1. João Simplício 11º J
Sofrimento… meu amor… é com o coração inevitavelmente comandado por ele que te
escrevo. Não te aflijas se leres estas palavras sem quaisquer indicações, nem eu bem sei onde
me encontro, já faz dias que só durmo e me comporto como me mandam, já não como para
que te mandem estas cartas, é triste ver quão em baixo ando sabendo como me sentia no
nosso lar, no descanso dos teus braços, até agora menos mal, quase não me movo devido à
falta de forças, sem ânimo no coração e sem poder sobre a mente, contudo nem neste
profundo estado de solidão e fraqueza física deixo de te escrever, não posso… nem consigo…
As horas nem as conto passar, todos os buracos destas malditas paredes por mais
pequenos que sejam, encadeiam-me com a imensa luz divina… iludindo-me quanto à minha
partida desta jaula infernal, e pouco desperto lá me vou abanando e escrevo-te… já há algum
tempo que não dou notícias e não sei se voltarás a recebê-las… tendo em conta o meu estado,
nem saudável como um touro penso que me safaria neste ambiente rodeado de traição e
corrupção, este não é de certo lugar para os fracos de coração, por isso enquanto me sinto
capaz deixa-me confessar-te o que me atormenta a mente, o que me mantém acorrentado
para lá destas paredes e ouve o que me afasta da tão aguardada paz…
Já me conheces, sou um homem de desvarios, tudo o que me capta a atenção é
absolutamente delicioso, em vida sempre fui um homem poético e cheio de paixão,
aventureiro e sempre pronto para falar e responder em nome da palavra de meu senhor, é
certo que nem sempre o fiz da melhor forma, mas sempre o homem me fascinara e até hoje
tentara compreendê-lo tomando conta das suas acções e cuidando dos seus medos, desejos e
intenções, contudo temo que a guerra me tenha obstruído e não seja mais aquele que em
tempos tu conhecias e amavas.
Todos aqueles que até hoje comigo se cruzaram não sofreram nem sofrerão tal destino
quanto o meu, nunca os meus actos me perseguiram tanto, aqui não vejo espaço para libertos
de alma e coração ou divagações de qualquer género, chego ao ponto de me ver nos braços
d’Ele, meu anjo, indefeso e fraco de toda a sua mágoa, temo mais ainda o facto de os meus
erros me assegurarem um espaço nos braços do outro, sim porque o que cometi não é de todo
inocente, deve ser da falta de conforto e sossego em que vivo nos confins deste mundo, que
até aqui a morte por vezes me soa como a melhor escapatória… devo lembrar-te que até no
dia da minha partida chorara pela tua delicadeza, temia perder-te para Seus braços, parti de
cabeça “cheia” acabando nesta cela a apodrecer, sem nunca poder ter teus filhos, sem poder
confessar as minhas esperanças para um futuro próspero, juntos por fim...
2. Contudo, partir sabendo dos horrores que não te dei a saber, do tempo em que
melhor me sabia o nosso amor, simplesmente não me sossega o pensamento, não me
descarta da alma para me despegar deste mundo.
Repleto de arrependimento e nojo pelos pecados que naquele tempo me faziam sentir
vigoroso e homem de poder, poderoso de certo mas não do melhor tipo, pecados que me
criavam a ilusão de que o tempo era meu amigo e que nunca saberias das minhas “aventuras”,
essas tenho-as muitas infelizmente, mas o que importa não são os pormenores dessas
desventuras, mas sim o quão me mudaram e desde que aqui me vejo me fizeram ver o quão
errado estava a teu respeito, nunca havias tu de me crucificar, nunca serias tu a que me
deixaria morrer sozinho nestas condições, só tu e não Ele me irás aquietar deste tormento.
E só agora quando me vejo à beira da minha loucura é que realmente vejo, pois até
então eu apenas olhara para ti e vira o símbolo da minha paixão e carinho por tudo o que
conheço, mas nunca realmente vira o afortunado que era, pois agora essa paixão cresceu,
tornou-se muito mais, não só um símbolo de amor eterno mas de toda a esperança que tento
ao máximo preservar enquanto aqui me mantiverem.
Tentei tudo para que me libertassem, ameacei e lutei com alguns dos guardas e acabei
nos campos de trabalhos forçados a servir de escravo para seu divertimento, subornei-os e
mesmo assim me negaram a liberdade, aos seus olhos eles já têm tudo, que mais lhes posso
oferecer? Só Deus teria poder sobre estas pobres almas que aqui hão-de jazer comigo, o meu
sofrimento parece ser o seu ponto fraco, dou-lhes prazer quando me assombram falando-me
de suas mulheres e crianças, eu deixo-os troçar esperando com isso poder alcançar-te uma vez
mais, nem que por simples palavras pensadas de um velho já débil e inútil.
Mas chega de te causar preocupação com os meus “pesos” de alma, a razão pela qual
te escrevo é para te poder confessar as minhas infidelidades e traições, e a seu tempo ficarás
esclarecida, mas já se passou muito tempo e é necessário recolher os meus pensamentos e
relembrar o nosso passado. Recordas-te de quando parti? Esses dias ainda me assombram,
tudo quanto me lembro é que era Outono e estávamos a preparar-nos para partir quando nos
foi dito para irmos à igreja, o padre tinha algumas palavras para partilhar connosco… Ao
chegar ele disse-nos que o nosso futuro era incerto, todos vacilámos e o ambiente na sala
mudou completamente nesse instante, seguiu-se um discurso curto mas conciso, ele lembrou-
nos porque íamos para Jerusalém, para dar a conhecer a palavra de Deus àquele povo de
infiéis e que apesar dos confrontos que nos aguardavam Ele estaria sempre do nosso lado,
zelando pelo nosso bem-estar.
Acabou com uma frase que a todos marcou, só Deus sabe o que nos passou pela
cabeça naquele momento. O padre disse-nos:
3. - “Não temeis, corajosos cavaleiros, vós sabeis que Deus estará sempre do vosso lado,
Ele acompanhará todo o desenrolar da vossa batalha honrosa, e não vos tentais, pois Deus é
bondoso para os homens aqui presentes que por ele lutam, por isso mesmo todos vós estarei
livres dos vossos pecados até ao vosso regresso, fazei de tudo para defender o que é certo e
grandioso, não vacilais pois Ele não será brando convosco!”
Bondoso não foi, não tem sido pelo menos, tudo aquilo que adquirimos por aqueles
lados fora roubado do povo palestino, pilhámos e matámos, sem dó nem piedade e em
resposta ao que o padre nos disse Deus não deixou que as visões dos nossos erros se
perdessem em vão, havíamos de sofrer e aprender pela nossa cegueira, pelos actos de
blasfémia e ganância cometidos, e assim foi segundo a Sua vontade...
Não existe destino mais certo do que o do Inferno à nossa porta, só lamento ter vivido
contando os dias até ao meu regresso e agora sei que nos vão separar, depois de tudo o que fiz
por Ele sou renegado e deitado fora. Somos todos. Por erro de um padre que trincou mais do
que podia engolir, por seu erro pagamos nós e por seu erro nos aguarda uma tortura eterna
nos confins do submundo, enquanto tu, meu anjo, estarás a um mundo de distância, para todo
o sempre numa angélica prisão que eu bem sei te fará sofrer.
Para sempre teu, meu amor…
João Simplício