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ÉTICA E CIDADANIA 1
PRA COMEÇO DE CONVERSA
"Que devo fazer?" "Será que é correto fazer isso?" "O mundo não deveria ser assim"
ou "Por que mundo é assim?" Quem nunca fez este tipo de pergunta? Constantemente
nos vemos diante de situações ou problemas que nos levam a fazê-Ias. Isso é tão
"normal" que nunca, ou dificilmente, nós paramos para pensar sobre o ato mesmo de
fazer estas perguntas. Simplesmente perguntamos, sem nos questionarmos por que as
fazemos; elas fazem parte do nosso cotidiano, da nossa "normalidade".
Uma das coisas importantes na vida em sociedade é exatamente saber responder bem
este tipo de pergunta. Diante de um amigo em perigo devo ajudá-lo, mesmo correndo
riscos? Ou então, quando um amigo está se "afundando" em drogas, posso e devo "me
intrometer" em sua vida, ou cada um "sabe o que faz", e devo me manter indiferente?
Haveria algum caso em que seria certo atravessar um sinal vermelho? Em que casos
isto seria absolutamente incorreto?
Frente ao problema dos menores abandonados ou da corrupção no mundo político e
econômico, devo tomar alguma atitude ou simplesmente manter-me alheio a estas
coisas e cuidar dos meus interesses? Respostas a este tipo de questões vão
determinando o rumo e os passos concretos das nossas vidas.
O problema é que não estamos muito acostumados a refletir sobre estas questões. Na
maioria das vezes respondemos de uma forma quase que instintiva, automática,
reproduzindo alguma fórmula ou "receita" presente no nosso meio social. Geralmente
seguimos as normas da sociedade ou do nosso grupo social, e, assim, nos sentimos
dentro da normalidade. E isso nos dá a segurança e o alívio de não termos que nos
responsabilizar por alguma atitude ou ações diferentes das tomadas por outros.
Reclamamos, nos indignamos com a falta de ética na política, mas...
Afinal, o que é ética?
1
Palestra proferida na Mesa Redonda (Comunicação, Política e Cidadania) durante a Jornada Científica de
Comunicação & Pedagogia, na Fundação Novo Milênio, dia 26/10/006.
Em tom quase jocoso ou irônico, podemos dizer que é algo que todos precisam ter,
alguns até dizem que têm. Poucos, muito poucos no dias atuais, levam a sério e quase
ninguém cumpre à risca.
Ética, palavra originada do latim “éthica” e indiretamente do grego “ethiké” que por
sua vez deriva de “ethos”, e significa modo de ser, caráter (“ethos” por sua vez, vem de
“oikos”, que quer dizer casa, morada ou espaço comum). É um ramo da Filosofia, e
sub-ramo da axiologia, que estuda a natureza do que consideramos adequado e
moralmente correto na convivência social.
Pode se afirmar também que ética é uma doutrina filosófica que tem por objeto a moral
no tempo e no espaço, sendo o estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta
humana.
A ética pode ser interpretada também como um termo genérico que designa aquilo que
normalmente é descrito como “a ciência da moralidade”, isto é, suscetível de
qualificação do ponto e vista do bem e do mal, seja em relação a determinada
sociedade, seja de modo absoluto.
Em filosofia, o comportamento ético é aquele que é considerado bom. Mas o que é
bom?
Para Olinto A. Pegoraro, a Justiça está no centro de qualquer discussão ética. Viver
eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo tempo, a
subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídico-social (justiça como
princípio ordenador da sociedade).
Comecemos por uma noção aproximativa da ética contida na proposição: somente o
ser humano é ético ou a-ético. Um dos sentidos desta afirmação é que o ser humano
tem em suas mãos o seu destino: pode construir-se ou perder-se, dependendo do
rumo que ele imprime às suas decisões e ações ao longo da vida. Aqui intervém a ética
como direcionamento da vida, dos comportamentos pessoais e das ações coletivas.
Em outras palavras, a ética propõe um estilo de vida visando a realização de si
juntamente com os outros no âmbito da história de uma comunidade sociopolítica e de
uma civilização. Mal comparando, a ética é uma bússola que aponta o rumo de nossa
navegação no mar da história.
Mas nós podemos fazer exatamente o contrário: rejeitar o rumo que leva à realização e
entrar por atalhos desviantes, declinantes e destrutivos da vida. Sendo livres, está ao
nosso alcance também a perdição. De fato, há pessoas que se destroem entregando-
se às paixões explosivas, tomando decisões equivocadas; ao longo da história, o ódio,
as lutas e guerras levaram a humanidade à beira do desaparecimento.
Portanto, a ética administra exatamente as encruzilhadas da vida e os conflitos da
liberdade: por um lado, aponta os caminhos da construção pessoal e coletiva e, por
outro, adverte contra as ameaças da autodestruição.
Visitando alguns pensadores
Este enfoque está na base dos maiores tratados de ética na história do pensamento.
Aristóteles propõe a superação do conflito pela prática das virtudes morais que, aos
poucos, subordinam a paixão à razão. Quando isso acontece, o homem torna-se
senhor de si mesmo, torna-se virtuoso. O homem virtuoso é um homem ético.
A moral cristã também se depara com o conflito introduzido pelo pecado original que
debilitou intrinsecamente a natureza humana desde a origem. Pela prática das virtudes
morais e pelas luzes da fé o homem pode construir uma vida digna, conferindo-lhe até
um sentido transcendente.
Nos tempos modernos, a ética kantiana inclui em suas premissas básicas "o mal
radical" e irredutível que é a finitude. Sendo radicalmente finito, o ser humano está
sujeito à variedade e à mutabilidade das inclinações e paixões de sua própria natureza.
Então o ser humano não é naturalmente e espontaneamente ético; por isso ele tem
necessidade de imperativos morais para cercar as resistências da sensibilidade.
Em nossos dias, J. Rawls pensa a ética como um esforço de superação de conflitos
sociais produzidos pela disputa dos bens materiais e culturais. Como os bens são
quantitativamente limitados, e sem limites o apetite de cada cidadão, torna-se
necessária a intervenção de um princípio mediador. Este papel é exercido pelo
princípio objetivo da justiça.
Assim podemos afirmar que a ética visa duas metas principais: a) superar os conflitos
inerentes ao ser humano e à sociedade; b) dimensionar os comportamentos pessoais e
coletivos no sentido da construção da vida feliz numa sociedade justa.
Portanto, estas quatro teorias éticas mais importantes da cultura ocidental, apesar das
divergências entre si, convergem no enunciado central: a ética é a busca constante do
bem humano. Por exemplo, o imperativo ético kantiano, que manda tratar o ser
humano sempre como fim em si mesmo e nunca como instrumento, coincide com a
"Regra de Ouro" do Novo Testamento que diz: "não faça aos outros o que não queres
que façam a ti". Dito negativamente, sem a busca do bem humano, a vida (e o projeto
ético) não faz sentido.
Como alcançar o bem humano? O bem humano não é subjetivo e dependente das
inclinações e exigências de cada sujeito? Seria possível imaginar um bem universal,
extensivo a todos os seres humanos? Estas perguntas subentendem muitas
interpretações divergentes a até conflitantes. Apesar disto, as teorias éticas mais
importantes sustentam uma resposta comum nos seguintes termos: alcança-se o bem
humano pela prática da justiça. Neste sentido, ética é a prática da justiça, ou,
comportamento ético é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça.
É por isso que as grandes teorias éticas colocam a justiça no centro do sistema.
Segundo Aristóteles, a justiça é a virtude moral aglutinadora de todas as outras,
conferindo-lhes um novo alcance e profundidade. É sabido que as virtudes morais da
coragem, temperança, veracidade e modéstia aperfeiçoam a subjetividade, a
individualidade. Somente a justiça é a virtude que relaciona o indivíduo com os outros.
Somente a justiça abre a pessoa à comunidade; ninguém é justo para si, mas em
relação aos outros a justiça é a virtude da cidadania que regula toda a convivência
política. Por isso, para Aristóteles, a justiça é a estrela de maior brilho na constelação
das virtudes morais.
Exatamente esta é a posição de S. Tomás de Aquino. Ele concentra a moral dos 10
mandamentos da lei de Deus na prática da justiça em relação às criaturas, em relação
ao próximo e em relação a Deus. Sendo as criaturas realidades inferiores ao homem,
é justo que ele as possua e delas se sirva para seu bem-estar. Deus mandou o
homem "dominar a terra". É evidente que hoje entendemos que este domínio nunca
pode ser predador e exterminador. A ecologia exige que usemos as criaturas com
carinho, ajudando-as a se reproduzirem constantemente. São nossas companheiras
na viagem do tempo.
Em segundo lugar, justiça em relação ao próximo. Aqui a justiça manda reconhecer o
outro como igual a mim, portador da mesma dignidade e direitos. Aqui a justiça, a justa
medida, está na Regra de Ouro: não faças aos outros o que não queres que façam a
ti.
Em terceiro lugar, justiça em relação a Deus, Autor e Senhor de nossas vidas. Neste
ponto a justiça prescreve a reverência e o culto ao Senhor.
Para S. Tomás de Aquino, a justiça sintetiza toda ética que prescreve três atitudes
fundamentais: a) posse respeitosa das realidades terrestres; b) reconhecimento
incondicional dos seres humanos sem nenhum tipo de distinção; c) temor a Deus,
Criador do mundo e dos homens.
Já Kant rompe com o esquema da ética das virtudes e consagra a ética das normas, a
ética do cumprimento da lei moral, dos deveres pessoais e sociais. Na ética kantiana,
a vida política não é regulada pela virtude da justiça mas pelo direito. Cabe ao direito
compatibilizar o exercício externo da liberdade dos cidadãos. A lei universal do direito
é: "age exteriormente (socialmente) de tal modo que o exercício de teu livre-arbítrio
possa coexistir com a liberdade dos outros".
Deduzimos daí que a vida ética não está no exercício das virtudes, mas no
cumprimento da lei moral. Esta posição kantiana marcou todos os estudos posteriores.
Por exemplo, em nossos dias, J. Rawls organiza o discurso ético em torno da justiça
como norma ou princípio ordenador da sociedade. Este princípio objetivo,
democraticamente elaborado pela sociedade, abrange dois aspectos mais gerais do
convívio humano: a) o respeito incondicional às pessoas; b) a distribuição eqüitativa
dos bens materiais. Sobre estes dois pilares J. Rawls levanta o edifício da sociedade
bem ordenada. Para ele a justiça é a virtude da ordem jurídica que visa realizar uma
sociedade como sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.
Voltemos à nossa afirmação inicial: a ética consiste no cumprimento da justiça.
O retrospecto histórico acima esboçado mostra que a justiça tem um aspecto subjetivo
(virtude moral do sujeito) e um aspecto objetivo (princípio da ordem social). Estes dois
conceitos incluem-se mutuamente. O princípio da justiça precisa do apoio da virtude da
justiça e vice-versa. Os cidadãos que subjetivamente cultivam o senso de justiça
procuram transpô-lo numa ordem jurídica eqüitativa para todos. Numa palavra, a
virtude e o princípio de justiça convivem e se fortificam mutuamente. Será quase
impossível uma ordem jurídica justa se os cidadãos não amam e não cultivam a virtude
de justiça.
Sobre este ponto convém insistir mais um pouco. O convívio justiça-virtude-princípio
confere sentido ao sonho humano de todas as civilizações: Viver feliz numa ordem
social justa. Todos os impérios, monarquias e repúblicas prometeram a realização
desta meta. Mesmo as ditaduras deste século, européias e latino-americanas, se
camuflaram debaixo desta tese. Meta e tese que nunca foram realizadas. Isto é, a
macroestrutura jurídica nunca realizou o ideal da justiça.
Hoje este problema ampliou-se com intervenção irresistível das macroestruturas
econômicas, tecnocientíficas e industriais. Estes grupos subordinaram às suas
decisões até a em primeiro lugar, o bem humano, mas o resultado empresarial; a meta
da ética é sacrificada pela norma do lucro. É a política do lucro, ainda que isto gere
desemprego, fome e favelização dos cidadãos. A ética perde seu centro constitutivo: a
justiça. A ordem jurídica é sacrificada pelas macroestruturas empresariais que geram a
opressão e a exclusão de pessoas e grupos.
Para combater esta aberração, nossa tese conjuga a justiça como virtude pessoal e
princípio social. Em outras palavras, a justiça reúne numa única perspectiva a micro e
a macroética. A microética das pessoas que praticam a virtude da justiça alcança sua
eficácia na macroética das estruturas sociais justas. Em síntese, as pessoas que
praticam a justiça querem viver em estruturas sociais justas.
Portanto, acima das macroestruturas econômicas e tecnológicas deve pairar o
princípio da ordem política que determina, legal e democraticamente, a eqüitativa dis-
tribuição dos bens e do uso correto dos produtos tecnocientíficos. Isto significa que a
ordem política justa é a suprema instância ética da sociedade, cabendo-lhe o dever de
harmonizar todas as estruturas com o princípio central: a sociedade justa para todos
os cidadãos.
Esta tese é tão antiga quanto Aristóteles que ensinava que a política rege todas as
artes e ciências porque ela detém a visão global daquilo que convém produzir para o
bem de todos os cidadãos.
A crise de valores
Nos tempos modernos, experimentamos uma inversão dos valores morais que são
o fundamento da ética. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia foi tão
grande, rápido e intenso que assumiu dimensões inimagináveis. Diante desse
espantoso e vertiginoso desenvolvimento, o homem foi empalidecendo, perdendo
sua posição central.
O trabalho alienado transforma o trabalhador em mais uma mercadoria, faz com
que o homem perca sua capacidade de ser sujeito das situações. Manipulado no
universo do trabalho, manipulado no mundo do consumo, o homem vai perdendo
sua "humanidade".
Na sociedade capitalista, o dinheiro é que ocupa o centro das atenções.
Uma pessoa vale pelo dinheiro que possui ou que pode produzir. Você mesmo já
deve ter se referido a um colega como: "É aquele que tem uma moto preta" ou
"aquele do Astra cinza", por exemplo.
O psicanalista Erich Fromm caracterizou nossa sociedade como aquela que dá
muito mais importância ao ter do que ao ser: é por isso que uma pessoa vale, e até
mesmo é identificada, pelo carro que possui e não por aquilo que ela de fato é: um
bom amigo, um cara simpático etc.
Isso tudo mostra que, nos dias de hoje, as pessoas já não têm o ser humano como
valor fundamental, mas, sim, o dinheiro, o lucro. A pergunta básica que se faz ao
planejar uma ação é: "O que eu vou ganhar com isso?" Podemos compreender,
assim, alguns fatos aparentemente incompreensíveis: acidentes que acontecem
em edifícios e matam e ferem dezenas de pessoas porque houve algum tipo de
"economia" na construção; pessoas que morrem em hospitais porque a verba
repassada pelo governo já não atende à ganância de seus donos; o investimento
de fortunas em projetos mirabolantes, ao passo que parcela enorme da
população passa fome, vive nas ruas sem casa, escola, sistema de saúde, sem
o mínimo necessário para uma sobrevivência com dignidade.
Os valores que regem nossa sociedade e são levados em conta para as ações,
seja das pessoas que ocupam altos cargos administrativos, seja pela criança
que pede dinheiro no semáforo da esquina, já não têm o homem como objetivo
central. O que importa é garantir o próprio lucro, venha ele na forma de milhões
de dólares ou de uma moedinha de dez centavos.
Quando nos voltamos para o âmbito da ciência, a realidade não é diferente. A
ciência, como se fosse um ser vivo, rege-se por uma lei interna que a impele a
um crescimento cada vez maior. Com o crescimento da velocidade da produção
de conhecimentos científicos, ela acaba por "atropelar" o ser humano. Se, no
princípio, a ciência desenvolvia-se para buscar respostas para os problemas de
sobrevivência do homem num mundo adverso, com o tempo, ela passa a se
desenvolver por si mesma, porque o próprio conhecimento se torna um valor a
ser perseguido. Em outras palavras: uma coisa é você precisar dominar
determinados conhecimentos para resolver certos problemas (por exemplo: se
precisamos encontrar a cura de uma doença, precisamos dominar
conhecimentos de biologia, fisiologia humana, farmacologia etc.), outra, muito
diferente, é correr atrás de mais conhecimentos simplesmente para ter mais
conhecimentos.
No processo histórico do desenvolvimento científico-tecnológico, muita coisa foi
produzida visando a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas muita
coisa também foi produzida segundo outros interesses. A bomba atômica é um
lamentável exemplo: longe de melhorar a vida, acaba com a vida de milhões de
seres humanos. Podemos então perguntar:
O que levou os homens a produzi-Ia? Se examinamos os homens de governo, a
resposta é clara: a bomba atômica serve corno um instrumento de poder, de
intimidação, uma forma de dominar os demais. Mas e os cientistas que se
envolveram no projeto, também eles buscavam poder? Alguns provavelmente
sim, mas a maioria não; estavam tão envolvidos com o desenvolvimento do
conhecimento científico que simplesmente não tinham tempo para se preocupar
com as suas conseqüências. Podemos mesmo dizer que eles foram "usados"
pelos homens de governo, que sabiam muito bem o que queriam.
Isso só foi possível porque, no centro dos valores, já não estava a promoção da
vida humana, mas o lucro e o desenvolvimento do conhecimento (que, por sua
vez, pode ser urna ótima forma de gerar dinheiro).
Sabemos que os valores são criações humanas e não entidades abstratas e
universais, válidas em qualquer tempo e lugar. E que a ética pode ser
compreendida como uma estética de si, isto é, como a atividade de construir
nossas próprias vidas como um artista pinta seu quadro. Isso significa que
construímos nossos próprios valores, colocando nós mesmos como valor
fundamental.
Podemos afirmar com os filósofos existecialistas que “somos o que escolhemos”,
ou somos o resultado de nossas escolhas. Neste sentido, é razoável afirmar que
cada um de nós constrói a sua vida.
O fato de afirmarmos que devemos, cada um de nós, construir a própria vida não
deve ser entendido, porém, como um apelo ao individualismo. A afirmação da
individualidade, da singularidade de cada pessoa, que deve ser respeitada em
suas opções e ações, não significa que cada um deva viver isolado dos demais. A
singularidade e a criatividade podem e devem ser preservadas em meio à
coletividade. Mas o indivíduo pode ser solidário com seus semelhantes: o filósofo
Jean-Paul Sartre dizia que, quando elejo a mim mesmo, estou escolhendo toda a
humanidade.
Vamos refletir um pouco sobre essa afirmação. Se escolho a mim mesmo como
valor, isto é, como fundamento de minhas escolhas e de meus atos, resolvendo
construir minha vida como singularidade, como uma obra de arte, estou, ao mesmo
tempo, assumindo que essa condição é possível para todo e qualquer ser humano.
Não posso escolher a mim mesmo negando os outros, afirmando que a condição
de minha criatividade, de minha diferença, seja a de que todos os outros sejam
uma "massa" uniforme. Minha singularidade não pode ser construída sobre a
"mesmice" dos outros. Se escolho a mim mesmo, escolho todos os outros que são
tão humanos quanto eu, o que faz com que eu deva aceitar que a singularidade
seja possível para todos, e a sociedade torne-se uma multiplicidade de diferentes
indivíduos criativos.
O que estamos afirmando é que compreender a ética como uma estética da
existência não deve ser visto como uma atitude solitária, particular, mas, sim, como
um empreendimento coletivo, solidário: buscar o meu prazer, minha realização,
mas também o prazer e a realização do outro.
A sociedade tecnológica, se foi capaz de causar tantos problemas para o homem
é, por outro lado, a possibilidade de realização da singularidade.
Até aqui, vivemos a massificação. A criação e o desenvolvimento de meios de
comunicação cada vez mais potentes e abrangentes e o desenvolvimento da
informática têm contribuído para que a alienação e a falta de criatividade e,
conseqüentemente, a dominação sejam cada vez mais intensas.
A ficção científica é pródiga em exemplos: o romance 1984, de George Orwell,
mostra uma sociedade massificada, em que as pessoas são vigiadas por telas de
televisão (que ao mesmo tempo são câmeras: servem tanto para captar nossa
imagem quanto para trazer imagens até nós) que estão por toda parte: nos locais
de trabalho, nas casas, nas ruas ... E aqueles que ousam pensar de forma
diferente são logo descobertos e levados para o Ministério do Amor, um imenso
prédio destinado à tortura, que promove uma lavagem cerebral no indivíduo,
tornando-o apático aos apelos da realidade e apenas mais uma "peça da
máquina", sem vontade própria. O curioso é que nesse processo de dominação a
linguagem ocupa um lugar de destaque: criam a novilíngua, uma nova língua que
resulta da junção de palavras e da conseqüente diminuição do vocabulário. A
cada semana é lançado um novo dicionário, cada vez menor, e as pessoas ficam
proibidas de usar as palavras que já não têm existência oficial. Isso mostra muito
bem que nosso pensamento depende de nossa linguagem: quanto mais rica a
linguagem mais produtivo o pensamento. Quanto mais pobre a linguagem...
Mas a realidade não precisa ser essa. Depende de nossas escolhas e de nossas
ações o que faremos de nossas vidas e do mundo em que vivemos. Se vivermos
como marginais da política, não assumindo nossas responsabilidades pelas
decisões de cunho mais amplo, acabaremos por viver um mundo que não
queremos e uma vida que não escolhemos. Mas, se resolvermos agir como
sujeitos de nossa vida e de nosso mundo, podemos pintar os quadros que nossa
criatividade permitir.
Se recolocarmos o ser humano como valor fundamental, a ciência e a tecnologia
podem nos permitir ações antes impossíveis. Com as redes de computadores,
podemos hoje nos comunicar com qualquer parte do mundo de forma
praticamente instantânea. Se tivermos terminais de computador de fácil acesso a
toda a população, teremos uma infinidade de informações disponíveis para todos
e para qualquer um, o que certamente revolucionará as possibilidades de
educação.
A tencnologia/informática possibilita hoje uma prática democrática que nunca
antes na história foi possível. A democracia hoje ainda está restrita a uma
representatividade pelo voto: não há como garantir a participação direta de todos.
As redes de computadores, por outro lado, permitirão uma ação direta de toda a
população, uma efetiva participação na tomada de decisões e também em sua
implementação.
No fundo, aquilo que estamos chamando de singularidade é condição básica para
a cidadania, e vice-versa. Só podemos ser indivíduo de fato como participação de
todos, assim como só pode haver efetiva cidadania se os indivíduos são livres,
singulares e participativos na comunidade.
O futuro está aberto. Se ficarmos na defensiva, esperando que os outros (os "políticos",
os cientistas, os filósofos etc.) resolvam as coisas por nós, talvez mais cedo ou mais
tarde acabemos por viver numa sociedade muito parecida com aquela descrita por
George Orwell em 1984. Mas, se resolvermos tomar as rédeas de nossas vidas
particulares e da vida política em geral, ou, para falar em termos filosóficos, se
assumirmos com consciência e responsabilidade tanto nossas escolhas éticas quanto
nossos atos políticos, estaremos nos constituindo como verdadeiros cidadãos.
É urgente que o ser humano seja recolocado no centro da problemática dos valores.
Se formos capazes de fazer isso, a ciência e a informática podem ser instrumentos
poderosos tanto para possibilitar uma ação cidadã efetiva quanto para minimizar os
problemas da miséria, material e espiritual, que nos assola nesta neste início do
terceiro milênio. Acreditamos que a filosofia pode nos guiar por esse caminho tortuoso.
Ajudar a retomar sempre de novo os fundamentos do ethos.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
GALLO, Sílvio (Coord). Ética e cidadania: caminhos da filosofia: elementos para
o ensino de filosofia. 11. ed. rev. e atual. Campinas, SP: Papirus, 2003.
PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SUNG, Jung; SILVA, Josué Cândido. Conversando sobre ética e sociedade.
4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

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  • 1. ÉTICA E CIDADANIA 1 PRA COMEÇO DE CONVERSA "Que devo fazer?" "Será que é correto fazer isso?" "O mundo não deveria ser assim" ou "Por que mundo é assim?" Quem nunca fez este tipo de pergunta? Constantemente nos vemos diante de situações ou problemas que nos levam a fazê-Ias. Isso é tão "normal" que nunca, ou dificilmente, nós paramos para pensar sobre o ato mesmo de fazer estas perguntas. Simplesmente perguntamos, sem nos questionarmos por que as fazemos; elas fazem parte do nosso cotidiano, da nossa "normalidade". Uma das coisas importantes na vida em sociedade é exatamente saber responder bem este tipo de pergunta. Diante de um amigo em perigo devo ajudá-lo, mesmo correndo riscos? Ou então, quando um amigo está se "afundando" em drogas, posso e devo "me intrometer" em sua vida, ou cada um "sabe o que faz", e devo me manter indiferente? Haveria algum caso em que seria certo atravessar um sinal vermelho? Em que casos isto seria absolutamente incorreto? Frente ao problema dos menores abandonados ou da corrupção no mundo político e econômico, devo tomar alguma atitude ou simplesmente manter-me alheio a estas coisas e cuidar dos meus interesses? Respostas a este tipo de questões vão determinando o rumo e os passos concretos das nossas vidas. O problema é que não estamos muito acostumados a refletir sobre estas questões. Na maioria das vezes respondemos de uma forma quase que instintiva, automática, reproduzindo alguma fórmula ou "receita" presente no nosso meio social. Geralmente seguimos as normas da sociedade ou do nosso grupo social, e, assim, nos sentimos dentro da normalidade. E isso nos dá a segurança e o alívio de não termos que nos responsabilizar por alguma atitude ou ações diferentes das tomadas por outros. Reclamamos, nos indignamos com a falta de ética na política, mas... Afinal, o que é ética? 1 Palestra proferida na Mesa Redonda (Comunicação, Política e Cidadania) durante a Jornada Científica de Comunicação & Pedagogia, na Fundação Novo Milênio, dia 26/10/006.
  • 2. Em tom quase jocoso ou irônico, podemos dizer que é algo que todos precisam ter, alguns até dizem que têm. Poucos, muito poucos no dias atuais, levam a sério e quase ninguém cumpre à risca. Ética, palavra originada do latim “éthica” e indiretamente do grego “ethiké” que por sua vez deriva de “ethos”, e significa modo de ser, caráter (“ethos” por sua vez, vem de “oikos”, que quer dizer casa, morada ou espaço comum). É um ramo da Filosofia, e sub-ramo da axiologia, que estuda a natureza do que consideramos adequado e moralmente correto na convivência social. Pode se afirmar também que ética é uma doutrina filosófica que tem por objeto a moral no tempo e no espaço, sendo o estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana. A ética pode ser interpretada também como um termo genérico que designa aquilo que normalmente é descrito como “a ciência da moralidade”, isto é, suscetível de qualificação do ponto e vista do bem e do mal, seja em relação a determinada sociedade, seja de modo absoluto. Em filosofia, o comportamento ético é aquele que é considerado bom. Mas o que é bom? Para Olinto A. Pegoraro, a Justiça está no centro de qualquer discussão ética. Viver eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo tempo, a subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídico-social (justiça como princípio ordenador da sociedade). Comecemos por uma noção aproximativa da ética contida na proposição: somente o ser humano é ético ou a-ético. Um dos sentidos desta afirmação é que o ser humano tem em suas mãos o seu destino: pode construir-se ou perder-se, dependendo do rumo que ele imprime às suas decisões e ações ao longo da vida. Aqui intervém a ética como direcionamento da vida, dos comportamentos pessoais e das ações coletivas. Em outras palavras, a ética propõe um estilo de vida visando a realização de si juntamente com os outros no âmbito da história de uma comunidade sociopolítica e de uma civilização. Mal comparando, a ética é uma bússola que aponta o rumo de nossa navegação no mar da história. Mas nós podemos fazer exatamente o contrário: rejeitar o rumo que leva à realização e entrar por atalhos desviantes, declinantes e destrutivos da vida. Sendo livres, está ao nosso alcance também a perdição. De fato, há pessoas que se destroem entregando-
  • 3. se às paixões explosivas, tomando decisões equivocadas; ao longo da história, o ódio, as lutas e guerras levaram a humanidade à beira do desaparecimento. Portanto, a ética administra exatamente as encruzilhadas da vida e os conflitos da liberdade: por um lado, aponta os caminhos da construção pessoal e coletiva e, por outro, adverte contra as ameaças da autodestruição. Visitando alguns pensadores Este enfoque está na base dos maiores tratados de ética na história do pensamento. Aristóteles propõe a superação do conflito pela prática das virtudes morais que, aos poucos, subordinam a paixão à razão. Quando isso acontece, o homem torna-se senhor de si mesmo, torna-se virtuoso. O homem virtuoso é um homem ético. A moral cristã também se depara com o conflito introduzido pelo pecado original que debilitou intrinsecamente a natureza humana desde a origem. Pela prática das virtudes morais e pelas luzes da fé o homem pode construir uma vida digna, conferindo-lhe até um sentido transcendente. Nos tempos modernos, a ética kantiana inclui em suas premissas básicas "o mal radical" e irredutível que é a finitude. Sendo radicalmente finito, o ser humano está sujeito à variedade e à mutabilidade das inclinações e paixões de sua própria natureza. Então o ser humano não é naturalmente e espontaneamente ético; por isso ele tem necessidade de imperativos morais para cercar as resistências da sensibilidade. Em nossos dias, J. Rawls pensa a ética como um esforço de superação de conflitos sociais produzidos pela disputa dos bens materiais e culturais. Como os bens são quantitativamente limitados, e sem limites o apetite de cada cidadão, torna-se necessária a intervenção de um princípio mediador. Este papel é exercido pelo princípio objetivo da justiça. Assim podemos afirmar que a ética visa duas metas principais: a) superar os conflitos inerentes ao ser humano e à sociedade; b) dimensionar os comportamentos pessoais e coletivos no sentido da construção da vida feliz numa sociedade justa. Portanto, estas quatro teorias éticas mais importantes da cultura ocidental, apesar das divergências entre si, convergem no enunciado central: a ética é a busca constante do bem humano. Por exemplo, o imperativo ético kantiano, que manda tratar o ser humano sempre como fim em si mesmo e nunca como instrumento, coincide com a
  • 4. "Regra de Ouro" do Novo Testamento que diz: "não faça aos outros o que não queres que façam a ti". Dito negativamente, sem a busca do bem humano, a vida (e o projeto ético) não faz sentido. Como alcançar o bem humano? O bem humano não é subjetivo e dependente das inclinações e exigências de cada sujeito? Seria possível imaginar um bem universal, extensivo a todos os seres humanos? Estas perguntas subentendem muitas interpretações divergentes a até conflitantes. Apesar disto, as teorias éticas mais importantes sustentam uma resposta comum nos seguintes termos: alcança-se o bem humano pela prática da justiça. Neste sentido, ética é a prática da justiça, ou, comportamento ético é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça. É por isso que as grandes teorias éticas colocam a justiça no centro do sistema. Segundo Aristóteles, a justiça é a virtude moral aglutinadora de todas as outras, conferindo-lhes um novo alcance e profundidade. É sabido que as virtudes morais da coragem, temperança, veracidade e modéstia aperfeiçoam a subjetividade, a individualidade. Somente a justiça é a virtude que relaciona o indivíduo com os outros. Somente a justiça abre a pessoa à comunidade; ninguém é justo para si, mas em relação aos outros a justiça é a virtude da cidadania que regula toda a convivência política. Por isso, para Aristóteles, a justiça é a estrela de maior brilho na constelação das virtudes morais. Exatamente esta é a posição de S. Tomás de Aquino. Ele concentra a moral dos 10 mandamentos da lei de Deus na prática da justiça em relação às criaturas, em relação ao próximo e em relação a Deus. Sendo as criaturas realidades inferiores ao homem, é justo que ele as possua e delas se sirva para seu bem-estar. Deus mandou o homem "dominar a terra". É evidente que hoje entendemos que este domínio nunca pode ser predador e exterminador. A ecologia exige que usemos as criaturas com carinho, ajudando-as a se reproduzirem constantemente. São nossas companheiras na viagem do tempo. Em segundo lugar, justiça em relação ao próximo. Aqui a justiça manda reconhecer o outro como igual a mim, portador da mesma dignidade e direitos. Aqui a justiça, a justa medida, está na Regra de Ouro: não faças aos outros o que não queres que façam a ti. Em terceiro lugar, justiça em relação a Deus, Autor e Senhor de nossas vidas. Neste ponto a justiça prescreve a reverência e o culto ao Senhor.
  • 5. Para S. Tomás de Aquino, a justiça sintetiza toda ética que prescreve três atitudes fundamentais: a) posse respeitosa das realidades terrestres; b) reconhecimento incondicional dos seres humanos sem nenhum tipo de distinção; c) temor a Deus, Criador do mundo e dos homens. Já Kant rompe com o esquema da ética das virtudes e consagra a ética das normas, a ética do cumprimento da lei moral, dos deveres pessoais e sociais. Na ética kantiana, a vida política não é regulada pela virtude da justiça mas pelo direito. Cabe ao direito compatibilizar o exercício externo da liberdade dos cidadãos. A lei universal do direito é: "age exteriormente (socialmente) de tal modo que o exercício de teu livre-arbítrio possa coexistir com a liberdade dos outros". Deduzimos daí que a vida ética não está no exercício das virtudes, mas no cumprimento da lei moral. Esta posição kantiana marcou todos os estudos posteriores. Por exemplo, em nossos dias, J. Rawls organiza o discurso ético em torno da justiça como norma ou princípio ordenador da sociedade. Este princípio objetivo, democraticamente elaborado pela sociedade, abrange dois aspectos mais gerais do convívio humano: a) o respeito incondicional às pessoas; b) a distribuição eqüitativa dos bens materiais. Sobre estes dois pilares J. Rawls levanta o edifício da sociedade bem ordenada. Para ele a justiça é a virtude da ordem jurídica que visa realizar uma sociedade como sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Voltemos à nossa afirmação inicial: a ética consiste no cumprimento da justiça. O retrospecto histórico acima esboçado mostra que a justiça tem um aspecto subjetivo (virtude moral do sujeito) e um aspecto objetivo (princípio da ordem social). Estes dois conceitos incluem-se mutuamente. O princípio da justiça precisa do apoio da virtude da justiça e vice-versa. Os cidadãos que subjetivamente cultivam o senso de justiça procuram transpô-lo numa ordem jurídica eqüitativa para todos. Numa palavra, a virtude e o princípio de justiça convivem e se fortificam mutuamente. Será quase impossível uma ordem jurídica justa se os cidadãos não amam e não cultivam a virtude de justiça. Sobre este ponto convém insistir mais um pouco. O convívio justiça-virtude-princípio confere sentido ao sonho humano de todas as civilizações: Viver feliz numa ordem social justa. Todos os impérios, monarquias e repúblicas prometeram a realização desta meta. Mesmo as ditaduras deste século, européias e latino-americanas, se camuflaram debaixo desta tese. Meta e tese que nunca foram realizadas. Isto é, a macroestrutura jurídica nunca realizou o ideal da justiça.
  • 6. Hoje este problema ampliou-se com intervenção irresistível das macroestruturas econômicas, tecnocientíficas e industriais. Estes grupos subordinaram às suas decisões até a em primeiro lugar, o bem humano, mas o resultado empresarial; a meta da ética é sacrificada pela norma do lucro. É a política do lucro, ainda que isto gere desemprego, fome e favelização dos cidadãos. A ética perde seu centro constitutivo: a justiça. A ordem jurídica é sacrificada pelas macroestruturas empresariais que geram a opressão e a exclusão de pessoas e grupos. Para combater esta aberração, nossa tese conjuga a justiça como virtude pessoal e princípio social. Em outras palavras, a justiça reúne numa única perspectiva a micro e a macroética. A microética das pessoas que praticam a virtude da justiça alcança sua eficácia na macroética das estruturas sociais justas. Em síntese, as pessoas que praticam a justiça querem viver em estruturas sociais justas. Portanto, acima das macroestruturas econômicas e tecnológicas deve pairar o princípio da ordem política que determina, legal e democraticamente, a eqüitativa dis- tribuição dos bens e do uso correto dos produtos tecnocientíficos. Isto significa que a ordem política justa é a suprema instância ética da sociedade, cabendo-lhe o dever de harmonizar todas as estruturas com o princípio central: a sociedade justa para todos os cidadãos. Esta tese é tão antiga quanto Aristóteles que ensinava que a política rege todas as artes e ciências porque ela detém a visão global daquilo que convém produzir para o bem de todos os cidadãos. A crise de valores Nos tempos modernos, experimentamos uma inversão dos valores morais que são o fundamento da ética. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia foi tão grande, rápido e intenso que assumiu dimensões inimagináveis. Diante desse espantoso e vertiginoso desenvolvimento, o homem foi empalidecendo, perdendo sua posição central. O trabalho alienado transforma o trabalhador em mais uma mercadoria, faz com que o homem perca sua capacidade de ser sujeito das situações. Manipulado no universo do trabalho, manipulado no mundo do consumo, o homem vai perdendo sua "humanidade". Na sociedade capitalista, o dinheiro é que ocupa o centro das atenções.
  • 7. Uma pessoa vale pelo dinheiro que possui ou que pode produzir. Você mesmo já deve ter se referido a um colega como: "É aquele que tem uma moto preta" ou "aquele do Astra cinza", por exemplo. O psicanalista Erich Fromm caracterizou nossa sociedade como aquela que dá muito mais importância ao ter do que ao ser: é por isso que uma pessoa vale, e até mesmo é identificada, pelo carro que possui e não por aquilo que ela de fato é: um bom amigo, um cara simpático etc. Isso tudo mostra que, nos dias de hoje, as pessoas já não têm o ser humano como valor fundamental, mas, sim, o dinheiro, o lucro. A pergunta básica que se faz ao planejar uma ação é: "O que eu vou ganhar com isso?" Podemos compreender, assim, alguns fatos aparentemente incompreensíveis: acidentes que acontecem em edifícios e matam e ferem dezenas de pessoas porque houve algum tipo de "economia" na construção; pessoas que morrem em hospitais porque a verba repassada pelo governo já não atende à ganância de seus donos; o investimento de fortunas em projetos mirabolantes, ao passo que parcela enorme da população passa fome, vive nas ruas sem casa, escola, sistema de saúde, sem o mínimo necessário para uma sobrevivência com dignidade. Os valores que regem nossa sociedade e são levados em conta para as ações, seja das pessoas que ocupam altos cargos administrativos, seja pela criança que pede dinheiro no semáforo da esquina, já não têm o homem como objetivo central. O que importa é garantir o próprio lucro, venha ele na forma de milhões de dólares ou de uma moedinha de dez centavos. Quando nos voltamos para o âmbito da ciência, a realidade não é diferente. A ciência, como se fosse um ser vivo, rege-se por uma lei interna que a impele a um crescimento cada vez maior. Com o crescimento da velocidade da produção de conhecimentos científicos, ela acaba por "atropelar" o ser humano. Se, no princípio, a ciência desenvolvia-se para buscar respostas para os problemas de sobrevivência do homem num mundo adverso, com o tempo, ela passa a se desenvolver por si mesma, porque o próprio conhecimento se torna um valor a ser perseguido. Em outras palavras: uma coisa é você precisar dominar determinados conhecimentos para resolver certos problemas (por exemplo: se precisamos encontrar a cura de uma doença, precisamos dominar conhecimentos de biologia, fisiologia humana, farmacologia etc.), outra, muito diferente, é correr atrás de mais conhecimentos simplesmente para ter mais
  • 8. conhecimentos. No processo histórico do desenvolvimento científico-tecnológico, muita coisa foi produzida visando a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas muita coisa também foi produzida segundo outros interesses. A bomba atômica é um lamentável exemplo: longe de melhorar a vida, acaba com a vida de milhões de seres humanos. Podemos então perguntar: O que levou os homens a produzi-Ia? Se examinamos os homens de governo, a resposta é clara: a bomba atômica serve corno um instrumento de poder, de intimidação, uma forma de dominar os demais. Mas e os cientistas que se envolveram no projeto, também eles buscavam poder? Alguns provavelmente sim, mas a maioria não; estavam tão envolvidos com o desenvolvimento do conhecimento científico que simplesmente não tinham tempo para se preocupar com as suas conseqüências. Podemos mesmo dizer que eles foram "usados" pelos homens de governo, que sabiam muito bem o que queriam. Isso só foi possível porque, no centro dos valores, já não estava a promoção da vida humana, mas o lucro e o desenvolvimento do conhecimento (que, por sua vez, pode ser urna ótima forma de gerar dinheiro). Sabemos que os valores são criações humanas e não entidades abstratas e universais, válidas em qualquer tempo e lugar. E que a ética pode ser compreendida como uma estética de si, isto é, como a atividade de construir nossas próprias vidas como um artista pinta seu quadro. Isso significa que construímos nossos próprios valores, colocando nós mesmos como valor fundamental. Podemos afirmar com os filósofos existecialistas que “somos o que escolhemos”, ou somos o resultado de nossas escolhas. Neste sentido, é razoável afirmar que cada um de nós constrói a sua vida. O fato de afirmarmos que devemos, cada um de nós, construir a própria vida não deve ser entendido, porém, como um apelo ao individualismo. A afirmação da individualidade, da singularidade de cada pessoa, que deve ser respeitada em suas opções e ações, não significa que cada um deva viver isolado dos demais. A singularidade e a criatividade podem e devem ser preservadas em meio à coletividade. Mas o indivíduo pode ser solidário com seus semelhantes: o filósofo Jean-Paul Sartre dizia que, quando elejo a mim mesmo, estou escolhendo toda a
  • 9. humanidade. Vamos refletir um pouco sobre essa afirmação. Se escolho a mim mesmo como valor, isto é, como fundamento de minhas escolhas e de meus atos, resolvendo construir minha vida como singularidade, como uma obra de arte, estou, ao mesmo tempo, assumindo que essa condição é possível para todo e qualquer ser humano. Não posso escolher a mim mesmo negando os outros, afirmando que a condição de minha criatividade, de minha diferença, seja a de que todos os outros sejam uma "massa" uniforme. Minha singularidade não pode ser construída sobre a "mesmice" dos outros. Se escolho a mim mesmo, escolho todos os outros que são tão humanos quanto eu, o que faz com que eu deva aceitar que a singularidade seja possível para todos, e a sociedade torne-se uma multiplicidade de diferentes indivíduos criativos. O que estamos afirmando é que compreender a ética como uma estética da existência não deve ser visto como uma atitude solitária, particular, mas, sim, como um empreendimento coletivo, solidário: buscar o meu prazer, minha realização, mas também o prazer e a realização do outro. A sociedade tecnológica, se foi capaz de causar tantos problemas para o homem é, por outro lado, a possibilidade de realização da singularidade. Até aqui, vivemos a massificação. A criação e o desenvolvimento de meios de comunicação cada vez mais potentes e abrangentes e o desenvolvimento da informática têm contribuído para que a alienação e a falta de criatividade e, conseqüentemente, a dominação sejam cada vez mais intensas. A ficção científica é pródiga em exemplos: o romance 1984, de George Orwell, mostra uma sociedade massificada, em que as pessoas são vigiadas por telas de televisão (que ao mesmo tempo são câmeras: servem tanto para captar nossa imagem quanto para trazer imagens até nós) que estão por toda parte: nos locais de trabalho, nas casas, nas ruas ... E aqueles que ousam pensar de forma diferente são logo descobertos e levados para o Ministério do Amor, um imenso prédio destinado à tortura, que promove uma lavagem cerebral no indivíduo, tornando-o apático aos apelos da realidade e apenas mais uma "peça da máquina", sem vontade própria. O curioso é que nesse processo de dominação a linguagem ocupa um lugar de destaque: criam a novilíngua, uma nova língua que resulta da junção de palavras e da conseqüente diminuição do vocabulário. A cada semana é lançado um novo dicionário, cada vez menor, e as pessoas ficam
  • 10. proibidas de usar as palavras que já não têm existência oficial. Isso mostra muito bem que nosso pensamento depende de nossa linguagem: quanto mais rica a linguagem mais produtivo o pensamento. Quanto mais pobre a linguagem... Mas a realidade não precisa ser essa. Depende de nossas escolhas e de nossas ações o que faremos de nossas vidas e do mundo em que vivemos. Se vivermos como marginais da política, não assumindo nossas responsabilidades pelas decisões de cunho mais amplo, acabaremos por viver um mundo que não queremos e uma vida que não escolhemos. Mas, se resolvermos agir como sujeitos de nossa vida e de nosso mundo, podemos pintar os quadros que nossa criatividade permitir. Se recolocarmos o ser humano como valor fundamental, a ciência e a tecnologia podem nos permitir ações antes impossíveis. Com as redes de computadores, podemos hoje nos comunicar com qualquer parte do mundo de forma praticamente instantânea. Se tivermos terminais de computador de fácil acesso a toda a população, teremos uma infinidade de informações disponíveis para todos e para qualquer um, o que certamente revolucionará as possibilidades de educação. A tencnologia/informática possibilita hoje uma prática democrática que nunca antes na história foi possível. A democracia hoje ainda está restrita a uma representatividade pelo voto: não há como garantir a participação direta de todos. As redes de computadores, por outro lado, permitirão uma ação direta de toda a população, uma efetiva participação na tomada de decisões e também em sua implementação. No fundo, aquilo que estamos chamando de singularidade é condição básica para a cidadania, e vice-versa. Só podemos ser indivíduo de fato como participação de todos, assim como só pode haver efetiva cidadania se os indivíduos são livres, singulares e participativos na comunidade. O futuro está aberto. Se ficarmos na defensiva, esperando que os outros (os "políticos", os cientistas, os filósofos etc.) resolvam as coisas por nós, talvez mais cedo ou mais tarde acabemos por viver numa sociedade muito parecida com aquela descrita por George Orwell em 1984. Mas, se resolvermos tomar as rédeas de nossas vidas particulares e da vida política em geral, ou, para falar em termos filosóficos, se assumirmos com consciência e responsabilidade tanto nossas escolhas éticas quanto nossos atos políticos, estaremos nos constituindo como verdadeiros cidadãos.
  • 11. É urgente que o ser humano seja recolocado no centro da problemática dos valores. Se formos capazes de fazer isso, a ciência e a informática podem ser instrumentos poderosos tanto para possibilitar uma ação cidadã efetiva quanto para minimizar os problemas da miséria, material e espiritual, que nos assola nesta neste início do terceiro milênio. Acreditamos que a filosofia pode nos guiar por esse caminho tortuoso. Ajudar a retomar sempre de novo os fundamentos do ethos. REFERÊNCIAS BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. GALLO, Sílvio (Coord). Ética e cidadania: caminhos da filosofia: elementos para o ensino de filosofia. 11. ed. rev. e atual. Campinas, SP: Papirus, 2003. PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SUNG, Jung; SILVA, Josué Cândido. Conversando sobre ética e sociedade. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.