2. ecoa no título da exposição Lar Fantasma, tanto pelas palavras como pelo que é
representado. Concentrando-me nas palavras «fantasma» e «morte» é fácil e óbvio
regressar aos primórdios da fotografia como retrato exacto do real, contudo, apesar de
todos os espectros indexados ao carácter deíctico da fotografia, aqui o retrato em pose
inserido no quotidiano é vida, sobretudo na última série: Morte. Não é o retrato de uma
pequena vida qualquer. É o rasto fantasma destas vidas mortas ou encarceradas a bater
no rosto da minha humanidade. Sendo uma humanidade partilhada, as noções de arte e
identidade que muitas vezes, no campo da arte palestiniana, se têm confinado a aspectos
regionalistas, são ultrapassadas pela mise en abîme, a narrativa visual encaixada, em
cada fotografia. É-me dado a ver o que é visto no espaço do quotidiano palestiniano. A
linguagem deíctica é ligeiramente deslocada, tornando-se refugiada da sua própria
sintaxe.
Uma casa, um lar, é um espaço íntimo, mas nestas fotografias a noção de lar é
alargada ao espaço social. O espaço colectivo palestiniano encaixa nos seis princípios
adiantados por Michel Foucault2 e, na actualidade, tendo em conta as circunstâncias
criadas no terreno, parece-me acertado dizer que o espaço colectivo palestiniano tornou-se
a heterotopia por excelência3. As fotografias de Ahlam Shibli levam-me a percorrer
ruas, lojas e lares povoados pelas pessoas que os habitam. Entre interiores de casas e
ruas do campo de refugiados de Nablus, o espaço íntimo é o espaço colectivo onde o
corpo palestiniano ausente resiste ao ser exposto à memória e ao ser continuadamente
actualizado.
Reposicionar-me diante da última série de fotografias de Ahlam Shibli? Como
me hei-de posicionar sem interromper o pensamento múltiplo - aquele que me leva a
objectar o tratamento visual e político veiculado pelos media dominantes; aquele que
me leva a relembrar a realidade contemplada no terreno, na Cisjordânia, em 2011;
aquele que me leva a interligar a História do Médio Oriente, a História do Ocidente, as
culturas, as vidas das pessoas – ou a simples percepção diante da recepção destas
imagens? Impossível. O olhar é múltiplo e já vem contaminado, carregado de vidas,
representações e pequenas percepções. Não quero ver as imagens de Morte apenas
como a expressão artística e política de uma identidade. Não quero? Mas não posso
descontextualizá-las, porque a realidade palestiniana é esse corpo colectivo em contínua
Nakba e porque o metatexto que acompanha cada uma das imagens me impede de não
ver neste trabalho o olho de uma artista, mulher, palestiniana. Três aspectos que a
cultura e o pensamento ocidental defendem como sendo «minorias» e que ora
descentram todo um trabalho artístico, ora o confinam ao particular como uma
excrescência rara. Entro e saio, entro e saio destes pensamentos, porque afinal de contas
o pensamento é rizomático.
O meu olhar é confrontado com um mapa do espaço íntimo do corpo colectivo
palestiniano. Partindo de uma contextualização panorâmica sobre os campos de
refugiados em Nablus, percorro espaços onde se repetem os gestos do quotidiano; quer
seja em casa, na sala, onde há sempre uma vida a arrumar, um espanador a repartir o pó;
quer seja na rua, onde os passos traçam caminhos, distâncias ou percursos; na loja, no
2 Michel Foucault (2009). Le corps utopique. Les Heterotopies. Europe: Nouvelles Éditions Lignes.
3 Consultar a primeira e próxima publicação da Casa Viva: a tradução colectiva do texto Le corps
utopique. Les Heterotopies de Michel Foucault.
4. uma história sempre adiada que nunca transita para lá do tempo histórico. Passado mais
de um século, para alguns desde 1881, ou revogados 66 anos, se partirmos de um marco
histórico amplamente documentado e registado nos anais das nações, o povo
palestiniano continua numa solidão premente. Está murado numa imensa solidão
mundial espelhando-se nos olhos mudos pasmados diante da nudez das imagens que nos
chegam e a mudez inculcada pela força da palavra retórica em que os argumentos se
nutrem de paradoxos, ou de lógicas retorcidas. Então a nudez desta linguagem deíctica é
como uma pedra aos olhos da humanidade e a imagem muda do ausente é povoada
pelos gestos e os sons do quotidiano.