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O segredo da gaita-de-beiços
Terminada a procissão e arrumados os andores no interior da capela, Santa Bárbara e Santo
António foram reconduzidos aos seus nichos costumeiros. Para outros doze meses de sossego e
indesejado abandono. Ambos, por iguais motivos, enfastiados dos mesclados e intensos perfumes
das flores que os envolviam na base das charolas. Saturados até dos sonorosos infindáveis beijos
dos fiéis que, felizes pelas graças recebidas e visivelmente emocionados, os lembraram hoje,
alinhados em longa fila formada pouco antes da procissão. Sobretudo espantados ainda pelo quase
incontável amontoado de notas esvoaçantes, a encher de cima a baixo as fitas suspensas do pescoço
de cada um deles, e que as mãos trémulas dos devotos faustosamente lá aprisionaram com alfinetes
brilhantes. Ganhava a vaidade à devoção dos festeiros, Qual de nós teria mais, pareciam perguntar-
se os santos parceiros do santuário, agora aliviados desse vistoso exibicionismo, e de novo reduzidos
à nudez da sua tradicional singeleza.
Mesmo ao lado do palco improvisado, os mordomos da comissão de festas, entusiasmados
com a inusitada afluência de romeiros e bem animados decerto graças às repetidas canecas que
emborcaram ao longo da tarde, dividiam irmãmente o bolo dos santos. Tinha de chegar para a
banda de música, o rancho folclórico, o fogueteiro, o armador e, é claro, para os quatro guardas-
republicanos, que da festa pouco mais guardaram do que a churrascada de frango e tiras de porco,
as azeitonas, a rosca de quilo e meio e o garrafão do verde tinto, depois largamente reforçado pelas
garrafas de americano da quinta da Veiga, o dia foi comprido e um homem não é como os camelos,
que esses aguentam até uma semana sem beber.
E o senhor abade, pois sim, que esse muito teve de se empenhar e suou até ao tutano, em
tarefas muitas, qual a mais penosa, primeiro na pregação do tríduo festivo, a arrastar-se de sexta a
domingo. Além disso, ensaiou ele o coro da igreja, de velhas roufenhas e criançada inquieta, poucos
homens, pois menos é a devoção deles, mais ocupados nas canecas e cervejolas da adega do Escuro.
Ainda mais, presidiu às missas da manhã e do meio-dia, a primeira mais ligeira, mas a outra de uma
solenidade demorada, verdadeira maratona. Acompanhou antes o penosíssimo clamor, maratona
também, da igreja à capela, nessas longas e arrastadas três horas de percurso apeado, cadenciado
pelo martelar insistente dos tambores a gerir o ritmo do andamento, ao som dos cânticos tantas
vezes pouco mais do que desafinados. E o sol intenso, a fazer-lhe brotar e deslizar, saltitantes, na
testa enrugada e pela face rosada, as milhentas pingas de suor escaldante. E o estridente estalejar
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do foguetório, e a banda da vila, e as flores atiradas das janelas e o sol sufocante. Depois, essa missa
solenizada e toda cantada, com sermão bem urdido ao estilo barroco, emotivo como convinha, a
fazer soltar incontidos soluços dos corações mais sensíveis, os mais ignorantes. Ainda, para fechar,
a penitência da procissão até ao cruzeiro, ida e volta, com a batina e a sobrepeliz a pesar toneladas
e a fazer ainda mais insuportável aquele tremendo calor de agosto. É por isso que a ele, até por ser
o presidente da comissão, figura central da festividade, no seu pessoal e justificado parecer, cabia
o maior quinhão das ofertas. Era ele o chefe da mordomia, Quem parte e reparte e não fica com a
maior parte, lá diz o povo, ou é louco, ou não tem arte. O padre não o disse, são segredos do seu
pensamento, como esse outro meditar pecaminoso que o tentou, com mal disfarçada malícia,
fazendo-o contemplar, de forma um tanto mais que insistente, excessiva talvez, o decote atrevido
daquela extraordinária francesa de blusa verde, ali mesmo debaixo do púlpito durante toda a longa
pregação, Quem seria ela. Mas que belo desenho, com aquelas duas colinas arrendondadinhas,
papos de pomba mansa, dois bicos salientes, mesmo a convidar uma desejada visita digital, manual,
labial melhor ainda. Tão doce deveria ser, mas imagine-o, quem não pode experimentá-lo, lá dizia
o poeta.
Cá fora, estalaram os derradeiros foguetes do arraial, deixando no céu azul rasgos
esfarrapados de fumo branco. Pelos mais variados caminhos que as tinham trazido à festa, moviam-
se já as famílias, os mais novos ainda a lamber os beiços com sabor a rosquilhos e cavacas. Os mais
velhos já a pensar na rega e nas vacas que decerto pediam a ceia, enquanto tentavam, com a cauda
peluda a sacudir a nuvem de moscas que lhes cobria o lombo e fazia coceira.
O João não cabia em si de estranha emoção, com a mão no bolso, a acariciar deliciado a
harmónica nova. Desde a chegada à festa, enquanto os irmãos admiravam o bailarico do rancho,
sob o sol e poeira que cobriam o estrado de madeira entre os carvalhos verdejantes, os olhos do
rapaz não largaram aquela maravilhosa gaita-de-beiços da tenda dos brinquedos. Brilhava a parte
exterior e metálica, a envolver as línguas, de azul e vermelho, tal e qual a que o Chamusco fazia
deslizar entre os lábios, soltando gemidos tão harmoniosos e que tanto despertou nele a vontade
de ter uma assim. Mas custava dez escudos e tê-los.
Por isso, quando a tendeira procurava no bolso do avental os trocos para um freguês, com a
certeza de que ninguém estava a observá-lo, o rapaz meteu mão na harmónica, enfiou-a num
relance na algibeira das calças e guardou-o como um tesouro. O coração a batia-lhe acelerado. Mas
não, tinha a certeza que ninguém se apercebeu, pensava para consigo. Era o seu grande segredo.
Ao chegar a casa, escondeu no fundo da gaveta do guarda-vestidos a mais precisa conquista
da sua vida. Depois da ceia, durante a noite, sonhou que já tocava com estranha habilidade o
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instrumento e atraía a atenção das raparigas da freguesia, de modo especial a verdura
resplandecente do olhar tão meigo e até aí tão distante da Ana Isabel.
Na manhã do dia seguinte, como era costume, foi com as cabras ao monte. Novamente no
bolso, bem escondida, a harmónica, ainda novinha, por estrear. Já no monte do Mirante, à sombra
fresca das giestas e pinheiros, enquanto as cabras retouçavam a erva quase seca, pela primeira vez
levou-a aos lábios. Saiu um som estranho, desarmónico, mais gemido que música. Mas iria aprender.
Com o tempo, talvez com alguma ajuda do Quim Manco. Tão bem manejava este o instrumento que
vezes sem conta lhe despertou inveja e o desejo incontido de tocar como ele.
Ao regressar a casa para o comer do meio-dia, o pai esperava-o de vara na mão e cara de
poucos amigos. Como soube, se ninguém tinha testemunhado o seu segredo, Onde arranjaste a
gaita, Que gaita, perguntou a medo, a antecipar já as chibatadas cortantes que de repente passaram
a cair-lhe nas costas, nas nádegas, nas pernas, cortantes, dolorosas, terríveis. Foi o Chico que ma
emprestou, Que Chico, mentiroso, onde arranjaste isso. E a vara descia, uma e outra vez, rasgando
a pele, tenra, de quinze anos tão só.
Por isso, desatou a correr, sem olhar para trás, com toda a força, com o desespero de uma
dor incontida, descontrolada. E seguiu sempre. Fugiria, enquanto pudesse, desse olhar duro,
incompreendido, do pai cruel, sem saber a felicidade que seria, para ele, um dia, tocar como deve
ser aquela gaita-de-beiços e com ela conquistar olhar ternurento da sonhada Isabel.
Escurecia já, quando finalmente chegou à barragem de Salamonde. Perguntou pelo tio Abel,
de Ribadouro, Ah, o Guedelhas, deve estar a comer na cantina. Tandos homens na grande mesa,
alguns enfarruscados, roupa ainda cheia de terra, muitos de mangas arregaçadas, caras tisnadas da
soalheira. E que bem cheirava o rancho, ou o fumo a sair das terrinas sobre a toalha escura. Que
fazes por aqui, como vieste cá parar, perguntou o tio, ainda a mastigar o resto de uma côdea de
broa, Queria ver se arranjava trabalho, lá na terra as coisas estão complicadas, E a estas horas, ainda
nem comeste, Pois não, Mas isso resolve-se, vou pedir à cozinheira um prato e que te arranje
qualquer coisa. Arranjou. Foi com vontade de três dias que engoliu primeira garfada. E as que se
seguiram, sem perceber a que sabiam, tal era a larica, depois de tantos quilómetros a correr. O tio,
olhava-o, apoquentado, E se não te dão emprego, ainda só tens quinze anos, já agora, o teu pai sabe
que viste. O silêncio disse tudo.
Foram dormir, tio e sobrinho na mesma cama, num barracão por onde se espalhavam mais
de trinta homens, era o que parecia. Mas a noite passou depressa, nem deu conta das horas. Só
quando o tio o chamou para ir falar com o encarregado. Que não, sem ordem dos pais não podia
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dar trabalho a um rapaz tão novo, Deixa lá, sobrinho, de fome não morres. O que me tocar a mim
também dá para ti.
Em casa, pais e irmãos procuravam por todo o lado, entre suspiros e lágrimas, Onde se terá
metido aquele ladrão, inquiria o pai, Deve estar escondido por aí nalguma mina, mas não demora a
chegar. Quando tiver fome, aparece, tentava sossegar a mãe, de coração aos pulos. O Rui, dos
quatro irmãos o mais velho, lembrou-se então, Será que não foi prà barragem. Já me tinha dito
algumas vezes que queria trabalhar e ganhar dinheiro como o tio Abel, Se calhar, continuou o pai,
bem capaz disso era mesmo, Queres tu ir ver se dás com ele, Mas sozinho como chego lá, Vamos
ver se alguém vai contigo, Pedimos ao Zé moleiro, para me levar, porque a pé são mais de oito horas
para lá chegar, Isso é verdade, Ide então falar com ele, paga-se o frete quando pudermos, rematou
a mãe.
E foram ao moinho. O moleiro disse que só podia da parte de tarde, tinha de levar o milho à
padaria da vila, pois precisavam dele ainda antes do meio-dia. Saíram depois de comer, por
Cabeceiras, que o caminho era melhor, chegariam mais depressa. Mesmo assim, demorou uma
eternidade. O estradão era de terra, com cascalho solto, ramos secos e a provocar uma poeirada
seca, a levantar-se no ar, dançando atrás da carroça.
Chegaram à barragem de Salamonde perto das sete da tarde. Alguns trabalhadores já
descansavam, espalhados pelas sombras, alguns a fumar Kentucky, outros agarrados ao copo meio,
numa tentativa escusado de apagar mais o cansaço do que a sede, mais até a saudade da mulher e
dos filhos que estavam longe, a fazer sabe-se lá o quê, àquela hora, àquela distância.
Perguntaram pelo Abel Guedelhas, se o conheciam, Claro, deve estar a mudar de roupa. E
um rapaz novo, chegado no dia anterior, Isso não sei, mas vou chamar o Guedelhas, não é o que
procuram, Sim, sim, agradecido.
Chegou pouco depois. E disse que sim, que o rapaz tinha aparecido lá desesperado, a dizer
que o pai o queria matar. Arranjou-lhe trabalho na cozinha. Devia estar a ajudar na ceia. Mas ia já
chamá-lo. Não demorava nada e não demorou. Mas ele não queria voltar pra casa. Insistia que era
morte certa, tal a raiva com que o pai o vergastou no dia anterior.
Foi o irmão falar com ele. E disse que o pai o queria de volta. Precisava dele para guardar as
cabras. Havia o trabalho nas leiras, a rega de manhã e à tarde, as batatas para arrancar daí a pouco,
o mato para roçar, … Convenceu-o e antes do anoitecer estavam no caminho de regresso. Em casa,
à volta da lareira apagada, esperava-os o silêncio de todos, as lágrimas da mãe, o olhar parado dos
dois mais novos e o olhar severo do pai, calado.
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Entraram os três devagar, arrastando as sombras que se alongavam. Foi o moleiro o primeiro
a falar, Cá está o rapaz, tudo está bem quando acaba bem. O gelo do silêncio arrastou-se. Depois o
pai sentenciou, Domingo há festa na Senhora d’ Orada. Vais lá falar com a tendeira. Vende-se um
dos cabritos e paga-se a gaita. Mas tu, rapaz, apontou para o João, que se mantinha de cabeça baixa,
inquieto, de olhar cerrado, nunca mais nos deixes, que o coração da tua mãe ia rebentando e que
seria de nós sem ela. Olhai que é ela a luz desta casa, o sol que me alumia e nos aquece a todos no
inverno frio. E vós sem ela também nada sereis. Cuidai dela, por isso, que eu já pouco posso. E
desgostos, como este, se mos trazeis, acabam comigo. Agora vamos cear, pois amanhã é dia de
trabalho.
Assim foi. No domingo seguinte, ainda os rapazes se vestiam para a missa das oito, já a mãe
depenava o frango que iria dar sabor ao merendeiro. Depois foram todos para a festa, a pé, para lá
chegarem pouco antes do meio-dia. A primeira visita foi à tenda dos brinquedos, onde o pai quis
saber do preço da harmónica e pagou-a, até ao último tostão, sem regatear. A mulher disse que não
tinha dado por nada. Mas ele nem quis ouvir. Tinha a honra para lavar, e lavou-a, com o rapaz ao
lado, em atitude de silenciada humilhação. No íntimo do João, entretanto, a vitória da sua conquista
e a esperança de que ainda iria namorar a Isabel. Por isso fez depois a promessa de sete Ave-Marias
à santa. Porque tinha tempo para isso, que da festa nada mais lhe interessava. Queria era voltar
para casa, para ir aprender a tocar harmónica, o seu segredo, o seu tesouro.
Guimarães, abril 2015
Gil Cruz d’Argola(pseudónimo)

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O segredo

  • 1. 1 O segredo da gaita-de-beiços Terminada a procissão e arrumados os andores no interior da capela, Santa Bárbara e Santo António foram reconduzidos aos seus nichos costumeiros. Para outros doze meses de sossego e indesejado abandono. Ambos, por iguais motivos, enfastiados dos mesclados e intensos perfumes das flores que os envolviam na base das charolas. Saturados até dos sonorosos infindáveis beijos dos fiéis que, felizes pelas graças recebidas e visivelmente emocionados, os lembraram hoje, alinhados em longa fila formada pouco antes da procissão. Sobretudo espantados ainda pelo quase incontável amontoado de notas esvoaçantes, a encher de cima a baixo as fitas suspensas do pescoço de cada um deles, e que as mãos trémulas dos devotos faustosamente lá aprisionaram com alfinetes brilhantes. Ganhava a vaidade à devoção dos festeiros, Qual de nós teria mais, pareciam perguntar- se os santos parceiros do santuário, agora aliviados desse vistoso exibicionismo, e de novo reduzidos à nudez da sua tradicional singeleza. Mesmo ao lado do palco improvisado, os mordomos da comissão de festas, entusiasmados com a inusitada afluência de romeiros e bem animados decerto graças às repetidas canecas que emborcaram ao longo da tarde, dividiam irmãmente o bolo dos santos. Tinha de chegar para a banda de música, o rancho folclórico, o fogueteiro, o armador e, é claro, para os quatro guardas- republicanos, que da festa pouco mais guardaram do que a churrascada de frango e tiras de porco, as azeitonas, a rosca de quilo e meio e o garrafão do verde tinto, depois largamente reforçado pelas garrafas de americano da quinta da Veiga, o dia foi comprido e um homem não é como os camelos, que esses aguentam até uma semana sem beber. E o senhor abade, pois sim, que esse muito teve de se empenhar e suou até ao tutano, em tarefas muitas, qual a mais penosa, primeiro na pregação do tríduo festivo, a arrastar-se de sexta a domingo. Além disso, ensaiou ele o coro da igreja, de velhas roufenhas e criançada inquieta, poucos homens, pois menos é a devoção deles, mais ocupados nas canecas e cervejolas da adega do Escuro. Ainda mais, presidiu às missas da manhã e do meio-dia, a primeira mais ligeira, mas a outra de uma solenidade demorada, verdadeira maratona. Acompanhou antes o penosíssimo clamor, maratona também, da igreja à capela, nessas longas e arrastadas três horas de percurso apeado, cadenciado pelo martelar insistente dos tambores a gerir o ritmo do andamento, ao som dos cânticos tantas vezes pouco mais do que desafinados. E o sol intenso, a fazer-lhe brotar e deslizar, saltitantes, na testa enrugada e pela face rosada, as milhentas pingas de suor escaldante. E o estridente estalejar
  • 2. 2 do foguetório, e a banda da vila, e as flores atiradas das janelas e o sol sufocante. Depois, essa missa solenizada e toda cantada, com sermão bem urdido ao estilo barroco, emotivo como convinha, a fazer soltar incontidos soluços dos corações mais sensíveis, os mais ignorantes. Ainda, para fechar, a penitência da procissão até ao cruzeiro, ida e volta, com a batina e a sobrepeliz a pesar toneladas e a fazer ainda mais insuportável aquele tremendo calor de agosto. É por isso que a ele, até por ser o presidente da comissão, figura central da festividade, no seu pessoal e justificado parecer, cabia o maior quinhão das ofertas. Era ele o chefe da mordomia, Quem parte e reparte e não fica com a maior parte, lá diz o povo, ou é louco, ou não tem arte. O padre não o disse, são segredos do seu pensamento, como esse outro meditar pecaminoso que o tentou, com mal disfarçada malícia, fazendo-o contemplar, de forma um tanto mais que insistente, excessiva talvez, o decote atrevido daquela extraordinária francesa de blusa verde, ali mesmo debaixo do púlpito durante toda a longa pregação, Quem seria ela. Mas que belo desenho, com aquelas duas colinas arrendondadinhas, papos de pomba mansa, dois bicos salientes, mesmo a convidar uma desejada visita digital, manual, labial melhor ainda. Tão doce deveria ser, mas imagine-o, quem não pode experimentá-lo, lá dizia o poeta. Cá fora, estalaram os derradeiros foguetes do arraial, deixando no céu azul rasgos esfarrapados de fumo branco. Pelos mais variados caminhos que as tinham trazido à festa, moviam- se já as famílias, os mais novos ainda a lamber os beiços com sabor a rosquilhos e cavacas. Os mais velhos já a pensar na rega e nas vacas que decerto pediam a ceia, enquanto tentavam, com a cauda peluda a sacudir a nuvem de moscas que lhes cobria o lombo e fazia coceira. O João não cabia em si de estranha emoção, com a mão no bolso, a acariciar deliciado a harmónica nova. Desde a chegada à festa, enquanto os irmãos admiravam o bailarico do rancho, sob o sol e poeira que cobriam o estrado de madeira entre os carvalhos verdejantes, os olhos do rapaz não largaram aquela maravilhosa gaita-de-beiços da tenda dos brinquedos. Brilhava a parte exterior e metálica, a envolver as línguas, de azul e vermelho, tal e qual a que o Chamusco fazia deslizar entre os lábios, soltando gemidos tão harmoniosos e que tanto despertou nele a vontade de ter uma assim. Mas custava dez escudos e tê-los. Por isso, quando a tendeira procurava no bolso do avental os trocos para um freguês, com a certeza de que ninguém estava a observá-lo, o rapaz meteu mão na harmónica, enfiou-a num relance na algibeira das calças e guardou-o como um tesouro. O coração a batia-lhe acelerado. Mas não, tinha a certeza que ninguém se apercebeu, pensava para consigo. Era o seu grande segredo. Ao chegar a casa, escondeu no fundo da gaveta do guarda-vestidos a mais precisa conquista da sua vida. Depois da ceia, durante a noite, sonhou que já tocava com estranha habilidade o
  • 3. 3 instrumento e atraía a atenção das raparigas da freguesia, de modo especial a verdura resplandecente do olhar tão meigo e até aí tão distante da Ana Isabel. Na manhã do dia seguinte, como era costume, foi com as cabras ao monte. Novamente no bolso, bem escondida, a harmónica, ainda novinha, por estrear. Já no monte do Mirante, à sombra fresca das giestas e pinheiros, enquanto as cabras retouçavam a erva quase seca, pela primeira vez levou-a aos lábios. Saiu um som estranho, desarmónico, mais gemido que música. Mas iria aprender. Com o tempo, talvez com alguma ajuda do Quim Manco. Tão bem manejava este o instrumento que vezes sem conta lhe despertou inveja e o desejo incontido de tocar como ele. Ao regressar a casa para o comer do meio-dia, o pai esperava-o de vara na mão e cara de poucos amigos. Como soube, se ninguém tinha testemunhado o seu segredo, Onde arranjaste a gaita, Que gaita, perguntou a medo, a antecipar já as chibatadas cortantes que de repente passaram a cair-lhe nas costas, nas nádegas, nas pernas, cortantes, dolorosas, terríveis. Foi o Chico que ma emprestou, Que Chico, mentiroso, onde arranjaste isso. E a vara descia, uma e outra vez, rasgando a pele, tenra, de quinze anos tão só. Por isso, desatou a correr, sem olhar para trás, com toda a força, com o desespero de uma dor incontida, descontrolada. E seguiu sempre. Fugiria, enquanto pudesse, desse olhar duro, incompreendido, do pai cruel, sem saber a felicidade que seria, para ele, um dia, tocar como deve ser aquela gaita-de-beiços e com ela conquistar olhar ternurento da sonhada Isabel. Escurecia já, quando finalmente chegou à barragem de Salamonde. Perguntou pelo tio Abel, de Ribadouro, Ah, o Guedelhas, deve estar a comer na cantina. Tandos homens na grande mesa, alguns enfarruscados, roupa ainda cheia de terra, muitos de mangas arregaçadas, caras tisnadas da soalheira. E que bem cheirava o rancho, ou o fumo a sair das terrinas sobre a toalha escura. Que fazes por aqui, como vieste cá parar, perguntou o tio, ainda a mastigar o resto de uma côdea de broa, Queria ver se arranjava trabalho, lá na terra as coisas estão complicadas, E a estas horas, ainda nem comeste, Pois não, Mas isso resolve-se, vou pedir à cozinheira um prato e que te arranje qualquer coisa. Arranjou. Foi com vontade de três dias que engoliu primeira garfada. E as que se seguiram, sem perceber a que sabiam, tal era a larica, depois de tantos quilómetros a correr. O tio, olhava-o, apoquentado, E se não te dão emprego, ainda só tens quinze anos, já agora, o teu pai sabe que viste. O silêncio disse tudo. Foram dormir, tio e sobrinho na mesma cama, num barracão por onde se espalhavam mais de trinta homens, era o que parecia. Mas a noite passou depressa, nem deu conta das horas. Só quando o tio o chamou para ir falar com o encarregado. Que não, sem ordem dos pais não podia
  • 4. 4 dar trabalho a um rapaz tão novo, Deixa lá, sobrinho, de fome não morres. O que me tocar a mim também dá para ti. Em casa, pais e irmãos procuravam por todo o lado, entre suspiros e lágrimas, Onde se terá metido aquele ladrão, inquiria o pai, Deve estar escondido por aí nalguma mina, mas não demora a chegar. Quando tiver fome, aparece, tentava sossegar a mãe, de coração aos pulos. O Rui, dos quatro irmãos o mais velho, lembrou-se então, Será que não foi prà barragem. Já me tinha dito algumas vezes que queria trabalhar e ganhar dinheiro como o tio Abel, Se calhar, continuou o pai, bem capaz disso era mesmo, Queres tu ir ver se dás com ele, Mas sozinho como chego lá, Vamos ver se alguém vai contigo, Pedimos ao Zé moleiro, para me levar, porque a pé são mais de oito horas para lá chegar, Isso é verdade, Ide então falar com ele, paga-se o frete quando pudermos, rematou a mãe. E foram ao moinho. O moleiro disse que só podia da parte de tarde, tinha de levar o milho à padaria da vila, pois precisavam dele ainda antes do meio-dia. Saíram depois de comer, por Cabeceiras, que o caminho era melhor, chegariam mais depressa. Mesmo assim, demorou uma eternidade. O estradão era de terra, com cascalho solto, ramos secos e a provocar uma poeirada seca, a levantar-se no ar, dançando atrás da carroça. Chegaram à barragem de Salamonde perto das sete da tarde. Alguns trabalhadores já descansavam, espalhados pelas sombras, alguns a fumar Kentucky, outros agarrados ao copo meio, numa tentativa escusado de apagar mais o cansaço do que a sede, mais até a saudade da mulher e dos filhos que estavam longe, a fazer sabe-se lá o quê, àquela hora, àquela distância. Perguntaram pelo Abel Guedelhas, se o conheciam, Claro, deve estar a mudar de roupa. E um rapaz novo, chegado no dia anterior, Isso não sei, mas vou chamar o Guedelhas, não é o que procuram, Sim, sim, agradecido. Chegou pouco depois. E disse que sim, que o rapaz tinha aparecido lá desesperado, a dizer que o pai o queria matar. Arranjou-lhe trabalho na cozinha. Devia estar a ajudar na ceia. Mas ia já chamá-lo. Não demorava nada e não demorou. Mas ele não queria voltar pra casa. Insistia que era morte certa, tal a raiva com que o pai o vergastou no dia anterior. Foi o irmão falar com ele. E disse que o pai o queria de volta. Precisava dele para guardar as cabras. Havia o trabalho nas leiras, a rega de manhã e à tarde, as batatas para arrancar daí a pouco, o mato para roçar, … Convenceu-o e antes do anoitecer estavam no caminho de regresso. Em casa, à volta da lareira apagada, esperava-os o silêncio de todos, as lágrimas da mãe, o olhar parado dos dois mais novos e o olhar severo do pai, calado.
  • 5. 5 Entraram os três devagar, arrastando as sombras que se alongavam. Foi o moleiro o primeiro a falar, Cá está o rapaz, tudo está bem quando acaba bem. O gelo do silêncio arrastou-se. Depois o pai sentenciou, Domingo há festa na Senhora d’ Orada. Vais lá falar com a tendeira. Vende-se um dos cabritos e paga-se a gaita. Mas tu, rapaz, apontou para o João, que se mantinha de cabeça baixa, inquieto, de olhar cerrado, nunca mais nos deixes, que o coração da tua mãe ia rebentando e que seria de nós sem ela. Olhai que é ela a luz desta casa, o sol que me alumia e nos aquece a todos no inverno frio. E vós sem ela também nada sereis. Cuidai dela, por isso, que eu já pouco posso. E desgostos, como este, se mos trazeis, acabam comigo. Agora vamos cear, pois amanhã é dia de trabalho. Assim foi. No domingo seguinte, ainda os rapazes se vestiam para a missa das oito, já a mãe depenava o frango que iria dar sabor ao merendeiro. Depois foram todos para a festa, a pé, para lá chegarem pouco antes do meio-dia. A primeira visita foi à tenda dos brinquedos, onde o pai quis saber do preço da harmónica e pagou-a, até ao último tostão, sem regatear. A mulher disse que não tinha dado por nada. Mas ele nem quis ouvir. Tinha a honra para lavar, e lavou-a, com o rapaz ao lado, em atitude de silenciada humilhação. No íntimo do João, entretanto, a vitória da sua conquista e a esperança de que ainda iria namorar a Isabel. Por isso fez depois a promessa de sete Ave-Marias à santa. Porque tinha tempo para isso, que da festa nada mais lhe interessava. Queria era voltar para casa, para ir aprender a tocar harmónica, o seu segredo, o seu tesouro. Guimarães, abril 2015 Gil Cruz d’Argola(pseudónimo)