Análise de "Eu e outras poesias", de augusto dos anjos
1. ESCOMBROS
DA
PRIMEIRA
REPÚBLICA;
Uma
análise
de
Eu
e
outras
poesias,
de
Augusto
dos
Anjos
por
Manoel
Neves
INTRODUÇÃO
Augusto
dos
Anjos
é
um
caso
à
parte
na
poesia
brasileira.
Autor
de
grande
sucesso
popular,
ainda
é
ignorado
por
parte
da
crítica,
que
o
julga
mórbido
e
vulgar.
Alguns
estudiosos
que
se
debruçam
sobre
essa
obra
única
e
absolutamente
original
perdem
o
tempo
discutindo
se
a
mesma
é
parnasiana
ou
simbolista.
O
domínio
técnico
e
o
gosto
pelo
soneto
comprovariam
o
primeiro
rótulo.
A
fascinação
pela
morte,
a
angústia
cósmica
e
o
uso
de
ousadas
metáforas
indicariam
a
tendência
simbolista.
Esse
debate
torna-‐se
obsoleto
face
a
estudos
mais
recentes,
como
o
de
Ferreira
Gullar,
que
aponta
para
a
modernidade
dos
versos
de
Eu.
Talvez
nenhum
outro
autor
do
período
merecesse
a
denominação
de
pré-‐modernista
como
Augusto
dos
Anjos.
Pré-‐
modernista,
ele
é
na
mistura
de
estilos,
na
linguagem
corrosiva,
no
coloquialismo
e
na
incorporação
à
literatura
de
todas
as
“sujeiras”
da
vida.
Se
é
um
grande
poeta
ou
não,
esta
sim
é
a
discussão
ainda
não
totalmente
resolvida.
Há
os
que
amam
e
há
os
que
odeiam.
A
maioria
dos
estudiosos
inclina-‐se
a
consagrá-‐lo
pela
singularidade
temática
linguística,
mesmo
que
reconhecendo
eventuais
deslizes.
Já
a
minoria
de
detratores
aponta-‐lhe
a
morbidez
e
a
cafonice
desenfreada
de
várias
composições.
Eu
apresenta
58
poemas.
São
sonetos
e
poemas
mais
longos,
escritos
quase
todos
em
versos
rimados
e
decassílabos
–
com
uma
única
exceção,
o
poema
“Barcarola”.
Tradicional
do
ponto
de
vista
técnico,
o
Eu
chamou
atenção
pela
temática
–
a
podridão,
a
decomposição,
a
morte,
o
sofrimento,
os
terrores
noturnos
–
e
pelo
vocabulário
científico
muito
marcado.
Os
outros
poemas
foram
acrescentados
à
obra
original
do
poeta
nas
edições
posteriores
à
sua
morte.
A
MORTE,
O
MORTO
O
morto
aparece
como
a
“presença
de
uma
ausência”
na
obra
de
Augusto
dos
Anjos
na
medida
em
que
se
trata
da
matéria-‐prima
de
sua
poesia,
é
o
que
se
vê
na
última
estrofe
de
“O
poeta
hediondo”,
em
que
o
sujeito
poético,
metalinguisticamente,
nos
indica
de
que
se
constitui
sua
poesia:
Eu
sou
aquele
que
ficou
sozinho
Cantando
sobre
os
ossos
do
caminho
1
2. A
poesia
de
tudo
quanto
é
morto!1
Debruçando
–
em
solidão
–
sobre
o
que
há
de
mais
assustador
e
indubitável,
o
poeta
faz
de
sua
obra
um
“cemitério
de
papel”,
nas
palavras
da
Professora
Maria
Esther
Maciel
de
Oliveira:2
um
lugar
que,
ao
abrigar
pela
palavra
os
despojos
mortais
(matéria
poética),
afirma-‐se
como
um
não-‐lugar
por
excelência
–
deposito
em
ruínas,
de
vazios
–
assemelhando-‐se,
por
isso
mesmo,
a
"neutralidade
absoluta
da
morte".
O
poeta,
à
cata
dos
despojos
que
constituem
a
matéria
de
sua
poesia,
percorre
estradas,
pontes,
becos,
adentra
cemitérios,
faz
escavações,
viola
sepulturas,
abre
caixões,
para
depois
analisar,
pacientemente,
os
destroços,
como
se
vê
no
“Poema
negro”,
em
que
o
eu-‐lírico,
num
delírio,
imagina
ver
a
morte:
Surpreendo-‐me,
sozinho,
numa
cova.
Então
meu
desvario
se
renova...
Como
que,
abrindo
todos
os
jazigos,
A
Morte,
em
trajes
pretos
e
amarelos,
Levanta
contra
mim
grandes
cutelos
E
as
baionetas
dos
dragões
antigos!3
A
morte
aparece
como
a
grande
musa
do
poeta
e
o
locutor
identifica-‐se
a
si
mesmo
como
“coveiro
do
verso”,
“viajeiro
da
extrema-‐unção”,
chegando
a
se
espelhar
no
próprio
verme,
o
“deus-‐verme”,
o
“operário
das
ruínas”,
cujo
oficio
não
e
mais
que
um
enorme
roer.
Observe-‐se
que,
na
adoção
dos
termos
acima
para
se
referir
ao
sujeito
que
constrói
o
discurso
poético,
ocorre
uma
identificação
entre
o
poeta
e
o
eu-‐lírico.
É
como
se,
em
alguns
poemas,
Augusto
procurasse
fundir
numa
mesma
personagem
“eu-‐lírico”
e
“eu-‐
biográfico”.
Isso
pode
ser
visto
em
poemas
como
“Ricordanza
della
mia
giuventú”,4
em
que
o
sujeito
poético
se
lembra
das
moedas
furtadas
dele
por
sua
ama
de
leite,
Guilhermina,
ou
“Debaixo
do
tamarindo”,
em
que
o
eu-‐lírico
se
recorda
das
vezes
em
que
descansara
à
sombra
dos
galhos
do
tamarineiro
da
fazenda
de
seu
pai
e
afirma
que,
depois
de
morto,
sua
sombra
permanecerá
debaixo
do
tamarindo:
No
tempo
de
meu
Pai,
sob
estes
galhos,
Como
uma
vela
fúnebre
de
cera,
Chorei
bilhões
de
vezes
com
a
canseira
1
ANJOS, Augusto dos. O poeta do hediondo, 155.
2
OLIVEIRA, Maria Esther Maciel de. O cemitério de papel; sobre a utopia do EU de Augusto dos Anjos. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG, 1990. p.35. (Dissertação, Mestrado em Literatura Brasileira).
3
ANJOS. Poema negro, 1078.
4
Idem. Ricordanza della mia giuventú, 73.
2
3. De
inoxorabilíssimos
trabalhos!
Hoje,
esta
árvore,
de
amplos
agasalhos,
Guarda,
como
uma
caixa
derradeira,
O
passado
da
Flora
Brasileira
E
a
paleontologia
dos
Carvalhos!5
Quando
pararem
todos
os
relógios
De
minha
vida,
e
a
voz
dos
necrológios
Gritar
nos
noticiários
que
eu
morri,
Voltando
à
pátria
da
homogeneidade,
Abraçada
com
a
própria
Eternidade
A
minha
sombra
há
de
ficar
aqui!6
Constata-‐se,
neste
texto,
a
predominância
da
visão
essencialista
(a
essência
ultrapassa
a
existência),
de
caráter
simbolista,
na
medida
em
que
o
sujeito
poético
acredita
que
a
morte
não
é
um
fim
em
si
mesmo,
pois
depois
que
morrer,
sua
sombra
permanecerá
no
lugar
onde
descansara
em
vida.
Convém,
ainda,
citar
outro
poema
em
que
há
coincidência
entre
o
sujeito
biográfico
e
o
sujeito
poético.
Trata-‐se
do
“Soneto”,7
dedicado
ao
seu
primeiro
filho:
Agregado
infeliz
de
sangue
e
cal,
Fruto
rubro
de
carne
agonizante,
Filho
da
grande
força
fecundante
Da
minha
brônzea
trama
neuronial,
Que
poder
embriológico
fatal
Destruiu,
com
a
sinergia
de
um
gigante,
Em
tua
morfogênese
de
infante
A
minha
morfogênese
ancestral?!...
Porção
de
minha
plásmica
substância,
Em
que
lugar
irás
passar
a
infância,
Tragicamente
anônimo,
a
feder?!...
Ah!
Possas
tu
dormir,
feto
esquecido,
Panteisticamente
dissolvido
5
Note-se que Carvalho, grafado com maiúscula, é nome próprio – nome de família de Augusto dos Anjos –, mas pode
também nomear uma árvore.
6
Idem. Debaixo do tamarindo, 19.
7
Idem. Soneto, 16.
3
4. Na
noumenalidade8
do
NÃO
SER!9
Dedicado
ao
filho,
morto
aos
seis
meses
de
idade,
há,
neste
poema,
uma
concepção
bastante
incomum
de
afeto
paterno.
Atestando
a
forte
influência
cientificista,
Augusto
apresenta
seu
filho
como
um
agregado
infeliz
de
sangue
e
cal.
Tal
naturalismo
comparece,
ainda,
na
pergunta
que
se
articula
na
terceira
estrofe,
na
qual
o
locutor
questiona
onde
a
criança
passará
a
infância
a
feder.
A
concepção
essencialista,
segundo
a
qual
a
essência
antecede
e
ultrapassa
a
existência
–
aparece
esboçada
na
última
estrofe,
que
afirma
que
o
feto
esquecido
irá
dormir
integrado
ao
não
ser.
Diferentemente
dos
dois
poemas
acima,
em
“O
deus-‐verme”,
predomina
uma
visão
materialista
da
vida.
Mais
ainda:
verifica-‐se
que
a
matéria
está
fadada
à
degradação,
à
corrupção,
à
putrefação:
Fator
universal
do
transformismo.
Filho
da
teleológica
matéria,
Na
superabundância
ou
na
miséria,
Verme
–
é
o
seu
nome
obscuro
de
batismo.
Jamais
emprega
o
acérrimo
exorcismo
Em
sua
diária
ocupação
funérea
E
vive
em
contubérnio
com
a
bactéria,
Livre
das
roupas
do
antropomorfismo.
Almoça
a
podridão
das
drupas
agras,
Janta
hidrópicos,
rói
vísceras
magras
E
dos
defuntos
novos
incha
a
mão...
Ah!
Para
ele
é
que
a
carne
podre
fica,
E
no
inventário
da
matéria
rica
Cabe
aos
seus
filhos
a
maior
porção!10
Pode-‐se
afirmar
que
Augusto
escreve
a
partir
do
espanto
que
a
morte
suscita.
Para
viver
intensamente
essa
morte,
faz
dela
uma
encenação
de
imagens,
vislumbrando
cada
poema
como
um
cadáver,
como
se
vê
no
poema
“Aberração”:
Na
velhice
automática
e
na
infância,
(Hoje,
ontem,
amanhã
e
em
qualquer
era)
Minha
hibridez
é
a
súmula
sincera
8
Noumenalidade: Relativo a “noumeno” ou “númeno”, a coisa em si, por oposição a “fenômeno”, que é a coisa tal como é
apreendida pelos sentidos.
9
ANJOS. O deus-verme, 18.
10
Idem. O deus-verme, 18.
4
5. Das
defectividades11
da
Substância.
Criando
na
alma
a
estesia12
abstrusa13
da
ânsia
Como
Belerofonte
com
a
Quimera
Mato
o
ideal;
cresto
o
sonho;
achato
a
esfera
E
acho
odor
de
cadáver
na
fragrância!
Chamo-‐me
Aberração.
Minha
alma
é
um
misto
De
anomalias
lúgubres.
Existo
Como
a
cancro,
a
exigir
que
os
sãos
enfermem...
Teço
a
infâmia;
urdo
o
crime;
engendro
o
lodo
E
nas
mudanças
do
Universo
todo
Deixo
inscrita
a
memória
do
meu
gérmem!14
Note-‐se,
neste
poema,
a
ausência
total
de
lirismo,
principalmente
em
versos
como
mato
o
ideal,
cresto
o
sonho.
Se
a
poesia
tradicional
é
afeita
ao
sonho,
à
fantasia,
ao
devaneio,
o
sujeito
poético
deste
poema
depois
de
aniquilar
ideal,
sonho
e
esfera
afirma
haver
neles
um
odor
de
cadáver.
Ao
se
autodenominar
aberração,
o
sujeito
poético
assume,
ele
mesmo,
o
lugar
da
morte.
Mais
ainda:
não
só
assume
o
lugar
dela,
mas
se
dissemina
por
todo
o
Universo,
ao
afirmar
que
nas
mudanças
do
Universo
todo
deixa
inscrita
a
memória
do
seu
gérmem.
Poesia
enquanto
desafio
a
poesia
tradicional
feita
de
palavras
lânguidas
e
versos
perfumados
(antiparnasianismo)
De
certa
forma,
esta
é
uma
atitude
moderna,
na
medida
em
que
é
contrária
às
concepções
parnasianas,
românticas
e
simbolistas.
Veja
como
um
dos
poemas
mais
conhecidos
de
Augusto,
“Versos
íntimos”,
realiza
de
forma
magistral
uma
negação
da
estética
parnasiana
e,
ao
mesmo
tempo,
faz
emergir
um
“naturalismo”
que
beira
o
niilismo15
absoluto:
Vês?!
Ninguém
assistiu
ao
formidável
Enterro
de
tua
última
quimera.
Somente
a
Ingratidão
–
esta
pantera
–
Foi
tua
companheira
inseparável!
Acostuma-‐te
à
lama
que
te
espera!
O
Homem,
que,
nesta
terra,
miserável,
11
Defectivo: Imperfeito.
12
Estesia: sentimento do belo; sensibilidade.
13
Abstrusa: confusa, difícil de entender.
14
Idem. Aberração, 165.
15
Niilismo: descrença, negação de todas as coisas.
5
6. Mora,
entre
feras,
sente
inevitável
Necessidade
de
também
ser
fera.
Toma
um
fósforo.
Acende
teu
cigarro!
O
beijo,
amigo,
é
a
véspera
do
escarro,
A
mão
que
afaga
é
a
mesma
que
apedreja.
Se
a
alguém
causa
inda
pena
a
tua
chaga
Apedreja
essa
mão
vil
que
te
afaga,
Escarra
nessa
boca
que
te
beija!
Encarcerado
numa
forma
parnasiana,
o
soneto
decassílabo,
o
poema
se
propõe
a
fazer
uma
reflexão
sobre
o
ser
humano.
Ao
invés
da
profundidade
parnasiana
ou
da
transcendência
simbolista,
o
sujeito
poético,
assim
como
em
“Aberração”,
mostra
que
ninguém
assistiu
ao
enterro
da
quimera
do
alocutário.
Novamente,
o
sonho
aparece
morto,
morto
o
idealismo,
morta
a
fantasia.
A
descrença
total
na
humanidade
(niilismo)
aparece
associada
a
uma
valorização
da
matéria
excretada
e
do
irracionalismo
(o
homem
sente
inevitável
necessidade
de
também
ser
fera).
A
mão
amiga
e
o
beijo,
metáforas
da
compreensão,
do
amor
e
da
solidariedade
aparecem
debelados
por
ações
que
vão
da
agressão
(apedrejamento)
ao
desprezo
absoluto
(escarro).
“Monólogo
de
uma
sombra”
apresenta
31
estrofes,
com
versos
decassílabos.
Muitos
críticos
veem
neste
poema
uma
espécie
de
“profissão
de
fé”
da
poesia
de
Augusto
dos
Anjos.
O
poema
apresenta
duas
vozes
bastante
distintas.
Durante
28
estrofes,
fala
a
Sombra
e
apresenta
sua
“visão
decadente
do
mundo”.
Nas
três
últimas
estrofes,
o
sujeito
poético
apresenta
um
ambiente
macabro
e
decadente
por
onde
a
Sombra
caminha.
Nas
seis
primeiras
estrofes,
a
Sombra
se
apresenta:
percebe-‐se
que
ela
se
origina
da
“escuridão
do
cosmos”
e
é
dela
que
todas
as
outras
coisas
sobrevêm;
identifica-‐se,
ainda,
com
a
metafísica
budista
–
Abhidarma
–
e
com
as
espécies
sofredoras.
Tal
Sombra
sente
nojo
da
Natureza
Humana,
ligando-‐se
ao
esterco,
aos
resíduos
e
aos
baixos
instintos,
e
à
raça
americana,
condenada
à
Desgraça
e
ao
Infortúnio:
E
trago,
sem
bramânicas
tesouras,
Como
um
dorso
de
azêmola16
passiva,
A
solidariedade
subjetiva
De
todas
as
espécies
sofredoras.
Com
um
pouco
de
saliva
cotidiana
16
Azêmola: besta de carga.
6
7. Mostro
meu
nojo
à
Natureza
Humana.
A
podridão
me
serve
de
Evangelho...
Amo
o
esterco,
os
resíduos
ruins
dos
quiosques
E
o
animal
inferior
que
urra
nos
bosques
É
com
certeza
meu
irmão
mais
velho!17
Nove
estrofes
são
dedicadas
ao
Filósofo
Moderno.
Tal
figura
é-‐nos
apresentada
como
um
ser
desesperado,
maltrapilho
e
incréu.
Note-‐se
que
o
filósofo
se
dedica
ao
estudo
dos
fenômenos
transcendentais
e
a
personagem
criada
por
Anjos
aparece
como
um
ser
incapaz
de
compreender
a
mecânica
(da
podridão)
e
a
metafísica
das
coisas.
Sua
incapacidade
analítica
tem
como
desdobramento
a
penúria
física
e
moral
em
que
se
encontra.
Ao
invés
da
elevação
e
da
transcendência
típicas
da
filosofia,
encontra-‐se
no
poema
uma
metafísica
do
baixo,
do
corporal
e
da
podridão.
Sumamente
interessante
é
o
fato
de
o
locutor
que
espreita
as
cenas
–
e
nos
apresenta
–
encontra-‐se
extasiado,
emocionado
mesmo
com
tal
retrato
decadente:
É
uma
trágica
festa
emocionante!18
A
morte
aparece
insolitamente:
carnívora
assanhada,
semeadora
terrível
de
defuntos,
e
sempre
está
na
iminência
de
consumir
a
matéria
orgânica
de
que
o
corpo
humano
é
feito.
Ela
surge
para
desconcertar
o
leitor
e
levá-‐lo
perversamente
a
região
maldita
onde
fervilham
larvas
e
vermes:
É
uma
trágica
festa
emocionante!
A
bacteriologia
inventariante
Toma
conta
do
corpo
que
apodrece...
E
até
os
membros
da
família
engulham
Vendo
as
larvas
malignas
que
se
embrulham
No
cadáver
malsão,
fazendo
um
s.19
Atente
para
a
inventividade
do
poeta,
fazendo
rimar
apodrece
e
s.
Outro
aspecto
interessante
é
o
caráter
plástico,
visual,
da
cena.
Para
incomodar
o
leitor,
ele
dá
nitidez
a
imagens
nauseantes,
através
das
quais
penetra
nos
domínios
mais
proibidos
do
ser
humano
–
o
espaço
fúnebre
–,
realizando,
assim,
uma
transgressão
que
vai
dimensionar,
inclusive,
o
erotismo
inerente
à
poesia
mórbida
do
eu.
As
cenas
da
morte
exibidas
para
o
leitor
são
na
maioria
das
vezes
assustadoras,
capturadas
no
cerne
da
violência
que
a
morte
representa:
17
ANJOS. Monólogo de uma sombra, 04.
18
ANJOS, ibidem, 05-06.
19
Idem, 06.
7
8. E
o
que
ele
foi:
clavículas,
abdômen,
O
coração,
a
boca,
em
síntese,
o
Homem,
–
Engrenagem
de
vísceras
vulgares
–
Os
dedos
carregados
de
peçonha,
Tudo
coube
na
lógica
medonha,
Dos
apodrecimentos
musculares!
Na
décima
sexta
estrofe,
aparece
outra
“personagem”,
o
sátiro
peralta.
Trata-‐se
de
uma
figura
luxuriosa
(homem
devasso,
luxurioso,
libidinoso)
de
forte
apelo
dionisíaco
o
que
dá
um
caráter
de
espetacularização
carnavalesca
à
obra.
Atentando
ao
adjetivo
“peralta”,
temos
travesso,
traquinas. 20
Luxo,
luxúria
e
podridão
convergem
no
ambiente
que
circunda
tal
personagem.
O
espaço
por
onde
se
move
tal
personagem
é
o
da
podridão
–
física
e
moral
–,
o
que
reforça
o
caráter
decadentista
da
obra
de
Augusto
dos
Anjos:
Est’outro
agora
é
o
sátiro
peralta
Que
o
sensualismo
sodomista
exalta,
Nutrindo
sua
infâmia
a
leite
e
a
trigo...
Brancas
bacantes
bêbadas
o
beijam.21
Suas
artérias
hírcicas22
latejam,
Sentindo
o
odor
das
carnações
abstêmias,
E
à
noite,
vai
gozar,
ébrio
de
vício,
No
sombrio
bazar
do
meretrício,
O
cuspo
afrodisíaco
das
fêmeas.23
Nosso
sátiro
peralta
trafega
por
este
cenário
de
podridão
estrangulado
pela
angústia
e
pelo
gozo:
Mingua-‐se
o
combustível
da
lanterna
E
a
consciência
do
sátiro
se
inferna,
Reconhecendo,
bêbedo
de
sono,
Na
própria
ânsia
dionísica
do
gozo,
Essa
necessidade
de
horroroso,
Que
é
talvez
propriedade
do
carbono!
Ah!
Dentro
de
toda
a
alma
existe
a
prova
20
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. rev. et aum. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000. p.1305.
21
Note-se a aliteração, tipicamente simbolista.
22
Hírcicas: relativo ao bode. Esse animal estava ligado ao culto do deus Dionísio (ou Baco). Observe-se, no poema, os termos
“bacante” e “dionísico”, que formam um campo semântico.
23
ANJOS, 06.
8
9. De
que
a
dor
como
um
dartro
se
renova,
Quando
o
prazer
barbaramente
a
ataca...24
Duas
pulsões
o
impelem:
dor
e
prazer,
morte
e
vida,
angústia
e
gozo.
Duas
faces
da
mesma
moeda,
estas
são
as
pulsões
que
regem
a
vida:
Eros
e
Tanatos
–
Amor
e
Morte.
Nas
sete
últimas
estrofes,
o
eu-‐lírico
esboça
a
teoria
que
defenderá
no
livro:
ao
eleger
a
matéria,
o
humano
e
a
podridão
como
temáticas
de
sua
obra,
associando-‐os
à
dor,
à
perda
e
ao
sofrimento,
Augusto
afirma
que
tudo
que
é
orgânico,
vivo
e
humano
precisa
perecer
para
que
se
transubstancie
na
Poesia
despojada
de
corpo.
Enquanto
encarcerada
na
obscura
forma
humana,
ela
(a
poesia)
se
contamina
de
podridão,
se
gasta
na
experiência
da
morte,
mas,
ao
superá-‐la,
recria-‐se
enquanto
Arte,
recriando,
também,
o
mundo
em
desagregação:
Somente
a
Arte,
esculpindo
a
humana
mágoa,
Abranda
as
rochas
rígidas,
torna
água
Todo
o
fogo
telúrico
profundo
E
reduz,
sem
que,
entretanto,
a
desintegre,
À
condição
de
uma
planície
alegre,
A
aspereza
orográfica25
do
mundo.26
Em
“Os
doentes”,
contrariamente
ao
que
se
vê
na
estrofe
acima,
o
sujeito
poético
percebe
o
mundo
através
da
ótica
da
negatividade
mais
extremada,
servindo-‐se
da
podridão
do
Evangelho,
inspirando-‐se,
para
a
criação
de
seus
versos,
nas
Coisas
que
perecem,
Desde
as
musculaturas
que
apodrecem
A
ruína
vegetal
dos
lírios
secos.27
Note-‐se
que
esse
homem,
reduzido
a
uma
engrenagem
de
vísceras
vulgares
–
não
passa
de
um
projeto
de
cadáver,
cuja
única
perspectiva
é
a
morte,
a
decadência,
a
podridão.
Essa
poesia
que
exibe
cenas
surpreendentes
de
cadáveres
verdes
e
expostos
ao
olhar
humano
não
poderia
deixar
de
vazar
o
horror
e
a
náusea
–
índices
do
instante
de
transgressão.
Por
isso
mesmo,
pode-‐se
afirmar
que
um
dos
sentimentos
que
perpassarão
a
obra
será
o
da
angústia,
insinuada
na
voz
do
eu-‐lírico,
como
se
vê
neste
trecho
do
“Poema
negro”,
em
que
o
sujeito
poético,
transformado
em
personagem,
encena
seu
sofrimento
ante
as
cenas
de
horror
que
apresenta
ao
leitor:
24
ANJOS, 08.
25
Orográfico: relativo à descrição das montanhas.
26
Idem, 08.
27
Idem. Os doentes, 59.
9
10. Dorme
a
casa.
O
céu
dorme.
A
árvore
dorme.
Eu,
somente
eu,
com
a
minha
dor
enorme
Os
olhos
ensanguento
na
vigília!
E
observo,
enquanto
o
horror
me
corta
a
fala,
O
aspecto
sepulcral
da
austera
sala
E
a
impassibilidade
da
mobília.
Meu
coração,
como
um
cristal,
se
quebre;
O
termômetro
negue
minha
febre,
Torne-‐se
gelo
o
sangue
que
me
abrasa,
E
eu
me
converta
na
cegonha
triste
Que
das
ruínas
duma
casa
assiste
Ao
desmoronamento
de
outra
casa!
Ao
terminar
este
sentido
poema
Onde
vazei
a
minha
dor
suprema
Tenho
os
olhos
em
lágrimas
imersos...
Rola-‐me
na
cabeça
o
cérebro
oco.
Por
ventura,
meu
Deus,
estarei
louco?!
Daqui
por
diante
não
farei
mais
versos.28
O
horror
encenado
é
tamanho
que
o
sujeito
poético,
metalinguisticamente,
se
mostra
paralisado,
disposto,
inclusive,
a
não
mais
realizar
seu
trabalho
poético.
Há
poemas,
entretanto,
em
que
o
locutor
que
apresenta
as
cenas
de
morbidez
e
podridão,
mesmo
se
sentindo
nauseado,
se
compraz
das
cenas
mórbidas
e
ri,
ao
apresentar
ao
leitor
as
cenas
nauseantes
da
morte.
Interessante
observar
que
esse
riso
relativiza
a
angústia,
o
sofrimento,
para
apresentar
as
cenas
de
horror
mais
grotesco,
veja-‐se
a
propósito,
o
poema
“À
mesa”:
Cedo
à
sofreguidão
do
estômago.
É
a
hora
De
comer.
Coisa
hedionda!
Corro.
E
agora,
Antegozando
a
ensanguentada
presa,
Rodeado
pelas
moscas
repugnantes,
Para
comer
meus
próprios
semelhantes
Eis-‐me
sentado
à
mesa.
Como
porções
de
carne
morta...
Ai!
Como
Os
que,
como
eu,
têm
carne,
com
este
assomo
Que
a
espécie
humana
em
comer
carne
tem!...
28
Idem. Poema negro, 109-110.
10
11. Como!
E
pois
que
a
Razão
me
não
reprime,
Possa
a
terra
vingar-‐se
do
meu
crime
Comendo-‐me
também.29
A
intensa
presença
de
pontos
de
exclamação,
adjetivos,
sensorialismo
repulsivo
dão
ao
poema
um
caráter
ambíguo:
por
um
lado
e
horroroso
e
nauseante,
e,
por
outro,
se
mostra
risível
e
grotesco.
A
carnavalização
se
faz
presente
no
poema
por
intermédio
do
humor
negro
que
aparece
no
fato
de
Augusto
dos
Anjos
criar
um
eu-‐lírico
que
aparece
como
agente
de
uma
horripilante
cena
de
necrofagia;
a
reatualização
dionisíaca
da
morte
e
a
ironização
das
cenas
sepulcrais
é
outro
fator
presente
no
poema.
Há,
nesta
comunhão
esquisita,
a
dramatização
da
vida
e
da
morte,
trazendo
à
tona
a
convivência
dos
contrários:
fúnebre/banquete,
dor/prazer,
riso/náusea,
Homem/Verme,
Eros/Tanatos.
Essa
mesma
carnavalização
aparece
em
“Monólogo
de
uma
sombra”,
em
que
o
clima
sombrio
e
trágico
dá
lugar
ao
orgíaco
e
festivo,
como
atestam
tais
versos:
A
desarrumação
dos
intestinos
Assombra!
Vede-‐a!
Os
vermes
assassinos
Dentro
daquela
massa
que
o
húmus
come,
Numa
glutoneria
hedionda,
brincam,
Como
as
cadelas
que
as
dentuças
trincam
No
espaço
fisiológico
da
fome.30
O
locutor
não
só
fala
de
cadáveres
em
decomposição,
mas
transforma
a
cena
num
verdadeiro
banquete
cemiterial,
apresentando
a
ação
dos
vermes
sobre
corpo
apodrecendo
como
um
espetáculo,
em
que
a
morte
assume
um
caráter
dionisíaco.
Dos
três
sonetos
dedicados
ao
pai,
num
aparece
este
caráter
dionisíaco
que
rompe
drasticamente
com
o
clima
de
pesar
e
sofrimento
dos
outros.
O
primeiro
é
um
poema
magoado,
envolto
em
suave
lirismo:
Para
onde
fores,
Pai,
para
onde
fores,
Irei
também,
trilhando
as
mesmas
ruas...
Tu,
para
amenizar
as
dores
tuas,
Eu,
para
amenizar
as
minhas
dores!
Que
coisa
triste!
O
campo
tão
sem
flores,
29
ANJOS. À mesa, 172.
30
Idem. Monólogo de uma sombra, 05.
11
12. E
eu
tão
sem
crença
e
as
árvores
tão
nuas
E
tu,
gemendo,
e
o
horror
de
nossas
duas
Mágoas
crescendo
e
se
fazendo
horrores!
Magoaram-‐te,
Pai?
Que
mão
sombria,
Indiferente
aos
mil
tormentos
teus
De
assim
magoar-‐te
sem
pesar
havia?
–
Seria
a
mão
de
Deus?!
Mas
Deus
enfim
É
bom,
é
justo,
e
sendo
justo,
Deus,
Deus
não
havia
de
magoar-‐te
assim!31
Aqui,
o
sujeito
poético
revela
um
singelo
sofrimento
diante
da
perda
do
pai.
Já
o
segundo
“Soneto”
repete
a
atmosfera
lírica
e
sofrida
do
primeiro,
acrescentando-‐lhe
uma
dimensão
inefável,
principalmente
no
momento
em
que
o
sujeito
poético
crê
ver
a
alma
do
pai
–
tal
qual
a
do
profeta
Elias
–
subindo
ao
céu
num
carro
azul
de
glórias:
Madrugada
de
Treze
de
Janeiro.
Rezo,
sonhando,
o
ofício
da
agonia.
Meu
Pai
nessa
hora
junto
a
mim
morria
Sem
um
gemido,
assim
como
um
cordeiro!
E
eu
nem
lhe
ouvi
o
alento
derradeiro!
Quando
acordei,
cuidei
que
ele
dormia,
E
disse
à
minha
Mãe
que
me
dizia:
“Acorda-‐o”!
deixa-‐o,
Mãe,
dormir
primeiro!
E
saí
para
ver
a
Natureza!
Em
tudo
o
mesmo
abismo
de
beleza,
Nem
uma
névoa
no
estrelado
véu...
Mas
pareceu-‐me,
entre
as
estrelas
flóreas,
Como
Elias,
num
carro
azul
de
glórias,
Ver
a
alma
de
meu
Pai
subindo
ao
Céu!32
O
terceiro,
encenando
trágica
e
comicamente
o
pai
na
condição
de
cadáver,
decompõe
o
lirismo
dos
sonetos
anteriores
na
medida
em
que
descreve
a
decomposição
do
morto
sob
a
terra.
Podre
meu
Pai!
A
Morte
o
olhar
lhe
vidra.
Em
seus
lábios
que
os
meus
lábios
osculam
Microrganismos
fúnebres
pululam
31
Idem. Soneto: I, 86.
32
ANJOS. Soneto: II, 87.
12
13. Numa
fermentação
gorda
de
cidra.
Duras
leis
as
que
os
homens
e
a
hórrida
hidra
A
uma
só
lei
biológica
vinculam,
E
a
marcha
das
moléculas
regulam,
Com
a
invariabilidade
da
clepsidra!...33
Podre
meu
Pai!
A
mão
que
enchi
de
beijos
Roída
toda
de
bichos,
como
os
queijos
Sobre
a
mesa
de
orgíacos
festins!...
Amo
mau
Pai
na
anatômica
desordem
Entre
as
bocas
necrófagas
que
o
mordem
E
a
terra
infecta
que
lhe
cobre
os
rins!34
De
acordo
com
Oliveira:
Aqui,
o
pulular
festivo
dos
vermes
sobre
a
carne
podre
do
pai,
as
mãos
comparadas
a
queijos
roídos,
o
deslocamento
do
fúnebre
para
o
orgíaco
surpreendem
a
expectativa
do
leitor:
onde
se
esperava
um
poema-‐lágrima,
emerge
um
poema-‐náusea,
envolto
em
completo
antilirismo.
A
morte,
aí,
é
desvelada,
reduzida
ao
fato
real,
bruto,
vista
sob
a
ótica
da
putrefação,
e
o
pai,
reduzido
a
objeto
repugnante,
e,
ao
mesmo
tempo,
descrito
como
motivo
de
gozo
e
delicia
para
os
vermes
que
dele
se
refestelam.35
A
poesia
aí
parece
descer
ao
que
ha
de
mais
sórdido
e
execrável
para
a
existência
humana
e,
de
lá,
subtrair
a
sua
matéria
poética.
Para
depois,
carnavalizar-‐se,
inserindo
nos
elementos
infernais
e
escatológicos
que
capturou
a
desordem
e
o
humor
inesperados.
Há,
nas
palavras
de
Oliveira,
no
Eu,
um
gozo
estranho
e
perverso,
que,
se
não
aniquila,
desconforta
e
desordena
o
leitor.
Esse
gozo
aparece
tanto
no
espetáculo
sinistro
e
sensual
dos
vermes
sobre
os
corpos
decompostos,
quanto
nas
práticas
humanas
de
necrofagia
e
no
ato
de
morrer.
No
poema
“A
meretriz”,
temos
imagens
explícitas
de
um
erotismo
além-‐túmulo,
cuja
volúpia
se
faz
ver
tanto
no
cadáver
da
prostituta,
quanto
na
ação
dos
vermes
sobre
a
carne
morta:
A
rua
dos
destinos
desgraçados
33
Clepsidra: relógio movido pela ação da água.
34
Idem. Soneto: III, 87-88.
35
OLIVEIRA, 44.
13
14. Faz
medo.
O
Vício
estruge.
Ouvem-‐se
os
brados
Da
danação
carnal...
Lúbrica,
à
lua,
Na
sodomia
das
mais
negras
bodas
Desarticula-‐se,
em
coréas
doudas,36
Uma
mulher
completamente
nua!37
No
poema
“Vox
victimae”,38
a
morte
é
vista
de
forma
erótica,
um
verdadeiro
êxtase.
O
gozo
de
morrer
compensa
a
morte:
Morto!
Consciência
quieta
haja
o
assassino
Que
me
acabou,
dando-‐me
ao
corpo
vão
Esta
volúpia
de
ficar
no
chão
Fruindo
na
tabidez39
sabor
divino!
Espiando
o
meu
cadáver
ressupino,40
No
mar
da
humana
proliferação,
Outras
cabeças
aparecerão
Para
compartilhar
do
meu
destino!
Na
festa
genetlíaca
do
Nada,
Abraço-‐me
com
a
terra
atormentada
Em
contubérnio
convulsionador…
E
ai!
Como
é
boa
esta
volúpia
obscura
Que
une
os
ossos
cansados
da
criatura
Ao
corpo
ubiquitário41
do
Criador!
Pode-‐se
falar
que
é
a
morte
que
anima
as
pulsações
de
Eros,
na
medida
em
que
representa
a
violência
elementar
de
que
o
erotismo
necessita
para
se
manifestar:
a
de
nos
arrancar
da
obstinação
que
temos
de
ver
durar
o
ser
descontinuo
que
nos
somos.42
Posto
o
entrelaçamento
indissociável
entre
Eros-‐Tanatos,
o
interdito
da
morte
marca
também
o
interdito
erótico.
Os
tabus
erguidos
em
torno
da
morte
a
colocam
na
esfera
da
obscenidade:
assim
como
o
sexo,
ela
deve
ser
confinada
no
espaço
maldito.
E
é
36
Coréia: doença que se caracteriza por movimentos frequentes e convulsivos, mais conhecidos por dança de São Guido e
dança de São Vito.
37
ANJOS. A meretriz, 143.
38
ANJOS. Vox victimae, 192.
39
Tabidez: podridão.
40
Ressupino: deitado de costas, voltado para cima.
41
Ubiquitário: que está em toda a parte.
42
OLIVEIRA, 48.
14
15. exatamente
na
transgressão
desse
interdito,
deslizando
entre
o
horror
e
o
fascínio
que
o
erotismo
se
desvela,
revelando-‐se:
O
apelo
ao
mórbido,
dentro
dessa
perspectiva,
disfarça
inevitavelmente
um
desejo
erótico,
como
é
o
caso
de
determinados
textos
que,
centrados
na
violência
da
morte,
a
encenam
a
partir
de
cadáveres
em
decomposição,
corpos
ensanguentados,
ossos,
cartilagens
e
caixas
cranianas.
Por
trás
dessas
imagens,
insinua-‐se
um
erotismo
negro,
uma
sensualidade
as
avessas
que
reforçam
a
violência
e
o
caráter
ruptor
do
impulso
erótico.
Esse
erotismo
negro,
mórbido
e
recorrente
no
Eu,
é
o
que
se
vê
no
soneto
“Volúpia
mortal”:
Cuidas
que
o
genesíaco43
prazer,
Fome
do
átomo
e
eurítmico
transporte
De
todas
as
moléculas,
aborte
Na
hora
em
que
a
nossa
carne
apodrecer?!
Não!
Essa
luz
radial,
em
que
arde
o
Ser,
Para
a
perpetuação
da
Espécie
forte,
Tragicamente,
ainda
depois
da
morte,
Dentro
dos
ossos,
continua
a
arder!
Surdos
destarte
a
apóstrofes
e
brados,
Os
nossos
esqueletos
descarnados,
Em
convulsivas
contorções
sensuais,
Haurindo
o
gás
sulfídrico
das
covas,
Com
essa
volúpia
das
ossadas
novas
Hão
de
ainda
se
apertar
cada
vez
mais!44
O
sensualismo
mórbido
se
faz
presente
por
intermédio
de:
a)
ligação
entre
Eros
e
Tanatos;
b)
vocábulo
que
mistura
palavras
fúnebres,
eróticas
e
cientificas;
c)
imagem
carnavalizada
da
“vida”
subterrânea
dos
mortos
já
reduzidos
a
ossos;
d)
a
ênfase
dada
à
sexualidade
dos
esqueletos
e)
seleção
lexical
de
termos
eróticos,
desde
o
titulo
ate
o
final
do
texto;
f)
orgia
sepulcral
–
a
ardência
trágica
dos
ossos
se
mescla
às
convulsões
e
contorções
sensuais
das
ossadas
novas
dentro
das
covas.
Perseguindo,
ainda,
a
ideia
desse
sensualismo
mórbido,
detectamos,
no
Eu,
uma
“obsessão
pelo
sangue”,
um
certo
clima
vampiresco,
que
evidencia
uma
volúpia
perversa
43
Genesíaco: o mesmo que genético.
44
ANJOS. Volúpia imortal, 182.
15
16. semelhante
às
cenas
de
devoração
encontradas
em
“À
mesa”
e
em
outros
poemas.
Nas
palavras
de
Maria
Esther
Maciel
de
Oliveira,
O
comer,
como
integração
e
assimilação
do
corpo
desintegrado
do
outro,
e
uma
pratica
frequente
de
vermes
e
seres
humanos
encenada
na
obra
de
Augusto
dos
Anjos.45
Emblemático
neste
sentido
é
o
poema
“Os
doentes”,
em
que
o
erotismo
negro
evidencia
uma
dimensão
gozosa
da
morbidez
que
comparece
por
intermédio
da
necrofagia,
de
um
jantar
macabro
cujo
prato
principal
é
a
carne
humana
apodrecida
servida
pelos
próprios
defuntos.
Vejamos
agora,
uma
reelaboração
da
necrofagia
no
poema
“Solilóquio 46
de
um
visionário”:
Para
desvirginar
o
labirinto
Do
velho
e
metafísico
Mistério,
Comi
meus
olhos
crus
no
cemitério,
Numa
antropofagia
de
faminto!
A
digestão
desse
manjar
funéreo
Tornado
sangue
transformou-‐me
o
instinto
De
humanas
impressões
visuais
que
eu
sinto,
Nas
divinas
visões
do
íncole47
etéreo!
Vestido
de
hidrogênio
incandescente,
Vaguei
um
século,
improficuamente,
Pelas
monotonias
siderais...
Subi
talvez
às
máximas
alturas,
Mas,
se
hoje
volto
assim,
com
a
alma
às
escuras,
É
necessário
que
inda
eu
suba
mais!
Reelaborando
a
necrofagia,
a
transgressão
do
corpo
é
condição
para
a
transcendência
da
alma.
Neste
poema,
a
vivência
e
a
superação
do
horror
e
da
repugnância
são
condições
para
se
alcançar
o
êxtase.
A
infração
ao
proibido
é,
no
poema,
uma
forma
santificada
de
se
elevar,
pela
experiência
da
morte
e
da
violência,
acima
das
leis
que
asseguram
a
manutenção
da
vida.
Estranhamente,
a
devoração
do
corpo
morto
(degradação
da
matéria)
é
a
condição
para
que
se
alcance
o
transcendente,
com
o
todo.
Há,
sem
dúvida,
um
caráter
simbolista
nesta
45
OLIVEIRA, 48.
46
Solilóquio: monólogo.
47
Íncole: o mesmo que íncola, morador.
16
17. ideia.
Ele,
entretanto,
é
mínimo,
pois
o
simbolismo
consiste
tão-‐somente
na
elevação,
na
preocupação
com
o
alto,
com
o
puro,
com
o
belo.
Na
obra
de
Augusto
dos
Anjos,
em
momentos
de
intenso
terror,
próprios
de
situações
de
necrofagia,
surge,
ora
um
humor
inesperado,
ora
um
erotismo
extravagante,
ora
uma
espiritualidade
inefável,
ora
tudo
se
mistura
carnavalizadamente.48
Em
meio
às
obsessivas
cenas
de
devoração,
destaca-‐se
a
morte,
personificada
em
carnívora
assanhada
e
envolvida
em
trajos
pretos
e
amarelos,
cujo
papel
desempenhado
no
mundo
resume-‐se
ao
de
comer,
como
se
vê
na
estrofe
a
seguir
do
“Poema
negro”,
em
que
a
morte
aparece
como
uma
mulher
devoradora
e
obscena:
É
a
Morte
–
esta
carnívora
assanhada
–
Serpente
má
de
língua
envenenada
Que
tudo
que
acha
no
caminho,
come...
–
Faminta
e
atra
mulher
que,
a
1
de
Janeiro,
Sai
para
assassinar
o
mundo
inteiro,
E
o
mundo
inteiro
não
lhe
mata
a
fome!49
Observando,
ainda,
o
modo
como
o
sujeito
poético
se
relaciona
com
o
erotismo,
cumpre
informar
que
ele
tem
uma
visão
paradoxal
em
relação
aos
impulsos
eróticos.
Em
“Queixas
noturnas”
e
em
“Versos
de
amor”,
há
uma
negação
do
prazer
e
do
amor,
um
verdadeiro
asco
à
volúpia:
Sobre
histórias
de
amor
o
interrogar-‐me
É
vão,
é
inútil,
é
improfícuo,
em
suma;
Não
sou
capaz
de
amar
mulher
alguma
Nem
há
mulher
talvez
capaz
de
amar-‐me.
O
amor
tem
favos
e
tem
caldos
quentes
E
ao
mesmo
tempo
que
faz
bem,
faz
mal;
O
coração
do
Poeta
é
um
hospital
Onde
morreram
todos
os
doentes.50
Incapaz
do
erotismo
tradicional,
o
poeta
nega
veementemente
a
expansão
do
lirismo
romântico:
48
OLIVEIRA, 70.
49
ANJOS. Poema negro, 107.
50
ANJOS. Queixas noturnas, 114.
17
18. Parece
muito
doce
aquela
cana.
Descasco-‐a,
provo-‐a,
chupo-‐a...
ilusão
treda!
O
amor,
poeta,
é
como
a
cana
azeda,
A
toda
a
boca
que
o
não
prova
engana.
Porque
o
amor,
tal
como
eu
o
estou
amando,
É
Espírito,
é
éter,
é
substância
fluida,
É
assim
como
o
ar
que
a
gente
pega
e
cuida,
Cuida,
entretanto,
não
o
estar
pegando!
É
a
transubstanciação
dos
instintos
rudes,
Imponderabilíssima
e
impalpável,
Que
anda
acima
da
carne
miserável.51
No
trecho
citado,
emerge
uma
concepção
essencialista,
não-‐erótica
do
amor.
Muito
próxima,
portanto,
da
concepção
de
transcendência,
tipicamente
simbolista.
Por
outro
lado,
em
“Hino
à
dor”,
emerge
uma
volúpia
do
asco
–
o
prazer
e
o
gozo
são
extraídos
exatamente
dos
aspectos
negativos
da
existência:
não
só
da
morte,
mas
também
da
dor
e
do
sofrimento:
Dor,
saúde
dos
seres
que
se
fanam,
Riqueza
da
alma,
psíquico
tesouro,
Alegria
das
glândulas
do
choro
De
onde
todas
as
lágrimas
emanam...
És
suprema!
Os
meus
átomos
se
ufanam
De
pertencer-‐te,
oh!
Dor,
ancoradouro
Dos
desgraçados,
sol
do
cérebro,
ouro
De
que
as
próprias
desgraças
se
engalanam!
Sou
teu
amante!
Ardo
em
teu
corpo
abstrato.
Com
os
corpúsculos
mágicos
do
tato
Prendo
a
orquestra
de
chamas
que
executas...
E,
assim,
sem
convulsão
que
me
alvoroce,
Minha
maior
ventura
é
estar
de
posse
De
tuas
claridades
absolutas!52
A
POÉTICA
DA
NEGATIVIDADE
Detendo-‐se
na
concretude
do
corpo
e
da
linguagem,
o
sujeito
poético
deseja
mostrar
a
51
Idem. Versos de amor, 84-85.
52
Idem. Hino à dor, 151.
18