SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
O tempo escasseia mas a vontade de vir é imensa.
Quantas conquistas recentes! Que longo caminho percorri.... e se tu soubesses, Walser,
como uma frase tua, uma só, pôde ter um impacto tão forte, tão definitivo, tão
profundamente irreversível nos nossos destinos.

Meu Deus, Walser, se puderes diz-lhe, um dia, que eu não sou um bicho. Não faço mal,
não mordo. Ladro, é verdade. Às vezes ladro quando me doi a vida...Quando estou
ferida...Mas só isso. Faço um pouco de barulho. Nem o meu ladrar é convincente. Não
assusta ninguém, nunca assustou. Poucas vezes me atirei com ganas a um pescoço, e
sempre em defesa de outros, não em minha.
Diz-lhe, por favor, que aqui neste meu cantinho aconchegante, junto ao mar, eu nunca
lhe faria mal, seria incapaz. Poderia até habitar no mesmo canto do que ele, percorrer as
mesmas ruas, os mesmos espaços sem mover um dedo para ferí-lo, ofendê-lo, agredí-lo.
Diz-lhe que não precisa montar guarda, proteger-se de mim. Eu sou inofensiva. Tão
inofensiva....Descansa Homem! Ó homem, sossega....Explica-lhe Walser, por
favor...que eu gosto de Sol, de calor, de andar descalça. É tão bom andar descalça...
Com os pés nús, sentindo o chão quente. Causa uma sensação agradável de liberdade.
Por isso gosto tanto do Verão, andamos soltos, sem roupa quase, com cores alegres e
leves !
Eu gosto do cão que me lambe as mãos a toda a hora, que põe a cabeça no meu colo e
levanta os olhos para mim pedindo festas.
Eu gosto dos gatos, independentes, que recusam os mimos que lhes queremos dar e, ao
sentir-se ignorados, se roçam nas nossas pernas, afirmando a sua presença. Sou um
pouco cão e um pouco gato.
Eu gosto de estar em casa, sinto-me bem no meu no meu cantinho, acho que é o sítio da
casa que mais gosto, talvez por aqui ter sido o meu quarto de criança e adolescente.
Gosto de harmonia. Gosto de estar sozinha porque não estou só.
Gosto cada vez mais da surdez...enquanto não me roubar a música conviveremos bem...
Já não a lamento.
Diz-lhe isto por favor porque eu não posso. Eu não posso mais dirigir-me a ele. Já me
despedi (sei que lá não chegaram as minhas palavras mas, quanto a isso, mais esforços
não farei, fui até onde podia ir...fui mais longe do que podia ir, muito mais. Será melhor
assim... de nada serviria o meu pedido de desculpas, não seria aceite, estou certa, ou
talvez recebido com azedume. Nem sei já sequer se devia desculpas algumas, mas não
gosto de pensar que ofendi ou feri e um dia pode ser tarde...Continuará assim este
cantinho só meu, para onde gosto de fugir. Na verdade por que razão haveria de o
partilhar, se não o partilho com ninguém? Porquê com ele? ). Desencontrámo-nos. Acho
que foi isso. Não sei o que aconteceu, ao certo não sei, mas passámos a falar linguagens
diferentes, como se nunca tivéssemos falado sequer a mesma língua e a minha presença
tornou-se um peso. Atrapalha...desagrada. É estranho, sabias? A mim, às vezes doi-me.
Consegues imaginar, sentir, que alguém pense em ti com desagrado, que lamente a tua
existência, ter chegado a conhecer-te? Céus, é terrível. Não quero pensar nisso agora,
sinto um aperto tão forte cá dentro que julgo ficar sem ar... (entendo agora a expressão
"com o coração estraçalhado"). De imediato as lágrimas...sem que eu tenha controlo
sobre elas...As mãos transpiradas, tremem. Não posso pensar nisso agora, tenho muitas
palavras à minha espera. Não posso. Preciso trabalhar, é fundamental trabalhar. Quanto
mais complexo for o texto melhor. Depois, procurarei, quem sabe, um Jardim, que me
faça sentir gente outra vez e em cujas tretas eu finjo acreditar, esfumaço e estou viva.
E porque tu, Walser, sem teres a menor noção, a mais leve ideia, marcaste a minha vida
tão profundamente, levando-me por caminhos desconhecidos, maravilhosos uns,
tortuosos outros, terei um dia destes que te escrever. Fá-lo-ei muito em breve, logo que
tenha tempo, para te dizer como lamento não falar a tua língua, como lamento que a tua
obra seja pouco lida por nós, que quase nada do que escreveste esteja traduzido.
Será que alguma vez te passou pela cabeça, mesmo que levemente, que aquilo que
escreves pode mudar vidas e destinos?
Descobrirei facilmente uma morada, um email. Fá-lo-ei, terei que o fazer, porque
também tu estás agora profundamente ligado ao que me tornei e de tanto que li a teu
respeito, não me será difícil dirigir-me a ti.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Mais procurados (14)

Pedaços de ti
Pedaços  de  tiPedaços  de  ti
Pedaços de ti
 
Clarisse
ClarisseClarisse
Clarisse
 
Apresentação carta de november rain
Apresentação   carta de november rainApresentação   carta de november rain
Apresentação carta de november rain
 
Oracao a mim mesmo
Oracao a mim mesmoOracao a mim mesmo
Oracao a mim mesmo
 
Lispector
LispectorLispector
Lispector
 
Clarice Lispector
Clarice LispectorClarice Lispector
Clarice Lispector
 
Lispector
LispectorLispector
Lispector
 
Lispector
LispectorLispector
Lispector
 
Lispector
LispectorLispector
Lispector
 
Lispector
LispectorLispector
Lispector
 
Fernando Pessoa
Fernando PessoaFernando Pessoa
Fernando Pessoa
 
Mensagem power-point-slides-mensagens-de-amor
Mensagem power-point-slides-mensagens-de-amorMensagem power-point-slides-mensagens-de-amor
Mensagem power-point-slides-mensagens-de-amor
 
AFETOS DE AMOR
AFETOS DE AMORAFETOS DE AMOR
AFETOS DE AMOR
 
Quadras ao gosto popular autor Fernando pessoa, apresentação Prof. Antônia d...
Quadras ao gosto popular autor  Fernando pessoa, apresentação Prof. Antônia d...Quadras ao gosto popular autor  Fernando pessoa, apresentação Prof. Antônia d...
Quadras ao gosto popular autor Fernando pessoa, apresentação Prof. Antônia d...
 

Destaque

El teatro romano de malaga
El teatro romano de malagaEl teatro romano de malaga
El teatro romano de malagaRosalía García
 
Regras para a elaboração do poster - Biomas
Regras para a elaboração do poster - BiomasRegras para a elaboração do poster - Biomas
Regras para a elaboração do poster - BiomasGabriela Bruno
 
Correio uacury 09 2010
Correio uacury 09 2010Correio uacury 09 2010
Correio uacury 09 2010Edson Mamprin
 
Revisaointrodutoria.2011
Revisaointrodutoria.2011Revisaointrodutoria.2011
Revisaointrodutoria.2011Saulo Costa
 
Círculo empresarial de umbree 021
Círculo empresarial de umbree 021Círculo empresarial de umbree 021
Círculo empresarial de umbree 021Umbrete
 
2 artístico literário
2 artístico literário2 artístico literário
2 artístico literárioelannialins
 
302.00550.2010cmei osternack
302.00550.2010cmei osternack302.00550.2010cmei osternack
302.00550.2010cmei osternackProfessora Josete
 
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle Inspections
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle InspectionsTrueFrame Introduction to The Value of Vehicle Inspections
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle InspectionsTom Carroll
 

Destaque (13)

A sonoridade do futebol
A sonoridade do futebolA sonoridade do futebol
A sonoridade do futebol
 
El teatro romano de malaga
El teatro romano de malagaEl teatro romano de malaga
El teatro romano de malaga
 
Regras para a elaboração do poster - Biomas
Regras para a elaboração do poster - BiomasRegras para a elaboração do poster - Biomas
Regras para a elaboração do poster - Biomas
 
Correio uacury 09 2010
Correio uacury 09 2010Correio uacury 09 2010
Correio uacury 09 2010
 
Revisaointrodutoria.2011
Revisaointrodutoria.2011Revisaointrodutoria.2011
Revisaointrodutoria.2011
 
Círculo empresarial de umbree 021
Círculo empresarial de umbree 021Círculo empresarial de umbree 021
Círculo empresarial de umbree 021
 
BOLETIM Nº47
BOLETIM Nº47BOLETIM Nº47
BOLETIM Nº47
 
Convite especial
Convite especialConvite especial
Convite especial
 
2 artístico literário
2 artístico literário2 artístico literário
2 artístico literário
 
302.00550.2010cmei osternack
302.00550.2010cmei osternack302.00550.2010cmei osternack
302.00550.2010cmei osternack
 
8
88
8
 
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle Inspections
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle InspectionsTrueFrame Introduction to The Value of Vehicle Inspections
TrueFrame Introduction to The Value of Vehicle Inspections
 
Criatividade
Criatividade Criatividade
Criatividade
 

Semelhante a O impacto de uma frase na vida

Semelhante a O impacto de uma frase na vida (20)

Tantas Cartas
Tantas CartasTantas Cartas
Tantas Cartas
 
Sem Sangue
Sem SangueSem Sangue
Sem Sangue
 
Carta de amor
Carta de amorCarta de amor
Carta de amor
 
Desculpa nunca te o ter admitido
Desculpa nunca te o ter admitidoDesculpa nunca te o ter admitido
Desculpa nunca te o ter admitido
 
10
1010
10
 
PedaçOs
PedaçOsPedaçOs
PedaçOs
 
Contos (dostoievski)
Contos (dostoievski)Contos (dostoievski)
Contos (dostoievski)
 
Anseiospdf
AnseiospdfAnseiospdf
Anseiospdf
 
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas FreitasDuas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
 
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas FreitasDuas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas
 
Poemas de amor
Poemas de amorPoemas de amor
Poemas de amor
 
Além das estrelas - Andreia Tonetto
Além das estrelas - Andreia TonettoAlém das estrelas - Andreia Tonetto
Além das estrelas - Andreia Tonetto
 
Tudo O Que Sei Sobre Saudade
Tudo O Que Sei Sobre SaudadeTudo O Que Sei Sobre Saudade
Tudo O Que Sei Sobre Saudade
 
Na própria pele_Ana Jácomo
Na própria pele_Ana JácomoNa própria pele_Ana Jácomo
Na própria pele_Ana Jácomo
 
Sinto a tua falta
Sinto a tua faltaSinto a tua falta
Sinto a tua falta
 
Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.
 
imagem
imagemimagem
imagem
 
Como Dizia O Poeta
Como Dizia O PoetaComo Dizia O Poeta
Como Dizia O Poeta
 
Balada do amor que não veio - J.G.de Araújo Jorge
Balada do amor que não veio - J.G.de Araújo JorgeBalada do amor que não veio - J.G.de Araújo Jorge
Balada do amor que não veio - J.G.de Araújo Jorge
 
Portfolio cláudia lopes 2011
Portfolio cláudia lopes 2011Portfolio cláudia lopes 2011
Portfolio cláudia lopes 2011
 

O impacto de uma frase na vida

  • 1. O tempo escasseia mas a vontade de vir é imensa. Quantas conquistas recentes! Que longo caminho percorri.... e se tu soubesses, Walser, como uma frase tua, uma só, pôde ter um impacto tão forte, tão definitivo, tão profundamente irreversível nos nossos destinos. Meu Deus, Walser, se puderes diz-lhe, um dia, que eu não sou um bicho. Não faço mal, não mordo. Ladro, é verdade. Às vezes ladro quando me doi a vida...Quando estou ferida...Mas só isso. Faço um pouco de barulho. Nem o meu ladrar é convincente. Não assusta ninguém, nunca assustou. Poucas vezes me atirei com ganas a um pescoço, e sempre em defesa de outros, não em minha. Diz-lhe, por favor, que aqui neste meu cantinho aconchegante, junto ao mar, eu nunca lhe faria mal, seria incapaz. Poderia até habitar no mesmo canto do que ele, percorrer as mesmas ruas, os mesmos espaços sem mover um dedo para ferí-lo, ofendê-lo, agredí-lo. Diz-lhe que não precisa montar guarda, proteger-se de mim. Eu sou inofensiva. Tão inofensiva....Descansa Homem! Ó homem, sossega....Explica-lhe Walser, por favor...que eu gosto de Sol, de calor, de andar descalça. É tão bom andar descalça... Com os pés nús, sentindo o chão quente. Causa uma sensação agradável de liberdade. Por isso gosto tanto do Verão, andamos soltos, sem roupa quase, com cores alegres e leves ! Eu gosto do cão que me lambe as mãos a toda a hora, que põe a cabeça no meu colo e levanta os olhos para mim pedindo festas. Eu gosto dos gatos, independentes, que recusam os mimos que lhes queremos dar e, ao sentir-se ignorados, se roçam nas nossas pernas, afirmando a sua presença. Sou um pouco cão e um pouco gato. Eu gosto de estar em casa, sinto-me bem no meu no meu cantinho, acho que é o sítio da casa que mais gosto, talvez por aqui ter sido o meu quarto de criança e adolescente. Gosto de harmonia. Gosto de estar sozinha porque não estou só. Gosto cada vez mais da surdez...enquanto não me roubar a música conviveremos bem... Já não a lamento. Diz-lhe isto por favor porque eu não posso. Eu não posso mais dirigir-me a ele. Já me despedi (sei que lá não chegaram as minhas palavras mas, quanto a isso, mais esforços não farei, fui até onde podia ir...fui mais longe do que podia ir, muito mais. Será melhor assim... de nada serviria o meu pedido de desculpas, não seria aceite, estou certa, ou talvez recebido com azedume. Nem sei já sequer se devia desculpas algumas, mas não gosto de pensar que ofendi ou feri e um dia pode ser tarde...Continuará assim este cantinho só meu, para onde gosto de fugir. Na verdade por que razão haveria de o partilhar, se não o partilho com ninguém? Porquê com ele? ). Desencontrámo-nos. Acho que foi isso. Não sei o que aconteceu, ao certo não sei, mas passámos a falar linguagens diferentes, como se nunca tivéssemos falado sequer a mesma língua e a minha presença tornou-se um peso. Atrapalha...desagrada. É estranho, sabias? A mim, às vezes doi-me. Consegues imaginar, sentir, que alguém pense em ti com desagrado, que lamente a tua existência, ter chegado a conhecer-te? Céus, é terrível. Não quero pensar nisso agora, sinto um aperto tão forte cá dentro que julgo ficar sem ar... (entendo agora a expressão "com o coração estraçalhado"). De imediato as lágrimas...sem que eu tenha controlo sobre elas...As mãos transpiradas, tremem. Não posso pensar nisso agora, tenho muitas palavras à minha espera. Não posso. Preciso trabalhar, é fundamental trabalhar. Quanto mais complexo for o texto melhor. Depois, procurarei, quem sabe, um Jardim, que me faça sentir gente outra vez e em cujas tretas eu finjo acreditar, esfumaço e estou viva. E porque tu, Walser, sem teres a menor noção, a mais leve ideia, marcaste a minha vida tão profundamente, levando-me por caminhos desconhecidos, maravilhosos uns,
  • 2. tortuosos outros, terei um dia destes que te escrever. Fá-lo-ei muito em breve, logo que tenha tempo, para te dizer como lamento não falar a tua língua, como lamento que a tua obra seja pouco lida por nós, que quase nada do que escreveste esteja traduzido. Será que alguma vez te passou pela cabeça, mesmo que levemente, que aquilo que escreves pode mudar vidas e destinos? Descobrirei facilmente uma morada, um email. Fá-lo-ei, terei que o fazer, porque também tu estás agora profundamente ligado ao que me tornei e de tanto que li a teu respeito, não me será difícil dirigir-me a ti.