1. . . . I . . .
Ainda estou meio adormecido quando sinto mãos for-tes
me segurando.
Tento espernear, mas parece que estou enroscado em roupas de
cama, e, no minuto seguinte, sou suspenso e quem me carrega está
andando depressa; bato bump-bump-bump em seu peito.
Ele cheira a cerveja, cavalos e suor. E minha bochecha está so-
cada contra um metal frio — um peitoral —, por isso, sei que é um
soldado.
Deve ser um dos rebeldes. Só que eu não achava que os rebeldes
fossem soldados. Achava que eram uma horda de camponeses fe-
dorentos da Cornualha, com facas de açougueiro e ferramentas de
fazenda como armas.
— Me largue! Me...
O homem muda o aperto, uma luva comprime minha boca.
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Ela cheira mal.
— Uoou! Não reaja, senhor. Está perfeitamente a salvo.
As palavras são um truque, é claro: sei que estou prestes a mor-
rer. Os rebeldes vieram me buscar porque sou ( lho do rei e querem
matar a mim e a meu irmão e a meu pai. Isso para que mais alguém
seja rei.
— Soffrr ednnf mefff!
— Ordens de sua mãe, senhor.
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2. — Mmmttrr.
— Não, não sou mentiroso, senhor, e precisa parar de espernear.
Puta merda! Perdoe meu linguajar, senhor, mas seus dentes são meio
a( ados.
Na luta, o cobertor no qual estou enrolado cai da minha cabeça.
O soldado me segura transpassado em seu corpo, olhando agora
para frente, um dos braços agarrado em volta das minhas coxas,
e o outro debaixo dos ombros, a mão franzindo minha boca, aper-
tando mais que antes. Meus pés estão livres para chutar, mas estão
fazendo contato com nada além de tapeçarias ou — dolorosamente
— paredes, portas e colunas.
Pelo menos, nos intervalos de esforço, posso ver aonde estamos
indo. Estou na Coldharbour — a residência londrina de minha avó
—, e o soldado me carrega pela grandiosa escadaria da frente abai-
xo. Está escuro na casa, mas a espaçosa janela pela qual passamos
irradia um azul suave: o amanhecer deve estar próximo. Quando
chegamos ao pé da escada, vejo uma luz laranja saindo de tochas,
passando pela porta, e entrando no grande salão, piscando, enquan-
to ( guras escuras movem-se apressadamente por ali, bloqueando e
desbloqueando a luz. Serão criados ou mais soldados? E onde estão
minha avó e minha mãe? Será que também foram capturadas?
— Estamos quase chegando — diz o soldado, ao virar para o cor-
redor em direção aos fundos da casa. — Em um instante, estaremos
lá fora, senhor. É realmente importante que ( que quieto.
Portanto, inspiro pelo nariz, enchendo os pulmões o mais pro-
fundamente que o pânico me permite, e em seguida — quando o
soldado atravessa uma porta para o ar frio do pátio — grito o mais
alto que consigo na mão silenciadora.
— Soffrro! Sofrro! Almmmm mm ammm!
Até mesmo eu sei que o som é pateticamente baixo, perdido no
amplo espaço úmido. E — ah, misericórdia — ali fora, há soldados
por toda a parte.
Eles não vão me levar; não vão; torço o corpo e me debato o
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quanto posso.
— Ei, não chute o cavalo, senhor. Não é justo com o pobre animal.
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3. Por um momento, penso que vou ser arremessado de barriga
em uma sela, o modo pelo qual, segundo Compton, prisioneiros
ou cadáveres devem ser carregados, mas o soldado empurra minha
perna para cima e caio sobre meu traseiro — severamente, mas do
modo certo.
Ouço o soldado dizer:
— Sinto muito, senhora. Ele estava dormindo quando o apanhei.
Ficou muito agitado. — Expira um pouco. — Forte para um peque-
nino, não?
E um braço me envolve ( rmemente pelo meio, puxando-me para
trás contra um corpo, quente e ( rme, e uma voz me fala ao ouvido:
— Acalme-se, Hal. Sou eu. Estamos com pressa, apenas isso.
Minha mãe.
Quero me aconchegar a ela e chorar aliviado. Não entendo o que
está acontecendo, meu coração ainda bate forte, os pulmões e o es-
tômago continuam inchados, mas, se posso me agarrar a ela, consi-
go suportar.
Enquanto minha mãe puxa rapidamente meu cobertor, cobrindo
minha cabeça como um capuz e envolvendo-o ( rmemente em meu
corpo, eu me sento, aturdido por um momento, olhando para os
cavalos que lotam o pátio. Eles pisoteiam, relincham e sacodem a
cabeça, os arreios tinindo. Cada um com um soldado na sela.
Então pergunto, numa voz baixa e áspera que não soa como a
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minha:
— O que está acontecendo, mamãe? Estamos fugindo?
— Não, meu bem. Apenas nos mudando para um lugar mais se-
guro. Segure-se. Aqui. — Ela dá uma palmadinha na parte da frente
da sela. Eu a agarro e olho para trás, tentando vê-la com o canto do
olho. Mas minha cabeça vira e o capuz permanece onde está, de
modo que consigo enxergar com apenas um olho, e nada mais que
o contorno de seu rosto.
Ela também está encapuzada, numa capa preta. Consigo ver a
ponta de seu nariz e parte da face. Naquela luz estranha — ainda
não amanheceu, mas não é propriamente noite —, a pele de minha
mãe parece azul.
Ao me virar, ela envolve meu corpo, para ajustar as rédeas, e diz:
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4. — Vamos, capitão. Passo ( rme.
Cascos tropeiam nas pedras do pavimento quando soldados
montados formam uma proteção à nossa volta. Então partimos,
ocupando todo o portão do pátio ao sair e virando à direita, ala-
meda acima, afastando-nos do rio. Embora seja verão, uma névoa
abafadiça rasteja para a rua, vindo da água atrás de nós, e o ar tem
gosto de umidade.
A alameda é estreita e escura, comprimida entre paredes pretas.
Os soldados que cavalgam à frente carregam tochas 8 amejantes.
Quando viramos novamente à direita, para uma rua mais larga, eles
se espalham para nos cercar.
Há algo emocionante em estar na rua a esta hora, mas sei que
ninguém se muda durante a noite por um motivo agradável. É a se-
gunda vez que tivemos de nos mudar em apenas poucos dias.
Primeiro, viemos de Eltham, arredores de Londres, para a
casa da minha avó, aqui, porque ( ca dentro da proteção das mu-
ralhas da Cidade de Londres. Agora, estamos nos mudando nova-
mente. Da última vez, viajamos à luz dia. Agora mal amanheceu. E
nem mesmo houve tempo de me vestir.
Meus pés estão descalços e frios: empurro o esquerdo para trás,
en( ando-o debaixo das saias de minha mãe, o direito se curva na
direção do corpo quente do cavalo, tentando abraçá-la.
Acima de minha cabeça, ouço minha mãe dizer severamente:
— Não vamos mais depressa que isto. Atrairemos muita atenção.
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Não quero espalhar pânico.
A voz de um homem — um dos guardas — responde, mas não
capto as palavras.
Ela fala:
— Disseram-me que o plano dos rebeldes era marchar ao ama-
nhecer. Não estarão perto da Cidade de Londres por umas duas
horas, certo?
O homem torce as mãos nas rédeas, e seu cavalo vem para mais
perto do nosso.
— Basta apenas um, senhora, que tenha cavalgado à frente.
Qualquer vão de porta, qualquer entrada de beco pode esconder
um homem com...
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5. — Já entendi.
Ela o interrompeu de propósito. Vejo-o me olhar de relance, em
seguida deixa seu cavalo ( car novamente para trás.
O homem deve ser o capitão da guarda; um instante depois,
ouço a mesma voz vociferar uma ordem, e cada um dos cavalos
apressa o passo.
Embora batendo os dentes, consigo dizer:
— N-Nós vamos ser mortos, mamãe?
— Não, claro que não. — Ela parece ligeiramente impaciente. —
Aonde estamos indo, ( caremos a salvo.
Mas, como disse o homem, basta apenas um.
Puxando o cobertor do rosto, mantenho vigilância — através de
brechas entre os soldados de ambos os lados —, de olho em vãos de
portas e entradas de becos. Em qualquer lugar onde a névoa se acu-
mula e ( ca mais espessa: em qualquer lugar onde um homem con-
segue se esconder. Aos passarmos por um monstruoso amontoa do
em forma de prédio, a névoa engrossa numa forma que me parece
humana, agachada num canto da parede. Meu coração sobe até a
garganta. Devo gritar para minha mãe? Gritar para os guardas? Mas,
então, a forma se movimenta e a( na, e desaparece no ar escuro. Ape-
nas névoa, nada de assassino. Consigo respirar novamente.
Uma abertura entre os prédios se escancara subitamente à di-
reita: a entrada para o cais. O rio parece preto-oleoso e vasto; então
desaparece, quando prédios novamente bloqueiam a visão. Ratos
debandam de um monte de lixo quando passamos. Lojas e casas,
agora, exibem frestas de luzes entre as venezianas dos pavimentos
superiores, que se projetam para a rua; criados acendem lareiras
nos quartos dos patrões, como Compton faz para mim. Mas pessoas
maltrapilhas já estão nas ruas. Olho-as de relance: sujas como os
ratos, deslizando por sarjetas limosas para se apertarem contra as
paredes das casas quando passamos. Elas me metem medo, com
seus olhares vazios e rostos enrugados.
Um sino começa a tocar. Não para. Cachorros, acorrentados em
pátios invisíveis, latem e ganem. Agora há outro sino, em algum
lugar mais distante. E a voz de um homem, fraca no ar frio:
— Todos os homens às armas!
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6. Pés correndo, em algum lugar atrás de nós. Outra voz, mais
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perto:
— Às armas, às armas! Guarneçam as paredes.
Minha mãe murmura alguma coisa que não capto. Ela usa o cabo
do chicote, e nosso cavalo dá uma guinada adiante. Os guardas à
volta igualam seu passo.
A princípio, não o vejo: o homem que corre à nossa esquerda,
direto por entre os cavaleiros, como se estivesse atravessando terre-
no livre. Mas, quando viro a cabeça, um rosto assoma. Está perto o
bastante para eu ver seus olhos injetados e a mão, que tenta agarrar,
com unhas tisnadas, quebradas. Ele me alcança, dizendo algo ur-
gente, aos berros.
O cavalo de minha mãe agita a cabeça, assustado, e tenta mudar
de direção. Agarro-me à sela, curvado, desesperado para não escor-
regar. No mesmo momento, o soldado mais próximo ataca violenta-
mente com a base de sua lança.
O homem cai. Fica no chão, meio que pisoteado, e passamos por
ele, já a meia dúzia de prédios adiante.
— Quem era aquele? — guincho.
— Um mendigo bêbado, senhor — diz o capitão. — Só isso.
Mas me sinto tão aterrorizado que quero vomitar.
Depois disso, os guardas cavalgam em formação mais fechada
ao nosso redor. Finalmente, chegando ao ( m daquela longa rua, vi-
ramos à esquerda e passamos por algumas velhas ruínas de pedra.
O céu agora está listrado de rosa-alaranjado. Contra ele, à nossa
direita, vejo muralhas cinzentas, camadas delas, erguendo-se uma
atrás da outra, e, mais além, as torres de uma enorme fortaleza
caiada. E sei onde estamos. Aquele é o mais antigo baluarte de Lon-
dres: a Torre.
Adiante de nós, a rua segue colina acima e se alarga em imensos
espaços verdejantes. Viramos à direita, atravessamos as áreas mais
baixas da encosta, então minha mãe declara:
— Aqui. Graças a Deus.
Chegamos a uma entrada feita de tijolos, as arestas ásperas e
novas. Paramos. O capitão da guarda fala com os porteiros. Em se-
guida, os cavalos movem-se novamente, e passamos por um peque-
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7. no espaço, até o portão seguinte. É mais velho, esse: um arco feito
de imensos pedaços de pedra gasta, fechado por uma velha porta
de madeira.
— Está vendo como as paredes são grossas, Hal? — observa mi-
nha mãe, quando a porta é arrastada para se abrir para nós. A voz
dela soa mais leve, quase alegre.
Olho.
— Conte as pontes levadiças. Conte os portões. Ninguém pode
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nos fazer mal aqui.
Conto-os. No terceiro portão, há uma ponte levadiça abaixada,
mas também estão abaixados os dois portais gradeados de ferro.
Os guardas erguem apenas um de cada vez, e temos de esperar no
espaço entre eles, enquanto, com fortes ruídos rangentes, as mani-
velas são giradas — para fechar o portal gradeado atrás de nós e
depois abrir o da frente.
Portão número quatro. Parece uma enorme boca negra quan-
do nos aproximamos — e imagino ser devorado por um monstro.
Novamente, há uma ponte levadiça, novamente um portal grade-
ado de ferro abaixado, protegendo uma grande porta guarnecida
de tachões. Esperamos diante dela, e vejo através de suas frestas
a luz laranja das tochas dos guardas ( car mais brilhante à medida
que se aproximam pelo outro lado. Correntes chocalham, e enormes
ferrolhos guincham e arranham quando são puxados — e arranham
novamente quando são empurrados de volta às nossas costas.
Ninguém pode nos fazer mal aqui, disse minha mãe. Acredito nela.
Como é possível este lugar ser tomado? Minha mãe nada diz agora,
mas, de algum modo, sei que ela ( ca mais feliz a cada portão que
atravessamos.
No quinto, ao esperarmos novamente por um portal ser levanta-
do, ouço um rouco grasnido de pássaros e olho para cima. Enormes
formas negras volteiam no céu que se ilumina.
Então, de repente, a pele da minha nuca se arrepia. É como um
instinto animal: sinto que estou sendo observado. Não por minha
mãe, não pelos guardas — por alguém mais.
Acima do centro pontudo do arco da passagem há uma janela.
Antes de ter de fato olhado para ela, quando meus olhos desceram
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8. dos pássaros para o prédio, creio que vislumbrei alguma coisa: o
borrão de um rosto pálido se movimentando; um oval branco con-
tra a treliça. No momento em que olho diretamente para a janela,
ele some.
O portal sobe, e os cavalos começam a se mover, suas ruidosas
passadas ecoando ao entrarmos sob o teto abobadado. Sinto-me rí-
gido por ter agarrado a sela com tanta força e agora estou tremendo,
o corpo todo arrepiado, o que torna difícil manter o equilíbrio.
Não é apenas o frio que me faz tremer. Um pensamento assus-
tador surge em minha cabeça: e se, a( nal de contas, o perigo não
estiver lá fora? E se houver algo ali dentro esperando por minha
chegada? E se os ferrolhos que se fecham atrás de mim estiverem
me trancando aqui dentro com ele?
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