daquele local, qualquer hora do dia ou nas
primeiras horas da noite, ainda a uma certa distância, gritava: Olá! Tem gente?! Ao que,
quem estivesse no banho, respondia: Tem! E quem estava chegando, fosse quem fosse,
aguardava, pacientemente, que o banhista, ou banhistas, saciassem seu calor, saísse e
desse o aviso de que o lugar estava disponível.
Ainda hoje, ali, o costume é o mesmo, porém com algumas
dificuldades. Pois os donos das terras são outros: os usineiros – pessoas que não têm
nenhum laço de afetividade com os moradores do lugar e que não dão a mínima
importância aos seus costumes.
29
E aquele povo sem malícia, que não teve o esclarecimento devido, não
avaliou ou não souber avaliar a perda que seria o desfazer-se das suas terras a troco de
quase nada. Não houve quem lhes abrissem os olhos para a perda de qualidade de vida
que lhes traria o desfazerem-se de tão valiosos bens naturais.
JACA É MAIS GOSTOSA NO PÉ!
30
Nossa casa era rodeada de árvores frutíferas. Haviam laranjeiras cujas
laranjas eram as mais saborosas que eu já chupei! Cajueiros os mais diversos: grandes –
os cajus-banana, não muito saborosos; os médios (amarelos), que davam em grande
quantidade, bons, porém não muito, mas que nos forneciam as castanhas para
vendermos e faturarmos um dinheirinho extra; pequenos (vermelhos), doce como se
fora feito de açúcar, e um pequenininho (amarelo e azedo como limão) cujo cajueiro era
o maior de todos, plantado no canto direito (de quem chegava) do terreno, e arriado por
cima do caminho que dava acesso a quem vinha e a quem ia do lugarejo. Havia, ainda,
goiabeiras, araçazeiros, mangueiras (de manga espada as mais doces do lugar), e
jaqueiras (de jacas duras, moles e mestiças).
É da jaqueira de jaca mole que eu desejo falar aqui. Ela ficava ao lado
direito do terreno (para quem chega), o esquerdo para quem está dentro de casa,
próximo ao cajueiro de cajuzinhos azedos. Era cheia de galhos o que facilitava o acesso
aos seus frutos mais altos já que os mais baixos que cresciam no tronco se tirava mesmo
do chão. E nós, crianças do interior, costumamos subir em qualquer tipo de árvores, a
não ser que a mesma não seja provida de galhos ou que seja muito alta e de tronco
muito liso, como é o caso do eucalipto que, além destas características, não dão frutos.
E era na jaqueira de jaca mole que eu, quando chegava ao Jerimum, (pois agora já
estava morando com minha irmã, Mamã, em Montanhas), subia, tirava, partia e comia
ali mesmo, sentada nos galhos, até me fartar. Que delícia! Ainda sinto o cheiro e o sabor
delicioso de uma jaca madura e fresquinha. Bons tempos! Bons tempos!
ESPINHO NO PINTO AJUDA A ANDAR
31
Esta é do meu irmão, quando eu ainda nem sonhava de nascer. Foi
minha mãe quem contou.
Com apenas nove meses, ele já ficava de pé e dava alguns pequenos
passos, mas andar mesmo, ele aprendeu em um momento de dor.
Escapando às vistas da nossa mãe, ele sai porta afora, em busca do
terreiro encaminhando-se para a casa mais próxima, a casa da comadre Erundina,
como toda a família a chamava no momento em que eu tomei conhecimento do fato - e
o caminho escolhido foi o mais curto, que era coberto por folhas das árvores frutíferas
existentes ali, além de algumas ervas daninhas – o carrapicho, por exemplo, que foi o
causador do acontecimento em causa.
Ia meu irmão, fugindo aos cuidados da mamãe, todo apressadinho,
arrastando-se de lado como um caranguejo, com o bumbum pelado no chão, quando, de
repente, sente uma fisgada forte no pinto, e, num rompante, sem qualquer reclamação,
põe-se de pé, e caminha até a casa da vizinha que dista pelo menos uns cem metros da
nossa casa, além de ser, o espaço que separa as duas casas, coberto de bagulhos, tais
como: folhas das árvores, alguns pés de carrapichos ou espinhos de cigano , pequenas
cobras venenosas, quais sejam: caninanas, cobras coral, etc. e daí para cá, nunca mais
deixou de andar.
FUNDO DE GARRAFA: ARMADILHA DE MORTE
32
Minha mãe, assustada, diz pro meu pai: - Nato! (era assim que ela o
chamava) Vai acontecer alguma desgraça! O galho do cajueiro da estrema10 do nosso
compadre quebrou-se sem que ninguém o tocasse. Isso é sinal de morte.
E meu pai que também acreditava nos sinais da Natureza ficou um
pouco apreensivo. Mas, logo esqueceu o ocorrido, indo, normalmente pro seu trabalho,
como o fazia todos os dias, de Segunda a Sexta-feira, já que não trabalhava aos sábados
(por promessa) e aos domingos (por ser dia santificado segundo a Santa Madre Igreja)
como já foi dito anteriormente, sem nem pensar mais no assunto. Qual não foi sua
surpresa ao voltar do trabalho à tardinha, quase noite, quando soube que seu compadre e
ex-vizinho teria matado um jovem, seu parente e empregado, que morava na sua própria
casa, por ciúmes.
E buscando entender como e porque, realmente, o fato havia ocorrido,
foi-lhe esclarecido: o tal rapaz, que havia sido recebido na casa do seu compadre como
se fora um filho, segundo o mesmo, fora seduzido pela mulher deste que, não
suportando os cornos e não tendo coragem de enfrentá-lo de frente, preparou-lhe uma
armadilha de morte sem que o rapaz desconfiasse. O tal Senhor sentindo-se traído
mandou colocar no quarto que servia de dormitório para o azarado rapaz metade de uma
garrafa, da qual retirou o fundo, na parede, formando uma suposta entrada de ar (não sei
ao certo se isso foi feito antes ou depois que o rapaz foi morar na casa do mesmo), o que
lhe deu a ideia de desfazer-se daquela criatura, que ele considerava como um rival, sem
correr qualquer risco.
Mas, voltemos um pouco no tempo para saber como tudo isso ocorreu,
senão na sua verdadeira forma, mas, pelo menos como me foi passada a história. Um
jovem, nos seus vinte e três anos mais ou menos, parente do nosso vizinho, surge do
nada procurando trabalho. Seus pais moram distante, e ele não tem familiares próximos
por ali além do que, os parentes como nós, por exemplo, não têm acomodações nem
uma situação financeira boa que dê para sustentar mais um, a não ser aquele compadre
10 O limite divisório das nossas terras comas terras com compadre dos meus pais
33
dos meus pais que, além de também ser parente do rapaz, tem um emprego para lhe
oferecer.
E tudo estava correndo bem, não fora uma fagulha amorosa ocorrida
entre o jovem mancebo e a bela e ainda jovem esposa do homem que lhe dera guarida.
Além do mais, quando o jovem se vê envolvido amorosamente com aquela Senhora, a
quem devia todo o respeito, continua morando na casa do marido traído. Ou seja:
demora para tomar a decisão necessária para se ver livre do perigo, que seria a sua
retirada imediata, se possível, até das proximidades daquele lugar, e continua dormindo
no mesmo lugar de antes, o que era, para um homem covarde, uma atração infernal para
a vingança, e foi o que ocorreu.
Dormia o rapaz, tranquilamente, na sua rede, não percebendo o cano
da espingarda (ou fuzil) que entrava pelo buraco existente na parede e o atingia com
vários tiros a queima-roupa. E como o ódio do agressor ainda não fora saciado, ele, com
o rapaz já ferido de morte, o pisoteia quebrando seus ossos da forma mais perversa
possível.
Nunca foi preso por isso.
Segundo dizem: o assassino premeditou muito bem a morte do rapaz,
e com bastante antecedência, preparando uma lista: um Abaixo Assinado, afirmando as
pessoas a quem pedia a assinatura, pessoas essas que mal sabiam assinar o nome ou
apenas punham a impressão digital, que aquela, era uma lista para se conseguir
melhorias para a comunidade que era muito carente, mas que, na verdade, a lista dizia
que um tal rapaz com as características daquele que já estava condenado à morte por
ele, era um ladrão muito perigoso e estava sendo procurado.
E assim se fez. E por isso, aquilo ficou.
MANCHAS DE SANGUE QUE NÃO SE APAGAM
34
Há quantos anos aquelas manchas de sangue estavam ali no piso de
cimento queimado do alpendre da casa do Seu Zé Gomes? Eram algumas manchas de
sangue, vivas, como se fossem recentes, no batente da porta do salão que servia de
depósito de farinha, e da calçada defronte ao mesmo.
Já fazia uns quinze anos ou mais que um homem de meia idade, o Seu
França, tinha sido assassinado, ali, naquele local, e que jamais alguém conseguira tirar
as manchas de sangue! Eram pequenas manchas que mais pareciam manchas de tinta
vermelha! E por mais que as lavassem e as esfregassem, elas continuavam lá. Dizia-se
até que, mesmo com o piso refeito, as manchas reapareceriam, como se fora algo
sobrenatural. E todos acreditavam que, realmente, aquelas pequenas manchas eram
manchas de sangue.
E como um pobre mortal que sou como duvidar da certeza daquela
gente simples, que acreditavam serem as pequeninas manchas o sangue do defunto
pedindo vingança por sua morte bárbara?! Pois, segundo os mais antigos do lugar,
quando o morto é assassinado injustamente, essa é a forma que a sua alma encontra de
“gritar” ao mundo que quer que a sua morte seja vingada.
E assim sendo, aquelas manchas ficarão ali até que um dia a “justiça”
ocorra de uma forma ou de outra.
MONTANHAS
35
Montanhas...
Montanhas, não me trás muitas lembranças boas. O que mais marcou
a minha passagem (de dez anos) por Montanhas foram as fofocas a mim dirigidas e que
muito me magoaram.
Ora!...
Não é bem assim, gente! Eu também tenho boas lembranças de
Montanhas! Foi lá que eu comecei a estudar de verdade, ou seja, onde iniciei e conclui o
Primário (hoje, a primeira parte do Ensino Fundamental), tendo sido reprovada na
Primeira Série pela minha deficiência em Matemática, pois não havia decorado ainda a
Tabuada na sua íntegra, o que me fez chorar desesperadamente e jurar pra mim mesma
nunca mais ser reprovada, o que consegui cumprir até a Quinta Série (preparatório para
o Exame de Admissão) que era o máximo que se podia chegar na única Escola do lugar
até os Anos Sessenta.
Foi em Montanhas, também, que namorei pela primeira vez, a
segunda, a terceira,... Que fiz, durante alguns anos – até os l3 ou l4 anos – o que eu mais
gostava que era: não estudar, especificamente, mas ir à escola (Grupo Escolar Carlos
Gomes ou Escolas Reunidas Carlos Gomes) onde se aprendia, além do básico de uma
Escola Primária daquela época, teatro e trabalhos manuais tais como: pintura em tecido;
confecção de bichinhos de pano, etc. Naquele tempo e lugar não havia recursos
suficientes, como hoje, para a compra de pelúcia. Os jogos, tipo handebol, ao qual
chamávamos “dona de barra”, nos apaixonavam ao ponto de pularmos muro da Escola
nos finais de semana para jogarmos, eu e as minhas colegas.
Foi também em Montanhas que eu tive a minha primeira “amiga de
verdade!” Pelo menos era isso o que eu pensava até alguns dias atrás, (quando falo de
dias, refiro-me ao ano de 2004, quando pensei estar com o livro já pronto para edição.
Hoje, diria: anos atrás) quando descobri, através de uma das suas irmãs, que residiu
próximo à minha residência por vários anos, mas que pouco nos víamos. Só muito de
vez em quando nas paradas de ônibus. E foi numa dessas raras vezes, depois que eu já
havia lhe passado os convites para minha formatura em Filosofia-Licenciatura - para ela
36
e para a sua irmã, essa antiga “amiga de verdade”, que ela me falou algo que me deixou
sem graça além de muito decepcionada comigo mesma pelo fato de reconhecer a minha
incapacidade de conhecer realmente as pessoas, pois a mesma afirmou-me,
convictamente, que a “minha verdadeira amiga” sequer lembrava de mim. Não sabia
quem eu era!... Enquanto sua mãe (já bastante idosa), que não gostava nem um pouco da
minha companhia de menina “falada” para sua filha, minha “amiga”, lembrava até de
como me chamavam: Rê-rê-rê , por causa das iniciais (3 erres: RRR) do meu nome.
E era com essa “amiga”, a quem dediquei até um poema falando da
nossa amizade (não editado), que eu dividia minhas preocupações, meus desejos,
minhas tristezas de adolescente! Mas eu não a culpo. Nem todo mundo pensa como eu!
Aliás, ninguém, além de mim, pensa como eu. Portanto, eu não posso exigir que uma
pessoa que eu considerei durante toda minha vida, ou seja por quase quarenta anos,
porém à distância, como minha amiga, também me considerasse como tal! Talvez isso
seja só para doidos ou filósofos! O que, para muitas pessoas, significa a mesma coisa.
Mas, no cômputo geral, Montanhas me trás saudades... E... Saudades!
Saudades da Igreja de São João, o padroeiro, e que era a única Igreja
católica existente naquele lugar. Antes de emancipar-se, assistida pelo Pároco de Pedro
Velho, de onde Lagoa de Montanhas era município, depois, ainda pelo Pároco de Pedro
Velho, pois Montanhas não era ainda emancipada como Paróquia. Hoje, não sei como
está com certeza, pois não sigo a sua história político/religiosa. Não me interessou nem
um pouco até agora. Não sei daqui por diante!
É... As saudades da Igreja, das festas juninas, da festa de Santos Reis,
todas me trazem alegria: A Igreja, com suas missas e terços de maio aos quais, tanto
quanto às missas, eu abri, por algum tempo, cantando seus hinos e ladainhas, e tirando o
terço; as festas juninas das quais eu participava desde a arrecadação das dádivas dos
paroquianos, como prendas oferecidas ao Santo Padroeiro para serem leiloados na
“barraca” na qual eu trabalhava durante as noites dos festejos, das festas de Santos
Reis, a principal das festas de fim de ano ali em Montanhas, pois o Ano Novo era em
Nova Cruz, e Natal era em Pedro Velho – as cidades vizinhas, que também eram bem
servidas com “barracas” de comes-e-bebes e leilões.
37
No entanto, como eu ia dizendo: Montanhas me trás saudades... E
saudades... Pois é... Mesmo que eu traga algumas mágoas de algumas pessoas daquele
querido lugar que, talvez, fosse melhor esquecer mesmo! De forma radical! Pois foram
apenas fofocas que, hoje, não me atingiriam, considerando a forma como eu vejo as
coisas agora. Mas, naquele tempo, marcou-me. Não digo, profundamente! Porém
deixou algumas marcas que atrasaram um pouco o meu crescimento espiritual, fazendo-
me sofrer como só sofre uma garota boba que se deixa machucar por mexericos bobos
de gente que, além de não ter o que fazer, só procura manchar, com palavras que lhe
enegrecem o próprio espírito sem disto se dar conta, a personalidade de outrem.
Mas, no final das contas, há saudades positivas no que diz respeito à
Cidade de Montanhas e à população daquele tempo, é claro, pois a atual eu pouco
conheço. É que as poucas pessoas com quem eu tinha afinidades, e que me respeitavam
e me tratavam como eu achava que merecia, podendo dar como exemplo: Berta (filha
de Lico - falecida – a quem eu considerava, mesmo com a grande diferença de idade,
minha verdadeira amiga) que casou com Arnilo Tiago (de quem ficou viúva); Alice
(minha madrinha de fogueira), esposa de Manoel fiscal (ambos já falecidos); Marlinda,
filha de Alice – um doce de criatura; Maria de Geraldo Camarão (já falecida) – uma das
minhas amigas de contação de estórias, que se dava muito bem com as crianças; O Sr.
Manoel Domingos (já falecido) e suas filhas, dedicados, além do seu trabalho, tão
somente às coisas da Igreja; Nina (já falecida) minha madrinha de fogueira, que me
tratava como se fora sua filha, e Iracema, tão alegre quanto eu e, por isso talvez, julgada
de forma leviana, pelas “santas” do lugar, como o faziam comigo.
Ia-me esquecendo de falar de Corina de Manoel Malaquias, que só
vim a fazer amizade, na verdade, depois de estar morando em Natal. Corina (já
falecida), era uma criatura maravilhosa! Nem ela nem seus filhos: Tita, Zé e João, se
metiam na vida de ninguém! Só estavam sempre disponíveis para ajudar a qualquer
pessoa. Lembro ainda de Niná (minha madrinha de fogueira) a quem eu amava muito,
do seu esposo, seu Manoel barbeiro que aguentava meus beliscões de menina danada,
além de jogar relancim (um jogo de cartas) comigo e de sua filha Maria, com quem
arengava demais. Não posso deixar de lembrar, também, Isabel filha do Sr. Antônio
Zumba (o dono da padaria) que me emprestava todas as revistas (já lidas por ela) que
seu pai lhe comprava toda semana: Capricho, Ilusão, Sétimo Céu, Nosso Amiguinho...
38
Eu levava para casa uma caixa de leite Ninho repleta de revistas às quais só eram
devolvidas (sem cobrança por parte da dona) depois de todas lidas. Obrigada Bel!! Que
seria da minha sede de ler, se não fora a sua boa vontade?!
Havia, ainda, muitas outras pessoas maravilhosas que, mesmo não
sendo minhas amigas, não eram minhas inimigas, pois eram pessoas sábias e incapazes
de fazer ou desejar mal a quem quer que seja. E isso me deixa, apesar de tudo, com
saudades de Montanhas, e desejosa de fazer-lhe uma visita para reencontrar aquelas
pessoas com quem ainda poderei falar por estarem vivas e, com elas, poder lembrar com
saudades de todas aquelas que já se foram, mas que ficaram, com toda a certeza, cá
dentro do meu coração.
O QUE SE TENTOU MOSTRAR
39
De uma forma geral, o que se tentou mostrar nos pequenos capítulos
que compõem este pretenso livro, excluindo Montanhas, foi tão somente algumas
lembranças que marcaram a minha infância de uma forma gostosa, sem marcas de
ressentimentos por quem quer que seja. Pois, as personagens nelas inseridas, de acordo
com o que aflora à minha memória, são personagens que comportavam, quase sempre,
bons sentimentos, no se tratando de seres humanos que me cercavam, sempre, com
muita afeição.
Já no que fala unicamente de Montanhas, vê-se, eu reconheço, uma
marca indiscutível de ressentimento que eu ainda não consegui apagar do meu coração.
Mas, com toda a sinceridade, eu prometo: Pelo menos, tentar trabalhá-la de forma a que
tais sentimentos não possam prejudicar de nenhuma forma nem a mim nem a ninguém
que possa pensar-se estar incluso entre aquelas pessoas que provocaram aqueles
sentimentos dos quais eu falei com um pouco de mágoa.
E que seja um amigo
Ou que seja um irmão,
Meu pai, um parente,
Minha mãe... todos são
Pessoas decentes
Que, presentes ou não,
Estão todos dentro do meu coração
São pessoas bondosas
Que me deram amor,
Conselhos, carinho,
Com os quais se formou
Este ser maduro
Pronto pro futuro,
Que é o ser que eu sou.
...
E a lembrança deles
40
Faz que eu possa pensar
Que a amizade é um Bem
Que maior não tem!
Que não pode acabar.

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Infância feliz no sertão nordestino

  • 1. 4 Este é um trabalho baseado em lembranças verdadeiras que marcaram positivamente a minha infância e, consequentemente, fizeram de certa forma com que eu me tornasse o que sou hoje, onde tento passar àqueles que se dispuserem a lê-lo as coisas boas que me fizeram feliz quando criança, dando-me como resultado uma cabeça capaz de suportar as agruras da vida sem vir a pirar. Pelo o que eu tenho observado neste mundo de tristezas e alegrias, as pessoas que mais suportam as dores que os percalços da vida trazem em seu bojo, são as pessoas que tiveram uma infância cheia de amor. Sem castrações, porém equilibrada a partir dos esclarecimentos por parte dos seus pais ou responsáveis sobre as coisas que poderiam fazer sem que tivessem, como consequência, algo que não gostaria. E diante dessa liberdade que não dava qualquer direito à libertinagem, cresci observando a beleza das coisas simples e me maravilhando com elas, de forma que até hoje guardo, dentro de mim, os momentos de prazer que nos proporcionava aquela vida na qual nenhum dos seus componentes, ou seja, nenhuma daquelas pessoas que participaram da minha infância, de um modo geral, sonhava com muito mais do que tinha. Éramos felizes. O que tínhamos que era quase nada em termo de conforto e posses, nos bastava. E a Natureza, com toda a sua beleza, proporcionava-nos a completude do nosso Ser. E é com a mente repleta de amor que eu tento passar, a todos aqueles que estiverem dispostos a ler este trabalho desprovido de grandes pretensões, as minhas lembranças que foram a base da formação de mim mesma. Brincando de roda, de anel, de boneca, Aquelas crianças levadas da breca Levavam a vida, felizes, a pular. Estórias de alma ouviam a tremer: Corações pulsando no peito, a bater, Sem fechar os olhos – sem pestanejar.
  • 2. 5 Rosto lambuzado; olhos a sorrir; Roupa remendada, rota e sem rirri1, Sem nada pedir – nada a lhes faltar. Doces corações prenhes de amor: Não conhecem o ódio, a guerra, o horror, Vivem! Tão só vivem! Sem nada almejar. O Céu, para eles, está sempre azul! O respeito é mútuo: velho ou novo... é tu. Felizes! Libertos! Nada os faz parar. E lhes digo a verdade: Morro de saudades daquele lugar! 1 rirri – o mesmo que zíper (no Nordeste do Brasil).
  • 3. 6 AS PRIMEIRAS LEMBRANÇAS As árvores cobriam o caminho deixando que o luar atravessasse as brechas entre a folhagem e formasse belíssimos desenhos na areia branca da beira do rio, que mais parecia uma renda daquelas que Sinhá Porcina fazia na sua almofada de bilros e que eu tanto admirava. Eram desenhos perfeitos. Eu me encolhia toda, com medo das almas penadas que pudessem estar no mourão2 da velha porteira que dava passagem na divisa das terras dos Davi e dos “Cabeludos”, como, também, por trás do velho tronco de cajueiro que extremava as duas terras e nos seus galhos recobertos com pimenta-do-reino, e procurava ir sempre no meio da fila indiana que se formava devido a pequena largura dos caminhos que ligavam os pequenos casebres daquele lugarzinho aconchegante, pelo menos para mim, que reunia seus moradores no meio da rua, se é que se pode chamar aquilo de rua, que era o caminho principal que servia aos tropeiros viajantes e aos feirantes que se deslocavam dos pequenos lugarejos para as cidades mais próximas em dias de feira, e, se noite de lua, contavam piadas picantes que eu mal entendia ou não entendia nada; estórias de lobisomem; de mula-sem-cabeça, das quais saía um fogo enorme do pescoço, e que seriam almas penadas de mulheres que tiveram algum caso amoroso com padres; da cobra preta, um demônio em forma de cobra que atacava as mulheres e as engravidavam (sempre mulheres casadas em quem o marido depositava toda a sua confiança); da “caipora”, que tinha de ser chamada de “dona fulôzinha” e que lhe oferecer sempre uma “peia de fumo” para que ela não surrasse o caçador, sem que ele a pudesse ver, portanto sem nenhuma defesa, com os seus longos cabelos, e permitisse que o mesmo adentrasse o mato e pudesse caçar sem a sua intervenção. As estórias iam sendo desfiadas noite adentro. Quanto mais pavorosas, mais emocionantes. Mas, ao sair dali, nenhuma das crianças queria ir atrás ou à frente da fila. E arrepiados de medo não olhavam nem para trás nem para os lados. Mudas de terror. E ao chegarem em casa, mal jogavam um pouco d’água nos pés para tirar o excesso de 2 Mourão – estacas grossas de madeira nas se fixam as porteiras ou cancelas (Nordeste do Brasil).
  • 4. 7 areia, jogavam-se na rede já armada e cobriam-se com o velho lençol engendrado com dois sacos de algodão cru, daqueles que serviam para o transporte do açúcar que era pesado em arrobas, ensacado e vendido a granel (100, 200, 300 gramas, meio quilo...) e que era mais encorpado que o saco de sal, fechavam os olhos com força e tentavam dormir o mais rápido possível para fugir ao terror das personagens mitológicas inculcadas em suas mentes jovens pelos mais antigos. Sonhavam com monstros míticos que se modificavam, fugindo à sua originalidade, ao lhe serem acrescidas partes que aquelas mentes jovens e criativas lhes davam durante o sonho. Mas, amanhã seria outro dia! E o sol, certamente, espantaria todas as imagens monstruosas que a noite trouxera. As árvores copadas de verde esmeralda cobrindo o caminho deixava-o rendado qual renda de bilro, formando um bordado na areia branquinha da trilha minguada da beira do rio, ora iluminada pela lua cheia que vem ofertar no início da noite seu belo luar fazendo sonhar as jovens donzelas com príncipes marítimos e com caravelas que estão ancoradas na beira do mar. As almas penadas, no velho mourão da velha porteira que dava passagem à fila indiana, chamadas visagem, fazem bater forte o meu coração medroso de alma e de assombração. Porém não me impedem de participar das rodas de histórias e de gargalhar das piadas picantes que eu mal entendia Porque se o adulto sorria, eu sorria fingindo entender e querendo agradar. Histórias que falam de casa assobrada; da cobra demônio que sempre atacava
  • 5. 8 mulheres casadas e as engravidava; de onça bravia, de alma penada, "dona fulôzinha" que dava lapada em quem se atrevesse no mato adentrar pra prender um bicho ou para matar sem antes lhe dar o que ela pedia: a "peia de fumo". Assim se dizia. A pele arrepia só de me lembrar. O medo arrefece se a noite é de lua! Mas mesmo sem lua quase nada muda pois o candeeiro bem aceso ajuda clareando um pouco a pequena rua que, cheia de vozes, em meu ser atua gravando lembranças que eu irei levar pra sempre comigo, irão me marcar com marcas gostosas de lembranças puras dos meus - minha gente, das nossas culturas, do cheiro gostoso daquele lugar. Em casa, na rede que fora emendada com saco de açúcar, como o cobertor costurado à mão, esquecendo o pavor por alguns momentos, todinha enrolada, vou logo dormindo. Mas na madrugada me mexo mostrando que estou a sonhar com monstros formados pelo meu pensar de jovem criativa que fica inventando bichos mitológicos, com eles sonhando até que o sol surge para os espantar. São belas lembranças guardadas na mente que o tempo presente não faz esquecer. Lembranças antigas que fazem meu ser
  • 6. 9 feliz e completo. Meu coração sente. As boas lembranças, eu sei, faz o ente crescer amoroso, sabendo ofertar amor com sabença, sem exagerar. Assim, minha alma sempre está feliz no campo, na rua, no sítio, em Paris, no ar ou na praia - na beira do mar.
  • 7. 10 BRINCANDO DE CASINHA Um novo dia surge e novas brincadeiras são criadas e acrescentadas às já existentes. O cavalo de pau, formado por uma vara de marmeleiro ou por um velho cabo de vassoura, já não é suficiente. Zezito cria um novo cavalo. Zezito é um artista na extensão da palavra! Ele faz, com o tronco da palha do coqueiro, um pequeno cavalo com a cabeça bem delineada onde modela: orelhas, olhos, boca, narinas..., numa perfeição incrível. Faz os arreios com fibra de agave; o protetor do lombo do cavalo, o esteirote, com junco; a cangalha com dois pequenos galhos em ípsilon (Y), papelão e tecido, que dão o acabamento final; os caçuás, com cascos de caranguejo perfurados, que serão pendurados à cangalha e servirão para o transporte das “mercadorias” que levará aos domingos para vender na feira como fazem os adultos. Além disso, cria também uma pequena cabeça de cavalo, com um acabamento ainda mais perfeito, considerando-se a dificuldade do trabalho, tendo em vista o tamanho da mesma, e põe no seu cavalo de pau, antes sem cabeça. Arreia-o, com cabresto e brida tão perfeitos como eu jamais vi outra pessoa fazê-lo. E ele é o “pai”. É o “dono da casa”. É a personagem que trabalha na roça, vai à feira vender o produto do seu trabalho e fazer as compras de mantimentos para o sustento da família, mantimentos esses representados por frutos silvestres, comestíveis ou não, que irão para as panelinhas de barro manufaturadas pelas meninas do lugar que se utilizam para tal, do “barro de louça” existente próximo ao Rio do Jerimum – pequeno córrego que corta o lugarejo de mesmo nome, onde moram – onde cozerão, de mentirinha, em fogo imaginário, num fogareiro improvisado com três pedras (paralelepípedo ou coisa que o valha, como bolões de barro, por exemplo) as quais denominavam “trempes” (como ouviam chamar em casa) e que formavam o suporte para as panelas onde se preparavam as comidas cozidas ao fogo de lenha de forma geral. E os meninos, que seriam os maridos e pais das bonecas que representavam os filhos, passavam a maior parte do tempo – quando brincavam com as meninas na brincadeira de “dona-de-casa”, correndo montando o seu cavalo-de-pau. Enquanto as meninas varriam e arrumavam a “casa” (local que escolhiam para brincar e que muitas vezes eram espaços sob pequenas árvores copadas), “cozinhavam” a “comida” e cuidavam dos “filhos” – as bonecas que sempre carregavam consigo. Eu era feliz! E tinha consciência disso!
  • 8. 11 “EU VIM AQUI POR UMA APOSTA, CASACA DE COURO PULE NAS MINHAS COSTAS!” Mesmo nas noites sem luar, as brincadeiras eram divertidas. Nossas mães, candeeiro à cabeça, num equilíbrio perfeito, e enganando o vento, encabeçavam a fila em busca de um bom alpendre para entabular uma boa conversação para passar o tempo antes de dormir. Muitas vezes os encontros eram na casa de farinha – a única do lugar – não importando quem estivesse a fazer a farinhada. Todos se solidarizavam na raspagem das mandiocas, que entrava noite adentro indo, por vezes, até o amanhecer do dia seguinte, e que tinha por recompensa um pouco de massa e goma de mandioca, fresquinhas, que seriam utilizadas na fabricação dos beijus que iriam substituir o pão no café da manhã e no jantar durante alguns dias. Enquanto isso a criançada, depois que enjoava de raspar mandioca, soltava a faca, ferramenta essencial para tal, e corria para o terreiro da casa de farinha que, também, era a estrada por onde todos caminhavam, e iam brincar. Isso, quando era noite de lua cheia, pois no escuro não havia como extravasar suas energias, e ficavam sentados no chão, à entrada, contando as travessuras do dia e admirando as estrelas que em noite sem luar e sem muitas nuvens, mostravam-se na sua plenitude encantando os nossos olhos. Uma das brincadeiras mais concorridas pela molecada para uma noite enluarada era a da “casaca de couro”. Dizia-se que, nas casas abandonadas, as chamadas “taperas”, existia uma personagem mítica – a “casaca-de-couro”, que seria alguém que teria morrido, um vaqueiro talvez, e sua alma ficara penando e fazendo morada nas casas abandonadas. E assim, formava-se um grupo que elegia um dos seus componentes, talvez o mais corajoso, para ser o primeiro. Então o “corajoso” ia até a casa abandonada, enquanto o resto da turma ficava a uma certa distância, e gritava: “Eu vim aqui por uma aposta, casaca-de-couro pule nas minhas costas!” e disparava de volta ao grupo, numa carreira desembalada, todo arrepiado e ouvindo as pisadas fortes da “casaca-de-couro” que o perseguia. Às vezes o medo era tão grande que o moleque não conseguia correr,
  • 9. 12 ficando pregado ao chão, aterrorizado, até que algum “peitudo” o fosse socorrer e arrastá-lo de lá.
  • 10. 13 APELIDOS QUE NÃO PEGARAM Os apelidos que procuram salientar alguns defeitos físicos das crianças e dos adultos com o fim de provocar a ira dos apelidados, e que teriam como resultado uma reação raivosa, que é o que espera a pessoa que apelida alguém, tem, ali, um responsável maior por eles de um modo geral: o Manoel – o “Mané de Sindô”, como é conhecido. Ele põe apelidos na molecada de forma indiscriminada, sempre buscando atingir o ponto mais fraco de cada um. Mas aquela gente boa, que sabe levar tudo na brincadeira como se trouxesse em si uma sabedoria inata, faz com que os apelidos não peguem. E hoje, já não se sabe mais quem é “arroto choco”, “piaba crua”, “barata d’água”, etc. Já que não pegou nenhum deles.
  • 11. 14 A SORTE DO SAPO Aquele sapo teve a grande sorte de encontrar, em seu caminho de dores, alguém daquela estirpe. Aconteceu num dia em que estávamos brincando, eu e minha amiga de infância, a Angelina, e encontramos, por acaso, um sapo dentro de um barreiro – um buraco de onde se tirava barro para serviços de alvenaria na casa onde ela morava que era a casa dos seus avós, eu imagino, já que a terra em volta era dos mesmos. O sapo estava muito doente. Alguém havia jogado água de sal no seu lombo, e ele estava coberto de tapurus, os quais lhe teriam sido depositados pelas moscas, e que lhes roíam as carnes que iam apodrecendo pouco a pouco. Angelina não contou estórias! Pegou o sapo e o levou para casa, escondendo-o da sua mãe, que poderia ter sido a própria autora daquela maldade, e cuidou do bicho até vê-lo são. Este foi o maior exemplo de bondade que eu tive até hoje. E foi praticado por uma menina a quem o povo da vizinhança considerava má, já que a mesma era muito “malcriada”, segundo diziam aqueles que julgam sem conhecer a verdade de cada um. E não só isso me levava a admirar aquela menina, mas, também, a sua capacidade de aprendizado e o seu capricho em tudo que fazia. Quando brincávamos de boneca, era ela quem costurava as roupas das suas e das minhas. Fazia vestidos perfeitos. Bem costurados (à mão), e sempre acompanhando a moda. Lembro-me de um modelo de época que fez para uma das minhas bruxas de pano, era o “mil e uma noites” - o godê (saia rodada sem costuras), com um babado pregado na mesma e enfeitado com um debrum enviesado e largo, que acabava com um laço bem feito!... Do lado esquerdo. Era lindo!! Bons tempos, Angelina! Deus te dê tudo com que sempre sonhastes
  • 12. 15 O PIRES E A VELA Esse é um caso que naquelas bandas era considerado corriqueiro, mas, que me impressionou bastante. Tanto, que eu jamais o esqueci. O meu irmão mais velho, José ou ”Nego”, que é o seu apelido, e pelo qual é conhecido até hoje entre os familiares, era um cabra corajoso! Ele sempre acompanhava nossa mãe quando ela necessitava deslocar-se do Jerimum à Mamanguape3, numa viagem de sessenta quilômetros percorridos a pé por um caminho estreito e entremeado de raízes de árvores, grandes e pequenas, que ladeavam a estreita e única via de acesso que ligavam os raros e diminutos aglomerados de pequenas casitas perdidas por entre o matagal que se estendia por toda a extensão de terra existente entre os dois lugares aqui mencionados, tendo que enfrentar os perigos dali advindos, principalmente à noite, quando a visibilidade era quase nula. Certa noite, saindo sozinho de casa para ir visitar alguns amigos nas proximidades, onde teria que transpor o Rio do Jerimum ( que é o mesmo que tem outro nome na terra dos Azevedos4, no Município de Pedro Velho, já no Rio Grande do Norte, o Rio Pirari que dá nome ao Povoado e que é economicamente trabalhado: onde há açudes, barragens, e liberação do espaço para lavagem de roupas, tanto para os moradores do lugar quanto para as pessoas das cidades e/ou povoados/comunidades vizinhas, além de assistir às necessidades dos moradores/trabalhadores da Fazenda Pirari através da pesca para a alimentação, mas que, no Sítio Jerimum, é estreito, não oferecendo nenhum perigo para a molecada que usa e abusa dele) caminha em marcha lenta, assobiando, como era seu costume, e, logo depois do rio, subindo uma pequena elevação ladeada por uma vegetação não muito espessa que oferece, porém, pouca visibilidade, ele vê algo que o deixa de cabelos em pé! Próximo à cacimba de Nedina5, 3 Mamanguape - Cidade da Paraíba a quem, na época, pertencia o Sítio Jerimum. 4 Azevedo – Família de fazendeiros importantes residentes(até hoje) no Município de Pedro Velho/RN e adjacências. 5 Nedina – uma das mais antigas moradoras(proprietária de terras) do Sitio Travessia que fazia extrema com o sítio Jerimum.
  • 13. 16 de onde a maioria da população do lugarejo tira a água de beber, nas proximidades da casa do seu amigo Manoel – o Mané de Sindô6, como era conhecido, um pires flutuando no ar com uma vela acesa dentro do mesmo. Coisa do outro mundo! A língua emboloou! Os pelos ficaram eriçados! Mas ele enfrentou a “coisa do outro mundo”! E continuou seu caminho normalmente. Assim disse-me ele. APRENDENDO A LER 6 Sindô – Cantador de viola (cego) – esposo de Nedina e pai de Manoel (O Mane de Sindò).
  • 14. 17 Que vontade de ir para a escola! Que vontade de aprender a ler! E minha irmã mais velha, “Mamã”, como eu a chamo até hoje, decide levar-me com ela para a Escola para aprender a ler. Com apenas quatro ou cinco anos, considerada nova demais para tal, mesmo assim ela, com o pouco dinheiro que conseguira na venda da farinha que ela mesma produzira com o seu trabalho na roça, comprou-me o material necessário, inclusive o fardamento, que eu amava: blusa branca e saia azul (no meio da perna e bem pregueada), e lá fui eu, estourando de tanta felicidade! Num contentamento tão grande que não sentia nem o cansaço causado pela distância percorrida de casa à escola e vice- versa, que era de mais de quatro quilômetros, ou seja: oito quilômetros, quatro de ida e mais quatro de volta. Aos meus sete anos e nove meses, minha irmã, Mamã, que já tinha mais de vinte anos, casou. Aí , eu já sabia ler, e cantava literatura de cordel (o “verso”) para toda a vizinhança, balançando-me na rede do meu pai que estava sempre disponível num dos armadores, aquele joelho de madeira fixado num dos cantos da sala da nossa pequena casa de taipa. E foi também nesse período, naquela escolinha onde aprendi a ler, que eu conheci Jesus, o meu primeiro amor! Jesus era mais ou menos da minha idade, talvez mais velho um pouco. Era filho de fazendeiros e sempre trazia lanche e balinhas (que nós chamávamos de confeito), luxo ao qual eu não tinha acesso, e, após chupar seus “confeitos”, ele me oferecia os papeizinhos que os embalavam, aos quais eu guardava com muito carinho. Eu adorava Jesus. E contei desse sentimento lindo para minha mãe, pedindo-lhe que guardasse segredo. Ela contou pra minha irmã, que contou pro resto do mundo. E eu quase morro de chorar! E nunca mais dividi meus segredos com a minha mãe nem com ninguém. Logo depois de tudo isso, com o casamento da minha irmã Mamã, com o que o marido a levou embora do Jerimum, eu fui junto. Fui morar em lagoa de
  • 15. 18 Montanhas, município de Pedro Velho, no Estado do Rio Grande do Norte. Hoje, Lagoa de Montanhas chama-se apenas Montanhas, emancipada desde 1964, acho eu. O ANTICRISTO
  • 16. 19 Era assim que a minha mãe o chamava. Era um banco velho de madeira, enegrecido pelo tempo e pela falta de cuidados, talvez. Tinha mais ou menos dois metros e meio de comprimento. De uma madeira resistente, talvez de lei, não sei! Rústico, com quatro pernas – duas em cada cabeça (em forma de A- sem o traço do meio, ou de V - de ponta-cabeça), também de madeira resistente, porém roliça, com três centímetros de diâmetro mais ou menos, e sem acabamento. Ficava no pequeno alpendre da nossa humilde casa de taipa de um quarto; sala; corredor; sala de jantar, onde só havia um pote de barro com água de cacimba, para beber, em um suporte também de barro; uma dispensa que guardava apenas uma saca de palha de carnaúba, sempre com alguma farinha para a manutenção da família, e algumas latas de querosene, daquelas de 20 litros, que estavam sempre cheias de feijão ou de milho até a boca, e vedadas com sabão ou cera de abelha para evitar os gorgulhos, pois era a semente para a plantação do ano seguinte; uma cozinha inacabada, parecendo ter sido de propósito para que existisse uma melhor circulação de ar, onde havia apenas os paus que serviam de base para a parede que não fora concluída, fazendo com que se pudesse observar se chegasse alguém sem a pessoa pudesse ver quem estava do lado de dentro. Havia ainda, na sala, uma mesa também enegrecida pelo tempo, três tamboretes nas mesmas condições, uma rede desarmada e pendurada a um canto da sala, num armador formado por um “joelho” de madeira que surgia de dentro da parede de taipa sem reboco e sem cal. E só à noite a rede era armada para dar descanso ao corpo do meu velho pai, alquebrado pelo peso da enxada durante todo o dia de Segunda a Sexta-feira, já que ele não trabalhava aos Sábados, em paga de uma promessa feita com a obtenção de um pedido efetuado ao Santo de sua devoção, e nem aos Domingos, por ser dia Santo conforme as leis da Santa Madre Igreja Católica e apostólica Romana. Na sala, além da rede e da mesa com os três tamboretes enegrecidos pela idade, havia uma mesinha com três pernas, sempre coberta com uma toalha branca
  • 17. 20 (de crochê), flores frescas que eram tiradas diariamente do nosso “terreiro” no qual minha mãe plantava uma boa variação delas, e velas que homenageavam as imagens e quadros de Santos que cobriam uma boa parte da parede frontal da sala. Na cozinha, apenas enxameada, havia um fogão a lenha, o mais rústico possível: apenas um girau7 coberto com barro, e trempes que serviam de suporte para uma única panela de cada vez; um girau de varas onde se lavava as panelas usadas diariamente; um outro girau no canto da parede, ao qual denominávamos de “caritó” , que servia para guardar as latas: de café e de açúcar; o azeite de dendê, ou o de bati, que serviam para as frituras; o sal, e o candeeiro a querosene que era feito com uma pequena lata contendo um bico oco por onde saia o pavio de algodão que, encharcado pelo querosene, era acendido para iluminar a casa e adjacências. E, finalmente, no canto da parede, próximo à porta que dava acesso ao terreiro de trás (o quintal), tal como na salinha que antecedia a cozinha, havia uma forquilha de três pontas que servia de suporte ao pote d’água para gasto: cozinhar, lavar louça, lavar o rosto pela manhã, e os pés à noite antes de dormir. ESCAPEI FEDENDO! 7 Girau – uma espécie de mesa de paus entrançados
  • 18. 21 Naquele dia eu escapei de ficar cega por milagre. É que minha irmã, Mariquinha, olhando-me nos olhos pela primeira vez, quando eu tinha ainda alguns meses de vida e ela uns oito anos por aí, descobriu que eles tinham uma cor diferente: eram esverdeados, parecendo estarem cheios de pus. E pensando que a minha chatice, choramingando sempre, devia ser por causa das dores que eu, certamente, sentia nos olhos, cheia de compaixão, tirou, então, um espinho de laranjeira, daqueles bem fortes, e já ia furá-los quando, para minha sorte, pensou que talvez fosse melhor deixar para quando nossa mãe chegasse em casa e ela lhe dissesse da grande descoberta que fizera. Escapei fedendo! Como dizem as pessoas do meu lugar. Pois Mariquinha, quando pensava em fazer uma determinada coisa, era muito decidida! Podendo-se dar como exemplo da sua segurança, uma que ela aprontou com a nossa mãe, uma vez quando pegou o único vestido, “de festa” ,que esta última tinha, e o cortou, inteirinho, para fazer roupas para as suas bonecas. Era o vestido das missas, dos terços e novenas, e das festinhas. E minha mãe, quando viu o estrago, disse: - Minha filha, como é que você fez isso com o meu vestido da missa? E, por isso, aquilo ficou. Ainda numa outra feita, segundo ela mesma me contou, no momento em que eu já estava fazendo este trabalho (quando o lia para ela) tinha, eu, apenas dois anos e ela dez, quando me carregando em seu colo, levou-me para catar cambuí8 por trás da nossa casa, onde o terreno, não muito pequeno, era coberto por espécie de mato rasteiro e de pequeno porte, onde, certamente devia haver muitos insetos e, também, uma pequena variedade de cobras, e vejam o que ocorreu: De repente, eu começo a chorar sem consolo, e ela percebe então que o dedo mínimo de um das minhas mãos estava muito inchado e arrouxeado, de um roxo muito forte. Já tendo presenciado, por algumas vezes, como nosso pai agia, no caso de mordidas de insetos venenosos e cobras, ela não contou estória, correu para casa e, lá chegando, mascou uma pele de fumo e cuspiu-me em cima do dedo, que foi desinchando, desinchando,... ficando na sua cor normal... E, finalmente, parei de chorar e tudo voltou ao seu devido lugar. Escapei fedendo novamente. Não acham? 8 Cambuí (tupi kambuí) - pequena árvore da família das Mirtáceas (MICHAELLS 2000).
  • 19. 22 EU NÃO VOU! ELE VAI ME MORDER!!
  • 20. 23 Naquela tarde, saíramos do Jerimum para Montanhas, eu, minha mãe e meu pai, já escurecendo. Quase à hora do Ângelus. Estávamos ainda na parte do caminho ladeada por tabuleiros, que são compostos por árvores de pequeno porte, matos rasteiros, capins e algumas árvores antigas, mais altas que as outras. Bem no meio do caminho, eu vejo um pequeno cachorro sentado e olhando na minha direção. Empaquei. Disse ao meu pai que não ia passar por perto daquele cachorro, pois ele poderia morder-me. A sombra do anoitecer ajudava a aperfeiçoar a imagem do pequeno cão. Meu pai tentou convencer-me de que aquilo que eu estava vendo não era aquilo que eu estava pensando ver, mas eu não acreditava em suas palavras. Ele, então, bateu fortemente com a sua bengala, um pau que sempre o acompanhava nas pequenas viagens a pé que fazia só ou com minha mãe, quebrando os frágeis galhinhos do pé de cambuí fazendo que os meus olhos vissem de fato, que não havia nenhum cachorro naquele local. E seguimos em frente, enfrentando apenas o ataque das mutucas, que tinhas uma preferência especial por minhas pernas. Acho que elas apreciavam o sabor do meu sangue, pois me seguiam mesmo depois de atravessarmos o povoado de Campestre que antecedia o do nosso destino, Lagoa de Montanhas. O BODE NO ALTO DO COQUEIRO
  • 21. 24 Todos os dias minhas irmãs e eu descíamos para o córrego (o Rio do Jerimum) que distava quase um quilômetro da nossa casa. Minhas irmãs, para lavarem a louça e a roupa que fora usada durante um ou mais dias. Eu, para chafurdar dentro d’água, baldeando-a e, com isso, levando alguns puxões de orelha da minha irmã mais velha, Bernadete, também conhecida como Moça, e a quem eu chamava Mamã, sob os cuidados da qual nos deixava nossa mãe, Toda essa conversa, que mostra tão somente as lembranças boas da minha infância aqui neste capítulo, é para falar de um fato ocorrido com a minha mãe nas proximidades do tal córrego. Vinha ela, pois, distraída, cantarolando algum cordel, que era o que mais gostava de fazer, a caminho da cacimba de onde tirava água para beber, com pote deitado em cima da rodilha, quando ouve o berro de um bode. Nada de que pudesse espantar-se, se não percebesse que o berro vinha do alto de um dos coqueiros que entremeavam o roçado de batata coquinho* e macaxeira à beira do rio. - Meu Deus! Será possível uma coisa dessas?! Um bode trepado num coqueiro!! Mas logo viu que nada mais era do que um “xexéu de bananeira”, um pássaro preto, de pequeno porte, com uma mancha branca entre o pescoço e a cabeça, lembrando um anum – pelo tamanho, e que imita as vozes de alguns animais.
  • 22. 25 A FÉ EM FORMA DE FLOR ou FLOR SOLITÁRIA Às vezes, minha irmã do meio, Maria, a quem chamamos Mariquinha, sumia. Ninguém sabia pra onde. E minha mãe muito atarefada com os afazeres de casa, onde, além dos filhos, cuidava: de porcos, cabras e cabritos, galinhas, etc. que criava no intuito de ajudar nas despesas extras que as festas de meio e final de ano acarretavam, que era quando todo mundo queria roupas e sapatos novos, além de ajudar nosso pai na roça, não percebia o sumiço da filha do meio que às vezes durava horas e horas. Certo dia, percebendo, enfim, o sumiço da mana, mãe (é assim que a chamo), saiu a sua procura. Como dizia ela: “botou o cavala atrás dela” e, não demorou muito, a encontrou debaixo duma jaqueira ajoelhada rezando a Nossa Senhora. E alguns dias depois, já sabendo onde encontrá-la, nossa mãe foi chamá-la, tendo em vista a sua demora, mas ela não estava no local. Talvez estivesse brincando com alguma amiguinha. Em seu lugar, ou melhor, no lugar em que ela sempre ajoelhava para rezar, havia uma bela flor que encimava um longo caule desprovido de folhas. E para minha mãe, foram as orações da mana que fizeram nascer aquela linda flor naquele local e que, de acordo com o que pensava, o local estava abençoado, sendo aquela flor uma prova disso. A GROTA
  • 23. 26 A Grota, aquele lugarzinho isolado do resto do mundo, onde residia minha amiguinha Bia, era maravilhosa! Não havia nenhuma outra casa por perto. Se havia eu nunca vi. E quando estávamos lá, era como se fôssemos sozinhas no mundo. Bia morava com o seu pai Anacleto, seus dois irmãos Miguel e Lauro, e sua irmã Irene que logo casou e foi embora. Tinha mais uma irmã: Alzira, que eu não conhecia pessoalmente. Um dos seus irmãos, eu acho que era o Miguel, tinha uma flexibilidade nos membros inferiores, incrível. Parecia de circo. Colocava os dois pés no pescoço! Um dia, ficou enganchado, sem conseguir sair daquela posição maluca, até que alguém chegasse e resolvesse ajudá-lo. Aquilo foi constrangedor para ele, mas muito, muito engraçado para a plateia, que se formara para ver o espetáculo, naquela areiazinha branca que cobria o terreiro da frente da casa do Seu Zé Gomes, que era o dono da única bodega9 existente no Jerimum naquela época, e que ficava bem centralizada, de fácil acesso a todos os moradores do lugar. Hoje, há duas bodegas de pequeno porte no lugar. Lembro que, certo dia, eu saí de casa sem dizer a minha irmã, Mamã, a qual substituía a minha mãe em tudo e algo mais, pois ela me batia, quando eu desobedecia, com um galho de manjerioba desfolhado, enquanto a minha mãe jamais bateu em qualquer um dos seus filhos. Sim... Como eu ia dizendo: um dia eu saí de casa com a minha amiga Bia, ainda na parte da manhã, nas primeiras horas do dia, e fomos para a sua casa, na Grota, onde passamos o dia inteiro brincando, sem nos preocupar com nada, enquanto, na minha casa, minha mãe, preocupada, encarregava à mana, Mamã, de procurar-me, ao que ela obedecia prontamente, não sem antes se preparar. E, de cipó a tiracolo, com o qual me exemplaria com gosto, como paga pela preocupação que eu dera a nossa mãe, ela me cata, já ao anoitecer, quando eu, despreocupadamente, vinha a caminho da nossa casa, sem nem imaginar o rebuliço que a minha inocente ausência provocara. No entanto, mesmo com um final tão infeliz, aquele dia, naquele lugarzinho tranquilo, cercado de árvores sonoras devido a grande quantidade e 9 Bodega – aqui, o mesmo que mercearia – loja de gêneros alimentícios.
  • 24. 27 variedade de pássaros canoros, valeu a pena. Foi um dos melhores da minha vida. Tanto, que o guardo até hoje na mente, num lugar de honra bem merecido. BANHO DOS DEUSES
  • 25. 28 Na verdade, quando falo de “Banho dos Deuses”, o faço com propriedade! Ali no Jerimum, mesmo com as invasões dos usineiros, que tomaram as terras dos pobres agricultores em troca de valores exíguos, ainda hoje se pode tomar banho, em alguns lugares, em pelo, que é um banho bastante prazeroso pelo contato direto com a Natureza. Porém, na minha infância, eu lembro bem, havia uma maior liberdade para a molecada no geral, que tomava banho nua, sem nenhuma malícia, ou maledicência por parte dos adultos, além de haver várias opções, tal como: a vertente, uma espécie de lagoa ou lago, que tinha nascente própria, e que, também, tinha uma ligação com o Rio do Jerimum pela proximidade existente entre ambos; a bica, próximo à vertente, e que pertencia, juntamente com esta, à família Davi (família à qual minha amiga Angelina pertencia), que era dona de grande parte das terras do Jerimum, e que também tinha nascente própria, e era de onde os Davi e grande parte do povo do lugar tiravam a água que bebiam, aparando no pote, na lata ou no cabaço, de uma pequena bica feita com uma telha e que dera nome ao pequeno lago que se formara debaixo da mesma, com uma água límpida que deixava ver, nitidamente, os pequeninos peixes que a povoavam e a areia limpa, sem lodo, onde a molecada perdia até a hora de voltar para casa, pulando e brincando naquele banho sem igual. Mas, para que todos pudessem aproveitar as delícias daquele “banho dos deuses”, havia respeito mútuo entre crianças e adultos, entre homens e mulheres, etc. E quem quer que seja que se aproximasse daquele local, qualquer hora do dia ou nas primeiras horas da noite, ainda a uma certa distância, gritava: Olá! Tem gente?! Ao que, quem estivesse no banho, respondia: Tem! E quem estava chegando, fosse quem fosse, aguardava, pacientemente, que o banhista, ou banhistas, saciassem seu calor, saísse e desse o aviso de que o lugar estava disponível. Ainda hoje, ali, o costume é o mesmo, porém com algumas dificuldades. Pois os donos das terras são outros: os usineiros – pessoas que não têm nenhum laço de afetividade com os moradores do lugar e que não dão a mínima importância aos seus costumes.
  • 26. 29 E aquele povo sem malícia, que não teve o esclarecimento devido, não avaliou ou não souber avaliar a perda que seria o desfazer-se das suas terras a troco de quase nada. Não houve quem lhes abrissem os olhos para a perda de qualidade de vida que lhes traria o desfazerem-se de tão valiosos bens naturais. JACA É MAIS GOSTOSA NO PÉ!
  • 27. 30 Nossa casa era rodeada de árvores frutíferas. Haviam laranjeiras cujas laranjas eram as mais saborosas que eu já chupei! Cajueiros os mais diversos: grandes – os cajus-banana, não muito saborosos; os médios (amarelos), que davam em grande quantidade, bons, porém não muito, mas que nos forneciam as castanhas para vendermos e faturarmos um dinheirinho extra; pequenos (vermelhos), doce como se fora feito de açúcar, e um pequenininho (amarelo e azedo como limão) cujo cajueiro era o maior de todos, plantado no canto direito (de quem chegava) do terreno, e arriado por cima do caminho que dava acesso a quem vinha e a quem ia do lugarejo. Havia, ainda, goiabeiras, araçazeiros, mangueiras (de manga espada as mais doces do lugar), e jaqueiras (de jacas duras, moles e mestiças). É da jaqueira de jaca mole que eu desejo falar aqui. Ela ficava ao lado direito do terreno (para quem chega), o esquerdo para quem está dentro de casa, próximo ao cajueiro de cajuzinhos azedos. Era cheia de galhos o que facilitava o acesso aos seus frutos mais altos já que os mais baixos que cresciam no tronco se tirava mesmo do chão. E nós, crianças do interior, costumamos subir em qualquer tipo de árvores, a não ser que a mesma não seja provida de galhos ou que seja muito alta e de tronco muito liso, como é o caso do eucalipto que, além destas características, não dão frutos. E era na jaqueira de jaca mole que eu, quando chegava ao Jerimum, (pois agora já estava morando com minha irmã, Mamã, em Montanhas), subia, tirava, partia e comia ali mesmo, sentada nos galhos, até me fartar. Que delícia! Ainda sinto o cheiro e o sabor delicioso de uma jaca madura e fresquinha. Bons tempos! Bons tempos! ESPINHO NO PINTO AJUDA A ANDAR
  • 28. 31 Esta é do meu irmão, quando eu ainda nem sonhava de nascer. Foi minha mãe quem contou. Com apenas nove meses, ele já ficava de pé e dava alguns pequenos passos, mas andar mesmo, ele aprendeu em um momento de dor. Escapando às vistas da nossa mãe, ele sai porta afora, em busca do terreiro encaminhando-se para a casa mais próxima, a casa da comadre Erundina, como toda a família a chamava no momento em que eu tomei conhecimento do fato - e o caminho escolhido foi o mais curto, que era coberto por folhas das árvores frutíferas existentes ali, além de algumas ervas daninhas – o carrapicho, por exemplo, que foi o causador do acontecimento em causa. Ia meu irmão, fugindo aos cuidados da mamãe, todo apressadinho, arrastando-se de lado como um caranguejo, com o bumbum pelado no chão, quando, de repente, sente uma fisgada forte no pinto, e, num rompante, sem qualquer reclamação, põe-se de pé, e caminha até a casa da vizinha que dista pelo menos uns cem metros da nossa casa, além de ser, o espaço que separa as duas casas, coberto de bagulhos, tais como: folhas das árvores, alguns pés de carrapichos ou espinhos de cigano , pequenas cobras venenosas, quais sejam: caninanas, cobras coral, etc. e daí para cá, nunca mais deixou de andar. FUNDO DE GARRAFA: ARMADILHA DE MORTE
  • 29. 32 Minha mãe, assustada, diz pro meu pai: - Nato! (era assim que ela o chamava) Vai acontecer alguma desgraça! O galho do cajueiro da estrema10 do nosso compadre quebrou-se sem que ninguém o tocasse. Isso é sinal de morte. E meu pai que também acreditava nos sinais da Natureza ficou um pouco apreensivo. Mas, logo esqueceu o ocorrido, indo, normalmente pro seu trabalho, como o fazia todos os dias, de Segunda a Sexta-feira, já que não trabalhava aos sábados (por promessa) e aos domingos (por ser dia santificado segundo a Santa Madre Igreja) como já foi dito anteriormente, sem nem pensar mais no assunto. Qual não foi sua surpresa ao voltar do trabalho à tardinha, quase noite, quando soube que seu compadre e ex-vizinho teria matado um jovem, seu parente e empregado, que morava na sua própria casa, por ciúmes. E buscando entender como e porque, realmente, o fato havia ocorrido, foi-lhe esclarecido: o tal rapaz, que havia sido recebido na casa do seu compadre como se fora um filho, segundo o mesmo, fora seduzido pela mulher deste que, não suportando os cornos e não tendo coragem de enfrentá-lo de frente, preparou-lhe uma armadilha de morte sem que o rapaz desconfiasse. O tal Senhor sentindo-se traído mandou colocar no quarto que servia de dormitório para o azarado rapaz metade de uma garrafa, da qual retirou o fundo, na parede, formando uma suposta entrada de ar (não sei ao certo se isso foi feito antes ou depois que o rapaz foi morar na casa do mesmo), o que lhe deu a ideia de desfazer-se daquela criatura, que ele considerava como um rival, sem correr qualquer risco. Mas, voltemos um pouco no tempo para saber como tudo isso ocorreu, senão na sua verdadeira forma, mas, pelo menos como me foi passada a história. Um jovem, nos seus vinte e três anos mais ou menos, parente do nosso vizinho, surge do nada procurando trabalho. Seus pais moram distante, e ele não tem familiares próximos por ali além do que, os parentes como nós, por exemplo, não têm acomodações nem uma situação financeira boa que dê para sustentar mais um, a não ser aquele compadre 10 O limite divisório das nossas terras comas terras com compadre dos meus pais
  • 30. 33 dos meus pais que, além de também ser parente do rapaz, tem um emprego para lhe oferecer. E tudo estava correndo bem, não fora uma fagulha amorosa ocorrida entre o jovem mancebo e a bela e ainda jovem esposa do homem que lhe dera guarida. Além do mais, quando o jovem se vê envolvido amorosamente com aquela Senhora, a quem devia todo o respeito, continua morando na casa do marido traído. Ou seja: demora para tomar a decisão necessária para se ver livre do perigo, que seria a sua retirada imediata, se possível, até das proximidades daquele lugar, e continua dormindo no mesmo lugar de antes, o que era, para um homem covarde, uma atração infernal para a vingança, e foi o que ocorreu. Dormia o rapaz, tranquilamente, na sua rede, não percebendo o cano da espingarda (ou fuzil) que entrava pelo buraco existente na parede e o atingia com vários tiros a queima-roupa. E como o ódio do agressor ainda não fora saciado, ele, com o rapaz já ferido de morte, o pisoteia quebrando seus ossos da forma mais perversa possível. Nunca foi preso por isso. Segundo dizem: o assassino premeditou muito bem a morte do rapaz, e com bastante antecedência, preparando uma lista: um Abaixo Assinado, afirmando as pessoas a quem pedia a assinatura, pessoas essas que mal sabiam assinar o nome ou apenas punham a impressão digital, que aquela, era uma lista para se conseguir melhorias para a comunidade que era muito carente, mas que, na verdade, a lista dizia que um tal rapaz com as características daquele que já estava condenado à morte por ele, era um ladrão muito perigoso e estava sendo procurado. E assim se fez. E por isso, aquilo ficou. MANCHAS DE SANGUE QUE NÃO SE APAGAM
  • 31. 34 Há quantos anos aquelas manchas de sangue estavam ali no piso de cimento queimado do alpendre da casa do Seu Zé Gomes? Eram algumas manchas de sangue, vivas, como se fossem recentes, no batente da porta do salão que servia de depósito de farinha, e da calçada defronte ao mesmo. Já fazia uns quinze anos ou mais que um homem de meia idade, o Seu França, tinha sido assassinado, ali, naquele local, e que jamais alguém conseguira tirar as manchas de sangue! Eram pequenas manchas que mais pareciam manchas de tinta vermelha! E por mais que as lavassem e as esfregassem, elas continuavam lá. Dizia-se até que, mesmo com o piso refeito, as manchas reapareceriam, como se fora algo sobrenatural. E todos acreditavam que, realmente, aquelas pequenas manchas eram manchas de sangue. E como um pobre mortal que sou como duvidar da certeza daquela gente simples, que acreditavam serem as pequeninas manchas o sangue do defunto pedindo vingança por sua morte bárbara?! Pois, segundo os mais antigos do lugar, quando o morto é assassinado injustamente, essa é a forma que a sua alma encontra de “gritar” ao mundo que quer que a sua morte seja vingada. E assim sendo, aquelas manchas ficarão ali até que um dia a “justiça” ocorra de uma forma ou de outra. MONTANHAS
  • 32. 35 Montanhas... Montanhas, não me trás muitas lembranças boas. O que mais marcou a minha passagem (de dez anos) por Montanhas foram as fofocas a mim dirigidas e que muito me magoaram. Ora!... Não é bem assim, gente! Eu também tenho boas lembranças de Montanhas! Foi lá que eu comecei a estudar de verdade, ou seja, onde iniciei e conclui o Primário (hoje, a primeira parte do Ensino Fundamental), tendo sido reprovada na Primeira Série pela minha deficiência em Matemática, pois não havia decorado ainda a Tabuada na sua íntegra, o que me fez chorar desesperadamente e jurar pra mim mesma nunca mais ser reprovada, o que consegui cumprir até a Quinta Série (preparatório para o Exame de Admissão) que era o máximo que se podia chegar na única Escola do lugar até os Anos Sessenta. Foi em Montanhas, também, que namorei pela primeira vez, a segunda, a terceira,... Que fiz, durante alguns anos – até os l3 ou l4 anos – o que eu mais gostava que era: não estudar, especificamente, mas ir à escola (Grupo Escolar Carlos Gomes ou Escolas Reunidas Carlos Gomes) onde se aprendia, além do básico de uma Escola Primária daquela época, teatro e trabalhos manuais tais como: pintura em tecido; confecção de bichinhos de pano, etc. Naquele tempo e lugar não havia recursos suficientes, como hoje, para a compra de pelúcia. Os jogos, tipo handebol, ao qual chamávamos “dona de barra”, nos apaixonavam ao ponto de pularmos muro da Escola nos finais de semana para jogarmos, eu e as minhas colegas. Foi também em Montanhas que eu tive a minha primeira “amiga de verdade!” Pelo menos era isso o que eu pensava até alguns dias atrás, (quando falo de dias, refiro-me ao ano de 2004, quando pensei estar com o livro já pronto para edição. Hoje, diria: anos atrás) quando descobri, através de uma das suas irmãs, que residiu próximo à minha residência por vários anos, mas que pouco nos víamos. Só muito de vez em quando nas paradas de ônibus. E foi numa dessas raras vezes, depois que eu já havia lhe passado os convites para minha formatura em Filosofia-Licenciatura - para ela
  • 33. 36 e para a sua irmã, essa antiga “amiga de verdade”, que ela me falou algo que me deixou sem graça além de muito decepcionada comigo mesma pelo fato de reconhecer a minha incapacidade de conhecer realmente as pessoas, pois a mesma afirmou-me, convictamente, que a “minha verdadeira amiga” sequer lembrava de mim. Não sabia quem eu era!... Enquanto sua mãe (já bastante idosa), que não gostava nem um pouco da minha companhia de menina “falada” para sua filha, minha “amiga”, lembrava até de como me chamavam: Rê-rê-rê , por causa das iniciais (3 erres: RRR) do meu nome. E era com essa “amiga”, a quem dediquei até um poema falando da nossa amizade (não editado), que eu dividia minhas preocupações, meus desejos, minhas tristezas de adolescente! Mas eu não a culpo. Nem todo mundo pensa como eu! Aliás, ninguém, além de mim, pensa como eu. Portanto, eu não posso exigir que uma pessoa que eu considerei durante toda minha vida, ou seja por quase quarenta anos, porém à distância, como minha amiga, também me considerasse como tal! Talvez isso seja só para doidos ou filósofos! O que, para muitas pessoas, significa a mesma coisa. Mas, no cômputo geral, Montanhas me trás saudades... E... Saudades! Saudades da Igreja de São João, o padroeiro, e que era a única Igreja católica existente naquele lugar. Antes de emancipar-se, assistida pelo Pároco de Pedro Velho, de onde Lagoa de Montanhas era município, depois, ainda pelo Pároco de Pedro Velho, pois Montanhas não era ainda emancipada como Paróquia. Hoje, não sei como está com certeza, pois não sigo a sua história político/religiosa. Não me interessou nem um pouco até agora. Não sei daqui por diante! É... As saudades da Igreja, das festas juninas, da festa de Santos Reis, todas me trazem alegria: A Igreja, com suas missas e terços de maio aos quais, tanto quanto às missas, eu abri, por algum tempo, cantando seus hinos e ladainhas, e tirando o terço; as festas juninas das quais eu participava desde a arrecadação das dádivas dos paroquianos, como prendas oferecidas ao Santo Padroeiro para serem leiloados na “barraca” na qual eu trabalhava durante as noites dos festejos, das festas de Santos Reis, a principal das festas de fim de ano ali em Montanhas, pois o Ano Novo era em Nova Cruz, e Natal era em Pedro Velho – as cidades vizinhas, que também eram bem servidas com “barracas” de comes-e-bebes e leilões.
  • 34. 37 No entanto, como eu ia dizendo: Montanhas me trás saudades... E saudades... Pois é... Mesmo que eu traga algumas mágoas de algumas pessoas daquele querido lugar que, talvez, fosse melhor esquecer mesmo! De forma radical! Pois foram apenas fofocas que, hoje, não me atingiriam, considerando a forma como eu vejo as coisas agora. Mas, naquele tempo, marcou-me. Não digo, profundamente! Porém deixou algumas marcas que atrasaram um pouco o meu crescimento espiritual, fazendo- me sofrer como só sofre uma garota boba que se deixa machucar por mexericos bobos de gente que, além de não ter o que fazer, só procura manchar, com palavras que lhe enegrecem o próprio espírito sem disto se dar conta, a personalidade de outrem. Mas, no final das contas, há saudades positivas no que diz respeito à Cidade de Montanhas e à população daquele tempo, é claro, pois a atual eu pouco conheço. É que as poucas pessoas com quem eu tinha afinidades, e que me respeitavam e me tratavam como eu achava que merecia, podendo dar como exemplo: Berta (filha de Lico - falecida – a quem eu considerava, mesmo com a grande diferença de idade, minha verdadeira amiga) que casou com Arnilo Tiago (de quem ficou viúva); Alice (minha madrinha de fogueira), esposa de Manoel fiscal (ambos já falecidos); Marlinda, filha de Alice – um doce de criatura; Maria de Geraldo Camarão (já falecida) – uma das minhas amigas de contação de estórias, que se dava muito bem com as crianças; O Sr. Manoel Domingos (já falecido) e suas filhas, dedicados, além do seu trabalho, tão somente às coisas da Igreja; Nina (já falecida) minha madrinha de fogueira, que me tratava como se fora sua filha, e Iracema, tão alegre quanto eu e, por isso talvez, julgada de forma leviana, pelas “santas” do lugar, como o faziam comigo. Ia-me esquecendo de falar de Corina de Manoel Malaquias, que só vim a fazer amizade, na verdade, depois de estar morando em Natal. Corina (já falecida), era uma criatura maravilhosa! Nem ela nem seus filhos: Tita, Zé e João, se metiam na vida de ninguém! Só estavam sempre disponíveis para ajudar a qualquer pessoa. Lembro ainda de Niná (minha madrinha de fogueira) a quem eu amava muito, do seu esposo, seu Manoel barbeiro que aguentava meus beliscões de menina danada, além de jogar relancim (um jogo de cartas) comigo e de sua filha Maria, com quem arengava demais. Não posso deixar de lembrar, também, Isabel filha do Sr. Antônio Zumba (o dono da padaria) que me emprestava todas as revistas (já lidas por ela) que seu pai lhe comprava toda semana: Capricho, Ilusão, Sétimo Céu, Nosso Amiguinho...
  • 35. 38 Eu levava para casa uma caixa de leite Ninho repleta de revistas às quais só eram devolvidas (sem cobrança por parte da dona) depois de todas lidas. Obrigada Bel!! Que seria da minha sede de ler, se não fora a sua boa vontade?! Havia, ainda, muitas outras pessoas maravilhosas que, mesmo não sendo minhas amigas, não eram minhas inimigas, pois eram pessoas sábias e incapazes de fazer ou desejar mal a quem quer que seja. E isso me deixa, apesar de tudo, com saudades de Montanhas, e desejosa de fazer-lhe uma visita para reencontrar aquelas pessoas com quem ainda poderei falar por estarem vivas e, com elas, poder lembrar com saudades de todas aquelas que já se foram, mas que ficaram, com toda a certeza, cá dentro do meu coração. O QUE SE TENTOU MOSTRAR
  • 36. 39 De uma forma geral, o que se tentou mostrar nos pequenos capítulos que compõem este pretenso livro, excluindo Montanhas, foi tão somente algumas lembranças que marcaram a minha infância de uma forma gostosa, sem marcas de ressentimentos por quem quer que seja. Pois, as personagens nelas inseridas, de acordo com o que aflora à minha memória, são personagens que comportavam, quase sempre, bons sentimentos, no se tratando de seres humanos que me cercavam, sempre, com muita afeição. Já no que fala unicamente de Montanhas, vê-se, eu reconheço, uma marca indiscutível de ressentimento que eu ainda não consegui apagar do meu coração. Mas, com toda a sinceridade, eu prometo: Pelo menos, tentar trabalhá-la de forma a que tais sentimentos não possam prejudicar de nenhuma forma nem a mim nem a ninguém que possa pensar-se estar incluso entre aquelas pessoas que provocaram aqueles sentimentos dos quais eu falei com um pouco de mágoa. E que seja um amigo Ou que seja um irmão, Meu pai, um parente, Minha mãe... todos são Pessoas decentes Que, presentes ou não, Estão todos dentro do meu coração São pessoas bondosas Que me deram amor, Conselhos, carinho, Com os quais se formou Este ser maduro Pronto pro futuro, Que é o ser que eu sou. ... E a lembrança deles
  • 37. 40 Faz que eu possa pensar Que a amizade é um Bem Que maior não tem! Que não pode acabar.