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Isaac Smith
Da Tradição Antiga:
“Juramento Angular: A mente é o refúgio inviolável de
todo ser; não deve ser tocada, nem alterada sem consenso
ou decisão superior.”
Prólogo
O sol mergulhava suavemente no horizonte, num final de
tarde em que uma suave brisa acariciava o bosque, no limite
leste de Mirra. No gramado às margens do lago do Bosque da
Lembrança, as duas amigas brincavam na surdina, porque o pai
de Rebeca já a advertira para não brincar com os filhos dos ser-
viçais.
Como uma presença intangível, a estátua de Carmem, a rai-
nha que se entregou a seus inimigos para que seu reino tivesse
paz, ergue-se numa fonte num formato abandejado, alimentada
pela água do lago.
As bonecas de algodão e tecido repousavam em camas de
grama.
– Um dia sonhei com esse lago – disse a pequena Rebeca.
– Você estava nele.
– Eu? Eu nem sei nadar! – a amiga respondeu numa risada.
– Você estava nadando de barriga para baixo.
A amiga sorriu mais uma vez enquanto erguia sua boneca.
Rebeca se levantou, virando-se para pegar uma das roupinhas
numa caixa de madeira ao lado delas, mas seus pés vacilaram:
sentiu uma leve tontura, que evoluiu rapidamente para uma dor
de cabeça severa. Ela ouviu um sussurro – um pedido fraco e
longe de ajuda.
“Tônia?”, chamou pela amiga.
Rebeca olhou para trás, onde Tônia devia estar sentada,
mas não viu ninguém. Ergueu-se sobre seus próprios tornoze-
los, tentando compensar sua estatura baixa para aumentar seu
campo de visão.
“Rebeca!”
O grito penetrante ecoou tão forte que Rebeca pensou tê-lo
ouvido dentro de sua própria mente. Num salto, chegou até a
borda do lago e viu sua amiga dentro do lago, se debatendo e
lutando para chegar à beira, mas em vão.
Rebeca começou a gritar por ajuda, mas seus maxilares se
encheram de tensão e nada mais podia sair de sua boca. Era
como se litros de água estivessem passando por sua garganta,
impedindo-a de gritar e respirar.
Sua amiga se debatia, cada vez mais fraca. Rebeca sentiu a
força de seus músculos sumir, obrigando-a a se ajoelhar.
“Rebeca! Rebeca me ajuda!”
Com os pulmões paralisados, Rebeca agarrou-se ao grama-
do como se, a qualquer momento, algo a arrebataria para o céu.
Os braços de Tônia não se movimentavam mais. Uma po-
derosa escuridão envolveu os pensamentos e a consciência de
Rebeca – ela sentia a autoridade da morte consumindo-a.
– Rebeca! – a voz grossa de seu pai a alcançou como uma
forte trovejada.
A menina balançou ligeiramente a cabeça num sinal negati-
vo enquanto era alavancada para os braços dele. De soslaio viu
o corpo inerte da amiga boiando.
– Ela vai ficar bem! – disse o pai, virando a cabeça da filha
contra seu ombro.
Com um olhar perdido em si mesma, Rebeca respondeu:
– Não, papai ela já está morta… eu senti.
Ninguém percebeu ou deu importância para três penas re-
pousadas no gramado – uma delas terminava de cair. Penas
brancas e longas, com as pontas douradas.
– – – – –
Rovena deixou-se corromper pelo sabor proibido do poder
banido. Por anos ela sentiu a presença dele, envolvendo-a, cha-
mando por seu nome nos cantos mais remotos de sua mente.
Impregnada de poder, nada mais era uma barreira forte o
bastante para pará-la. A força que a manipulava concedeu-lhe
um exército de putrefatos para vingar seu passado.
Teleportada para dentro dos corredores secretos do Templo
da Mente por um dos poderosos príncipes de seu exército de
rebeldes, Rovena varreu todas as direções com sua telepatia –
em frações de segundo, seu soldado monstruoso, de carne apo-
drecida e fétida, já sabia onde estava cada soldado templário e,
teleportando-se de corredor em corredor, de entrada em entra-
da, traspassou um a um com sua foice.
Os últimos dois soldados mortos guardavam uma porta re-
donda de ferro maciço, da altura de dois homens. Na porta,
uma serpente engolindo a própria cauda estava entalhada.
– Consegue nos levar lá dentro? – perguntou Rovena a seu
companheiro.
– Não, está protegido por algum campo de energia.
Rovena fechou os olhos e, ao abri-los, confirmou:
– Sim, nem um pensamento pode entrar lá. Esse é o cofre
certo.
Rovena estendeu a mão e as paredes estremeceram. A pesa-
da porta começou a ranger sobre os efeitos de sua telecinesia.
Os sons do ferro se contorcendo percorreram todos os corredo-
res que formam o lugar subterrâneo e rachaduras rasgaram as
paredes adjacentes ao cofre; por fim, a porta cedeu e foi arran-
cada do lugar num alto estrondo e tremor.
– Posso ouvir, os templários da divisão do corpo estão vin-
do, guerreiros de elite! – a criatura de carne apodrecida alertou.
– Virão para nossa glória.
Rovena pegou uma das tochas fixadas na parede à sua di-
reita e entrou no cofre. No centro da grande sala escura flutua-
va uma pedra esférica, mas um pouco ovalada, semelhante a
uma pedra ônix.
A marcha dos templários de elite fazia os corredores treme-
rem, mas ela não demonstrou nenhum pouco de medo.
A mulher estendeu a mão e a pesada gema saiu do campo
de suspensão, vindo em sua direção. Antes que pudesse tocar a
pedra, uma névoa negra saiu da joia em dedos espiralados e to-
mou conta da mão da mulher, penetrando em sua carne. Seus
olhos perderam o brilho e sua pele adquire um tom acinzenta-
do.
Com arcos e espadas nas mãos, equipados com suas impo-
nentes armaduras douradas, os templários apareceram como
um pequeno exército na extremidade oposta do corredor, en-
curralando-os dentro do cofre.
“Não, Basã!”, Rovena disse a seu ajudante quando perce-
beu que ele partiria contra os soldados.
De repente, uma voz ecoou do nada por todos os cantos
dos corredores secretos:
“Tudo que eu tenho será seu. Sentará no meu trono até
que eu volte e depois sentará à minha direita, meu arauto e mi-
nha libertadora.”
“Meu corpo e meu sangue servirão ao poder ascendente
sobre o horizonte vigente. Faça de mim seu cetro e sua espa-
da.” – respondeu Rovena.
A pedra que flutuava há centímetros da mão dela finalmen-
te lhe tocou, gerando uma explosão de energia maciça, que de-
sintegrou os Templários, suas armas e armaduras. As paredes
desmoronaram e, antes que o teto da sala caísse sobre eles,
Basã os teleportou de lá.
– – – – –
Numa sala sem janelas, com apenas uma pequena porta,
sete cavaleiros vestidos de preto, cujas faces estavam tampadas
por máscaras de tecido grosso igualmente negros, juntaram-se
numa reunião secreta.
– Os anciãos da Academia conseguiram sentir a energia da
joia se expandindo no corpo da etim que a roubou.
– Não é possível alguém suportar todo aquele poder sem
morrer em segundos! O que aquela mulher é?
– Um Arauto da Noite se preparando para libertar seu mes-
tre.
Todos olharam para o cavaleiro.
– Nós devíamos ter guardado o fragmento desde o início! –
resmungou um outro.
– Me-Sik, você sabe que essa decisão não coube a essa or-
dem, ou a qualquer tinoviano.
– Os templários protegeram a joia por quatrocentos anos.
E, além disso, nós também estamos no Templo da Mente.
– Seja como foi o passado, Serugue não errou em sua esco-
lha, sua sabedoria transcende os séculos. Nenhuma geração
dessa ordem se arrependeu de segui-lo e não seremos nós que
faremos isso agora.
O resmungador se virou para a parede e voltou à conversa.
– Está bem, eu fugi da perspectiva correta, me desculpem.
Temos de pensar num plano efetivo. Todas as esferas estão em
perigo. Não há como livrar Tinóvia da guerra desta vez e Mai-
rus talvez já esteja derrotado antes da batalha começar.
– Me-Siks, não veem? Esse deve ser o tempo em que a pro-
messa de Serugue a Mairus se cumprirá, talvez estejamos ven-
do os tempos mais gloriosos prometidos na Tradição Antiga! –
ele olha para seus amigos, mesmo com todas as expressões co-
bertas por máscaras. – O objetivo da existência dessa ordem é
ajudar quando esse tempo chegar!
Todos sopesam a que a voz grave disse.
– Uma das esferas está sem um de nós há muito tempo –
ele continua. – Elegeremos um cavaleiro entre os humanos. To-
dos concordam?
Em unânime, as mãos foram levantadas.
– O vidente deve ser consultado? – pergunta um deles.
– Não, o futuro parece bem definido e não queremos reve-
lar sua localização ao Sends Zurx. Me-Siks, a Noite está voltan-
do. Que o Trono de Luz e Ouro nos ajude!
Capítulo 1
Alua branca se contrasta com a baixada de um certo vale,
na beirada do Grande Deserto, onde o sangue dos soldados re-
ais tingem o chão num vermelho abundante. O grito de vitória
dos rebeldes reverbera em todas as direções, num tom triunfal
– a poderosa dinastia Mairus foi derrotada.
“O Sends Zurx não precisa de escravos matem todos!”, or-
dena Rovena, a líder do exército rebelde, de cima de sua qua-
driga puxada por cavalos mentalmente dominados. À sua or-
dem só escapam três: ela ordena que recolham o rei e mais dois
de seus soldados. Quando dois sotoruns – os de carne podre –
os jogam aos pés dela, a etim estende a mão e, telecineticamen-
te, puxa a espada do rei para si – uma bela espada etínica, de
lâmina fina, branca e cintilante.
O chão treme enquanto os pesados bisões bípedes cruzam o
campo de batalha, procurando entre os corpos espalhados no
chão aqueles que ainda conseguem respirar. Ao encontrá-los,
descem sobre eles as pesadas lâminas de seus machados enor-
mes.
“Tranquem esses três até o dia amanhecer”, a líder ordena
aos sotoruns. Mairus e seus dois guerreiros são levados para
uma tenda, onde suas armaduras são retiradas e eles ficam ape-
nas com suas roupas exteriores. Prendem o rei a uma corrente
cujas argolas são traspassadas nas panturrilhas dele e ligadas ao
mastro central da tenda.
Aos guerreiros – um tigre bípede, forte e ágil e o outro um
anão – eles somente acorrentam um ao outro e juntam-nos ao
mastro central da tenda.
Os barulhos normais da noite são abafados pelos golpes do
que parecia ser um pesado martelo batendo constantemente em
metal e madeira – sons que deixam Mairus e seus parceiros de
cárcere angustiados, pois estão certos que aquilo, por fim, seria
para eles.
– Nossa luta foi honrosa, vocês foram bravos soldados e eu
preciso retribuir o que fizeram por mim.
Os dois procuram pela face do rei seguindo o único raio de
luz que entra por um fino rasgo na tenda.
– Rovena mandou matar todos os outros, mas preservou
vocês dois. Ela os usará contra mim. Eu não consigo mais ler a
mente dela, mas prever não é muito difícil: ela vai deixar vocês
viverem em troca de alguma coisa.
– Servidão! – diz o tigre.
– Toda Tinóvia está subjugada por ela partir de agora, to-
dos a servirão, de um jeito ou de outro. Não será traição se vo-
cês aceitarem esse possível trato porque também surgirão re-
beldes contra Rovena, vocês poderão guiá-los… vocês poderão
ajudar meu filho a recuperar nosso trono.
O silêncio palpável é quebrado pelo tigre:
– Senhor, lutamos do seu lado, e ainda estamos aqui. A
guerra não terminou para mim. Não darei essa última vitória a
ela.
– Seu filho será ajudado, mas não por nós. Ele encontrará
muito mais que dois soldados – diz o anão das terras do leste. –
Devemos terminar em honra, como o senhor disse.
Aos primeiros raios de sol, dois etims – seres da mesma
raça do rei Mairus, porém esses sem habilidades mentais –
abrem a tenda e soltam os três prisioneiros. Primeiro o tigre e o
anão são levados e depois conduzem Mairus, puxando-o pelas
correntes traspassadas em suas pernas, fazendo-o deixar um
rastro de sangue no chão.
O exército rebelde se ajuntou de um lado e de outro, for-
mando um corredor desde a saída da tenda até sua líder, que
está com um olhar irredutivelmente imponente, trajando um
vestido escarlate encrustado de pedras vermelhas e de pé num
elevado de rochas empilhadas. Estandartes estampados com a
zurx foram colocados dos dois lados do amontado de pedras.
Duas toras de madeira projetam-se verticalmente numa
parte do empilhado de rochas. No topo de cada uma passa uma
pesada corrente e do lado de cada uma há uma roda, também
de madeira, para enrolar as correntes.
– Tragam ele até mim! – ordena Rovena.
Os dois etims que puxaram Mairus até a saída da tenda o
conduzem pelo corredor de soldados, onde ele é vaiado e escar-
rado até a metade do caminho, quando Rovena estende a mão
e, telecineticamente, arranca da cabela dele a coroa e a lança
para os soldados.
“Tirem as roupas exteriores dele!”, ela diz.
Um punhado de soldados furiosos se juntam em cima de
Mairus. Nem seu cabelo é poupado, cortado por lâminas de es-
padas brandidas em fúria – o que lhe dá cortes profundos em
seu couro cabeludo.
Apenas com uma faixa de linho cobrindo seu quadril, en-
volvendo sua virilha e partes das coxas, Mairus chega aos pés
de Rovena. Os etims que o conduzem puxam as correntes cra-
vadas em suas canelas, obrigando-o a se ajoelhar perante a lí-
der.
Em passos curtos, chega até ele e o encara.
– Vocês disseram que esse momento jamais voltaria a
acontecer – rosna ela.
– Fomos pretensiosos, assim como você é agora – Mairus
tenta abrir um dos olhos por onde uma corrente de sangue pas-
sa, vinda dos talhos em sua cabeça.
– A minha pretensão é a favor de nosso povo. Sua dinastia
condenou Tinóvia à morte, mas eu a livrarei de toda dor – ela
inclina a cabeça enquanto fala, encarando o rei profundamente
no olhos, contendo todo o ódio para não matá-lo naquele mes-
mo instante.
– Você não sabe com o que está lidando – Mairus não foge
ao olhar dela, reparando em seus olhos sem brilho. – Não…
você sabe sim. Ele te dominou e nem preciso ler sua mente
para ter certeza disso. Está pronta para quando ele for cobrar o
preço de tanto poder que lhe deu?
Rovena enrubesce.
– Amarrem ele! – ordena ela.
Os condutores de Mairus o levam até o meio das duas toras
de madeira; em seguida, amarram suas mãos às correntes que
passam pelos sulcos no topo das toras. À ordem de Rovena, o
corpo do rei é suspenso.
Ao vê-lo pendurado e derrotado, ela começa a gargalhar
freneticamente, com olhos vidrados nele.
– O poderoso rei é nosso! – ela fecha a expressão num gri-
to poderoso de vitória.
Os urros, berros e uivos dos soldados formam um brado
tremulante e macabro que agita o vale em todas as direções.
– Não precisamos mais temer porque nessa manhã a Tradi-
ção Antiga cai! O sangue dos nossos que foi derramado final-
mente poderá se calar, porque o preço por eles foi pago!
Enquanto Rovena fala, Mairus grita de dor, remexendo-se
em extrema agonia: em seu peito, cortes profundos rasgavam
sua carne, mas sem faca ou qualquer outra lâmina, sem nenhu-
ma causa visível.
– Eu prometi a restauração de Tinóvia, eu prometi a queda
das cortinas que essa dinastia colocou na frente das verdades
que pertencem ao nosso povo! – Rovena aponta para Mairus,
cujo peito brota sangue nos cortes que finalmente pararam ao
formar duas retas que se cruzam: a zurx.
Ela continua:
– Eu prometi e eu cumpri!
Seus soldados aumentam o grito de vitória batendo espadas
em escudos e soprando chifres, até que ela levanta a mão e
tudo volta ao silêncio.
– Não existe lealdade quando não há o que se dar em troca
– ela aponta para os dois soldados do rei, que estiveram para-
dos no meio do corredor de soldados.
Arrastados, o tigre e o anão são postos de pé diante de Ro-
vena.
– Para chegarem até aqui, seus olhos viram muito sangue.
Vocês derramaram sangue dos meus aliados. Mas, eu ofereço
rendição e vida a vocês dois, basta se entregarem como meus
servos. Terão um lugar seguro para vocês e suas famílias.
Os dois ficam em silêncio.
Ela dá um passo, fazendo com que o pesado vestido escar-
late arraste sua aba na pedra. Diante do anão, ela deslisa um de
seus dedos em seu pescoço, rumo ao queixo
– Posso sentir o medo crescendo dentro de você. Seu es-
pírito está inquieto, obscuro… traiçoeiro – seu tom soa sedutor
e penetrante. – Você não quer morrer, não é mais capaz de sen-
tir o peso da culpa de trair as belas palavras que disse há algu-
mas horas a seu rei – diz ela, saboreando suas palavras, mor-
dendo suavemente seus lábios inferiores.
A respiração de Rovena se torna profunda.
O anão fica transtornado, seus olhos se esquentam, assim
como todo seu sangue. Seus joelhos se dobram diante da líder
rebelde. Ele sente seu coração bater forte no peito, como se
fosse arrebentar suas costelas e um zumbido dispara em seus
ouvidos.
– Está vendo, Mairus – diz Rovena, saturada de prazer –
eles não são leais a um condenado que não pode lhes dar mais
nada.
“Mentira!”, a voz irrompe, mas por um segundo ela não
identifica sua origem já que boca de Mairus não se abriu. Ela
olha para trás.
– Até onde você pode ser testado? Sempre há um limite –
Rovena pergunta ao tigre.
Ele a encara nos olhos.
– Eu decidi ser leal, você já sabe disso.
O olhar dela se perde por um momento.
– Você não tem medo de mim – Rovena entreolha para o
bisão bípede e este golpeia o tigre com uma maça, quebrando
instantaneamente um de seus joelhos. Para que ele não caia
deitado no chão, o bisão o segura pelo pescoço.
– Não preciso ter medo de você. Ninguém precisa.
O bisão, por fim, traspassa a lâmina de sua espada nas cos-
tas do soldado, a qual sai pelo tórax. Ele o larga no chão. O
sangue do tigre forma uma poça no chão, se espalhando pelas
fissuras das rochas.
– Pode ouvir? – pergunta o rei a Rovena. – O sangue escor-
rendo aos seus pés… grita para toda Tinóvia o seu fracasso.
Você não vai corromper a todos.
– Se estivesse certo, todo o povo deveria ter lutado nessa
noite. Deveriam ter se unido para protegerem sua preciosa tra-
dição.
De uma das várias dobras de seu vestido, Rovena retira
uma adaga, cuja lâmina é de prata e o cabo de ouro. Soldados
no alto de uma colina, na saída do vale, começam a tocar tam-
bores e logo buzinas se juntam ao arranjo. Uivos dos lobos e
choros de hienas destacam-se no meio de vários outros gritos
animalescos – um coro sombrio.
Rovena ergue o punhal e nuvens negras enchem o céu, blo-
queando o brilho do sol nascente. Quanto mais a escuridão se
espalha, mais o som se torna forte e penetrante. Tochas são ace-
sas entre os soldados espalhados no vale, tornando a visão in-
fernal.
– Minha adaga traz vingança sobre o erro dos seus pais, so-
bre os erros dos pais de seus pais, sobre o seu erro e o erro de
seu filho, assassino!
Mairus vê os músculos do braço de Rovena se contraindo
para desferir o golpe mortal. Ele recolhe seu pescoço para a es-
querda e fecha os olhos – ignorando sua mente, que sente toda
a euforia e excitação de Rovena e de seu exército.
– Reconheça-me, Tinóvia! Eu sou a líder do Sends Zurx, o
Arauto da Noite, a Conquistadora de Tinóvia!
A mulher gira o tronco e desce seu punho abruptamente,
cravando de uma só vez a lâmina no peito do rei, atravessando
imediatamente seu coração. Mechas do cabelo negro e opaco
de Rovena caem sobre seus olhos. Ao se reerguer, ela vê o cor-
po de Mairus recair sobre si mesmo, exprimindo todo o ar con-
tido em seus pulmões.
– O poderoso rei está morto! – Rovena anuncia, triunfante.
– Proclamem a nossa glória! Proclamem a cura de Tinóvia! –
ela fecha os olhos, erguendo a cabeça para o céu.
Os soldados dão passos fazendo o chão tremer enquanto se
reorganizam em formação de marcha. Os tambores tocam mui-
to mais frequentes e as buzinas retimem aos ouvidos, vindas de
todo o meio do acampamento.
– Vamos para Main-Sefar, mataremos o príncipe, a rainha e
queimaremos a Tradição Antiga! Eu farei segundo em meu rei-
no a quem me trouxer a cabeça de Calebe!
Ela desce das pedras e sobe em sua quadriga para puxar a
marcha do exército.
Ao longe, uma ave solitária, pousada no meio de um ema-
ranhado dos gálios secos de uma árvore morta, abaixou a cabe-
ça em pesar, mas logo levantou voo, escondendo-se no meio
das nuvens negras trazidas por Rovena.
– – – – –
O chamado o fez virar a face, procurando no meio da escu-
ridão diante de si a origem da voz.
– Posso te ouvir.
Um forte vendaval varre as árvores e os arredores e a voz
ecoa dele:
– Chegou a hora. Mairus acaba de cair. Tinóvia está nas
mãos do arauto.
– Está certo que quer trilhar esse caminho?
– Sempre estive nesse caminho, Khonsu.
O ser pequeno apoia em seu cajado e se levanta, aproxi-
mando-se do calor vindo da fogueira próxima. Ergue o pescoço
e retira a venda branca que cobre seus olhos – olhos brancos e
opacos. Um instante depois, com a respiração ofegante, o pe-
queno e albino ser se senta na cadeira em que estava.
– Tinóvia enfrentará seus tempos mais sombrios. Mas não
só aqui, porque vi a morte se espalhar, dolorosa e implacável,
por todas as esferas. Amigos, inimigos, humanos… todos mor-
tos.
– E quanto ao fim? – perguntou a voz vinda do vendaval.
– Há muitos caminhos para serem tomados, muitas deci-
sões a serem feitas, muitos arrependimentos. O futuro distante
sempre é turvo, instável. Mas algo posso dizer com precisão:
você terá de fazer uma decisão difícil, um sacrifício será exigi-
do. Deve se preparar para ele. Embora tudo seja tênue, posso
ver que isso não poderá ser evitado. O caminho para ele está
sendo tomado nesse momento, na esfera dos filhos dos ho-
mens.
– Do que se trata?
Agarrando seu cajado com as duas mãos, ele responde:
– A vida de um dos seus terá de ser entregue ou seu trono
será tirado de ti.
– Acho que estou entendendo. Farei o possível para impe-
dir. Preciso enviar meus mensageiros. Espero fazer contato em
breve.
– Estarei à sua espera. E, Serugue, não deixe de perceber as
coisas boas, eu as vi também; são elas que nos ajudam a atra-
vessar a escuridão do tempo, aquecem nossas almas e sempre
estão aqui e ali, pequenas demais para os soberbos, mas imen-
sas para olhos singelos.
– Obrigado, Khonsu.
O vendaval para e ouve-se novamente o canto dos pássa-
ros.
Capítulo 2
Os passos rápidos evoluem para uma furtiva corrida. Ele
percorre todo o Grande Salão da Ampla Galeria, a galeria de
arte mais importante de Bhaar, e para debaixo do óculo na cús-
pide do grande domo. A luz tênue da lua, já um pouco pendida
para o oeste, atravessa o círculo no teto como se fosse uma cor-
tina semitransparente, alcançando apenas uma parte do corpo
do homem idoso, deixando sua face na escuridão.
Ele retira o manto de cor púrpura, jogando-o para o lado,
em cima do límpido e brilhante piso de mármore. Seus olhos se
concentraram na porta principal. Pode ouvir o caminhar firme e
constante de seu perseguidor, livre de qualquer pressa.
Há armas, espadas de decoração fixadas em suas respecti-
vas armaduras. De todo modo, ele sabe que precisa ser assim.
Olha para cima, vê o céu.
“Aqui tudo termina. Aqui tudo recomeça”.
– Então você já sabe que será assim – um homem alto, sem
medo de esconder seu rosto, aparece como uma sombra na en-
trada do Grande Salão. O perseguidor retira uma longa espada
e se aproxima em passos concisos.
– O renascimento será iniciado por suas mãos, essa noite.
– Um dia encontraremos o profeta e toda essa esperança
vazia de paz acabará.
– Sei que a paz não virá antes da guerra – diz o homem ve-
lho. – Mas não se engane, o Kire será encontrado.
– Conto com isso. Sua morte resolverá muitos dos meus
problemas, esse é só um deles.
O executor se aproxima.
– Parece que seu protetor não virá.
– Ele está protegendo o que é mais importante. Eu não me
importo e nem o condeno.
O velho homem concentra-se na espada sendo manejada
para golpeá-lo e, por fim, sente o frio brusco da lâmina atraves-
sando seu abdome.
– Está feito – ele diz a seu assassino, que retira a lâmina
com pungência.
Em seu fôlego final, cai de joelhos, enquanto o autor do as-
sassinato se vira para um dos longos corredores que dão acesso
àquele salão.
Um lampejo azul o faz parar e olhar por cima do ombro.
– Veio aplaudir nossa vitória ou se certificar da sua conde-
nação?
Voltando-se para o corredor, o assassino deixa o prédio.
– – – – –
O copeiro se aproxima da mesa e abaixa aos ouvidos do
rei, cochichando curtas palavras. Com o consentimento de sua
majestade, as portas duplas da sala de refeição separam-se
abruptamente, dando passagem a Bernardo Jaguar, um dos mi-
nistros do rei de Bhaar e um dos poucos homens que podem in-
terromper o dejejum da família real.
Bernardo mantêm a cabeça abaixada ao falar porque estão
presentes as duas figuras femininas do reino, a rainha Hérmina
e a princesa Rebeca.
– Majestade, o Conselho precisou se reunir numa situação
de emergência, pedimos que se junte a nós. Aconteceu algo
ruim nessa noite.
Rebeca abaixa a cabeça ao sentir o tom fúnebre do minis-
tro.
– O que houve?
– Preferimos manter o assunto dentro do Conselho, até que
o senhor tome a melhor decisão.
O rei olha para o jovem conselheiro e general dos cavalari-
anos.
– Volte e diga que estarei com vocês logo.
Bernardo, ainda de cabeça baixa, se vira e se retira, só er-
guendo os olhos depois que a porta se fecha atrás dele.
A rainha estica sua mão e envolve a de seu marido.
– Não devia se apressar?
– Se fosse algo iminente os ministros estariam aqui no pa-
lácio.
A princesa segura seu talher de um modo estático. Seu
olhar fixa-se em algum lugar aleatório, como se não estivesse
olhando para lugar nenhum. De repente uma lágrima brota em
um de seus olhos, a qual é enxugada discretamente.
– Rebeca, tudo bem?
Os olhos da jovem se voltam para sua mãe.
– Sim… prometi a Tiro que cavalgaríamos pela manhã.
Rebeca se levanta, passando para o bolso a fatia de bolo de
milho que estava em seu prato.
– Nossa filha será uma boa rainha! Se cumpre promessas a
seu cavalo, cumprirá também a seu povo – diz seu pai com um
sorriso antes de Rebeca sair pela mesma porta que o ministro
usou.
– – – – –
Na frente do Conselho – um prédio de três andares no meio
de Mirra, capital de Bhaar – Bernardo avista o rei em seu cava-
lo, acompanhado por dois outros cavalarianos de sua guarda
pessoal. O jovem monta em seu cavalo e os alcança.
– Mudança de planos, majestade. Os ministros o esperam
na Ampla Galeria.
– O que está acontecendo, general?
– O restante do Conselho espera lhe dizer quando…
– O Conselho não é maior que eu. Me diga o que está
acontecendo.
O jovem respira fundo.
– Não sabemos o motivo, mas houve um assassinato na
Ampla Galeria essa noite.
O coração do rei estremece. Apesar de o ministro ter redu-
zido o impacto de suas palavras, ele já desconfia de quem seja
a vítima.
– – – – –
Nos estábulos do palácio, Rebeca retira do bolso o pedaço
de bolo de milho e o dá a seu grande cavalo de pelo escuro e
amarronzado.
– Tiro, está pronto para fazer outra vez? – ela passa a mão
no pescoço do animal – Estamos ficando bons nisso, ninguém
percebe a gente.
Ela se vira e retira as selas de um suporte na parede.
– Ele morreu essa noite – uma lágrima deslisa em sua face,
levando-a a um rápido movimento para apará-la. Após terminar
de selar o animal, Rebeca o abraça. – Nunca acreditei que pre-
cisaria ser assim.
A princesa monta no cavalo e o conduz para dentro de um
denso bosque, que vai desde os fundos do palácio, percorrendo
o lado leste da capital, até onde se junta finalmente à vegetação
natural dos campos e florestas ao redor da cidade.
– – – – –
O vazio da perda toma conta do rei quando, ainda atraves-
sando um dos corredores de acesso ao Grande Salão, avista o
corpo cercado por uma larga poça de sangue.
– Mênfis! – Gregório se estaca na borda do Grande Salão.
Em passos curtos, ele se aproxima do corpo e se agacha.
Segundos depois, lança longe sua espada entoando um berro
gutural. Gregório estende a mão e deslisa os dedos sobre a face
gelada e opaca do idoso. As lágrimas brotavam em um choro
engasgado.
Um dos ministros se aproxima e pousa a mão no ombro do
rei.
– Meu senhor, sei de sua dor – diz Karal, o chanceler. –
Mas acreditamos que isso está além de um assassinato.
– Não faremos nada enquanto ele não tiver o enterro que
merece.
Gregório se levanta e vira-se a seus três conselheiros.
– Karal, mande retirar o corpo e aprontá-lo para o funeral;
feche a Ampla Galeria, até para os acadêmicos. Bernardo e Mi-
tofias, protejam as redondezas com suas tropas, quero vigias
nas fronteiras do leste.
“Sim, senhor”, dizem todos.
Os quatro homens saem do lugar, dando à jovem escondida
a brecha que precisava para sair de seu esconderijo. Se esguei-
rando atrás de uma das colunas de sustentação do domo, numa
entreolhada, Rebeca pôde ver melhor o corpo que já havia re-
conhecido. Suas mãos descem pela coluna enquanto sua cabeça
se apoia nela. Por um segundo, a tentação de ceder ao pesar
quase toma conta de sua mente, mas a visão do corpo sem vida
estendido no chão lhe traz de volta à sobriedade.
Rebeca vai até o centro do Grande Salão e se ajoelha diante
do corpo. Seus olhos percorrem o amado amigo da família real.
Ela olha para o alto e vê o céu através do óculo, imaginando
como o firmamento estaria no momento em que os olhos de
Mênfis se enchiam de escuridão.
“Me desculpe… se minha fé tivesse sido mais forte…”, ela
sussurra num choro discreto.
Os detalhes da cena a fazem perder a atenção por alguns
segundos, sendo alertada por seus reflexos no último instante.
“Está vindo alguém!”, ela pensa. A princesa corre para trás
de uma das colunas e vê o homem se aproximando. O retimir
da lâmina de uma espada sendo desembainhada enche o local.
– Sei que está aí, se não aparecer, terei que te procurar – a
voz forte dá a ordem.
A reação de Rebeca é ficar quieta, recostada na grossa co-
luna.
– Você é agora o principal suspeito desse assassinato, al-
guém que eu posso abater no ato.
Rebeca continua quieta.
– E apenas um comando que eu der, esse lugar se encherá
de soldados. É melhor se apresentar, agora!
A janela pela qual Rebeca entrou está longe demais para
chegar lá sem ser percebida ou não ser alcançada por um solda-
do. É a segunda vez naquela manhã que ela vê aquele rapaz e,
também, é a segunda vez que ela sente que ele pode ser confiá-
vel.
– Usaria sua espada contra a filha do rei? – Rebeca apare-
ce, abaixando o capuz e revelando seu rosto.
O jovem dá um curto salto para trás, com medo nítido por
ter ameaçado a princesa. Ele recolhe sua espada imediatamente
e abaixa sua cabeça.
– Princesa! Me desculpe, não sabia quem era… pensei que
pudesse ser alguma ameaça.
– Preciso sair daqui sem ser vista e você não pode contar a
ninguém que me viu.
– Não posso ocultar nada se for questionado. Você não de-
veria estar aqui.
Contristada, Rebeca responde:
– Esse é o único lugar para eu estar agora. Trabalhei e estu-
dei ao lado dele, não pode me tirar daqui.
Ela contorna o corpo de Mênfis e se coloca ao lado de Ber-
nardo. Por um momento se perde mais uma vez nos detalhes do
cenário.
– Talvez eu não a tire, mas outros podem fazer se chegarem
aqui – Bernardo a chama.
Ela não lhe dá qualquer atenção.
– Seu pai ordenou que esvaziássemos a galeria.
A princesa continua olhando para o chão.
– Chega a ser poético – ela diz.
Bernardo desiste de tirá-la dali.
– Poético?
– A disposição do corpo, esse lugar, o piso.
Bernardo olha no chão e se dá conta de que nesse piso está
esboçado um dos maiores ícones da cultura daquele povo. Fai-
xas de mármore preto se inserem no mármore branco dese-
nhando o símbolo da lendária história da existência: um grande
círculo envolvendo três círculos menores, que se unem por uma
parte de suas circunferências. No centro de cada esfera menor,
a figura de tronos foi modelada.
– A Crônica Esférica? – ele olha para Rebeca, concentrada
no desenho no piso de mármore. – Significa alguma coisa para
você?
– Significava muito para ele. Mênfis dedicou mais da me-
tade da vida a essa crônica, tentando entender, fazendo dese-
nhos, contando histórias.
– Isso não passa de fantasia.
– Para alguns é sim.
Antes que Bernardo pudesse dar alguma resposta, Rebeca
diz:
– Repare no corpo dele – ela se aproxima de Mênfis. – Os
pés estão na Esfera da Existência, a nossa esfera. Mas a mão
está na esfera acima, tentando alcançá-la.
– Foi o jeito que ele caiu.
– Veja a marca de sangue, ele arrastou os dedos, tentando
alcançar o trono no centro.
Bernardo se aproxima da princesa.
– Acha que ele queria alcançar? – apesar de não levar mui-
to em conta, ele decide prestar atenção.
– Ele acreditava em alguma coisa. Talvez se sentisse con-
fortado.
– Princesa, com todo respeito, isso é só um desenho e,
mesmo que seja isso que ele tenha tentado fazer, acho que não
vai nos dar muitas respostas.
Rebeca recua alguns passos.
– Mênfis era um dos homens mais brilhantes do reino, Rei-
tor da Ampla Galeria. A Crônica Esférica nunca foi só um dese-
nho para ele.
Passos metálicos de soldados trajados de pesadas armadu-
ras ressoam dos corredores.
– Tenho de ir. Você não vai dizer que…
– Que você esteve aqui e que eu a deixei ficar? Não vou di-
zer nada.
Rebeca cobre a cabeça com o capuz e desaparece num cor-
redor escuro.
Os que vinham pelo corredor aparecem pouco tempo de-
pois.
– Onde estão os seus soldados? – pergunta Karal, que che-
gou com outros quatro soldados. – Por que está aqui?
– Voltei para buscar a espada de Gregório.
Karal olha para a espada ainda jogada no chão, longe de
Bernardo.
– Não se preocupe com isso, eu cuido dela. Mitofias já foi
para o quartel, estava procurando por você.
– Já vou encontrá-lo – Bernardo dá um passo para trás e se
vira, saindo pelo corredor principal.
Karal estende um grande pano branco sobre Mênfis. En-
quanto os quatro oficiais cuidam de transportar o corpo, o
chanceler pega o manto oficial que Mênfis usava, o qual jogou
no chão momentos antes de ser morto. Seus dedos encontram
uma textura diferente numa dobra da roupa.
– Senhor?
Karal retorna sua atenção para os homens.
– Podemos levar?
– Sim, a carruagem está esperando.
– – – – –
A capacidade de voar em alta velocidade fez a águia chegar
na cidade de Choucai antes do entardecer. Pousa no pátio da
Casa do Lorde, onde o pouquíssimo restante dos apoiadores de
Mairus a esperam ansiosos, incluindo o príncipe Calebe e sua
mãe, a rainha Ruthe.
– Aquis, que notícias traz? – pergunta Esli, um idoso etim,
mentor do príncipe e, até então, ancião na Academia, a grande
escola que pesquisa a fabulosa mente dos etims de matrizes po-
derosas, capazes de telepatia e telecinética.
A grande ave olha em volta, fugindo dos olhos do que so-
brou da família real de Tinóvia.
– A Tradição Antiga caiu nessa noite. Nosso rei está morto.
Ruthe arfa e cobre a boca com a mão; suas lágrimas en-
chem seu rosto imediatamente. Esli passa o braço em volta dos
ombros de Calebe, mas o príncipe resiste a qualquer demons-
tração de pesar.
– O restante de nosso exército foi exterminado na baixada
entre os montes Har e o Grande Deserto. Agora o Sends Zurx
marcha para Main-Sefar.
– Devemos pensar num reagrupamento – sugere Aza, lorde
de Choucai, de uma raça dos chamados zangões, seres alados,
com uma calda fina e longa, equipada com um mortal ferrão
triangular. A pele marrom é coberta por pequenas carapaças.
– Não sobrou ninguém – responde a ave.
– Ainda temos soldados aqui em Choucai.
– Tão poucos que cairíamos no primeiro ataque, Aza – diz
Esli.
A conclusão é aceita na mente de todos, mas é dita por
Num, lorde etim:
– Não há mais o que fazer. Fomos derrotados.
Um segundo depois e a voz de Esli rompe:
– “Enquanto Mairus e sua semente sentarem no trono de
Main-Sefar, a ordem reinará sobre todos”, esta é a promessa es-
crita na Tradição Antiga, feita pelo Trono de Luz e Ouro.
Num levanta os olhos:
– A Tradição Antiga viveu com Mairus e sua dinastia, mas
acaba de morrer junto com ela.
– Não, Num, a dinastia não morreu – Jadar, o lorde leopar-
do alado se pronuncia, olhando para Calebe, o jovem príncipe.
– Temos que tirar o príncipe e a rainha daqui. Eles são a única
esperança de Tinóvia encontrar a paz novamente.
– Rovena está possuída pelo poder da Noite, não vai demo-
rar nos encontrar – diz a águia.
– Não podemos deixar o povo – o pesar não deixa Calebe
sentir o peso de suas palavras, mas ele sabe que é o certo a di-
zer, que seria o que seu pai diria.
– Não os deixaremos, manteremos a esperança deles viva
por manter você vivo, príncipe – Esli olha para ele. – Precisa-
mos fugir, agora.
Muito obrigado por ter lido!
Dedicar um pouquinho do seu tempo à leitura dos primeiros
capítulos do meu livro é um grande incentivo para mim
continuar com meu trabalho. Muito obrigado!
A Crônica Esférica: Caminho da Noite é o primeiro volume de
uma série de fantasia épica. O livro completo será lançado no
dia 10 de janeiro de 2018 gratuitamente, por tempo
indeterminado. Trata-se de uma produção independente, por
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Desde jé, agradeço sua participação em meu trabalho.
Atenciosamente,
Isaac Smith
02/12/2017
Goiânia, Goiás

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A Queda de um Reino

  • 1.
  • 2. © 2017 – Todos os direitos reservados ao autor Isaac Smith
  • 3. Da Tradição Antiga: “Juramento Angular: A mente é o refúgio inviolável de todo ser; não deve ser tocada, nem alterada sem consenso ou decisão superior.”
  • 4. Prólogo O sol mergulhava suavemente no horizonte, num final de tarde em que uma suave brisa acariciava o bosque, no limite leste de Mirra. No gramado às margens do lago do Bosque da Lembrança, as duas amigas brincavam na surdina, porque o pai de Rebeca já a advertira para não brincar com os filhos dos ser- viçais. Como uma presença intangível, a estátua de Carmem, a rai- nha que se entregou a seus inimigos para que seu reino tivesse paz, ergue-se numa fonte num formato abandejado, alimentada pela água do lago. As bonecas de algodão e tecido repousavam em camas de grama. – Um dia sonhei com esse lago – disse a pequena Rebeca. – Você estava nele. – Eu? Eu nem sei nadar! – a amiga respondeu numa risada. – Você estava nadando de barriga para baixo. A amiga sorriu mais uma vez enquanto erguia sua boneca. Rebeca se levantou, virando-se para pegar uma das roupinhas numa caixa de madeira ao lado delas, mas seus pés vacilaram: sentiu uma leve tontura, que evoluiu rapidamente para uma dor de cabeça severa. Ela ouviu um sussurro – um pedido fraco e longe de ajuda. “Tônia?”, chamou pela amiga. Rebeca olhou para trás, onde Tônia devia estar sentada, mas não viu ninguém. Ergueu-se sobre seus próprios tornoze- los, tentando compensar sua estatura baixa para aumentar seu campo de visão. “Rebeca!”
  • 5. O grito penetrante ecoou tão forte que Rebeca pensou tê-lo ouvido dentro de sua própria mente. Num salto, chegou até a borda do lago e viu sua amiga dentro do lago, se debatendo e lutando para chegar à beira, mas em vão. Rebeca começou a gritar por ajuda, mas seus maxilares se encheram de tensão e nada mais podia sair de sua boca. Era como se litros de água estivessem passando por sua garganta, impedindo-a de gritar e respirar. Sua amiga se debatia, cada vez mais fraca. Rebeca sentiu a força de seus músculos sumir, obrigando-a a se ajoelhar. “Rebeca! Rebeca me ajuda!” Com os pulmões paralisados, Rebeca agarrou-se ao grama- do como se, a qualquer momento, algo a arrebataria para o céu. Os braços de Tônia não se movimentavam mais. Uma po- derosa escuridão envolveu os pensamentos e a consciência de Rebeca – ela sentia a autoridade da morte consumindo-a. – Rebeca! – a voz grossa de seu pai a alcançou como uma forte trovejada. A menina balançou ligeiramente a cabeça num sinal negati- vo enquanto era alavancada para os braços dele. De soslaio viu o corpo inerte da amiga boiando. – Ela vai ficar bem! – disse o pai, virando a cabeça da filha contra seu ombro. Com um olhar perdido em si mesma, Rebeca respondeu: – Não, papai ela já está morta… eu senti. Ninguém percebeu ou deu importância para três penas re- pousadas no gramado – uma delas terminava de cair. Penas brancas e longas, com as pontas douradas. – – – – – Rovena deixou-se corromper pelo sabor proibido do poder banido. Por anos ela sentiu a presença dele, envolvendo-a, cha- mando por seu nome nos cantos mais remotos de sua mente.
  • 6. Impregnada de poder, nada mais era uma barreira forte o bastante para pará-la. A força que a manipulava concedeu-lhe um exército de putrefatos para vingar seu passado. Teleportada para dentro dos corredores secretos do Templo da Mente por um dos poderosos príncipes de seu exército de rebeldes, Rovena varreu todas as direções com sua telepatia – em frações de segundo, seu soldado monstruoso, de carne apo- drecida e fétida, já sabia onde estava cada soldado templário e, teleportando-se de corredor em corredor, de entrada em entra- da, traspassou um a um com sua foice. Os últimos dois soldados mortos guardavam uma porta re- donda de ferro maciço, da altura de dois homens. Na porta, uma serpente engolindo a própria cauda estava entalhada. – Consegue nos levar lá dentro? – perguntou Rovena a seu companheiro. – Não, está protegido por algum campo de energia. Rovena fechou os olhos e, ao abri-los, confirmou: – Sim, nem um pensamento pode entrar lá. Esse é o cofre certo. Rovena estendeu a mão e as paredes estremeceram. A pesa- da porta começou a ranger sobre os efeitos de sua telecinesia. Os sons do ferro se contorcendo percorreram todos os corredo- res que formam o lugar subterrâneo e rachaduras rasgaram as paredes adjacentes ao cofre; por fim, a porta cedeu e foi arran- cada do lugar num alto estrondo e tremor. – Posso ouvir, os templários da divisão do corpo estão vin- do, guerreiros de elite! – a criatura de carne apodrecida alertou. – Virão para nossa glória. Rovena pegou uma das tochas fixadas na parede à sua di- reita e entrou no cofre. No centro da grande sala escura flutua- va uma pedra esférica, mas um pouco ovalada, semelhante a uma pedra ônix. A marcha dos templários de elite fazia os corredores treme- rem, mas ela não demonstrou nenhum pouco de medo.
  • 7. A mulher estendeu a mão e a pesada gema saiu do campo de suspensão, vindo em sua direção. Antes que pudesse tocar a pedra, uma névoa negra saiu da joia em dedos espiralados e to- mou conta da mão da mulher, penetrando em sua carne. Seus olhos perderam o brilho e sua pele adquire um tom acinzenta- do. Com arcos e espadas nas mãos, equipados com suas impo- nentes armaduras douradas, os templários apareceram como um pequeno exército na extremidade oposta do corredor, en- curralando-os dentro do cofre. “Não, Basã!”, Rovena disse a seu ajudante quando perce- beu que ele partiria contra os soldados. De repente, uma voz ecoou do nada por todos os cantos dos corredores secretos: “Tudo que eu tenho será seu. Sentará no meu trono até que eu volte e depois sentará à minha direita, meu arauto e mi- nha libertadora.” “Meu corpo e meu sangue servirão ao poder ascendente sobre o horizonte vigente. Faça de mim seu cetro e sua espa- da.” – respondeu Rovena. A pedra que flutuava há centímetros da mão dela finalmen- te lhe tocou, gerando uma explosão de energia maciça, que de- sintegrou os Templários, suas armas e armaduras. As paredes desmoronaram e, antes que o teto da sala caísse sobre eles, Basã os teleportou de lá. – – – – – Numa sala sem janelas, com apenas uma pequena porta, sete cavaleiros vestidos de preto, cujas faces estavam tampadas por máscaras de tecido grosso igualmente negros, juntaram-se numa reunião secreta. – Os anciãos da Academia conseguiram sentir a energia da joia se expandindo no corpo da etim que a roubou.
  • 8. – Não é possível alguém suportar todo aquele poder sem morrer em segundos! O que aquela mulher é? – Um Arauto da Noite se preparando para libertar seu mes- tre. Todos olharam para o cavaleiro. – Nós devíamos ter guardado o fragmento desde o início! – resmungou um outro. – Me-Sik, você sabe que essa decisão não coube a essa or- dem, ou a qualquer tinoviano. – Os templários protegeram a joia por quatrocentos anos. E, além disso, nós também estamos no Templo da Mente. – Seja como foi o passado, Serugue não errou em sua esco- lha, sua sabedoria transcende os séculos. Nenhuma geração dessa ordem se arrependeu de segui-lo e não seremos nós que faremos isso agora. O resmungador se virou para a parede e voltou à conversa. – Está bem, eu fugi da perspectiva correta, me desculpem. Temos de pensar num plano efetivo. Todas as esferas estão em perigo. Não há como livrar Tinóvia da guerra desta vez e Mai- rus talvez já esteja derrotado antes da batalha começar. – Me-Siks, não veem? Esse deve ser o tempo em que a pro- messa de Serugue a Mairus se cumprirá, talvez estejamos ven- do os tempos mais gloriosos prometidos na Tradição Antiga! – ele olha para seus amigos, mesmo com todas as expressões co- bertas por máscaras. – O objetivo da existência dessa ordem é ajudar quando esse tempo chegar! Todos sopesam a que a voz grave disse. – Uma das esferas está sem um de nós há muito tempo – ele continua. – Elegeremos um cavaleiro entre os humanos. To- dos concordam? Em unânime, as mãos foram levantadas. – O vidente deve ser consultado? – pergunta um deles.
  • 9. – Não, o futuro parece bem definido e não queremos reve- lar sua localização ao Sends Zurx. Me-Siks, a Noite está voltan- do. Que o Trono de Luz e Ouro nos ajude!
  • 10. Capítulo 1 Alua branca se contrasta com a baixada de um certo vale, na beirada do Grande Deserto, onde o sangue dos soldados re- ais tingem o chão num vermelho abundante. O grito de vitória dos rebeldes reverbera em todas as direções, num tom triunfal – a poderosa dinastia Mairus foi derrotada. “O Sends Zurx não precisa de escravos matem todos!”, or- dena Rovena, a líder do exército rebelde, de cima de sua qua- driga puxada por cavalos mentalmente dominados. À sua or- dem só escapam três: ela ordena que recolham o rei e mais dois de seus soldados. Quando dois sotoruns – os de carne podre – os jogam aos pés dela, a etim estende a mão e, telecineticamen- te, puxa a espada do rei para si – uma bela espada etínica, de lâmina fina, branca e cintilante. O chão treme enquanto os pesados bisões bípedes cruzam o campo de batalha, procurando entre os corpos espalhados no chão aqueles que ainda conseguem respirar. Ao encontrá-los, descem sobre eles as pesadas lâminas de seus machados enor- mes. “Tranquem esses três até o dia amanhecer”, a líder ordena aos sotoruns. Mairus e seus dois guerreiros são levados para uma tenda, onde suas armaduras são retiradas e eles ficam ape- nas com suas roupas exteriores. Prendem o rei a uma corrente cujas argolas são traspassadas nas panturrilhas dele e ligadas ao mastro central da tenda. Aos guerreiros – um tigre bípede, forte e ágil e o outro um anão – eles somente acorrentam um ao outro e juntam-nos ao mastro central da tenda. Os barulhos normais da noite são abafados pelos golpes do que parecia ser um pesado martelo batendo constantemente em
  • 11. metal e madeira – sons que deixam Mairus e seus parceiros de cárcere angustiados, pois estão certos que aquilo, por fim, seria para eles. – Nossa luta foi honrosa, vocês foram bravos soldados e eu preciso retribuir o que fizeram por mim. Os dois procuram pela face do rei seguindo o único raio de luz que entra por um fino rasgo na tenda. – Rovena mandou matar todos os outros, mas preservou vocês dois. Ela os usará contra mim. Eu não consigo mais ler a mente dela, mas prever não é muito difícil: ela vai deixar vocês viverem em troca de alguma coisa. – Servidão! – diz o tigre. – Toda Tinóvia está subjugada por ela partir de agora, to- dos a servirão, de um jeito ou de outro. Não será traição se vo- cês aceitarem esse possível trato porque também surgirão re- beldes contra Rovena, vocês poderão guiá-los… vocês poderão ajudar meu filho a recuperar nosso trono. O silêncio palpável é quebrado pelo tigre: – Senhor, lutamos do seu lado, e ainda estamos aqui. A guerra não terminou para mim. Não darei essa última vitória a ela. – Seu filho será ajudado, mas não por nós. Ele encontrará muito mais que dois soldados – diz o anão das terras do leste. – Devemos terminar em honra, como o senhor disse. Aos primeiros raios de sol, dois etims – seres da mesma raça do rei Mairus, porém esses sem habilidades mentais – abrem a tenda e soltam os três prisioneiros. Primeiro o tigre e o anão são levados e depois conduzem Mairus, puxando-o pelas correntes traspassadas em suas pernas, fazendo-o deixar um rastro de sangue no chão. O exército rebelde se ajuntou de um lado e de outro, for- mando um corredor desde a saída da tenda até sua líder, que está com um olhar irredutivelmente imponente, trajando um vestido escarlate encrustado de pedras vermelhas e de pé num
  • 12. elevado de rochas empilhadas. Estandartes estampados com a zurx foram colocados dos dois lados do amontado de pedras. Duas toras de madeira projetam-se verticalmente numa parte do empilhado de rochas. No topo de cada uma passa uma pesada corrente e do lado de cada uma há uma roda, também de madeira, para enrolar as correntes. – Tragam ele até mim! – ordena Rovena. Os dois etims que puxaram Mairus até a saída da tenda o conduzem pelo corredor de soldados, onde ele é vaiado e escar- rado até a metade do caminho, quando Rovena estende a mão e, telecineticamente, arranca da cabela dele a coroa e a lança para os soldados. “Tirem as roupas exteriores dele!”, ela diz. Um punhado de soldados furiosos se juntam em cima de Mairus. Nem seu cabelo é poupado, cortado por lâminas de es- padas brandidas em fúria – o que lhe dá cortes profundos em seu couro cabeludo. Apenas com uma faixa de linho cobrindo seu quadril, en- volvendo sua virilha e partes das coxas, Mairus chega aos pés de Rovena. Os etims que o conduzem puxam as correntes cra- vadas em suas canelas, obrigando-o a se ajoelhar perante a lí- der. Em passos curtos, chega até ele e o encara. – Vocês disseram que esse momento jamais voltaria a acontecer – rosna ela. – Fomos pretensiosos, assim como você é agora – Mairus tenta abrir um dos olhos por onde uma corrente de sangue pas- sa, vinda dos talhos em sua cabeça. – A minha pretensão é a favor de nosso povo. Sua dinastia condenou Tinóvia à morte, mas eu a livrarei de toda dor – ela inclina a cabeça enquanto fala, encarando o rei profundamente no olhos, contendo todo o ódio para não matá-lo naquele mes- mo instante.
  • 13. – Você não sabe com o que está lidando – Mairus não foge ao olhar dela, reparando em seus olhos sem brilho. – Não… você sabe sim. Ele te dominou e nem preciso ler sua mente para ter certeza disso. Está pronta para quando ele for cobrar o preço de tanto poder que lhe deu? Rovena enrubesce. – Amarrem ele! – ordena ela. Os condutores de Mairus o levam até o meio das duas toras de madeira; em seguida, amarram suas mãos às correntes que passam pelos sulcos no topo das toras. À ordem de Rovena, o corpo do rei é suspenso. Ao vê-lo pendurado e derrotado, ela começa a gargalhar freneticamente, com olhos vidrados nele. – O poderoso rei é nosso! – ela fecha a expressão num gri- to poderoso de vitória. Os urros, berros e uivos dos soldados formam um brado tremulante e macabro que agita o vale em todas as direções. – Não precisamos mais temer porque nessa manhã a Tradi- ção Antiga cai! O sangue dos nossos que foi derramado final- mente poderá se calar, porque o preço por eles foi pago! Enquanto Rovena fala, Mairus grita de dor, remexendo-se em extrema agonia: em seu peito, cortes profundos rasgavam sua carne, mas sem faca ou qualquer outra lâmina, sem nenhu- ma causa visível. – Eu prometi a restauração de Tinóvia, eu prometi a queda das cortinas que essa dinastia colocou na frente das verdades que pertencem ao nosso povo! – Rovena aponta para Mairus, cujo peito brota sangue nos cortes que finalmente pararam ao formar duas retas que se cruzam: a zurx. Ela continua: – Eu prometi e eu cumpri! Seus soldados aumentam o grito de vitória batendo espadas em escudos e soprando chifres, até que ela levanta a mão e tudo volta ao silêncio.
  • 14. – Não existe lealdade quando não há o que se dar em troca – ela aponta para os dois soldados do rei, que estiveram para- dos no meio do corredor de soldados. Arrastados, o tigre e o anão são postos de pé diante de Ro- vena. – Para chegarem até aqui, seus olhos viram muito sangue. Vocês derramaram sangue dos meus aliados. Mas, eu ofereço rendição e vida a vocês dois, basta se entregarem como meus servos. Terão um lugar seguro para vocês e suas famílias. Os dois ficam em silêncio. Ela dá um passo, fazendo com que o pesado vestido escar- late arraste sua aba na pedra. Diante do anão, ela deslisa um de seus dedos em seu pescoço, rumo ao queixo – Posso sentir o medo crescendo dentro de você. Seu es- pírito está inquieto, obscuro… traiçoeiro – seu tom soa sedutor e penetrante. – Você não quer morrer, não é mais capaz de sen- tir o peso da culpa de trair as belas palavras que disse há algu- mas horas a seu rei – diz ela, saboreando suas palavras, mor- dendo suavemente seus lábios inferiores. A respiração de Rovena se torna profunda. O anão fica transtornado, seus olhos se esquentam, assim como todo seu sangue. Seus joelhos se dobram diante da líder rebelde. Ele sente seu coração bater forte no peito, como se fosse arrebentar suas costelas e um zumbido dispara em seus ouvidos. – Está vendo, Mairus – diz Rovena, saturada de prazer – eles não são leais a um condenado que não pode lhes dar mais nada. “Mentira!”, a voz irrompe, mas por um segundo ela não identifica sua origem já que boca de Mairus não se abriu. Ela olha para trás. – Até onde você pode ser testado? Sempre há um limite – Rovena pergunta ao tigre. Ele a encara nos olhos.
  • 15. – Eu decidi ser leal, você já sabe disso. O olhar dela se perde por um momento. – Você não tem medo de mim – Rovena entreolha para o bisão bípede e este golpeia o tigre com uma maça, quebrando instantaneamente um de seus joelhos. Para que ele não caia deitado no chão, o bisão o segura pelo pescoço. – Não preciso ter medo de você. Ninguém precisa. O bisão, por fim, traspassa a lâmina de sua espada nas cos- tas do soldado, a qual sai pelo tórax. Ele o larga no chão. O sangue do tigre forma uma poça no chão, se espalhando pelas fissuras das rochas. – Pode ouvir? – pergunta o rei a Rovena. – O sangue escor- rendo aos seus pés… grita para toda Tinóvia o seu fracasso. Você não vai corromper a todos. – Se estivesse certo, todo o povo deveria ter lutado nessa noite. Deveriam ter se unido para protegerem sua preciosa tra- dição. De uma das várias dobras de seu vestido, Rovena retira uma adaga, cuja lâmina é de prata e o cabo de ouro. Soldados no alto de uma colina, na saída do vale, começam a tocar tam- bores e logo buzinas se juntam ao arranjo. Uivos dos lobos e choros de hienas destacam-se no meio de vários outros gritos animalescos – um coro sombrio. Rovena ergue o punhal e nuvens negras enchem o céu, blo- queando o brilho do sol nascente. Quanto mais a escuridão se espalha, mais o som se torna forte e penetrante. Tochas são ace- sas entre os soldados espalhados no vale, tornando a visão in- fernal. – Minha adaga traz vingança sobre o erro dos seus pais, so- bre os erros dos pais de seus pais, sobre o seu erro e o erro de seu filho, assassino! Mairus vê os músculos do braço de Rovena se contraindo para desferir o golpe mortal. Ele recolhe seu pescoço para a es-
  • 16. querda e fecha os olhos – ignorando sua mente, que sente toda a euforia e excitação de Rovena e de seu exército. – Reconheça-me, Tinóvia! Eu sou a líder do Sends Zurx, o Arauto da Noite, a Conquistadora de Tinóvia! A mulher gira o tronco e desce seu punho abruptamente, cravando de uma só vez a lâmina no peito do rei, atravessando imediatamente seu coração. Mechas do cabelo negro e opaco de Rovena caem sobre seus olhos. Ao se reerguer, ela vê o cor- po de Mairus recair sobre si mesmo, exprimindo todo o ar con- tido em seus pulmões. – O poderoso rei está morto! – Rovena anuncia, triunfante. – Proclamem a nossa glória! Proclamem a cura de Tinóvia! – ela fecha os olhos, erguendo a cabeça para o céu. Os soldados dão passos fazendo o chão tremer enquanto se reorganizam em formação de marcha. Os tambores tocam mui- to mais frequentes e as buzinas retimem aos ouvidos, vindas de todo o meio do acampamento. – Vamos para Main-Sefar, mataremos o príncipe, a rainha e queimaremos a Tradição Antiga! Eu farei segundo em meu rei- no a quem me trouxer a cabeça de Calebe! Ela desce das pedras e sobe em sua quadriga para puxar a marcha do exército. Ao longe, uma ave solitária, pousada no meio de um ema- ranhado dos gálios secos de uma árvore morta, abaixou a cabe- ça em pesar, mas logo levantou voo, escondendo-se no meio das nuvens negras trazidas por Rovena. – – – – – O chamado o fez virar a face, procurando no meio da escu- ridão diante de si a origem da voz. – Posso te ouvir. Um forte vendaval varre as árvores e os arredores e a voz ecoa dele:
  • 17. – Chegou a hora. Mairus acaba de cair. Tinóvia está nas mãos do arauto. – Está certo que quer trilhar esse caminho? – Sempre estive nesse caminho, Khonsu. O ser pequeno apoia em seu cajado e se levanta, aproxi- mando-se do calor vindo da fogueira próxima. Ergue o pescoço e retira a venda branca que cobre seus olhos – olhos brancos e opacos. Um instante depois, com a respiração ofegante, o pe- queno e albino ser se senta na cadeira em que estava. – Tinóvia enfrentará seus tempos mais sombrios. Mas não só aqui, porque vi a morte se espalhar, dolorosa e implacável, por todas as esferas. Amigos, inimigos, humanos… todos mor- tos. – E quanto ao fim? – perguntou a voz vinda do vendaval. – Há muitos caminhos para serem tomados, muitas deci- sões a serem feitas, muitos arrependimentos. O futuro distante sempre é turvo, instável. Mas algo posso dizer com precisão: você terá de fazer uma decisão difícil, um sacrifício será exigi- do. Deve se preparar para ele. Embora tudo seja tênue, posso ver que isso não poderá ser evitado. O caminho para ele está sendo tomado nesse momento, na esfera dos filhos dos ho- mens. – Do que se trata? Agarrando seu cajado com as duas mãos, ele responde: – A vida de um dos seus terá de ser entregue ou seu trono será tirado de ti. – Acho que estou entendendo. Farei o possível para impe- dir. Preciso enviar meus mensageiros. Espero fazer contato em breve. – Estarei à sua espera. E, Serugue, não deixe de perceber as coisas boas, eu as vi também; são elas que nos ajudam a atra- vessar a escuridão do tempo, aquecem nossas almas e sempre estão aqui e ali, pequenas demais para os soberbos, mas imen- sas para olhos singelos.
  • 18. – Obrigado, Khonsu. O vendaval para e ouve-se novamente o canto dos pássa- ros.
  • 19. Capítulo 2 Os passos rápidos evoluem para uma furtiva corrida. Ele percorre todo o Grande Salão da Ampla Galeria, a galeria de arte mais importante de Bhaar, e para debaixo do óculo na cús- pide do grande domo. A luz tênue da lua, já um pouco pendida para o oeste, atravessa o círculo no teto como se fosse uma cor- tina semitransparente, alcançando apenas uma parte do corpo do homem idoso, deixando sua face na escuridão. Ele retira o manto de cor púrpura, jogando-o para o lado, em cima do límpido e brilhante piso de mármore. Seus olhos se concentraram na porta principal. Pode ouvir o caminhar firme e constante de seu perseguidor, livre de qualquer pressa. Há armas, espadas de decoração fixadas em suas respecti- vas armaduras. De todo modo, ele sabe que precisa ser assim. Olha para cima, vê o céu. “Aqui tudo termina. Aqui tudo recomeça”. – Então você já sabe que será assim – um homem alto, sem medo de esconder seu rosto, aparece como uma sombra na en- trada do Grande Salão. O perseguidor retira uma longa espada e se aproxima em passos concisos. – O renascimento será iniciado por suas mãos, essa noite. – Um dia encontraremos o profeta e toda essa esperança vazia de paz acabará. – Sei que a paz não virá antes da guerra – diz o homem ve- lho. – Mas não se engane, o Kire será encontrado. – Conto com isso. Sua morte resolverá muitos dos meus problemas, esse é só um deles. O executor se aproxima. – Parece que seu protetor não virá.
  • 20. – Ele está protegendo o que é mais importante. Eu não me importo e nem o condeno. O velho homem concentra-se na espada sendo manejada para golpeá-lo e, por fim, sente o frio brusco da lâmina atraves- sando seu abdome. – Está feito – ele diz a seu assassino, que retira a lâmina com pungência. Em seu fôlego final, cai de joelhos, enquanto o autor do as- sassinato se vira para um dos longos corredores que dão acesso àquele salão. Um lampejo azul o faz parar e olhar por cima do ombro. – Veio aplaudir nossa vitória ou se certificar da sua conde- nação? Voltando-se para o corredor, o assassino deixa o prédio. – – – – – O copeiro se aproxima da mesa e abaixa aos ouvidos do rei, cochichando curtas palavras. Com o consentimento de sua majestade, as portas duplas da sala de refeição separam-se abruptamente, dando passagem a Bernardo Jaguar, um dos mi- nistros do rei de Bhaar e um dos poucos homens que podem in- terromper o dejejum da família real. Bernardo mantêm a cabeça abaixada ao falar porque estão presentes as duas figuras femininas do reino, a rainha Hérmina e a princesa Rebeca. – Majestade, o Conselho precisou se reunir numa situação de emergência, pedimos que se junte a nós. Aconteceu algo ruim nessa noite. Rebeca abaixa a cabeça ao sentir o tom fúnebre do minis- tro. – O que houve? – Preferimos manter o assunto dentro do Conselho, até que o senhor tome a melhor decisão.
  • 21. O rei olha para o jovem conselheiro e general dos cavalari- anos. – Volte e diga que estarei com vocês logo. Bernardo, ainda de cabeça baixa, se vira e se retira, só er- guendo os olhos depois que a porta se fecha atrás dele. A rainha estica sua mão e envolve a de seu marido. – Não devia se apressar? – Se fosse algo iminente os ministros estariam aqui no pa- lácio. A princesa segura seu talher de um modo estático. Seu olhar fixa-se em algum lugar aleatório, como se não estivesse olhando para lugar nenhum. De repente uma lágrima brota em um de seus olhos, a qual é enxugada discretamente. – Rebeca, tudo bem? Os olhos da jovem se voltam para sua mãe. – Sim… prometi a Tiro que cavalgaríamos pela manhã. Rebeca se levanta, passando para o bolso a fatia de bolo de milho que estava em seu prato. – Nossa filha será uma boa rainha! Se cumpre promessas a seu cavalo, cumprirá também a seu povo – diz seu pai com um sorriso antes de Rebeca sair pela mesma porta que o ministro usou. – – – – – Na frente do Conselho – um prédio de três andares no meio de Mirra, capital de Bhaar – Bernardo avista o rei em seu cava- lo, acompanhado por dois outros cavalarianos de sua guarda pessoal. O jovem monta em seu cavalo e os alcança. – Mudança de planos, majestade. Os ministros o esperam na Ampla Galeria. – O que está acontecendo, general? – O restante do Conselho espera lhe dizer quando…
  • 22. – O Conselho não é maior que eu. Me diga o que está acontecendo. O jovem respira fundo. – Não sabemos o motivo, mas houve um assassinato na Ampla Galeria essa noite. O coração do rei estremece. Apesar de o ministro ter redu- zido o impacto de suas palavras, ele já desconfia de quem seja a vítima. – – – – – Nos estábulos do palácio, Rebeca retira do bolso o pedaço de bolo de milho e o dá a seu grande cavalo de pelo escuro e amarronzado. – Tiro, está pronto para fazer outra vez? – ela passa a mão no pescoço do animal – Estamos ficando bons nisso, ninguém percebe a gente. Ela se vira e retira as selas de um suporte na parede. – Ele morreu essa noite – uma lágrima deslisa em sua face, levando-a a um rápido movimento para apará-la. Após terminar de selar o animal, Rebeca o abraça. – Nunca acreditei que pre- cisaria ser assim. A princesa monta no cavalo e o conduz para dentro de um denso bosque, que vai desde os fundos do palácio, percorrendo o lado leste da capital, até onde se junta finalmente à vegetação natural dos campos e florestas ao redor da cidade. – – – – – O vazio da perda toma conta do rei quando, ainda atraves- sando um dos corredores de acesso ao Grande Salão, avista o corpo cercado por uma larga poça de sangue. – Mênfis! – Gregório se estaca na borda do Grande Salão. Em passos curtos, ele se aproxima do corpo e se agacha. Segundos depois, lança longe sua espada entoando um berro
  • 23. gutural. Gregório estende a mão e deslisa os dedos sobre a face gelada e opaca do idoso. As lágrimas brotavam em um choro engasgado. Um dos ministros se aproxima e pousa a mão no ombro do rei. – Meu senhor, sei de sua dor – diz Karal, o chanceler. – Mas acreditamos que isso está além de um assassinato. – Não faremos nada enquanto ele não tiver o enterro que merece. Gregório se levanta e vira-se a seus três conselheiros. – Karal, mande retirar o corpo e aprontá-lo para o funeral; feche a Ampla Galeria, até para os acadêmicos. Bernardo e Mi- tofias, protejam as redondezas com suas tropas, quero vigias nas fronteiras do leste. “Sim, senhor”, dizem todos. Os quatro homens saem do lugar, dando à jovem escondida a brecha que precisava para sair de seu esconderijo. Se esguei- rando atrás de uma das colunas de sustentação do domo, numa entreolhada, Rebeca pôde ver melhor o corpo que já havia re- conhecido. Suas mãos descem pela coluna enquanto sua cabeça se apoia nela. Por um segundo, a tentação de ceder ao pesar quase toma conta de sua mente, mas a visão do corpo sem vida estendido no chão lhe traz de volta à sobriedade. Rebeca vai até o centro do Grande Salão e se ajoelha diante do corpo. Seus olhos percorrem o amado amigo da família real. Ela olha para o alto e vê o céu através do óculo, imaginando como o firmamento estaria no momento em que os olhos de Mênfis se enchiam de escuridão. “Me desculpe… se minha fé tivesse sido mais forte…”, ela sussurra num choro discreto. Os detalhes da cena a fazem perder a atenção por alguns segundos, sendo alertada por seus reflexos no último instante.
  • 24. “Está vindo alguém!”, ela pensa. A princesa corre para trás de uma das colunas e vê o homem se aproximando. O retimir da lâmina de uma espada sendo desembainhada enche o local. – Sei que está aí, se não aparecer, terei que te procurar – a voz forte dá a ordem. A reação de Rebeca é ficar quieta, recostada na grossa co- luna. – Você é agora o principal suspeito desse assassinato, al- guém que eu posso abater no ato. Rebeca continua quieta. – E apenas um comando que eu der, esse lugar se encherá de soldados. É melhor se apresentar, agora! A janela pela qual Rebeca entrou está longe demais para chegar lá sem ser percebida ou não ser alcançada por um solda- do. É a segunda vez naquela manhã que ela vê aquele rapaz e, também, é a segunda vez que ela sente que ele pode ser confiá- vel. – Usaria sua espada contra a filha do rei? – Rebeca apare- ce, abaixando o capuz e revelando seu rosto. O jovem dá um curto salto para trás, com medo nítido por ter ameaçado a princesa. Ele recolhe sua espada imediatamente e abaixa sua cabeça. – Princesa! Me desculpe, não sabia quem era… pensei que pudesse ser alguma ameaça. – Preciso sair daqui sem ser vista e você não pode contar a ninguém que me viu. – Não posso ocultar nada se for questionado. Você não de- veria estar aqui. Contristada, Rebeca responde: – Esse é o único lugar para eu estar agora. Trabalhei e estu- dei ao lado dele, não pode me tirar daqui. Ela contorna o corpo de Mênfis e se coloca ao lado de Ber- nardo. Por um momento se perde mais uma vez nos detalhes do cenário.
  • 25. – Talvez eu não a tire, mas outros podem fazer se chegarem aqui – Bernardo a chama. Ela não lhe dá qualquer atenção. – Seu pai ordenou que esvaziássemos a galeria. A princesa continua olhando para o chão. – Chega a ser poético – ela diz. Bernardo desiste de tirá-la dali. – Poético? – A disposição do corpo, esse lugar, o piso. Bernardo olha no chão e se dá conta de que nesse piso está esboçado um dos maiores ícones da cultura daquele povo. Fai- xas de mármore preto se inserem no mármore branco dese- nhando o símbolo da lendária história da existência: um grande círculo envolvendo três círculos menores, que se unem por uma parte de suas circunferências. No centro de cada esfera menor, a figura de tronos foi modelada. – A Crônica Esférica? – ele olha para Rebeca, concentrada no desenho no piso de mármore. – Significa alguma coisa para você? – Significava muito para ele. Mênfis dedicou mais da me- tade da vida a essa crônica, tentando entender, fazendo dese- nhos, contando histórias. – Isso não passa de fantasia. – Para alguns é sim. Antes que Bernardo pudesse dar alguma resposta, Rebeca diz: – Repare no corpo dele – ela se aproxima de Mênfis. – Os pés estão na Esfera da Existência, a nossa esfera. Mas a mão está na esfera acima, tentando alcançá-la. – Foi o jeito que ele caiu. – Veja a marca de sangue, ele arrastou os dedos, tentando alcançar o trono no centro. Bernardo se aproxima da princesa.
  • 26. – Acha que ele queria alcançar? – apesar de não levar mui- to em conta, ele decide prestar atenção. – Ele acreditava em alguma coisa. Talvez se sentisse con- fortado. – Princesa, com todo respeito, isso é só um desenho e, mesmo que seja isso que ele tenha tentado fazer, acho que não vai nos dar muitas respostas. Rebeca recua alguns passos. – Mênfis era um dos homens mais brilhantes do reino, Rei- tor da Ampla Galeria. A Crônica Esférica nunca foi só um dese- nho para ele. Passos metálicos de soldados trajados de pesadas armadu- ras ressoam dos corredores. – Tenho de ir. Você não vai dizer que… – Que você esteve aqui e que eu a deixei ficar? Não vou di- zer nada. Rebeca cobre a cabeça com o capuz e desaparece num cor- redor escuro. Os que vinham pelo corredor aparecem pouco tempo de- pois. – Onde estão os seus soldados? – pergunta Karal, que che- gou com outros quatro soldados. – Por que está aqui? – Voltei para buscar a espada de Gregório. Karal olha para a espada ainda jogada no chão, longe de Bernardo. – Não se preocupe com isso, eu cuido dela. Mitofias já foi para o quartel, estava procurando por você. – Já vou encontrá-lo – Bernardo dá um passo para trás e se vira, saindo pelo corredor principal. Karal estende um grande pano branco sobre Mênfis. En- quanto os quatro oficiais cuidam de transportar o corpo, o chanceler pega o manto oficial que Mênfis usava, o qual jogou
  • 27. no chão momentos antes de ser morto. Seus dedos encontram uma textura diferente numa dobra da roupa. – Senhor? Karal retorna sua atenção para os homens. – Podemos levar? – Sim, a carruagem está esperando. – – – – – A capacidade de voar em alta velocidade fez a águia chegar na cidade de Choucai antes do entardecer. Pousa no pátio da Casa do Lorde, onde o pouquíssimo restante dos apoiadores de Mairus a esperam ansiosos, incluindo o príncipe Calebe e sua mãe, a rainha Ruthe. – Aquis, que notícias traz? – pergunta Esli, um idoso etim, mentor do príncipe e, até então, ancião na Academia, a grande escola que pesquisa a fabulosa mente dos etims de matrizes po- derosas, capazes de telepatia e telecinética. A grande ave olha em volta, fugindo dos olhos do que so- brou da família real de Tinóvia. – A Tradição Antiga caiu nessa noite. Nosso rei está morto. Ruthe arfa e cobre a boca com a mão; suas lágrimas en- chem seu rosto imediatamente. Esli passa o braço em volta dos ombros de Calebe, mas o príncipe resiste a qualquer demons- tração de pesar. – O restante de nosso exército foi exterminado na baixada entre os montes Har e o Grande Deserto. Agora o Sends Zurx marcha para Main-Sefar. – Devemos pensar num reagrupamento – sugere Aza, lorde de Choucai, de uma raça dos chamados zangões, seres alados, com uma calda fina e longa, equipada com um mortal ferrão triangular. A pele marrom é coberta por pequenas carapaças. – Não sobrou ninguém – responde a ave. – Ainda temos soldados aqui em Choucai.
  • 28. – Tão poucos que cairíamos no primeiro ataque, Aza – diz Esli. A conclusão é aceita na mente de todos, mas é dita por Num, lorde etim: – Não há mais o que fazer. Fomos derrotados. Um segundo depois e a voz de Esli rompe: – “Enquanto Mairus e sua semente sentarem no trono de Main-Sefar, a ordem reinará sobre todos”, esta é a promessa es- crita na Tradição Antiga, feita pelo Trono de Luz e Ouro. Num levanta os olhos: – A Tradição Antiga viveu com Mairus e sua dinastia, mas acaba de morrer junto com ela. – Não, Num, a dinastia não morreu – Jadar, o lorde leopar- do alado se pronuncia, olhando para Calebe, o jovem príncipe. – Temos que tirar o príncipe e a rainha daqui. Eles são a única esperança de Tinóvia encontrar a paz novamente. – Rovena está possuída pelo poder da Noite, não vai demo- rar nos encontrar – diz a águia. – Não podemos deixar o povo – o pesar não deixa Calebe sentir o peso de suas palavras, mas ele sabe que é o certo a di- zer, que seria o que seu pai diria. – Não os deixaremos, manteremos a esperança deles viva por manter você vivo, príncipe – Esli olha para ele. – Precisa- mos fugir, agora.
  • 29. Muito obrigado por ter lido! Dedicar um pouquinho do seu tempo à leitura dos primeiros capítulos do meu livro é um grande incentivo para mim continuar com meu trabalho. Muito obrigado! A Crônica Esférica: Caminho da Noite é o primeiro volume de uma série de fantasia épica. O livro completo será lançado no dia 10 de janeiro de 2018 gratuitamente, por tempo indeterminado. Trata-se de uma produção independente, por isso você não vai encontrar Caminho da Noite nas livrarias. Para receber o seu, basta se inscrever no link abaixo e enviar seu e-mail, prometo que jamais enviarei spam, o e-mail só será usado para lhe enviar o e-book e novidades sobre a saga. A inscrição não leva nem 2 minutos. Ganhe seu e-book: https://acronicaesferica.wordpress.com/ganhe-seu-exemplar/ Mesmo que você esteja lendo essa amostra depois de 10/01/2018, o link acima lhe garantirá o livro se ele ainda estiver na promoção gratuita. Desde jé, agradeço sua participação em meu trabalho. Atenciosamente, Isaac Smith 02/12/2017 Goiânia, Goiás