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Para a minha equipe de escritores de Nova York,
por saberem a importância da Arte
7
UM
OS CAVALOS AUSTRÍACOS RELUZIAM ao luar, os cavaleiros eretos e de
espadas em riste nas selas. Atrás deles vinham duas fileiras de máquinas
andadoras movidas a diesel, prontas para atirar, com os canhões aponta-
dos acima das cabeças da cavalaria. A superfície de metal de um zepelim
brilhava enquanto ele fazia a varredura da terra de ninguém que era o
centro do campo de batalha.
A infantaria francesa e a britânica se encolhiam atrás de suas forti-
ficações — um abridor de cartas, um pote de nanquim e uma fileira de
canetas-tinteiro —, sabendo que não tinham chance alguma contra o
poderio do Império Austro-Húngaro. Mas uma fileira de monstros dar-
winistas se avultava atrás deles, pronta para devorar qualquer um que
ousasse retroceder.
O ataque quase havia começado quando o príncipe Aleksandar pen-
sou ter ouvido alguém do lado de fora da porta…
Ele deu um passo cheio de culpa em direção à cama — então parou
onde estava, ouvindo com atenção. As árvores se agitavam diante de uma
leve brisa lá fora, mas, tirando isso, a noite estava silenciosa. Pai e Mãe
estavam em Sarajevo, afinal de contas. Os criados não ousariam pertur-
bar seu sono.
8
Alek voltou para a mesa e começou a avançar a cavalaria, sorrindo à
medida que a batalha se aproximava do clímax. Os andadores austríacos
completaram o bombardeio e era hora de os cavalos de chumbo acaba-
rem com os franceses, lamentavelmente em menor número. Ele levou a
noite inteira armando o ataque, usando um manual de táticas imperiais
emprestado do escritório do Pai.
Parecia justo que Alek se divertisse um pouco enquanto os pais esta-
vam ausentes assistindo a manobras militares. Ele havia implorado que fosse
juntoparaveraexibiçãodefileirasdesoldadosmarchandonavidareal,para
sentir pela sola das botas o estrondo das máquinas de guerra reunidas.
Foi a Mãe, é claro, que o proibira de ir — seus estudos eram mais
importantes do que “paradas”, como ela chamava as manobras. Ela não
entendia que os exercícios militares tinham mais a ensiná-lo do que ve-
lhos tutores bolorentos e seus livros. Logo Alek estaria pilotando uma
daquelas máquinas.
A guerra estava chegando; afinal de contas. Era o que todo mundo dizia.
A última unidade de cavalaria de chumbo tinha acabado de se chocar
contra as fileiras francesas quando o som baixinho soou novamente no
corredor: um tilintar, como um molho de chaves.
9
Alek se virou e olhou pela fresta debaixo das portas duplas do quarto.
Sombras se moviam através da nesga de luar, e ele ouviu prolongados sus-
surros.
Alguém estava do lado de fora.
Em silêncio, de pés descalços, ele cruzou rapidamente o chão de
mármore frio e se deitou na cama assim que a porta se abriu. Alek es-
treitou os olhos, deixando apenas uma fresta aberta, e se perguntou qual
dos criados fora vê-lo.
O luar se espalhou pelo quarto, fazendo os soldados de chumbo
na mesa reluzirem. Alguém entrou com cuidado e em silêncio total.
A figura parou, encarou Alek por um momento e em seguida foi de
mansinho em direção à cômoda. Alek ouviu o som da madeira de uma
gaveta sendo aberta.
Seu coração disparou. Nenhum dos criados ousaria roubá-lo!
Mas e se o intruso fosse algo pior do que um ladrão? Os alertas do pai
ecoaram nos ouvidos…
Você tem inimigos desde o dia em que nasceu.
Havia a corda de um sino ao lado da cama, mas os aposentos dos pais
estavam vazios. Com o Pai e o guarda-costas em Sarajevo, as sentinelas
mais próximas estavam do outro lado do salão de troféus, a 50 metros
de distância.
Alek colocou uma das mãos debaixo do travesseiro até os dedos en-
contrarem o aço frio da faca de caça. Ele ficou deitado ali, prendendo a
respiração, segurando o cabo com força, repetindo o outro conselho do Pai.
A surpresa é mais valiosa do que a força.
Então outra figura entrou, com as botas ecoando no chão e as pre-
silhas de metal de uma jaqueta de piloto tilintando como um molho de
chaves. A figura foi diretamente para a cama, dando passos duros.
— Jovem mestre! Acorde!
Alek soltou a faca e exalou um suspiro de alívio. Era apenas o velho
Otto Klopp, seu professor de mekânica.
A primeira figura começou a revirar a cômoda e retirar roupas.
10
— O jovem príncipe estava acordado o tempo todo — disse a voz
baixa do conde Volger. — Um pequeno conselho, vossa alteza? Quando
fingir que está dormindo, é aconselhável não prender a respiração.
Alek se sentou e fez uma cara feia. O professor de esgrima tinha um
talento irritante para perceber dissimulação.
— O que significa isto?
— O senhor virá conosco, jovem mestre — murmurou Otto, obser-
vando o chão de mármore. — Ordens do arquiduque.
— Meu Pai? Ele já voltou?
— Ele deixou instruções — disse o conde Volger com o mesmo tom
irritante que usava durante as aulas de esgrima. Ele jogou um par de
calças de Alek e uma jaqueta de piloto sobre a cama.
Alek encarou os dois homens, meio enfurecido e meio confuso.
— Como o jovem Mozart — disse Otto baixinho. — Nas histórias do
arquiduque.
Alek franziu a testa ao se lembrar das histórias favoritas do Pai sobre
a educação do grande compositor. Aparentemente, os tutores de Mozart
o acordavam no meio da noite, quando a mente estava nua e indefesa, e
o obrigavam a ter aulas de música. Isso tudo parecia bastante desrespei-
toso aos olhos de Alek.
Ele pegou as calças.
— Vocês vão me fazer compor uma fuga?
— Uma ideia divertida — disse o conde Volger. — Mas, por favor, se
apresse.
— Nós temos um andador esperando atrás dos estábulos, jovem
mestre. — O rosto preocupado de Otto tentou sorrir. — O senhor deve
assumir a direção.
— Um andador? — Alek arregalou os olhos. Pilotar era uma parte
dos estudos para a qual ele sairia da cama alegremente. Alek se enfiou
nas roupas velozmente.
11
— Sim, sua primeira lição noturna! — disse Otto ao entregar as botas
de Alek.
Alek calçou as botas e ficou de pé, depois pegou as luvas de piloto
favoritas na cômoda, dando passos que ecoaram no chão de mármore.
— Silêncio agora. — O conde Volger parou ao lado das portas do
quarto. Ele abriu um pouco e espiou o corredor.
— Vamos sair de mansinho, vossa alteza! — sussurrou Otto. — Bem
divertida esta lição! Igualzinho ao jovem Mozart.
Os três passaram cautelosamente pelo salão de troféus, com o mestre
Klopp ainda pisando forte no chão e Volger dando passos leves e silen-
ciosos. Quadros dos ancestrais de Alek, a família que reinava na Áustria
havia 600 anos, ladeavam o corredor, e as figuras tinham olhares fixos
e expressões enigmáticas. As galhadas dos troféus de caça do Pai pro-
jetavam um emaranhado de sombras como uma floresta iluminada pelo
luar. Cada passo era intensificado pelo silêncio do castelo, e perguntas
ecoavam na mente de Alek.
Não era perigoso pilotar um andador à noite? E por que o professor
de esgrima estava indo junto? O conde Volger preferia espadas e cavalos
a mekanismos sem alma, e tinha pouca paciência para plebeus como
o velho Otto. O mestre Klopp tinha sido empregado pelas habilidades
como piloto, não pelo nome da família.
— Volger… — começou Alek.
— Quieto, menino! — disparou o conde.
Alek sentiu uma onda de fúria e um xingamento quase irrompeu
pela boca, mesmo que arruinasse o jogo idiota de sair de mansinho.
Era sempre assim. Para os criados ele podia ser “o jovem arquiduque”,
mas nobres como Volger jamais deixavam Alek esquecer sua posição.
Graças ao sangue plebeu da mãe, ele não podia herdar terras ou títulos
12
reais. O Pai podia ser o herdeiro de um império de cinquenta milhões de
almas, mas Alek era o herdeiro de nada.
O próprio Volger era apenas um conde que não tinha fazendas, ape-
nas um pouco de floresta, mas ainda assim podia se sentir superior ao
filho de uma dama de companhia.
Entretanto, Alek se controlou para ficar calado, e deixou a raiva pas-
sar enquanto corriam pelas enormes cozinhas apagadas. Anos de insul-
tos o haviam ensinado a morder a língua, e era mais fácil engolir o desre-
speito com a perspectiva de pilotar em breve.
Um dia ele se vingaria. O Pai havia prometido. O contrato de casa-
mento seria alterado de alguma forma e o sangue de Alek se tornaria
real, mesmo que isso significasse desafiar o próprio imperador.

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Leviata trecho

  • 1. Para a minha equipe de escritores de Nova York, por saberem a importância da Arte
  • 2.
  • 3. 7 UM OS CAVALOS AUSTRÍACOS RELUZIAM ao luar, os cavaleiros eretos e de espadas em riste nas selas. Atrás deles vinham duas fileiras de máquinas andadoras movidas a diesel, prontas para atirar, com os canhões aponta- dos acima das cabeças da cavalaria. A superfície de metal de um zepelim brilhava enquanto ele fazia a varredura da terra de ninguém que era o centro do campo de batalha. A infantaria francesa e a britânica se encolhiam atrás de suas forti- ficações — um abridor de cartas, um pote de nanquim e uma fileira de canetas-tinteiro —, sabendo que não tinham chance alguma contra o poderio do Império Austro-Húngaro. Mas uma fileira de monstros dar- winistas se avultava atrás deles, pronta para devorar qualquer um que ousasse retroceder. O ataque quase havia começado quando o príncipe Aleksandar pen- sou ter ouvido alguém do lado de fora da porta… Ele deu um passo cheio de culpa em direção à cama — então parou onde estava, ouvindo com atenção. As árvores se agitavam diante de uma leve brisa lá fora, mas, tirando isso, a noite estava silenciosa. Pai e Mãe estavam em Sarajevo, afinal de contas. Os criados não ousariam pertur- bar seu sono.
  • 4. 8 Alek voltou para a mesa e começou a avançar a cavalaria, sorrindo à medida que a batalha se aproximava do clímax. Os andadores austríacos completaram o bombardeio e era hora de os cavalos de chumbo acaba- rem com os franceses, lamentavelmente em menor número. Ele levou a noite inteira armando o ataque, usando um manual de táticas imperiais emprestado do escritório do Pai. Parecia justo que Alek se divertisse um pouco enquanto os pais esta- vam ausentes assistindo a manobras militares. Ele havia implorado que fosse juntoparaveraexibiçãodefileirasdesoldadosmarchandonavidareal,para sentir pela sola das botas o estrondo das máquinas de guerra reunidas. Foi a Mãe, é claro, que o proibira de ir — seus estudos eram mais importantes do que “paradas”, como ela chamava as manobras. Ela não entendia que os exercícios militares tinham mais a ensiná-lo do que ve- lhos tutores bolorentos e seus livros. Logo Alek estaria pilotando uma daquelas máquinas. A guerra estava chegando; afinal de contas. Era o que todo mundo dizia. A última unidade de cavalaria de chumbo tinha acabado de se chocar contra as fileiras francesas quando o som baixinho soou novamente no corredor: um tilintar, como um molho de chaves.
  • 5. 9 Alek se virou e olhou pela fresta debaixo das portas duplas do quarto. Sombras se moviam através da nesga de luar, e ele ouviu prolongados sus- surros. Alguém estava do lado de fora. Em silêncio, de pés descalços, ele cruzou rapidamente o chão de mármore frio e se deitou na cama assim que a porta se abriu. Alek es- treitou os olhos, deixando apenas uma fresta aberta, e se perguntou qual dos criados fora vê-lo. O luar se espalhou pelo quarto, fazendo os soldados de chumbo na mesa reluzirem. Alguém entrou com cuidado e em silêncio total. A figura parou, encarou Alek por um momento e em seguida foi de mansinho em direção à cômoda. Alek ouviu o som da madeira de uma gaveta sendo aberta. Seu coração disparou. Nenhum dos criados ousaria roubá-lo! Mas e se o intruso fosse algo pior do que um ladrão? Os alertas do pai ecoaram nos ouvidos… Você tem inimigos desde o dia em que nasceu. Havia a corda de um sino ao lado da cama, mas os aposentos dos pais estavam vazios. Com o Pai e o guarda-costas em Sarajevo, as sentinelas mais próximas estavam do outro lado do salão de troféus, a 50 metros de distância. Alek colocou uma das mãos debaixo do travesseiro até os dedos en- contrarem o aço frio da faca de caça. Ele ficou deitado ali, prendendo a respiração, segurando o cabo com força, repetindo o outro conselho do Pai. A surpresa é mais valiosa do que a força. Então outra figura entrou, com as botas ecoando no chão e as pre- silhas de metal de uma jaqueta de piloto tilintando como um molho de chaves. A figura foi diretamente para a cama, dando passos duros. — Jovem mestre! Acorde! Alek soltou a faca e exalou um suspiro de alívio. Era apenas o velho Otto Klopp, seu professor de mekânica. A primeira figura começou a revirar a cômoda e retirar roupas.
  • 6. 10 — O jovem príncipe estava acordado o tempo todo — disse a voz baixa do conde Volger. — Um pequeno conselho, vossa alteza? Quando fingir que está dormindo, é aconselhável não prender a respiração. Alek se sentou e fez uma cara feia. O professor de esgrima tinha um talento irritante para perceber dissimulação. — O que significa isto? — O senhor virá conosco, jovem mestre — murmurou Otto, obser- vando o chão de mármore. — Ordens do arquiduque. — Meu Pai? Ele já voltou? — Ele deixou instruções — disse o conde Volger com o mesmo tom irritante que usava durante as aulas de esgrima. Ele jogou um par de calças de Alek e uma jaqueta de piloto sobre a cama. Alek encarou os dois homens, meio enfurecido e meio confuso. — Como o jovem Mozart — disse Otto baixinho. — Nas histórias do arquiduque. Alek franziu a testa ao se lembrar das histórias favoritas do Pai sobre a educação do grande compositor. Aparentemente, os tutores de Mozart o acordavam no meio da noite, quando a mente estava nua e indefesa, e o obrigavam a ter aulas de música. Isso tudo parecia bastante desrespei- toso aos olhos de Alek. Ele pegou as calças. — Vocês vão me fazer compor uma fuga? — Uma ideia divertida — disse o conde Volger. — Mas, por favor, se apresse. — Nós temos um andador esperando atrás dos estábulos, jovem mestre. — O rosto preocupado de Otto tentou sorrir. — O senhor deve assumir a direção. — Um andador? — Alek arregalou os olhos. Pilotar era uma parte dos estudos para a qual ele sairia da cama alegremente. Alek se enfiou nas roupas velozmente.
  • 7. 11 — Sim, sua primeira lição noturna! — disse Otto ao entregar as botas de Alek. Alek calçou as botas e ficou de pé, depois pegou as luvas de piloto favoritas na cômoda, dando passos que ecoaram no chão de mármore. — Silêncio agora. — O conde Volger parou ao lado das portas do quarto. Ele abriu um pouco e espiou o corredor. — Vamos sair de mansinho, vossa alteza! — sussurrou Otto. — Bem divertida esta lição! Igualzinho ao jovem Mozart. Os três passaram cautelosamente pelo salão de troféus, com o mestre Klopp ainda pisando forte no chão e Volger dando passos leves e silen- ciosos. Quadros dos ancestrais de Alek, a família que reinava na Áustria havia 600 anos, ladeavam o corredor, e as figuras tinham olhares fixos e expressões enigmáticas. As galhadas dos troféus de caça do Pai pro- jetavam um emaranhado de sombras como uma floresta iluminada pelo luar. Cada passo era intensificado pelo silêncio do castelo, e perguntas ecoavam na mente de Alek. Não era perigoso pilotar um andador à noite? E por que o professor de esgrima estava indo junto? O conde Volger preferia espadas e cavalos a mekanismos sem alma, e tinha pouca paciência para plebeus como o velho Otto. O mestre Klopp tinha sido empregado pelas habilidades como piloto, não pelo nome da família. — Volger… — começou Alek. — Quieto, menino! — disparou o conde. Alek sentiu uma onda de fúria e um xingamento quase irrompeu pela boca, mesmo que arruinasse o jogo idiota de sair de mansinho. Era sempre assim. Para os criados ele podia ser “o jovem arquiduque”, mas nobres como Volger jamais deixavam Alek esquecer sua posição. Graças ao sangue plebeu da mãe, ele não podia herdar terras ou títulos
  • 8. 12 reais. O Pai podia ser o herdeiro de um império de cinquenta milhões de almas, mas Alek era o herdeiro de nada. O próprio Volger era apenas um conde que não tinha fazendas, ape- nas um pouco de floresta, mas ainda assim podia se sentir superior ao filho de uma dama de companhia. Entretanto, Alek se controlou para ficar calado, e deixou a raiva pas- sar enquanto corriam pelas enormes cozinhas apagadas. Anos de insul- tos o haviam ensinado a morder a língua, e era mais fácil engolir o desre- speito com a perspectiva de pilotar em breve. Um dia ele se vingaria. O Pai havia prometido. O contrato de casa- mento seria alterado de alguma forma e o sangue de Alek se tornaria real, mesmo que isso significasse desafiar o próprio imperador.