1. Inês do Lago
Sem Sangue
“Devo-te” esta carta de amor porque te amo. Receio que, por sua vez,
seja em vão, e que continues sem saber tudo o que nunca te disse, que
provavelmente não precisava de o fazer, porque tu, melhor do que eu
conseguia expressar, conseguias sentir. Receio que é quase certo,
definitivamente certo até.
Gostava de te perguntar como foi o teu aniversário, no habitat por
todos nós, terrestres, desconhecido. Certamente é mais calmo e menos físico.
Talvez seja mais cheio de emoção, talvez nada. Mas um bom nada. Um nada
que se faça sentir.
Quero ouvir falar do teu presente. Se estás bem, como e quem são os
teus novos e autênticos, mas poucos apóstolos. Porque, por cá, continuam os
mesmos, outros tentam sê-lo quando já não há qualquer hipótese. E eu bem
vejo, adoram-te e anseiam-te, – mas queria que os visses – falam de ti mesmo
tentando evitá-lo. Ainda assim, falta-me saber muito do que aconteceu antes
da bomba. Há tanto…
Alguns dos teus muitos admiradores – excluindo aqueles com quem não
partilhavas a mesma intensidade de contemplação – os que eu tive a audácia
de enfrentar, dizem teres feito parte dos seus sonhos por várias vezes.
Enquanto que os meus, ou não o são, ou se desvanecem, ou são pesadelos. E
nem nesses últimos, mais mórbidos, nem nos mais passageiros te encontro. O
mal não será tanto não te ver, mas o que poderá querer isso dizer. Não
querendo, claro, parecer uma personagem romântica do século XIX com as
suas superstições.
Voltando ao início, em todos os sentidos, sonhava ter adormecido e
flutuado ao teu lado, para o teu lado, no teu alcançável e adorável estado.
Serena e apaixonada, com luz, mãos, pernas, e tudo teu. Tanto e tão
ofuscante brilho! Que muito me arrependo de não ter fotografado cada
pormenor a seu tempo, de cada vez.
E confesso, nas minhas lutas de expressão me pergunto como seria bom
fazer-te uma visita, pedir-te conselhos sobre com que livro me devia “excluir”
e consumir. Ou ver só, porque provavelmente, tal como nos meus sonhos, não
te ia encontrar. Mas sabia, ao menos, onde passas o tempo, que certamente
não se trata de tempo, de dias, de horas. Não havia a probabilidade tão
provável de me atrasar!
Bom, algum interesse há de ter, ou não tinhas tanta pressa para lá
chegar. Havia, no entanto, um problema difícil de resolver – a não ser que te
tenhas tornado em algo, num Deus talvez – e que faz com que o abraço tenha
que ser adiado. É que… estive a pensar e temo não voltar. Não que me
importasse, mas gostava e precisava de mais um tempinho – eu sei que serias
a primeira pessoa a não me deixar fazer uma viagem duvidosa como esta.
Talvez à Amazónia, mas a esse sítio quase mais perigoso do que sagrado,
temos tempo – ainda há algo que se aproveite. Sagrado por não existir.
Agora, para juntar a todas estas poucas questões sem receptor, falta-
me uma que me veio neste momento à memória. E… Não tem acontecido o
que todos diziam. Que ficavas no coração, se não fosse no coração, nas coisas,
se não fosse nas coisas, no cheiro. Enfim, aquelas histórias acabadas de sair
2. do bolso para amenizar o transtorno. Agora, o que mais me aborrece é o facto
de todos me tentarem convencer de algo tão absurdo e inconcebível. É
possível que com eles resulte mas, e então? Por onde anda a consciência, a
inteligência, o acto de pensar, os minutos de “brainstorming” imparável
mesmo antes de adormecer? Chateia-me que seja a única estratégia que têm
para se livrar de certos pensamentos. Pensamentos que nem sequer deviam
ser esquecidos, embora necessite de uma ou outra pausa pelo caminho.
E sobre isso – pensamentos – nem me consigo especificar. Porque eu,
mesmo sem as memórias visuais, auditivas, as vozes, as falas, o silêncio, os
tiros, tudo – pois falha-me, e muito, a memória – vivo contigo, todos os Santos
Dias.