A autora expressa sua admiração pelo escritor Walser e como suas obras tiveram um grande impacto em sua vida, levando-a por caminhos desconhecidos. No entanto, ela se distanciou de uma pessoa importante e isso a entristece, fazendo-a questionar como alguém pode passar a sentir desagrado por outra pessoa. A autora busca conforto no trabalho e em jardins para se sentir melhor.
1. O tempo escasseia mas a vontade de vir é imensa.
Quantas conquistas recentes! Que longo caminho percorri.... e se tu soubesses, Walser,
como uma frase tua, uma só, pôde ter um impacto tão forte, tão definitivo, tão
profundamente irreversível nos nossos destinos.
Meu Deus, Walser, se puderes diz-lhe, um dia, que eu não sou um bicho. Não faço mal,
não mordo. Ladro, é verdade. Às vezes ladro quando me doi a vida...Quando estou
ferida...Mas só isso. Faço um pouco de barulho. Nem o meu ladrar é convincente. Não
assusta ninguém, nunca assustou. Poucas vezes me atirei com ganas a um pescoço, e
sempre em defesa de outros, não em minha.
Diz-lhe, por favor, que aqui neste meu cantinho aconchegante, junto ao mar, eu nunca
lhe faria mal, seria incapaz. Poderia até habitar no mesmo canto do que ele, percorrer as
mesmas ruas, os mesmos espaços sem mover um dedo para ferí-lo, ofendê-lo, agredí-lo.
Diz-lhe que não precisa montar guarda, proteger-se de mim. Eu sou inofensiva. Tão
inofensiva....Descansa Homem! Ó homem, sossega....Explica-lhe Walser, por
favor...que eu gosto de Sol, de calor, de andar descalça. É tão bom andar descalça...
Com os pés nús, sentindo o chão quente. Causa uma sensação agradável de liberdade.
Por isso gosto tanto do Verão, andamos soltos, sem roupa quase, com cores alegres e
leves !
Eu gosto do cão que me lambe as mãos a toda a hora, que põe a cabeça no meu colo e
levanta os olhos para mim pedindo festas.
Eu gosto dos gatos, independentes, que recusam os mimos que lhes queremos dar e, ao
sentir-se ignorados, se roçam nas nossas pernas, afirmando a sua presença. Sou um
pouco cão e um pouco gato.
Eu gosto de estar em casa, sinto-me bem no meu no meu cantinho, acho que é o sítio da
casa que mais gosto, talvez por aqui ter sido o meu quarto de criança e adolescente.
Gosto de harmonia. Gosto de estar sozinha porque não estou só.
Gosto cada vez mais da surdez...enquanto não me roubar a música conviveremos bem...
Já não a lamento.
Diz-lhe isto por favor porque eu não posso. Eu não posso mais dirigir-me a ele. Já me
despedi (sei que lá não chegaram as minhas palavras mas, quanto a isso, mais esforços
não farei, fui até onde podia ir...fui mais longe do que podia ir, muito mais. Será melhor
assim... de nada serviria o meu pedido de desculpas, não seria aceite, estou certa, ou
talvez recebido com azedume. Nem sei já sequer se devia desculpas algumas, mas não
gosto de pensar que ofendi ou feri e um dia pode ser tarde...Continuará assim este
cantinho só meu, para onde gosto de fugir. Na verdade por que razão haveria de o
partilhar, se não o partilho com ninguém? Porquê com ele? ). Desencontrámo-nos. Acho
que foi isso. Não sei o que aconteceu, ao certo não sei, mas passámos a falar linguagens
diferentes, como se nunca tivéssemos falado sequer a mesma língua e a minha presença
tornou-se um peso. Atrapalha...desagrada. É estranho, sabias? A mim, às vezes doi-me.
Consegues imaginar, sentir, que alguém pense em ti com desagrado, que lamente a tua
existência, ter chegado a conhecer-te? Céus, é terrível. Não quero pensar nisso agora,
sinto um aperto tão forte cá dentro que julgo ficar sem ar... (entendo agora a expressão
"com o coração estraçalhado"). De imediato as lágrimas...sem que eu tenha controlo
sobre elas...As mãos transpiradas, tremem. Não posso pensar nisso agora, tenho muitas
palavras à minha espera. Não posso. Preciso trabalhar, é fundamental trabalhar. Quanto
mais complexo for o texto melhor. Depois, procurarei, quem sabe, um Jardim, que me
faça sentir gente outra vez e em cujas tretas eu finjo acreditar, esfumaço e estou viva.
E porque tu, Walser, sem teres a menor noção, a mais leve ideia, marcaste a minha vida
tão profundamente, levando-me por caminhos desconhecidos, maravilhosos uns,
2. tortuosos outros, terei um dia destes que te escrever. Fá-lo-ei muito em breve, logo que
tenha tempo, para te dizer como lamento não falar a tua língua, como lamento que a tua
obra seja pouco lida por nós, que quase nada do que escreveste esteja traduzido.
Será que alguma vez te passou pela cabeça, mesmo que levemente, que aquilo que
escreves pode mudar vidas e destinos?
Descobrirei facilmente uma morada, um email. Fá-lo-ei, terei que o fazer, porque
também tu estás agora profundamente ligado ao que me tornei e de tanto que li a teu
respeito, não me será difícil dirigir-me a ti.