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© Green Death Volume 1 - 2013

Organização: Alfer Medeiros
Capa: Silvio Medeiros
Revisão: Alfer Medeiros

Texto:
 Adrianna Alberti
 Alastair Dias
 Chico Pascoal
 Douglas Eralldo
 Franklin Lima
 Leon Nunes
 Verônica Freitas
 Wellington Novaes

O e-book Green Death - Ecoterrorismo Licantrópico (volume 1) é
publicado sob uma Licença Creative Commons - Atribuição NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Índice
Apresentação da Série .................................................................... 3
OOKAMI (Chico Pascoal) ................................................................ 6
CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo) .................................. 22
YÄ FERAS (Leon Nunes) ............................................................... 26
BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias) ....................... 34
UM BREVE ENCONTRO A TRÊS (Verônica S. Freitas) .............. 54
DESCOBERTAS (Adrianna Alberti) .............................................. 81
SANTO ARNALDO (Wellington Novaes) ..................................... 97
QUEIMADURAS (Franklin Lima) ................................................. 104
Apresentação da Série
Bem-vindo, leitor, a uma realização pessoal. Quando escrevi o livro Fúria
Lupina Brasil um tempo atrás, não fazia ideia das proporções que o projeto
tomaria. Meu livro de estreia não só abriu muitas portas, como também me
permitiu conhecer pessoas fabulosas entre leitores, escritores e críticos (ou
tudo isso ao mesmo tempo).
Nesse livro, lançado em 2010, foi apresentada pela primeira vez a
organização Green Death, e muito ouvi falar dela nos feedbacks dados pelos
leitores. Da conclusão de que esse grupo ecoterrorista foi marcante para
muitas pessoas durante a leitura do Fúria Lupina, surgiu uma ideia
interessante: por que não fazer um spinoff com contos de diversos autores, que
trouxesse a visão particular de cada um deles sobre a Green Death?
Diversos convites foram feitos, alguns foram atendidos, e aqui temos o
volume inicial deste projeto coletivo licantropo. Sou muito agradecido a todos
que aceitaram o desafio de criar contos dentro do universo de uma outra
pessoa, tarefa não muito simples, apesar de algumas liberdades criativas terem
sido cedidas.
Antes de partirmos para a leitura dos contos dos meus companheiros de
letras, seria interessante mostrarmos um pouco do que é esse cenário dentro
do qual foram produzidas as histórias:
Contexto
Conforme dito anteriormente, a Green Death faz parte do universo da
série Fúria Lupina, onde lobisomens vivem e atuam em um contexto
histórico/cultural real. Assim como na nossa realidade, os lobisomens são tidos
como um mito. Isso quer dizer que é da preferência dos homens-lobo que as
coisas permaneçam assim, ou seja, as ações do grupo são planejadas de
modo a não deixar pistas da existência de tais seres. Aparições em público dos
licantropos são evitadas a todo custo.
Os Lobisomens
São todos bípedes, um meio-termo entre a forma humana e a lupina.
Possuem a força de aproximadamente dez homens quando na forma lupina, e
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na forma humana têm força e habilidade correspondentes ao mais exímio
atleta. Seus sentidos são extremamente aguçados ao se transformarem em
lobisomens, e algo disso é preservado ao voltarem à forma humana. Alguns
paradigmas universais dos lobisomens não existem nesta realidade: a prata
não é o único material que pode causar danos a estas criaturas, e a lua cheia
não provoca transformações involuntárias. Não são imortais, apenas
extremamente resistentes. Sua pele é grossa como a de um rinoceronte e seus
ferimentos são cicatrizados mais rapidamente. Possuem a capacidade de se
comunicar mentalmente com os de sua espécie. A organização hierárquica
entre os lobisomens que vivem em alcateia segue o padrão tradicional dos
lobos, determinada pela força e poder de liderança, em três níveis: alfa (os
mais fortes e com melhores capacidades de persuasão e comunicação), beta
(totalmente capacitados, porém com algum ponto negativo que os diferenciam
dos alfas) e ômega (não conseguem se transformar em lobisomem e somente
mantém suas capacidades de comunicação mental).
A Organização
Surgiu no final dos anos 80 e, de início, baseava-se em pequenas
sabotagens em instalações de fábricas poluidoras na Polônia e na Alemanha.
Atualmente, sua base de operações é na Holanda, local onde os
coordenadores das células terroristas se reúnem secretamente e transmitem as
instruções aos seus subordinados. Sua área de ação é global, mantida por
doações de simpatizantes da causa. Quando em campo, atuam em células de
3 a 6 indivíduos, sempre com um alfa coordenando as ações. Os betas são
utilizados em confrontos diretos, e os ômegas trabalham no apoio e transporte.
Sempre chegam aos lugares dos ataques sob disfarce; possuem conexões no
submundo do crime que fornecem todos os documentos falsos necessários
para fazerem os ecoterroristas passarem por equipes de TV, membros de
ONGs de ajuda comunitária, entre outros. O modo de agir é bem simples:
ataques rápidos e violentos, de modo a causar baixas e deixar os inimigos com
uma tremenda sujeira para limpar e ter de se explicar com as autoridades
locais.
Bem, acredito que me estendi demais nas explicações, mas procurei
mostrar de forma sucinta o que vem por aí. Fico à disposição para ouvir
qualquer dúvida, elogio ou crítica. Agradeço mais uma vez pelo interesse
mostrado por este e-book, desejo uma ótima leitura e já me adianto a convidálo a ler outros volumes da série (o volume zero já foi lançado, e os restantes
vão surgindo quando menos se espera), caso tenha apreciado este volume.
A natureza lupina liberta. A natureza humana destrói!

Alfer Medeiros
alfer.medeiros@gmail.com
www.AlferMedeiros.com.br
OOKAMI

(Chico Pascoal)

Permitam-me uma rápida apresentação: meu nome completo é Mario
Yukio Lopes Tsukimori. Sou brasileiro, sansei, terceira geração de
descendentes de japoneses. Tsukimori é o meu sobrenome pelo lado paterno;
o Lopes é do lado da minha mãe, que descende de imigrantes portugueses
açorianos aportados há cem anos na Ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil.
Nasci em Bastos, interior do estado de São Paulo, cidade com forte presença
da imigração nipônica, para onde meus pais se mudaram logo após se
casarem.
Há um provérbio antigo na província de Niigata, na ilha de Honshu, terra
dos meus avós japoneses, que diz: "Um lobo pode se esconder até mesmo
atrás de um junco". Lembro-me que, em certas ocasiões, eu costumava ouvilos repeti-lo, sempre na sua língua mãe, mas à época era pequeno demais
para atinar o seu real significado. Mais tarde, já na minha adolescência, meu
pai me explicou como seus pais conseguiram, durante a Segunda Guerra
Mundial, escapar das perseguições perpetradas pelo Estado Novo contra os
súditos de Sua Majestade o Imperador Japonês, e também àquelas
promovidas pelos sanguinários militantes nacionalistas do Shindo Remei contra
membros da colônia que ousavam duvidar da vitória do Japão: meus avós se
utilizavam da ancestral Estratégia do Ookami, que significa lobo em japonês.
Que estratégia era essa? Fiquei curioso. Achei em princípio que tivesse a
ver com artes marciais, e quis saber maiores detalhes; porém, meu pai, que era
um homem introvertido e de pouca conversa, podou-me o ímpeto juvenil como
fazia com os seus bonsais; apenas me pediu que tivesse paciência, que
esperasse, pois quando chegasse o momento certo me seria dado conhecê-la.
Sou por natureza um sujeito apreensivo, detesto esperar. Então, em
desacordo com o conselho do meu pai, atirei-me de corpo e alma à pesquisa
na Internet, em bibliotecas, nos arquivos do Museu da Imigração no Bairro da
Liberdade, e descobri, por exemplo, que os Tsukimori descendemos de uma
antiga casa notável desde a Era Meiji por fabricar o molho de soja missô que
provia os castelos de Daimyos, Shoguns e Imperadores. Fuçando ainda nos
pertences do meu pai, chamou-me a atenção em uma fotografia antiga do
casamento dos meus avós um símbolo bordado nas mangas do belíssimo
quimono de seda do noivo. Tratava-se de um círculo com uma lua cheia no
centro, rodeada por sete árvores. Aquele era o brasão da nossa família, cujo
significado correspondia ao seu nome: Tsuki (lua) e Mori (floresta, bosque).
Porém, por mais que procurasse qualquer referência à tal Estratégia do Lobo,
nada pude encontrar. Como a busca se mostrava infrutífera, com o tempo
passei a direcionar meus interesses para outros assuntos comuns aos garotos
da minha idade: estudo, esportes, garotas, entre outros.
Somente dois anos atrás, depois de ter emigrado ao Japão como o
fizeram milhares de brasileiros nipo-descendentes, por conta de mais uma crise
econômica que assolava nosso país, é que um acontecimento insólito trouxeme de volta aquele assunto que eu considerava encerrado.
Uma noite eu havia sido o último a sair da fábrica nos subúrbios de
Gunma onde dava duro montando autopartes, e pedalava sozinho e sem
pressa aproveitando os declives da estradinha sinuosa e bem cuidada, rumo ao
conjunto habitacional em que dividia um minúsculo apartamento com mais dois
amigos brasileiros. Após dez horas de trabalho, estava extremamente
extenuado. Tudo o que eu mais almejava naquele momento era um bom banho
morno, uma sopa Udon fumegante, e uma cerveja bem gelada.
Aquela era uma noite quente, úmida e abafada que, todavia, havia sido
recompensada com a presença de uma lua cheia e esplendorosa flutuando
qual um balão de prata em um céu de imaculada limpidez. Estrelas, se havia,
eram meninas tímidas, pois não as vi.
Eu fazia diariamente aquele percurso exceto aos domingos, porque
ninguém é de ferro; e confesso que tanto pela manhã, na ida para o trabalho,
ainda com resquícios de sono a me entorpecer os sentidos, como à noite, ao
voltar para casa, eu não me atinha a certos detalhes do caminho. Naquela hora
erma, porém, depois de cruzar a pequena ponte adornada com lanternas de
pedra sobre o riacho de águas límpidas, e internando-me no bosque de
pinheiros que se estendia a partir da encosta da elevação conhecida como
Kitsuneyama, ou Montanha da Raposa, me senti apossado de uma estranha
sensação. De um momento para o outro aceleravam-me sobremaneira as
batidas do coração. Taquicardia, pensei. E com razão apavorei-me crente que
houvesse chegado a minha hora.
Logo as veias das minhas têmporas latejavam com tamanha pressão e
intensidade que minha cabeça converteu-se em uma bomba prestes a explodir.
Ao mesmo tempo todos os músculos do meu corpo contraíram-se em terríveis
câimbras. Larguei a bicicleta na beira da estrada e corri aos tropeções em
direção a um tronco apodrecido de pinheiro, onde me sentei na vã esperança
de que aquela crise passasse. Faltava-me ar. Meus pulmões ardiam como os
altos-fornos de uma siderúrgica. Eu não tinha dúvida de que algo ruim estava
prestes a me ocorrer.
Isso foi só o começo, pois imediatamente, sem que eu pudesse impedir,
uma força sobrenatural irrompeu impetuosa de dentro de mim e, à guisa de um
daqueles perversos instrumentos medievais de tortura usados para
desmembrar hereges, agiu de forma violenta a alongar-me os ossos, a
distender minha coluna cervical, a rasgar-me a pele, moldando-me em uma
nova criatura. Partes de mim rapidamente se avolumavam e assumiam outros
formatos. Articulações rompiam-se e se recompunham de modo que o meu
macacão de operário já não me cabia. Isso sem falar no pandemônio que
confundia totalmente os meus sentidos. A audição, assim como o olfato, tinham
se ampliado sem qualquer controle e eu era capaz de ouvir diálogos íntimos
travados a quilômetros dali, assim como a queda suave de uma folha no fundo
do bosque, o pio solitário de ave noturna, o cheiro do arroz servido em uma
refeição tardia, o odor dos feromônios de alarme de uma lebre ameaçada por
um predador. Desesperado tateei minha faces, e constatei com assombro que
o meu nariz tinha se alongado ao mesmo tempo que, dentro da minha boca,
minha arcada dentária se convertera em poderosa mandíbula. No lugar das
mãos, agora eu tinha garras afiadíssimas, e os pelos de tonalidade cinza
brotavam espessos da minha epiderme como milhões de agulhas fincadas de
dentro para fora.
Não foi como se me arrancassem de mim, mas uma sobreposição. O
selvagem sobre o domesticado. O feroz sobre o dócil. Não suportando mais
tamanha dor, em um dado momento caí ao solo a me debater, a me contorcer
em violentos espasmos e convulsões, babando e transpirando em profusão,
como se fora um portador de epilepsia ou um endemoninhado que carecesse
de um providencial rito de exorção. Rios de lava incandescente corriam em
minhas veias.
Mas a tortura não se prolongou por mais tempo. Já metamorfoseado em
outro ser, ergui-me num salto testando a capacidade das minhas pernas
vigorosas. Erguendo os olhos febris, perscrutei através das ramagens dos
galhos altos dos pinheiros os contornos de uma lua desnuda e perfeita,
testemunha única da minha transformação. Como é inerente aos da minha
espécie, senti-me impelido a reverenciá-la e libertei o aulido primitivo que
estivera reprimido em minhas entranhas desde que eu viera ao mundo. Sim, eu
era um lobisomem de quase três metros de altura e de invejável envergadura.
Eu era um Ookami. O segredo da estratégia do lobo, aquela que os meus
ancestrais recorriam em momentos de dificuldade, tinha enfim se revelado. E
tive a certeza de que aquela era a hora da verdade à qual meu pai se referira.
Sentidos apurados, eu podia agora sentir mais intensamente e em toda
sua plenitude a natureza à qual de forma instintiva me integrava. O cheiro da
terra úmida, o farfalhar das folhas, o ruído das águas escorrendo por entre as
pedras do leito do riacho… Comecei então a estudar o território, a familiarizarme com sua topografia, a definir seus limites.
Orelhas e focinho em alerta, captei claramente em meio à balbúrdia de
sons e odores um pedido silencioso e desesperado por socorro. Um pedido
que não saíra de nenhuma garganta, mas que se fazia claro à minha nova
percepção. O metabolismo do aminoácido aromático e a tensão arterial
provocada pela adrenalina dele derivada que secretava uma presa acuada
diante de um predador me fez enveredar em alta velocidade pela mata
fechada. O chamado procedia do outro lado da montanha, e se eu tivesse que
seguir a estrada vicinal para chegar até lá, mesmo desenvolvendo uma
velocidade surpreendente para os padrões humanos, demonstrar-se-ia inútil.
Galhos, troncos, espinhos, pedras, ravinas... Aquele era o meu meio, o
habitat do lobo. Nada havia que pudesse me impedir de chegar aonde me
propunha. Sem perda de tempo fiz meu próprio atalho com desenvoltura, e em
questão de minutos alcancei um descampado que na época das férias
escolares servia como área de camping. No centro da clareira, formando um
círculo, fachos de luz de faróis e o ronco ameaçador de motores. Uma gangue
de motoqueiros.
Eram Bosozoku. Uma praga no Japão moderno. Hordas de delinquentes
juvenis em suas motocicletas envenenadas que se juntam para transgredir as
duras regras da sociedade nipônica e praticar barbaridades, principalmente
contra trabalhadores imigrantes. É nesses grupos de desordeiros que a máfia
japonesa, a temível Yakuza, recruta seus membros.
Encurralado pela gangue, identifiquei um grupo composto de cinco
rapazes e duas moças. Estavam em estado de pânico, paralisados pelo medo.
Vestiam o uniforme cinza da fábrica de autopartes, o mesmo que eu usava
antes da transformação, e do qual eu já nem me recordava. Não os reconheci,
mas algo em mim dizia que eu devia ajudá-los.
“Filhos da puta!”, berrava a plenos pulmões um dos motoqueiros, com
elmo no estilo samurai, brandindo um taco de beisebol. De imediato
identifiquei-o como sendo o líder do bando. Vociferava em português. As
ofensas, mesmo pronunciadas com forte sotaque, me soavam familiares.
“Vamos lá, guerreiros! Vamos detonar os vermes!”, exortava colérico,
agora em japonês, os seus comandados. “Alguém tem que livrar o nosso país
dessa praga!”
A resposta do resto do bando ao chefe foi imediata. Entre urros, palavras
de ordem e gritos de guerra, tomados de coletiva histeria, eles ergueram suas
correntes e tacos e avançaram contra os trabalhadores indefesos. Nesse
instante eu intervim.
Do alto do pinheiro onde me encarapitara para observar melhor o campo
em que teria de lutar, empreendi um salto magistral, aterrissando diante do
comandante Bosozoku. Antes que ele pudesse atinar sobre o que estava
acontecendo, testei o fio das minhas garras arrancando-lhe com um só golpe a
cabeça. Com potência e precisão o golpe atirou-a longe, enquanto o corpo
decapitado prosseguiu, ainda por alguns metros, pilotando a moto
desgovernada . E o consequente cheiro adocicado de sangue despertou meu
apetite.
A maioria dos motoqueiros que vinha na empolgação do ataque em
massa, ao se dar conta do que sucedera ao seu líder tentou, retroceder e
acabou se atropelando mutuamente, o que facilitou meu trabalho. De dois
deles, que por azar caíram justamente aos meus pés, dilacerei sem esforço
suas gargantas. O barulho do sangue gorgolejando, de ossos partindo, o odor
nauseabundo dos excrementos vazados de seus corpos eviscerados, os gritos
alucinados de pavor, tudo me excitava enormemente.
O espírito kamikaze de lealdade de alguns daqueles caras para com o
líder fazia com que não se importassem em se atirar em direção à morte certa,
desde que pudessem infligir algum dano ao oponente. Um, de notável
habilidade com sua máquina, empinou-a de forma a me atingir. A pancada forte
da roda dianteira da moto contra o meu costado fez com que eu perdesse o
equilíbrio e dois outros aproveitassem para me acertar. A corrente com que um
deles me chicoteou enrolou-se no meu braço e eu o puxei para mim. Dava para
ver o pavor instalado em seus olhos miúdos. Deu para sentir a urina
encharcando as pernas do seu jeans apertado. Este eu tomei pelos pulsos, um
com cada garra, e abri seus braços, aproximando o seu rosto das minhas
mandíbulas. Então os estiquei até que a pele se rasgasse e os ligamentos se
rompessem, desmembrando-o.
Antes que começasse a debandada geral, avancei como um raio sobre os
restantes distribuindo dentadas a torto e a direito, rachando cabeças,
massacrando-os, estraçalhando-os. Fez-se o inferno na Terra. O às da
motocicleta foi o último que liquidei. Apanhei-o antes que alcançasse a estrada,
onde talvez levasse vantagem sobre mim, e prendi-o pela nuca como é comum
aos lupinos e felinos quando carregam seus filhotes. Era um rapaz musculoso.
Ele seria o que primeiro eu devoraria. Fibras. Sua energia e sua juventude
haveriam de me revigorar.
Olhei em volta. Os trabalhadores já não estavam presentes para
testemunhar meu suculento repasto. Aterrorizados, tinham se aproveitado da
confusão para cair fora pedalando rapidamente em suas bicicletas em direção
à cidade. Aquelas cenas de terror e extrema violência tinham sido impressas
em suas mentes de tal forma que, até o dia em que desencarnassem, as
carregariam consigo.
Sozinho com meus doze cadáveres, deliciei-me mastigando com
voracidade incomum as suas melhores partes. Sangue e carne à vontade – era
tudo o que me importava naquele momento. E ai de quem ousasse me
interromper! Sentia-me absoluto, senhor dos meus instintos, embora, de algum
recôndito do meu turvo inconsciente, às vezes aflorasse um resquício de
náusea, de repúdio. O inevitável conflito com o meu lado humano, com o meu
outro Eu.
Ao terminar o meu farto banquete, por volta da meia-noite, espessos
edredons de nuvem agasalhavam a Lua. Roia ainda alguns fêmures quando o
meu sentido auditivo concentrou-se em uma voz suave e feminina que se
sobrepunha às tantas que a minha audição privilegiada conseguia captar. Esta
voz, porém, não vinha através de ondas sonoras, mas mentais. E dirigia-se
diretamente a mim.
“Irasahimasse, irmão Ookami! Seja bem-vindo!”
Desconfiado, agucei o olfato e varri os arredores com minha visão.
“É inútil, irmão. Concentre-se e entraremos em perfeita sintonia”,
aconselhou a voz. “Vamos, faça um pequeno esforço.”
“Quem...?”, respondi mentalmente.
“Muito bem! Aos poucos irás perceber que não é tão difícil dominar esta
técnica. Deixe que eu me apresente: Meu nome é Eucyon. Temos mais em
comum do que possa imaginar. Também sou uma mulher-lobo.”
“Pensei que eu fosse...”
“O único?”, riu-se. “És muito pretensioso. Saiba que somos uma grande
alcateia. Não estamos apenas no imaginário popular, na cultura de cada povo.
Fazemos-nos presentes em todos os continentes.”
“Todos sujeitos a esta... Maldição?”
“Se me permite, irmão Ookami, prefiro encarar como sendo uma benção.”
A minha misteriosa interlocutora então me revelou que estivera o tempo
todo a me observar, tendo inclusive elaborado um relatório completo sobre a
minha primeira transfiguração e o meu comportamento diante de uma situação
de risco. O objetivo era avaliar se eu realmente tinha potencial para fazer parte
dos quadros da organização que ela representava.
“Relatório? Organização?”, estranhei. “Uma organização composta por
lobisomens, você quer dizer?”
“Licantropos. Militamos na Green Death. “
“Nunca ouvi falar...”
“Porque não usamos do recurso da visibilidade como o Greenpeace, a
WWF ou os Médicos sem Fronteiras. Pelo contrário: acreditamos que quanto
mais invisíveis, melhor. Quanto mais acreditarem que somos apenas uma
lenda, uma supertição, menos complicado será atingirmos nossos objetivos.”
“Uma organização com fins ecológicos?”
“A natureza é o nosso meio. Cabe-nos retaliar e vingar as agressões por
ela sofridas. Não impomos a ninguém que se junte à nossa causa, mas lhe
estendemos o convite. Fique a vontade para pensar a respeito. Dentro de uma
semana entrarei novamente em contato. Ah, um conselho, se permite, antes
que crie sérios problemas para o decasségui Mario Yukio, cuja forma daqui
alguns minutos terá de reassumir: comece a limpar o terreno. Desapareça com
todo e qualquer vestígio que possa indicar a presença de um lobisomem nessa
região. Sayonara!”
A conexão com a minha preceptora interrompeu-se, e em seguida me vi
recolhendo os despojos daqueles infelizes, assim como suas motos e armas, e
atirando-os em uma fenda estreita e profunda aberta por antigo sismo no alto
da montanha. O forte odor de enxofre que emanava das águas termais que
corriam nas entranhas da terra disfarçaria o cheiro decorrente da putrefação.
Fi-lo com tanta naturalidade, que era como se já o tivesse feito outras tantas
vezes.
Horas mais tarde, de volta à minha forma humana, cheguei seminu ao
alojamento onde encontrei meus companheiros ainda em estado de choque.
– Mario! Pensamos que estivesse... – abraçou-me chorando minha amiga
Yukari, visivelmente abalada.
– Estou bem, Yuka – tranquilizei-a. Embora ela não me dissesse, eu
percebia a extensão dos seus sentimentos em relação a mim. O que eu ainda
não tivera coragem de lhe contar é que tinha me desgastado muito com uma
desilusão amorosa antes de vir para o Japão (um dos motivos que pesou na
minha decisão de partir), e que não estava disposto a tão cedo me envolver
emocionalmente com alguém.
– Os Bosozoku... A criatura...
– Já passou. Estamos todos bem agora, não estamos? Foi só um
pesadelo.
O restante do pessoal também estava aterrorizado e confuso com os
estranhos acontecimentos daquela noite. Alguns cogitavam até largar tudo e
embarcar imediatamente para o Brasil. Então lhes pedi calma. Sugeri que o
melhor a fazermos era dar por encerrado o assunto. Não que fosse tarefa fácil
apagar das nossas mentes aquelas cenas medonhas que os que os nossos
olhos tinham presenciado. Mas que devíamos tentar tocar normalmente as
nossas vidas, continuar, apesar de tudo, correndo atrás dos nossos sonhos.
Dos sonhos bons.
A semana seguinte foi de angustiante apreensão. Temíamos, e com
razão, que a imprensa ou a polícia pudesse levantar qualquer suspeita sobre a
o desaparecimento daqueles infelizes. Era como se o homem-lobo que viera
em socorro dos trabalhadores decasséguis fosse apenas fruto da sua
imaginação.
Aqueles dias eu andei meio avoado, disperso. No trabalho cheguei até a
ser advertido duas vezes pelo meu supervisor. Yukari e os outros colegas,
contudo, não estranharam, já que eles próprios ainda não se haviam
recuperado plenamente do choque emocional decorrente do episódio com o
lobisomem e os Bosozoku.
Depois de analisar minuciosamente, pesar os prós e os contras da
proposta apresentada pela Green Death, voltei ao bosque da Montanha da
Raposa. O fato de poder me transformar em lobisomem, a princípio me
assustara; mas por outro lado não tive dificuldade em aceitar a minha condição
de “diferente”. Era uma herança dos meus antepassados, um presente raro. E
eu não podia simplesmente renegá-la. Dispor deste dom e não utilizá-lo para
um propósito que não fosse apenas a autodefesa, como o fizeram meus avós,
me parecia uma atitude puramente egoísta. Então novamente assumi a forma
de lobo e contatei Eucyon para comunicar-lhe a minha decisão.
Minha preceptora é, na hierarquia da Green Death, uma fêmea ômega.
Seu forte é justamente a comunicação mental; e o seu papel dentro da
organização é identificar, recrutar, treinar e monitorar agentes. A sede da
Green Death está secretamente localizada em algum lugar nos Países Baixos.
Eucyon pertence a uma das cinco células terroristas no Continente Asiático e
sua base é a ilha de Okinawa, ao sul do arquipélago japonês. Não nos
conhecemos pessoalmente.
– Ficamos muitíssimo honrados que tenha aceitado, irmão Ookami.
Ontem mesmo, em reunião extraordinária, o Conselho da organização reunido
na Holanda fez comentários muito positivos em relação ao meu trabalho, ou
seja, à sua avaliação; o que significa que oficialmente você já pertence ao
quadro da Green Death. Dentro da nossa hierarquia você foi considerado um
homem-lobo em nível beta: o que o qualifica para atuar diretamente em
confrontos e ações de risco. Meus parabéns. Irashaimasse, irmão Ookami
Aquela mesma noite fui informado de que teria o meu batismo de fogo.
Fora-me confiada uma missão, e eu teria a oportunidade de finalmente mostrar
o meu valor. Em princípio fiquei pensando que tipo de desculpa daria para
poder me ausentar do trabalho, ou mesmo o que diria aos meus colegas de
alojamento. Mas o pessoal da Green Death era de uma eficiência ímpar e já
tinha pensado em tudo.
No dia seguinte, na fábrica, mal assinei o ponto digital, o supervisor de
serviços da área à qual eu pertencia, Senhor Murakami, chamou-me à sua
sala.
– Senhor Tsukimori, volte para o alojamento e arrume as suas coisas.
Precisamos que viaje imediatamente a Okinawa. Vai ficar uns dias por lá, a
trabalho.
Eu estava surpreso. Tratasse-se de um alto executivo, vá lá. Mas eu era
um simples peão naquela linha de produção, e além do mais um imigrante. Ser
destacado para prestar serviço em outra unidade daquela renomada fábrica de
autopartes, era algo, senão inédito, quase inimaginável. Pensei no mal estar
que causaria, na inveja que despertaria principalmente entre os funcionários
efetivos.
– Está ficando importante, hein garoto! – parabenizou-me Yukari quando
lhe contei.
– Nem sei bem porque me escolheram – disfarcei.
– Sem falsa modéstia, Mario – brincou Orlando, um paranaense já
veterano – De nós, você é que se vira melhor em japonês. Isso conta muito
para eles.
No dia seguinte ao desembarcar o sul do arquipélago, em Naha, capital
de Okinawa, Eucyon me esperava no aeroporto. Minha preceptora era bem
diferente da imagem que dela eu fizera dela. Era quase uma adolescente,
tingia o cabelo de azul e vestia-se de modo despojado, ao estilo das
mundialmente famosas lolitas do distrito de Harajuku.
– Tsukimori-san?
– Sim. Você deve ser...
– Meiko. Meiko Ogata. Seja bem-vindo a Okinawa – Curvou-se numa
reverência.
Os codinomes, ela tinha me alertado, não deviam ser usados em público.
Tomamos um taxi para um bairro localizado nos subúrbios da cidade
onde ficava o apaato que Meiko dividia com seu namorado, um americano alto
e ruivo. Clarence Sttummer era correspondente de um jornal do Havaí, e
também fazia parte da Organização. Era um lobisomem da categoria alfa, e o
seu codinome era Red Wolf.
– Prazer em conhecê-lo, irmão Ookami – saudou-me o americano
estendendo-me gentil sua mão forte. – Sou o responsável pelo planejamento e
pela logística da missão. Eucyon me falou muito bem de você.
– Obrigado. Vocês são muito gentis.
Mais tarde, depois do jantar, o simpático casal explicou-me em detalhes
que tipo de ação nós iríamos empreender e como deveríamos proceder.
– Há aproximadamente uma semana um navio de bandeira japonesa
procedente do porto de Kobe transportou secretamente, para uma região rural
do Timor Leste, um enorme carregamento de lixo hospitalar que seria
enterrado nas montanhas próximas a Dili, colocando em risco os mananciais
que abastecem aquele país. A informação, que nos foi passada dias atrás por
nossos alcaguetes, é que a família Yakuza Yamaguchi-gumi e um chefe
político timorense estariam por trás do negócio que há de lhes render alguns
milhões de dólares.
– O ideal seria que tivéssemos conseguido impedi-los antes que os
contêineres fossem desembarcados – reforçou Meiko. – No entanto, cremos
que ainda há tempo hábil para fazermos algo de modo a evitar a ocorrência de
um terrível desastre ambiental.
– É do nosso conhecimento que já saltou de paraquedas antes – disseme o alfa. E tive a certeza de que haviam vasculhado a minha vida como que
revira um armário.
– Uma vez apenas – admiti – Com uma turma de amigos em um
aeroclube no Brasil. Por puro exibicionismo.
***
O pequeno avião sobrevoou a cidade de Dili mas, contrariando as
orientações de pouso fornecidas pelo operador de tráfego do aeroporto, seguiu
em frente sempre margeando a costa, até se internar e tomar o rumo dos
montes Matebian, elevações consideradas sagradas pelos timorenses.
– Casa dos Mortos. É o que Matebian significa na língua nativa de Timor,
o Macassai – explicou Red Wolf enquanto eu me preparava para o salto –
Desça lá Ookami-san, e faça com que aquela corja se sinta em casa.
Entendi o recado e fiz sinal de OK.
Lá embaixo, em meio à uma densa névoa, visualizei duas magníficas
formações geológicas de aparência tumular. Matebian Mane e Matebian Feto.
Homem e Mulher. Era ali, no seio daquela natureza que me pareceu
extremamente hostil, que a minha capacidade seria posta à prova.
Dentro das coordenadas traçadas por meus preceptores, saltei de modo a
aterrissar em uma pequena clareira localizada no meio da selva. E, fora um
friozinho na barriga decorrente da ansiedade, não tive qualquer tipo de
problema.
Aterrissei em meio ao capim alto e, após recolher o paraquedas e ocultálo sob as raízes de uma árvore antiga, retirei um apito do bolso e soprei forte
por três vezes. Era o sinal combinado para que o guia que me aguardava me
localizasse. Esperei ao longo de alguns minutos, atento a qualquer movimento
ou ruído, mas ninguém apareceu; então comecei a temer que tivesse entrado
numa fria.
A sombra que assomou qual uma projeção cinematográfica em meio à
neblina, não obstante fosse gigantesca e em princípio aterradora, pertencia a
um homem de baixa estatura, a um pequeno guerreiro descalço que se
materializou na minha frente.
– Senhor Lopes? – perguntou-me em perfeito português. A voz vigorosa
contrastando com a sua débil compleição física.
– Sim, sou eu – respondi.
Ele aproximou-se para que eu pudesse vê-lo melhor.
Era um homem de meia idade. As cãs e a barba grisalhas, a pele morena
e curtida, davam-lhe uma aparência venerável. Trazia a tiracolo um embornal
de lona e um velho fuzil com o número de série do exército português na
culatra.
– Olá, como vai? – cumprimentou-me estendendo mão magra e calosa –
Sou Isidoro de Souza. Ex-combatente da FRETILIN e veterano das guerras da
independência de Timor. Fui designado para guiá-lo ao Covil da Serpente.
– Imagino que conheça esta região como a palma da sua mão.
– Pode apostar – riu, abrindo um sorriso desdentado de gengivas
escuras. – Nasci aqui, aos pés dos Matebian. E aqui pretendo descansar meus
ossos, quando a velha da foice me chamar. Mas creia-me, senhor Mario, não
estou com pressa nenhuma.
Rimos. Isidoro era realmente um sujeito espirituoso e caiu de imediato
nas minhas graças. Achei que nos daríamos muito bem e que faríamos ótima
parceria.
Enquanto seguíamos rumo às montanhas o velho timorense me contou
episódios e fatos ocorridos ali durante a guerra, lembrando os companheiros
que haviam morrido defendendo a soberania de Timor Lorosae, sua pátria.
Explicou também que faríamos uma marcha por cerca de duas horas ao longo
de uma trilha escondida na mata, e que se tudo corresse conforme tinha
planejado chegaríamos ao nosso objetivo antes do anoitecer.
Por volta das cinco da tarde alcançamos uma garganta de quase um
quilômetro de extensão, que de tão estreita mal dava para passar um homem.
Felizmente sou de compleição delgada, mas mesmo assim tive de percorrê-la
inteira de lado.
Superado esse obstáculo natural, detivemos-nos finalmente no topo de
uma pedra enorme, uma espécie de mirante.
– O Covil da Serpente está logo ali embaixo – apontou para um ponto
invisível no meio da indevassável neblina. – Foi uma antiga base do exército
indonésio. E tem esse nome por causa da estrada sinuosa como uma cobra
que conduz até lá.
Isidoro, como eu já desconfiava, era um ômega, o único em todo o
território Timorense. Sem seu precioso apoio, mesmo para um agente
experimentado o que não era o meu caso, a missão se tornaria praticamente
inviável. O fato de falar português tinha pesado na minha escolha. Talvez
tivesse sido mesmo uma sugestão do meu guia.
– Aproveite para descansar, rapaz – sugeriu o veterano – Logo mais,
quando a neblina amainar e a luz dos faróis dos caminhões se fizerem visíveis
lá no rabo da Serpente, você vai até lá mostrar a que veio.
Retirando do embornal de lona um rolo de corda de fibra vegetal, firmou
uma das pontas com um nó no galho de uma pequena árvore arraigada nas
rochas da encosta, e atirou-a no precipício.
– É através desta corda que você vai poder descer até o próximo
patamar. Dali em diante vai ter que confiar nos seus instintos de lobo. Ficarei
aqui, mas estaremos conectados mentalmente. Caso precise de ajuda, não se
faça de rogado. Chame-nos, e eu e a Sonia Braga aqui iremos em seu socorro.
– Sonia Braga? – ri.
– É como eu a batizei – apontou para a carabina cruzada sobre suas
pernas – Um amor antigo, seu Mário. Um casamento. Não desgrudamos um do
outro.
Naquela bem-humorada comparação, pude comprovar o enorme poder
de penetração das telenovelas brasileiras mundo afora.
Às sete horas em ponto ouvimos finalmente o rosnado dos motores
enfrentando o desafio dos aclives. Vistos do alto, os fachos dos faróis dos
veículos eram como lâminas brancas de luz fatiando o fumo da cerração.
– Dois camiões trucados e dois veículos menores, provavelmente
servindo de escolta – observou Isidoro colocando a mão no meu ombro. –
Agora não há mais tempo a perder. Vá!
Encaminhei-me relutante à beira do precipício e coloquei as luvas de
couro e o equipamento de rapel. Lembrei-me de um tempo em que praticava
esportes radicais, e que vencer cachoeiras ou descer rios caudalosos em uma
boia era o meu maior desafio.
Deixe a mochila comigo – disse o guia. – Não vai precisar dela por
enquanto.
Desci cerca de dez metros por entre a bruma que se dissipava e alcancei
a plataforma inferior, o ponto que Isidoro me havia indicado. Ali, mesmo com a
temperatura despencando rapidamente, despi-me e me concentrei. Ouvi um
zumbido crescer dentro do silêncio e aos poucos fui entrando em sintonia com
o veterano timorense, que me orientaria na minha primeira transformação
induzida.
Isidoro com a sua experiência e conhecimento do terreno faria com que
as coisas se tornassem bem mais fáceis para mim. Em questão de segundos,
minha musculatura contraiu-se resistindo à expansão violenta da minha
estrutura óssea. Pelos grossos brotavam abundantes em minha derme, e o
tremor que agora tomava conta do meu corpo, eu sabia, não era provocado
pelo sopro gelado do vento sudoeste que assobiava nas ravinas e saliências
rochosas. Urrei, antevendo a imensa e inevitável dor que precederia a pujança
e o prazer incomensurável de me libertar da minha forma humana,
domesticada, assumindo a condição primitiva e feroz de um homem-lobo.
Imagino que tudo tenha ocorrido muito rapidamente. Apenas imagino,
pois a cada dolorosa transformação meus neurônios explodiam como se
fossem átomos em processo de fissão, e o meu nível de consciência
simplesmente inexistia.
Logo eu era um lobisomem novamente. Um lobisomem vigoroso e feroz
com garras afiadas e mandíbulas de aço. Com focinho alongado e olhos
raiados e brilhantes. Meus instintos superdimensionados agora captavam com
nitidez os sons mais discretos da montanha, o rumor das águas, o temor
noturno dos pequenos animais, o sussurro lamurioso das almas dos
combatentes que ainda vagavam por aquelas paragens. E também os cheiros.
Principalmente o odor fétido que exalava dos contêineres trazidos pelos
caminhões, e que infectava o ar puro dos Matebian.
“Jovem Ookami, o momento é este”, ouvi Isidoro me aconselhar dentro da
frequência estabelecida entre nós. “O elemento surpresa é seu trunfo. Os
facínoras estão fortemente armados, e confiam que ninguém se atreverá a
atrapalhar os seus planos. Agora vá, garoto! Ah, se puder, poupe os
motoristas. Eles serão úteis para conduzir os veículos de volta à costa.”
Não levei mais que dez minutos para alcançar a clareira rodeada de
palmeiras conhecidas por Tali Metan, onde ficava a base. Da escuridão, divisei
a silhueta dos dois homens que montavam guarda naquela velha construção
de arquitetura portuguesa.
Interpretando as conversas captadas pelos meus ouvidos, Isidoro
identificou-os como sendo de origem indonésia. O primeiro era gordo, falador e
cheirava a comida picante; o segundo era monossilábico e, nervoso, fumava
um cigarro atrás do outro. Não lhes dei chance para entender o que se
passava: avancei dentro das sombras sem que percebessem e, juntando suas
cabeças, bati uma contra a outra com uma força que eu ainda não dominava.
Um ruído de vasos que se quebrassem. A massa encefálica morna é uma
iguaria que não se deve desperdiçar. Considerei-a como a entrada para o
banquete que iria apreciar logo em seguida.
“Muito bem, rapaz!”, elogiou Isidoro. “Agora chega. Não deve se
desconcentrar nem deixar-se desviar do seu objetivo.”
Grunhi contrariado, mas as palavras do velho tinham o estranho poder de
me dobrar. Obedeci. Isidoro sabia que, uma vez despertado, o meu apetite de
besta interferiria de forma negativa prejudicando minhas ações, forçando a
saciedade.
Não se passaram nem dez minutos e um jipe de fabricação japonesa,
sem capota e com tração nas quatro rodas, antecipou-se ao comboio e entrou
na clareira. Nele havia três homens: um ao volante e os outros dois, um do lado
do carona e outro no banco traseiro, armados com rifles.
– Halo! – gritou um deles, ainda antes do veículo estacionar. –
Chegamos!
Não obtendo qualquer resposta, nem esperou pelos outros. Escalou
rapidamente os degraus antigos da velha base e empurrou com o cano da
arma a porta entreaberta.
– Ei! Se o vagabundos encheram a caveira de Arrack, podem se preparar:
o chefe vai comer vocês vivos!
Vivos? Exceto os pequenos insetos da noite, não havia mais ninguém
vivo lá dentro. A cena com que deparou jogou-o para trás como um coice de
uma carabina de grosso calibre após um disparo: à luz pálida e oscilante de
uma lâmpada a querosene jaziam os corpos inertes dos dois infelizes.
– Puta que pariu! – disse, enquanto retrocedia tropeçando nos pés, sem
se arriscar a dar as costas para quem ou o que pudesse vir da escuridão dos
cômodos contíguos.
Cruzando de volta o umbral da porta de entrada, trôpego, correu em
direção ao jipe, para junto dos seus companheiros. Contra o facho dos faróis,
porém, não os enxergava, embora acreditasse que estivessem ali.
– Fudeu! Algo deu errado! Os caras estão mortos – deu o alerta, o pânico
estampado na voz.
Suas palavras perderam-se no vazio como tiros a esmo, sem surtir o
efeito desejado. Logo ele descobriria que os que haviam permanecido no carro
também estavam igualmente mortos, desmembrados, os corpos cruzados um
sobre o outro. E teria a indigesta e angustiante certeza, talvez a última, de que
aquele terrível fim também lhe estava reservado.
Suas pernas curtas, antes mesmo que o cérebro alarmado emitisse
qualquer comando, arrastaram-no em tresloucada fuga estrada abaixo, mas
não o levaram muito longe: poucos metros à frente esbarrou em um largo
paredão de músculos sob pelos, contra o que reagiria disparando furioso a sua
arma – se pudesse. Gritaria também se uma garra de aço não o prendesse
pelo pescoço, apertando-o até quebrá-lo, emitindo um estalo seco.
O silêncio da morte pousou outra vez sobre a noite como uma enorme
ave de mau agouro.
“Bom trabalho, Ookami-san”, elogiou o ômega, através da frequência das
ondas cerebrais. “Primeira fase concluída com sucesso.”
Os caminhões basculantes, cada um com dois pequenos contêineres,
vencendo o cascalho da estrada estreita com os motores a rugir, apontaram na
entrada da clareira cerca de quinze minutos depois. O jipe estava lá. O motor
ainda se encontrava ligado, mas não havia sinal dos batedores nem dos
homens contratados para montar a guarda no local.
Entrementes, na retaguarda, os ocupantes do segundo jipe eram
surpreendidos pela minha forma escura e amedrontadora que desabara do alto
das enormes palmeiras que ladeavam a estrada.
– Meu Deus! – ainda teve tempo de pronunciar em vão a primeira vítima,
antes que o fio das minhas garras estraçalhasse a cartilagem da sua garganta,
matando-a instantaneamente.
O segundo homem, típico sicário arregimentado na periferia pobre de
Jacarta, mostrou ótimo reflexo ao sacar de uma pistola automática e disparar
duas vezes contra mim. Atirava bem, mas não pôde confirmar jamais se
conseguira acertar o alvo. Os estampidos de sua arma, contudo, serviram para
alertar os condutores dos caminhões de que algo não corria bem.
Aproveitando-se de um segundo de retardamento que representou a inútil
resistência oposta pelo seu companheiro atirador, o chofer do jipe abandonou o
volante e tentou escapar. Quando percebeu que eu, terrível predador, viria nos
seus calcanhares e o alcançaria, tentou uma última e desesperada cartada:
atirou-se no abismo. Talvez pensasse que partindo a cabeça nas pedras ou
quebrando o pescoço em consequência da queda tivesse uma morte menos
traumática.
Tiros. O alarme fora dado. E ainda antes de abandonarem as cabines dos
caminhões, os homens que as ocupavam já engatilhavam suas reluzentes
automáticas. Mera formalidade, pois confiavam ingenuamente que seu poder
de fogo pudesse defendê-los de minha ameaça inumana.
“Restam quatro”, informou o preceptor. “Posso vê-los através do binóculo
para visão noturna.”
Eu sabia o que fazer. Difícil mesmo ia ser controlar minha inata ferocidade
de modo a poupar a vida de dois daqueles infelizes. Galgando num salto
silencioso os contêineres do primeiro caminhão, pousei sobre os escolhidos
minha visão. O poder de vida e de morte daqueles homens estava nas minhas
garras. Os que saíam pelo lado do carona não veriam jamais a luz do dia
seguinte.
Gritos angustiados, lamentos sufocados, sangue gorgolejando, ossos
partindo, tiros esparsos... Uma batalha que mal começava já se dava por
perdida. Os sobreviventes, encurralados entre os dois veículos, não atinavam
por que a besta sanguinária, depois de trucidar com extremada fúria seus
desditados companheiros diante dos seus olhos, de repente, como se uma
mão invisível o impedisse, se contentasse apenas em tomar suas armas.
– Agora a parada é comigo, Ookami-san – disse uma voz, proveniente
das sombras. A contragosto, me afastei.
Carabina em punho, o timorense intimou os prisioneiros. Em japonês, pois
eram nipônicos. Com o pouco que sabia do idioma, consegui compreender sua
frase seguinte:
– Vocês vão ter que levar toda esta imundície de volta, seus bastardos!
Só por isso é que estão vivos. Alguma objeção?
Nem precisavam responder. Aqueles eram os termos da rendição. Não
havia mais o que se pudesse negociar além de suas vidas. Sob a mira do exguerrilheiro e o meu olhar faminto, os motoristas desceram a serra em grande
velocidade, amedrontados, e mais preocupados em se safar daquele pesadelo
infernal que propriamente cumprir com o que lhes fora determinado.
Acompanhando o desenrolar da ação pelo binóculo, Isidoro assistiu
satisfeito quando, minutos depois, uma patrulha de capacetes azuis interceptou
ambos os veículos.
“Relaxa, garoto. Coma alguma coisa.”
Não me fiz de rogado e me atirei voraz sobre os cadáveres que jaziam
ainda mornos no solo poeirento da clareira, extraindo de ambos seus órgãos
internos. Corações e rins eram as iguarias que mais satisfaziam o meu paladar.
Mantendo uma razoável distância, Isidoro esperou. Sabia do perigo que
significava se aproximar de uma fera quando esta estivesse a se alimentar.
Como posteriormente me disse ele, homem-lobo não sujeito à metamorfose
corporal, não raro era tomado pelo desejo de provar de carne humana. Quando
isso acontecia, porém, seu estômago embrulhava de puro asco e ânsia; e a
vontade do homem acabava se impondo à vontade do lobo.
Meia hora mais tarde, a bordo de um dos jipes da escolta (o outro fizemos
deslizar para o fundo de um precipício, juntamente com os despojos do
infelizes mortos), Isidoro e eu, já de volta à forma humana, tomamos o rumo de
Díli, a capital timorense. Isidoro conhecia um atalho que nos permitiria evitar a
abordagem por parte dos soldados da Força de Paz. Se a estratégia falhasse,
no entanto, tínhamos um álibi preparado: eu seria um jovem fotógrafo e
ornitólogo com credenciais de uma importante revista brasileira, que ali me
encontrava com o intuito de documentar as belezas naturais do país; Isidoro
fora contratado como seu guia.
Entretanto tudo correu sem maiores incidentes. Quando o sol iluminou o
dia, pudemos avistar ao longe as palmeiras que ladeiam o aeroporto de Dili.
***
O Hotel Lorosae era uma construção moderna e aço e vidro situado na
Avenida Portugal, nas proximidades do porto. Era ali que Red Wolf e Eucyon
tinham marcado de me encontrar. A um quarteirão de distância, porém, Isidoro
parou o jipe no acostamento e se despediu.
– Daqui seguirás sozinho, meu jovem amigo – disse o velho timorense. –
O hotel é aquele ali adiante. Por precaução, é bom que não nos vejam juntos.
– Foi uma honra combater ao seu lado, comandante Isidoro. Obrigado por
tudo – falei, estendendo-lhe a mão.
– Não há de que, meu rapaz. Provaste ser um combatente de valor. Vá
com Deus.
Os sinos da Igreja Matriz de Díli dobravam solenes à distância,
anunciando a missa das seis horas quando avancei pelo saguão do Hotel
Lorosae. Sentia-me um trapo humano. Sono, fome, tensão haviam me
desgastado a tal ponto que não pensava em outra coisa senão em convencer
Meiko e Clarence a não embarcarem imediatamente rumo ao Japão.
Necessitava de pelo menos mais um dia na capital timorense, para recuperar
as baterias.
A magnífica manhã do dia seguinte veio nos saudar, três jovens
licantropos estrangeiros em uma praia na belíssima Ilha de Ataúro, localizada a
cerca de trinta quilômetros de Díli. A natureza ali, quase intocada, com suas
águas calmas e translúcidas, peixes coloridos, revoadas de pássaros marinhos
das mais diversas espécies e um povo simples e hospitaleiro, parecia de
alguma forma agradecer por termos atuado providencialmente em seu socorro
quando mais precisava, livrando-a dos tentáculos traiçoeiros que estiveram a
ameaçá-la.

~*~
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CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo)
A criatura arrastava vagarosamente os pés carcomidos na estrada de
terra, fazendo uma poeira fina soltar-se do chão. Do rombo em sua barriga
desprendia-se um cordão de vísceras que se enrolava pelas pernas e caía ao
chão como um pequeno rabo que, arrastado, desenhava na terra uma linha
tortuosa. Sem qualquer coisa que fizesse sentido, a criatura grunhiu
chorosamente, como se fosse um lamento fúnebre por seu trágico destino.
Seus pares que a acompanhavam na marcha repetiram o grunhido. Ansiavam
todos por carne e água. Mas à frente tinham apenas o canavial e uma estrada
desértica e solitária.
Quando a criatura que ia mais a frente, tomada por seu instinto selvagem
de uma fera próxima à morte, parou a caminhada intencionando comer das
carnes dos outros caminhantes, o farfalhar vindo do meio do canavial distraiu-a
de seus planos.
E o que já era macabro ficou ainda pior.
Do meio da plantação, um gigantesco lobo de cor marrom saltou contra o
pequeno grupo. No salto, feito em uma parábola perfeita, com um único golpe
violento, a cabeça de uma das criaturas voou como uma bola acertada por um
taco de baseball. Com agilidade surpreendente, ficando sobre duas patas, o
lobo deu um giro em trezentos e sessenta graus, e enfiando uma de suas
garras no peito de outra criatura, arrancou-lhe o coração febril, cujo pulsar era
ritmado e lento.
Atordoadas pelo ataque surpresa, as criaturas que até dias atrás eram
homens e mulheres trabalhadores do canavial, giravam em círculos, tontas
pelo que acontecia. E sem qualquer remorso, o lobo, cujos olhos eram
estranhos e temerários, foi uma a uma retirando-as daquele meio termo de
sobrevivência, libertando as criaturas da febre mortal que os atingira.
Em menos de dois minutos de ataque, o lobo estava no centro de um
círculo de corpos decompostos e mutilados. Não havia restado um único
zumbi. Mas para não deixar vestígios, ainda como lobo, a fera arrastou os
restos mortais dos inimigos para um buraco, que logo depois foi entupido com
terra. Mesmo com fome, por via das dúvidas preferiu não comer nenhuma das
pessoas zumbificadas. Tinha medo de transformar-se num homem-lobo-zumbi.
Eliminado os vestígios dos corpos, o homem-lobo regressou novamente à
sua forma humana. Seus constantes problemas de memória deram-lhe o
apelido de Jay Bourne. Era um rapaz viril, de porte atlético, rosto quadrado e
olhos penetrantes. Os cabelos cortados no estilo militar conferiam a ele um
aspecto de força e violência, que quando humano não se confirmava, porém
quando licantropo, era um espelho de sua ira.
Com a missão ainda pela metade, Jay Bourne seguiu solitário e nu pelo
caminho de terra. A sua volta apenas o verde intenso do canavial que tomava
grandes proporções do terreno ondulado. E, muito distante no horizonte, o
cintilar brilhante do aço da pequena usina.
Enquanto caminhava na forma humana, o jovem lembrava-se de como
encontrara a Green Death. Sua cabeça parecia querer explodir a cada
despertar de suas noites de lobo, das manhãs nas quais acordava com o gosto
agridoce do sangue em seus lábios, e com o corpo dolorido pela metamorfose.
Foi buscando por respostas para sua identidade como lobisomem que o
rapaz, cujo nome sempre esquecia, acabou por ser encontrado pela Green
Death através da internet, pelo histórico de pesquisas que fazia na grande
rede. Desde então encontrou um objetivo para sua vida, quando soube que não
era lobisomem, mas sim um homem-lobo, e principalmente, quando foi alistado
para salvar o planeta de seus piores inquilinos: os humanos.
Foi na Green Death que recebeu treinamento, e o codinome Jay Bourne.
E também aquela primeira missão que serviria para comprovar seu valor
perante a organização ecoterrorista.
Na região sudeste do Brasil, a organização havia sido informada de que
usineiros estavam testando perigosos produtos químicos em seus canaviais,
poluindo as águas e o ar. Em alguns dos relatos, os estranhos elementos
estavam provocando uma febre mortal nos trabalhadores da região, colocandoos num estado de inconsciência, e ainda pior, degenerando células e tecidos.
E Jay Bourne podia ver de perto o tamanho do mal que o veneno poderia
significar para o planeta. Não teria pena alguma de matar os usineiros e seus
capangas.
A menos de um quilômetro da usina construída no meio do nada, e
protegida por uma alta cerca de tela, Jay Bourne retornou a sua forma de
homem-lobo. Iria atacar com rapidez e força.
No entanto, os recentes problemas com zumbis e com trabalhadores sem
terra tinham feito os usineiros tomarem medidas de prevenção a ataques.
Havia homens armados para todos os lados, e nem bem o homem-lobo entrou
no campo de visão dos seguranças, uma saraivada de balas tomou o
ambiente. Jay Bourne esquivava-se de cada um dos tiros, mas não raro ouvia o
zumbir das balas passar raspando por sua pelagem.
Com as garras afiadas e cheio de ira, rasgou a tela e penetrou o
perímetro de segurança. Um dos capangas tinha-o na mira, porém Bourne deu
uma cambalhota lupina surpreendendo seu algoz, e num só golpe rasgou a
garganta do homem, de onde emanou um pequeno chafariz carmesim.
Por um instante Jay Bourne pôde contar com a incredulidade dos homens
ao ver o lobo de mais de dois metros e meio de envergadura. Eles esperavam
por zumbis zonzos, ou algum sem-terra de foice e facão. Jamais um lobo.
O homem-lobo aproveitou o pequeno instante de pânico para rasgar meia
dúzia de barrigas, e decepar outra dúzia de cabeças. Não tardou para as balas
retornarem o ataque, mas contando com a péssima pontaria dos capangas, um
a um foi tombando, deixando para trás um rastro de carne, ossos e sangue.
A fúria de Jay Bourne só fazia aumentar, e quando entrou no pequeno
escritório, encontrou os dois usineiros, com os olhos arregalados pelo terror
que presenciavam. Um deles, o mais magro, empunhava um revólver, no
entanto o tremor em suas mãos não o permitiria atirar.
– Se quiser pode ficar com tudo isto – disse o outro usineiro mostrando
uma pilha de dólares sobre a mesa. – Apenas nos deixe viver – falou
gaguejando, sabendo que a fera da qual projetava-se a assustadora sombra
podia compreendê-lo.
Mas Jay Bourne não deu mais tempo para súplicas. Rasgou o pescoço
dos dois num único golpe. Faminto depois de tanta ação, como vingança
saboreou cada pedaço de carne dos dois usineiros, deixando ao fim apenas os
ossos brancos como marfim.
A tarde caía sobre a usina, e os abutres se aproximavam atraídos pelo
cheiro de sangue e carne morta.
Jay Bourne retornou á forma humana depois de se certificar que não
restara mais ninguém vivo em todo o complexo industrial no meio do canavial.
Dos mortos, roubou uma calça, e um telefone celular. No aparelho discou um
número de nove dígitos.
– Pode mandar a equipe de limpeza – disse ele ao telefone. – Há muitas
pistas a serem apagadas.
Sentando-se num tronco caído no pátio, Jay Bourne apenas olhava os
corpos espalhados. De um deles havia roubado também um pacote de fumo e
papel. Enrolou o artefato e tragou a fumaça. Era sua ode particular por enfim
ser um soldado da organização ecoterrorista.
O Sol punha-se alaranjado no horizonte, e a fumaça do tabaco dançava
no ar, enquanto Jay Bourne aguardava o restante da equipe de limpeza da
Green Death. Seus pensamentos formavam um turbilhão de sentimentos,
sentindo na boca o gosto amargo da carne, e na consciência dezenas de
ponderações a respeito do que fizera naquele dia. As últimas horas tinham-lhe
rendido muitas novidades.

~*~
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YÄ FERAS

(Leon Nunes)

I. A Visita
A intenção de Teo, membro da Green Death Brasil, era de preparar um
relatório completo acerca das ocorrências pós-embate que resultou na
carnificina ocorrida no final de 2009, alguns meses depois do ocorrido. Fora
sozinho tanto à Amazônia, onde teve contato com informações mais
relevantes, quando à Santa Maria Psiquiatria de modo a completar os dados
faltantes. Não era sua responsabilidade, todavia, minuciar os acontecimentos;
cria que com o relatório completo, uma vez obtido êxito, ocuparia uma posição
mais privilegiada na organização. Era mês de fevereiro, época de carnaval em
2010. A loucura, a confusão e a balbúrdia carnavalesca passavam longe
daquelas paredes, o que contribuía para o êxito de sua tarefa, seus objetivos.
Teo adentrou a sala do médico psiquiatra do S.M.P. com o crachá no
peito escrito “visitante”. Fábio recebeu-o com certa dose de entusiasmo e
desconfiança, por se tratar de um suposto colega de profissão mais novo e
também pelo assunto a ser discutido: o paciente do Quarto 239. Sem muitas
delongas, depois de uma rápida apresentação, Teo incontinenti pediu
autorização para falar com o paciente. Fábio, por seu turno, apesar de não ter
relutado à ideia, fez questão de explicar certas coisas antes de permitir a
entrada do colega; mal sabia que o verdadeiro motivo era outro, cuja
necessidade e urgência daquela simples visita não visavam estudos
acadêmicos.
– Ele balbucia coisas como “fera” – começou a explicar Fábio, um olhar
professoral. – Às vezes “dentes pontiagudos salivantes” – informou, enquanto
anotava o número do quarto em um papel. – “E.”, como o chamaremos para
preservar sua identidade, chegou em estado de choque, devo dizer. Coisas
desconexas – deu de ombros.
– Também sou um médico, embora residente. Minha área é a
psiquiatria, como bem sabe – disse Teo, velhaco. – Quando ouvi falar deste
caso, sobre eventos envolvendo licantropia, achei um campo muito rico para
estudos. Pensei que o fato de sermos colegas de profissão pudesse abrir
algumas portas. Enfim. Parece que ocorreu algo violento na Amazônia.
Digamos uma carnagem – disse, arqueando o sobrolho.
– Foi encontrado este livro com “E.” – falou Fábio, mostrando algumas
fotos tiradas no dia da chegada do paciente ao S.M.P. Estavam dentro de um
envelope pardo, que por sua vez repousava intocável dentro da última gaveta
da mesa.
– E o que significa? – perguntou Teo.
– “E.” não quis dizer – respondeu Fábio – Não exatamente. Não sei
explicar, mas captei se tratar de algo mais impalpável – falou, com um pontode-interrogação na face. – Não é este o termo exato. Bem, de súbito atinei o
nome: Necronomicon – deu de ombros. – Não faço ideia do significado, ignoro;
também nada mais sei do caso.
– Eu me viro lá dentro. O resto eu faço sozinho. A pesquisa, digo.
Fábio conduziu Teo direto ao 239. Diante da porta com uma pequena
janela retangular foi possível ver o paciente de costas. Fábio fez questão de
frisar que, se precisasse de ajuda, bastava chamar. Viria rápido porque ficaria
próximo dali, no corredor. Teo não achava que precisaria de ajuda, saberia
lidar com a situação a seu talante. Assim que ficou sozinho com “E.”, o barulho
do ferrolho indicou que a porta fora novamente fechada.
O relato seria certamente algo que nunca se ouviu no mundo lupino.

II. REVELAÇÕES
– Um mês. Aqueles dentes pontiagudos salivantes – falou “E.”,
quebrando seu longo silêncio. – Os horrores. Horrores duplos, eu digo. A
Amazônia. Naquele sítio arqueológico. Na Amazônia. Descobrimos o que
aquela floresta tem... um portal. Para os Grandes Antigos! Eles viriam;
passariam. Nós os invocaríamos. Foi Sandro quem descobriu: o portal na
Amazônia. Poderes vindos de antes da juventude da Terra. Antes da própria
Terra; do Cosmos como ainda não conhecemos. YÄ! YÄ. Clamaríamos o
retorno dos Old Ones; Nyarlathotep o mais rumorejante... Eu já falei sobre
isso? Sobre ser Nyarlathotep o mais rumorejante? Onde estou? É Teo, não?
Eu sei. Queríamos o retorno de Cthulhu. Estávamos preparados para invocálos. Eu temi pelo resultado; fui o único. Sandro me convenceu, co’a ajuda de
Miguel, convidamos Joca também. Ele era louco por natureza. He-He. Louco.
Louco. Sandro, Miguel, Joca, Fabrício. Edgar, o temeroso. Eu temi. Eu. Temi.
Pelas nossas vidas; pela minha vida, minha sanidade! Foi um alívio ter saído
daquele lugar – falou “E.” batendo a mão na cabeça. – Alívio. Ter vindo para
cá. Mas ‘inda escuto rumores. Aqui. Na cabeça. É Nyarlathotep. Foi apenas um
contratempo. Oras! Apenas. Eu não tenho medo como você pode imaginar.
Você sente. Eu sinto. Você escuta? Eu escuto.
“Preparamos ainda em São Paulo nossa bagagem. Carregávamos
algumas peças de roupas para o caso de rasgarmos a que vestíamos. Dentro,
levávamos o livro. O Necronomicon. Que espécie de medo você acha que
senti? Pergunta tola. Pelo que vi, a ansiedade pelo que iria encontrar.
Confusão que não se apaga. Fomos dar no Aeroporto de Santarém, acho. Dali,
estradas ruinosas, esburacadas, precárias. Até o local determinado por Sandro.
Vi nele obstinação. Fui a marca do receio naquele grupo, do medo. Depois do
que ocorreu perdi completamente a noção da realidade; entrei em outra. Queria
ter esquecido. Queria... Como queria. Mas cada dia que passa, cada hora,
minuto, segundo... Tudo! Eu lembro. Eu quero esquecer. Eu lembro. Só o que
apagou de minha memória foi como cheguei aqui. Quanto ao resto... Eu já
falei? Horror. Fúria. Dentes.
“Havíamos transposto o Rio Amazonas num barco alugado; quase nem
cabíamos dentro dele. Foi o que deu o dinheiro. Não lembro a cidade em si;
quando chegamos ao local, quilômetros de uma área de extração ilegal de
madeira, preparamos o terreno, Joca nos guiava com a bússola. Cobrimos a
pedra com a alfombra e começamos nosso ritual. YÄ CTHULHU! Empunhei o
Necronomicon, pronto para abri-lo. A esta hora a voz de Nyarlathotep vinha
atravessando a mata fechada em derredor. O céu quis escurecer mais; ainda...
ainda era dia? O tempo era estranho. Quanto tempo se passou? Não sei.
Minutos? Não, eu não sei. Horas? Eu apenas estava lá para despertar. Queria
ver Cthulhu passar pelo portal... O que vi foi coisa feia. Coisa de outro mundo.
Dos filmes, dos livros. De um lugar da imaginação. AH! Eu gritei... gritei. Ouvi
os estalos, vi a maldita metamorfose. Fera. Os pelos. As feras.
“Eu não sei nem fiz menção de perguntar a Sandro como ele soube
daquele lugar, da pedra, um monólito inteiriço em meio à mata. Talvez a marca
que ele tinha, um queloide bastante grosso na palma da mão, explique. Ele
sempre disse que o sangue é o elo; eu nunca entendi. É Teo, não? Você sabe
do que estou falando? Sabe de Cthulhu? Dos Grandes Antigos? Da Amazônia?
Deste último com certeza. Sabe. Não sei como, mas sabe. Estávamos lá para
abrir o portal e achei ter visto a cauda de Dagon no Amazonas. Parecia um
sinal. De repente a aproximação dos homens-peixes... Nunca entendi direito a
relação. Não. Foi apenas impressão; o livro ainda estava fechado. Mas na mata
eles já estavam prontos. As Crias respondentes. YÄ! Era aquilo e nada mais.
Deveria, pelo menos. Sandro estava certo que o portal se abriria. No céu ou no
altar, não importava. Ele mesmo se doaria aos esfaimados Seres que haveriam
de ser despertos. O sono. A letargia daria lugar a uma nova realidade, porque
foi só com o sono Deles que nós, humanos, sobrevivemos e proliferamos e
vivemos. Daríamos de volta o que era Deles por direito; esta era a nossa ideia.
A ligação. O Necronomicon era a chave; nele estava o encantamento, o
chamamento cósmico do não-tempo. Me recuso a responder qual era o
conteúdo do livro. Não confio. Não. A tarefa era despertar... E esperar. Pelo
resultado. E baseado nos rumores e cicios de Nyarlathotep, seria imediato.
Seria. Dentes. Dentes pontiagudos salivantes.
“Sandro começou, diante da pedra, o ritual. Havia pousado uma faca
que trouxera sem que soubéssemos; pelo menos eu não sabia. Fui o primeiro a
escutar, mais ao fundo e quase imperceptível em relação ao som vindo de
Nyarlathotep, estalos na mata. Ele recitou. YÄ CTHULHU FTAGHN. Do céu o
guincho de Yog-Sothot escutamos... Eu era o único a continuar a ouvir os
estalidos anômalos na mata. Sem chances de serem os Mi-Go ou os TchoTcho. Sandro me admoestou. Me havia dispersado um pouco com os barulhos
e acabei esquecendo de fazer minha parte. Vamos. Disse ele. Vamos. Miguel.
Joca. Fabrício. Fizeram o mesmo, só que com o olhar. Eu abri o
Necronomicon, as páginas... As páginas já estavam marcadas. O sangue. Eu
falei que o sangue é o elo? Pois então. HE. HE. O elo. O elo. Joca foi quem
pegou a faca. Eu vi nos olhos de Miguel uma ponta de desespero.
“Sandro sentou na pedra coberta pela alfombra. Acho que não falei
sobre o cheiro do chão úmido e apodrecido que ainda sentíamos... Mata
fechada... Muito calor... Não sei exatamente como tudo aconteceu, porque,
afora o fato de eu ter sido o único a escutar algo anômalo na mata, foi tudo
muito... Rápido. Rápido! Mas foi possível ver perfeitamente, pedaço por
pedaço, sangue por sangue, o que ocorreu. Sandro vagarosamente deitou. Eu
recitava palavras profanas e Miguel posicionava a faca sobre o peito do
desmiolado Sandro. Vez ou outra ele a balançava levemente, quase solta na
mão. Quando cheguei na parte do chamamento, os olhos de Miguel reviraram
e suas mãos cravaram a faca com força, movidas por uma força que não se
explica. Incontinenti Joca e Fabrício, não mais eles, vez ou outra gemiam Yä,
esclera dos olhos também a mostra. Aquele era nosso objetivo a despeito de
meus medos internos.
“Eu senti uma agitação cada vez maior dentro daquela mata. Fui o único
que não entrou em transe porque não quis o sinal impresso em minha pele. De
todos eles, menos em mim – pôs a mão no peito ao falar –, vi o sinal da
Elderich. Brilhoso. Ofuscante. E dos céus, além das vozes e cicios e sussurros,
a presença maior dos Grandes Antigos. Aquela era a apoteose de Cthulhu! A
Amazônia nunca vira coisa igual! De toda forma algo aconteceu que também a
Amazônia nunca viu. Errado? Não importa. Aconteceu e somente eu vi. Vi
talvez porque em meus olhos refletiam meu medo interior. Deveria ter aceitado
o sinal, afinal.
“Sandro mal conseguia respirar, estava praticamente morto quando o
ataque ocorreu. Aqueles ruídos na mata, eu sabia que algo estava errado.
Somente eu escutei os ruídos. Eles aumentavam de intensidade. Os sons, os
estalos, o barulho da recomposição corpórea. Eu vi. Ouvi. Como se ossos
fossem esmagados; ou melhor, quebrados sem nem mesmo ficarem fora do
corpo. Não era os Mi-Go. Os Tcho-Tcho. Eu sabia que não. O ataque foi
repentino. Aquelas feras. Dentes pontiagudos salivantes. Os corpos; os pelos
dos corpos! Eram malditos cachorros grandes. Focinhos avantajados, dentes
pontiagudos. Dois deles, pelagem cinza. Eu... eu me acaçapei a um canto
enquanto... O barulho dos ossos triturados. De meus amigos, os ossos. O
ataque foi cruel. O primeiro abocanhou Miguel, diante da pedra que Sandro
repousava morto; arrancou o braço dele. O segundo pulou em cima de Joca.
Pulou. Eu disse que pulou. Pulou. Com uma força animal – ‘E.’ se encolheu um
pouco mais. – Dentes salivantes, pontiagudos... E os pedaços dos corpos de
Miguel e Joca no meio daqueles dentes pontiagudos e salivantes. Muito
sangue. Vi que eles estavam entretidos demais co’a caça. Me aproximei da
pedra usada como altar. Segurei firme o Necronomicon. Perdido, voltei à minha
posição de antes. Eles, mortos. Aqueles malditos lobisomens. O ataque. Muito
sangue; aquelas garras que prendiam os corpos que devoravam com uma fúria
inumana. A própria fúria, não sei se irracional, de bestas das selvas brasileiras.
Animais que faziam aquilo por prazer. Eu vi. Nos olhos. Deles. Os brilhos
daqueles olhos lupinos. Possuídos por irracionalidade dançavam uma dança
macabra. O ataque em si, as mordidas, a saliva. As bocas fedorentas. Os sons
dos corpos sendo devorados. Os barulhos daquelas bestas sobrepujando os do
rumorejante Nyarla. Maiores em meus ouvidos do que os vindos do céu.
Aquele banquete.
“Eu... não sei. Talvez não me viram. Não. Me viram sim. Em minha
cabeça um turbilhão de coisas passava. Era tanto medo que já não sabia do
que mais eu tinha medo. As bestas com pelos; as garras. Quando todos
haviam sido mortos... Sandro, mesmo morto, foi igualmente devorado;
experimentei o que talvez tirou de mim o pouco de sanidade. Acho que já
estava sem, por isso os escutei em minha cabeça. Quando todos haviam sido
mortos por aqueles lobisomens, ouvi deles um uivo que penetrou meu coração
e ficou gravado no fundo de minha alma para meu cérebro nunca mais
esquecer. Que eles existem, os lobisomens. Os lobisomens, eles existem;
acredite. Um uivo gélido. Penetrou fundo em meu coração e na noite
emprestada que se havia formado para o retorno dos Grandes Antigos. Não
sei. Dizer que espécie de uivo, não sei. Se ouvi ou se estava em minha cabeça
fora do juízo tido como normal, nunca saberei. Apenas fiquei acaçapado.
Dentes pontiagudos salivantes. Dentes... feras. Lobisomens! E o ataque. Como
aqui cheguei? Dentes pontiagudos salivantes. Eu não quero mais ver – ‘E.’
disse, balançando um pouco o corpo acaçapado no canto, imitando aquela
noite. – Não quero.
“Isso foi tudo. Do ataque, pelo menos. Feio; muito feio. Os lobisomens,
feios. Um deles se metamorfoseou em humano. Eu o olhei sem querer olhar.
Aquele que devorara Joca. Não sei mais de Fabrício, talvez foi devorado igual
aos outros... Eu não vi, não quis ver. Aquele que devorou Joca. Uma... mulher.
Nua. Loura, forte. A mulher-lobo metamorfoseada olhou para mim. Olhos azuis
reluzentes, aqueles olhos profundos reluzentes. Ela... ela me disse. Me falou!
Sem voz. Em minha cabeça, sequer moveu os lábios sujos de sangue. Corpo
sujo do sangue de meus amigos. Aqui! Aqui! Em minha cabeça. A voz dela,
ainda em minha cabeça. Não vamos parar. Até o último de vocês. Não vamos.
Uma ameaça em minha cabeça; uma voz doce, mas cruel. Na sequência ela
voltou ao corpo lupino; os pelos. As garras. Você não acredita, não? Fera.
Dentes pontiagudos salivantes.
“Mais nada. Assim como chegaram, foram. Hipnotizados. Os dois.
Lobisomens; na forma. Não lembro – ‘E.’, ofegante, quase indo às lágrimas
pela lembrança. – Acho que foi porque eu carregava o Necronomicon... Algum
encantamento... Me salvou... Não sei. Como cheguei aqui, não lembro. Eu senti
quando você chegou. Quem... Agora entendo... Quem? Você. Agora eu sei...
Você é um deles! A fera! As feras! Saia daqui! O ataque. Dentes pontiagudos
salivantes. Muito sangue. Sai. Sai! Eu sei o que você é! Não abriu a boca um
só instante para falar. Sai lobisomem! – ‘E.’, agressivo, gritou, cuspindo saliva;
uma careta de horror no rosto. – Sai. Sai. SAI! – ‘E.’ continuou aos gritos,
encolhendo-se mais, cabeça encaixada nos joelhos. – Fera. Fera. Presas. Os
dentes. Dentes pontiagudos salivantes e sangue. Sai!

III. REPORTE À GREEN DEATH
Tudo leva a crer que a testemunha de fato encontrou nossos agentes
Berserkr e Fênix. O único sobrevivente sustenta que chegaram à Amazônia
para a prática de rituais, a princípio nada que fosse ofensivo à região senão a
eles próprios. Nossos colegas da Green Death acabaram por confundir aquele
grupo de jovens suicidas aos desflorestadores na prática ilegal de extração de
madeira. Talvez o fato de terem-no deixado vivo esteja ligado ao nefasto livro,
o tal Necronomicon. Não é possível comprovar, todavia – do livro apenas uma
foto foi possível ver, o artefato sumiu depois do ocorrido. Não é sabido
exatamente se foi ou não usado algum encantamento; convém, apesar de algo
menor, considerarmos as possibilidades sem, contudo, as contestar. Tal
reporte comprova, sem deixar dúvidas, que o grupo da testemunhasobrevivente não foi o responsável pela morte de Berserkr tampouco pelo
estrago da missão passada. E a despeito desta confusão, nada atravancará
nosso caminho. Nenhum empecilho cessará a continuação de nossas
atividades. O ideal não feneceu. Nossa batalha continua.

~*~
Contato com o autor:
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http://leonnunesescritor.blogspot.com
BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias)
O homem encarou a bela jovem que entrava na lanchonete. Era capaz de
detectar aquele odor peculiar dos lobos por baixo do perfume que ela usava;
uma mistura de vida e de artificialidade, de um espírito selvagem preso no
corpo de uma mulher sedutora e independente. Ela não era como os outros,
abençoados com o dom de mudar de forma, de ser uma criatura tão perfeita
que poderia decidir sobre a vida dos homens que cruzassem seu caminho
agitado. O cheiro dela era de impureza, de hormônios tão humanos quanto os
daquelas pessoas que estavam ali ao redor, tão frágeis e fúteis quando o mais
insignificante dos seres rastejantes. Captados pelo raro espécime, traços
psíquicos fortes, alarmados, frases que não eram de sua mente, apesar de a
garota se esforçar para contê-los em sua mente.
Ele sorriu, desviando o olhar para a rua movimentada lá fora, arranhando
de leve a mesa de madeira, escutando os passos da ômega a se aproximar.
Era capaz de detectar as batidas cardíacas aceleradas; ela o temia tal como
uma presa teme um caçador, mas havia certa confiança, algo ímpar até aquele
momento para sua experiência com aquela raça orgulhosa de sua natureza.
Algo lhe proporcionava segurança, e era por isso que estava ali.
O primeiro encontro com Cassandra foi uma semana antes, durante um
encontro entre ele e o Green Death. Se não fosse o pedido dela, aqueles três
licantropos estariam mortos por ousar se meter em sua área de atuação. Um
brilho em seus olhos azulados o deteve, e aquela súplica mental foi tão intensa
que o coração do homem-cão se condoeu de alguma forma; farejando-a antes
de partir, dedicou algum tempo a observá-la. Não tardou para que ele quisesse
conversar com ela.
“Encontre-me na lanchonete perto de um canil, daqui a dois dias!”, pediu
ele, ao passar pela ômega numa manhã. “Vá sozinha ou matarei você e quem
mais a acompanhar!”
O convite foi aceito.
– Sente-se, por favor! – pediu o homem, cuja cabeça careca reluzia pela
luz da lâmpada do estabelecimento, fitando-a com gentileza. – Juro que não
mordo moças lindas.
Seu sorriso foi estranho e assustador, mas Cassandra não identificava
qualquer sinal de segundas intenções. Hesitou um pouco, mas atendeu ao
pedido.
– Por que implorou para que eu não matasse seus companheiros, que me
atacaram naquela rinha? – surpreendeu-a, pondo as mãos grandes perto das
dela, que as recolheram para junto de seu busto. – Era meu direito natural
revidar e me vingar, contudo você me impediu. Por quê?
– Eu o impedi?
– Sim. Eu não pude atacá-los, e tive de sair correndo. Você me impediu
de fazer aquilo que venho fazendo há anos com quem se mete em meu
caminho.
A jovem ajeitou os fios negros que caíam sobre seus olhos, surpresa por
aquela revelação tão brusca vinda de uma criatura desconhecida e perigosa.
Os relatórios dos encontros com aquele monstro que se denominava Licurgo
eram todos repletos de sangue e crueldade; mortes de homens-lobo ocorriam
quase sempre, e quem escapava era mutilado sem piedade, servindo de aviso
sobre a força descomunal e descontrolada do único espécime de uma nova
raça agressiva e indomável, que nutria ódio tanto pelos humanos quanto por
aqueles que eram seus semelhantes.
– Eu apenas queria que não os matasse... só isso – respondeu ela, com a
voz suave.
– Muitos clamaram para viver, e eu os abati sem pestanejar. Não me
envergonho em ter matado mulheres mais poderosas do que você, as quais eu
nunca estuprei, ao contrário do que pensam os da sua espécie. Não sou um
monstro. Você, entretanto, salvou todos eles. Consegue entender o motivo de
eu a querer hoje aqui?
Cassandra balançou a cabeça em negativa, sem compreender aquela
conversa.
– Sempre achei os lobisomens tão parecidos com os homens que me
distanciei justamente de quem era tão próximo a mim – começou ele, com
seriedade. – Matei muitos de vocês sem perguntar seus motivos, suas causas;
eu era apenas levado pelo desejo de provar ser o melhor, ser acima de tudo
aquilo que eu odiava, de pertencer à raça humana. Compreende?
– Acho que sim – respondeu a garota, buscando localizar nas ondas
mentais do interlocutor sinais de verdade ou de mentira.
– Ensine-me sobre vocês, sobre quem são e como surgiram. Quero
entender quem eu sou e o motivo de ser assim, uma fera meio homem, meio
cão. Por favor, me ajude!
Havia sinceridade naqueles olhos castanho-avermelhados. Nem lembrava
a besta tão robusta daquela madrugada que quase assassinou o seu irmão;
estava ali um homem confuso quanto ao belo dom dado pela vida, uma dádiva
que o tornava diferente, e ainda assim impuro. Era um cão assustado entre
homens e lobos, contudo disposto a se abrigar junto aos seus parentes puros.
– Como posso ter certeza de que não está me enganando? – questionou
ela, olhando-o com desconfiança.
– Não pode – respondeu Licurgo, levantando-se com firmeza –, mas juro
que não a matarei ou a seus companheiros num próximo encontro, pois é certo
de que nos veremos novamente.
Ele revirou o bolso da calça jeans e retirou algumas notas amassadas,
pondo-as sobre a mesa.
– Obrigado por ter vindo, Cassandra – concluiu, antes de se afastar.
“Foi um prazer imenso conhecê-la.”
A ômega ficou surpresa com aquela atitude. E sabia que havia perdido
uma oportunidade única e irrecuperável. Abaixando a cabeça, pensou nas
longas explicações que teria de dar aos seus superiores.
***
“À esquerda, cinco homens drogados”, avisou Cassandra, fazendo o
irmão cessar os passos largos e silenciosos.
O grande homem-lobo de pelos castanhos e grossos moveu-se com
sutileza pela sombra, seguindo a direção indicada pela irmã, cujo poder
telepático era além do normal entre os ômegas, conseguindo ser precisa até
em mapear quantos humanos estavam ali. Não à toa, as missões das quais
participava eram aplaudidas por aqueles holandeses burocratas, e tal
habilidade preveniu o grupo quanto ao ataque do homem-cão meses antes.
Ele andou sobre as quatro patas, atento ao ambiente, afinal a jovem não
poderia prever ações, apenas alertar. Esgueirou-se com agilidade, enxergando
os alvos mencionados pela companheira; detectou os odores de tabaco,
cocaína, maconha, urina e suor em quantidades tão altas que causavam
repulsa. Aguardou o momento oportuno, saltando sobre os dois capangas que
estavam mais perto da moita alta em que se escondia; suas garras foram
precisas na degolação, e um movimento para frente estripou o terceiro, que
tombou de joelhos tentando conter as vísceras de escapar pelos cortes que
iam de um lado a outro do corpo, horizontalmente; o quarto foi abocanhado
pela cabeça, que explodiu em uma massa sangrenta de ossos quebrados e
miolos; e o último teve o pescoço torcido como se fosse uma galinha que
serviria de almoço numa data festiva.
“Oriente os demais!”, ordenou o líder da missão para a garota dentro de
um jipe, quilômetros antes do local, largando os corpos mutilados e subindo a
parede adjacente num pulo fenomenal.
“Certo”, respondeu Cassandra, antes de passar as coordenadas aos
outros dois agentes que seguiam para a rinha em direções opostas.
Ela estava explicando para a mulher-lobo como chegar a um ponto em
que um dos capangas transava com uma viciada que vendia seu corpo em
troca de drogas, quando um rastro forte e agitado a fez olhar instintivamente
em volta. Nenhum sinal de movimentação.
“Ele está aqui”, informou imediatamente, direcionando seus pensamentos
aos três companheiros em campo. “Tomem cuidado!”
Era evidente que a criatura estaria em uma rinha onde cães de todas as
raças se enfrentavam para o divertimento das pessoas sádicas que tinham
muito dinheiro. Aquela fazenda era bem situada, distante da cidade, longe de
olhos indesejados; o proprietário tinha muitos amigos na prefeitura e na polícia,
o que permitia fazer o que bem entendesse, desde tráfico de drogas a ponto de
prostituição, de rinha de animais a comércio clandestino de espécies raras –
muitas vindas de outros países – para colecionadores e caçadores que
pudessem pagar.
Ali era um terreno que interessava tanto ao Green Death quanto a
Licurgo.
Os sinais mentais dos quatro em ação eram fortes, entretanto somente
três estavam amedrontados pela presença do intruso. Com concentração,
Cassandra conseguiu contatar o homem-cão, questionando suas intenções.
“Jurei não matar você e seus companheiros”, retrucou ele, enquanto
escalava com rapidez uma árvore alta e farejava melhor o ar, localizando os
alfas ativos. “Costumo cumprir meus juramentos.”
Seus olhos ferozes vasculharam toda a área, fixando-se onde as luzes
eram constantes. Latidos, uivos, rosnados e a gritaria bestial de seres humanos
eram ouvidos. Emitiu um rosnado baixo, saltando para o chão, caindo de uma
altura de vinte metros apenas sobre as patas traseiras musculosas. O sangue
ardia em suas veias.
“Nada de ferrar tudo!”, orientou a ômega, interpretando as ondas
psíquicas que ele espalhava sem o mínimo controle. “Nossa existência deve
ser mantida em segredo.”
– Eu sei – resmungou Licurgo, ao mesmo tempo em que enviava sua
resposta. – Eu sei.
Correndo com fúria, surgiu entre três homens bêbados que gargalhavam
de forma patética enquanto tentavam urinar. Sua bocarra arrancou o braço de
um deles, que urrou de dor, sob os olhares surpresos dos outros; ainda
mastigando aquele pedaço generoso, agarrou os dois pelos pescoços,
cravando as garras negras e afiadas sem misericórdia, estalando os ossos e os
encarando com um prazer sádico. Estraçalhou suas gargantas, largando-os
apenas quando engoliu uma porção satisfatória de carne.
O som da música eletrônica invadiu seus ouvidos quando a ira diminuiu.
Pondo-se de quatro, moveu-se cautelosamente rumo para o casebre perto do
rio; ali ficava todo o equipamento que produzia a eletricidade da fazenda. Valeu
a pena aquela visita investigativa durante o dia sob o pretexto de ser uma
pessoa em busca de trabalho, embora as súplicas dos animais presos quase o
fizessem atacar logo e pôr fim a tudo aquilo.
“Onde estão seus amigos?”, perguntou para a ômega, conforme se dirigia
para o local em que estava o gerador de energia. “Eu não consigo detectar os
pensamentos deles.”
“Não confio ainda em você.”
“Ainda acha que quero matá-los?”
“Você já tentou isso uma vez.”
“E tentaria de novo, quando vocês chegaram meia hora atrás, num jipe, e
minha mente estava bloqueada. Eu estava sobre um galho, observando. Vi
quando aquele sujeito magro se insinuou para você e sei o que pensou quando
identificou os pensamentos e sentiu os hormônios dele. Eu poderia tê-los
matado facilmente em qualquer momento, mas preferi não fazer isso.”
Cassandra arfou, pega de sobressalto.
“Então, ainda acha que quero matá-los como farei com cada humano que
encontrar esta noite?”, indagou ele, enquanto socava o peito de um homem
armado com uma carabina, afundando seus ossos torácicos.
Tomando a arma da vítima, golpeou na cabeça um que saiu do casebre
que vigiava, nocauteando-o. Entrando na casa do gerador, desviou de um
disparo com destreza e arremessou uma ferramenta no meio da testa do
atirador, que caiu com o objeto transpassado em seu crânio, estremecendo.
Ele começou a destruir a fiação, desligando toda a energia elétrica. Sem perder
tempo, saiu dali, seguindo em sua ânsia por sangue.
O local em que ocorriam as lutas de cães era no outro extremo, num
casarão reformado especialmente para aquela finalidade. Era um espaço
amplo, comportava até mil pessoas ao redor de uma rinha circular cercada por
grades. No piso inferior, como um calabouço, estavam os animais e os
treinadores; seis portinholas e uma porta maior davam acesso ao ponto em que
as pobres criaturas se enfrentavam, sendo que as primeiras eram exclusivas
aos combatentes e a outra ao responsável em retirar o derrotado, que em geral
era morto e incinerado.
Os três agentes do Green Death receberam a mensagem da ômega com
desconfiança, pois era muito suspeito alguém com um histórico de assassino
de homens-lobo agora querer ajudar. Trocaram breves informações entre si,
tomando cuidado para que a criatura não soubesse sobre o que conversavam.
Agiriam juntos, preparados para qualquer trapaça que pudesse acontecer.
“Ele está indo para a rinha”, avisou Cassandra, assim que o homem-cão
reportou seus passos. “O local está sem eletricidade, o que irá nos favorecer
por um tempo.”
Licurgo rosnou e uivou como um cão raivoso, atiçando os cachorros
cativos, que o imitaram. Foi uma algazarra ensurdecedora e medonha, que fez
os frequentadores se entreolharem com hesitação. Alguns disparos bastaram
para todos correrem para fora, apavorados.
De um lado a outro, como anjos da morte, as feras espalhavam corpos e
sangue, desmembravam e estripavam, escapando dos tiros como se fossem
fantasmas oriundos do inferno, bebendo e comendo indiscriminadamente. O
horror de olhos desacostumados com aquelas bestas híbridas logo era
substituído por outro, o de ter parte de seus corpos arrancados por garras e
presas furiosas; os mais afortunados, contudo, morriam sem conhecer seus
assassinos sobrenaturais, sem testemunhar os olhos rasgando as trevas.
As pessoas fugiam em carros e motocicletas, apenas ouvindo gritos de
ordem e rosnados ferozes, disparos e gritos horrendos de quem encontrava
seus destinos de maneira grotesca.
Os homens-lobo e o ser canino se encontraram dentro do casarão,
encarando-se como oponentes. Todos cobertos de sangue e vestígios de carne
e entranhas, ofegantes e poderosos. Três lobos, um castanho e dois negros, e
um cão, muito semelhante a um rottweiler, embora maior do que os seus
parentes. Inimigos naturais que se viam depois de algum tempo ou raças
distintas que possuíam uma origem comum?
***
Ninguém no Green Death acreditava que o famigerado Licurgo estava na
sala com Loki, conversando calorosamente sobre sua união ao grupo. Por
precaução, seis agentes estavam na sala de espera, aguardando qualquer
sinal de ameaça; entre eles, a responsável por aquela façanha, Cassandra,
cuja habilidade extraordinária de telepatia com licantropos e humanos se
mostrou capaz de domesticar aquela fera canina feita de músculos, fúria e
desejo vingativo.
Na manhã em que o grupo retornou com Licurgo, os olhares foram
inevitáveis, e a ômega pôde identificar cada rastro mental. Ódio, surpresa,
admiração, frustração, decepção, curiosidade, dor. Eram tantas emoções
reunidas que ela precisou bloquear sua mente para aquilo tudo ou
enlouqueceria; era como se a presença do homem-cão despertasse neles
instintos primitivos e selvagens, contaminando sua natureza lupina, aquilo que
eles tanto valorizavam.
Mas, para o homem loiro e sorridente, que os parabenizou pela missão
tão bem executada e a chegada do provável integrante da causa, havia apenas
motivos para comemorar. Ele cumprimentou um a um, e seu aperto de mão foi
firme quando tocou a mão grande do espécime raro.
– Então, você é o quase lendário Licurgo, o “caçador de lobos”? –
questionou o líder das operações da organização em terras brasileiras, com um
sorriso desdenhoso.
– E presumo que seja você um deus da mentira – retribuiu o careca, sem
emitir qualquer expressão que demonstrasse estar brincando –, afinal, você se
considera digno de ser chamado de Loki, não?
Houve alguns risinhos, mas os olhos verdes e sombrios de Loki os
abafaram.
– Conhece algo de mitologia nórdica? – estranhou ele, ainda mantendo o
sorriso, embora com resquícios de irritação.
– De trapaceiros e mentirosos também – retorquiu Licurgo, sem alterar
seu tom de voz ou o modo de pronunciar aquelas palavras audaciosas.
Um esgar brotou da face do homem, e muitos acharam que ele avançaria
contra aquele atrevido. Contudo, com certa calma, pediu que o convidado o
acompanhasse até sua sala, onde acertariam alguns detalhes cruciais.
E já havia se passado meia hora desde que ambos se fecharam; parecia
que a conversa estava sendo produtiva e interessante, pois nenhum membro,
alfa, beta ou ômega, detectou o menor sinal de estresse ou alteração que
representasse alguma desavença, embora houvesse um aumento de
hormônios e elevações de pensamentos, mas tão confusos que era impossível
distinguir a quem pertenciam.
Quando saíram, foram observados com expectativa por todos, que não
puderam disfarçar a curiosidade quanto ao resultado de toda aquela novela
que se tornou os encontros e confrontos com aquele espécime há anos. Muito
se falava entre os licantropos a respeito do “cachorrosomem”, como ele
pejorativamente passou a ser chamado por quem desdenhava de sua natureza
canina.
– Bem, quero que saúdem o agente Licurgo! – exclamou Loki, com
orgulho no tom de voz, tocando no ombro esquerdo daquele homem tão alto e
forte, que emitiu um som gutural baixo e mantinha-se sério. – Quero que vocês
mostrem a ele o que for preciso, preparem-no quanto ao regulamento e o
treinem para que possa estar apto para as missões futuras!
“Parabéns, Licurgo!”, pensou Cassandra, concentrando-se para que
apenas ele recebesse a mensagem.
“Fiz por você, moça”, foi tudo o que o novo integrante respondeu.
Os dias seguintes foram de trabalho árduo para os treinadores. Não tanto
por terem de ensinar tudo ao novato, que apresentava dominar como poucos
seus pensamentos, isolando-os a ponto de que ninguém mais acessasse sua
mente, exceto quem ele permitisse; a ômega que o recrutou era capaz de
sondar parte de todo aquele oceano de recordações e vontades, mas era mais
complicado decifrar e repassar ao seu superior, que parecia cada vez mais
fascinado com os avanços do homem-cão.
O problema maior da criatura era controlar tanta impulsividade, o que
explicava os ataques cruéis e sangrentos aos agentes do Green Death quando
se encontravam. Com a ajuda certa, no decorrer do treinamento, ele foi
aprendendo sobre a hierarquia, a obedecer ordens e a agir em prol do grupo.
Passeando pela madrugada através de ruas desertas e matas densas, onde
caçava pequenos animais com a alcateia, Licurgo foi adquirindo os hábitos
lupinos, voltando ao estado puro e original. Entretanto, o motivo para sua
aceitação em ser recrutado ainda era um mistério que precisava ser
desvendado, afinal a suspeita ainda pairava sobre ele.
– Os lobos são superiores aos homens – falou um dos agentes, no
refeitório, para três amigos, quando a jovem ômega e o recruta passaram por
perto – e aos cães também, claro.
Todos riram, exceto os dois que iam transitando com suas bandejas.
“Ignore-os!”, pediu ela, percebendo o olhar frio do outro para o quarteto.
“Sim, vou ignorar esses filhos da puta que se borram de medo quando me
veem como realmente sou”, concordou o homem-cão, permitindo aos quatro
engraçadinhos captar seus pensamentos.
Um deles fez menção de se levantar, mas ao encontrar os olhos
provocativos do outro, sentou-se de novo.
– Eles são uns idiotas – falou Cassandra, quando eles se sentaram ao
redor de uma mesa desocupada. – A maioria aqui tem orgulho de ser homemlobo, sabe? Eu, infelizmente, nasci uma ômega, para a desgraça de meus pais.
– Isso é o que a torna diferente desses patetas, moça – consolou Licurgo,
quando viu os olhos azulados dela se encherem de lágrimas. – Se você fosse
uma alfa ou uma beta, eu a teria matado há muito tempo. Mas, como nunca
conheci alguém assim, uma ômega, dei uma chance a seu povo.
– E o que tem achado de nós? Mudou algo em relação ao que pensava
sobre a gente?
– Bem – começou ele, cortando um bife com paciência –, há muito
lobinho metido aqui, mas me parece um bom grupo, bem organizado e treinado
para todos serem os melhores. Apenas não sei se me aceitariam como sou.
– Por que acha isso?
Ele olhou em volta, fixando o olhar no quarteto que se mostrou
preconceituoso.
– Não acho – concluiu. – Tenho certeza, moça.
E levou o pedaço de carne mal passada à boca, mastigando-o com
calma.
***
Licurgo agarrou o infeliz pelo pescoço, quebrando os ossos como se
fossem gravetos secos. Virou-se para o homem encolhido num canto da sala,
tremendo de medo e balbuciando palavras sem sentido. Andou até ele,
abaixando-se e encarando-o com seriedade.
– Bom dia, doutor – sussurrou, carregando a voz com um tom rouco e
animalesco, apesar de estar na forma humana. – Por que o medo de mim?
Do lado de fora do laboratório, os agentes do Green Death destruíam
todos os equipamentos, libertando os macacos, gatos, cães, ratos e pássaros
que serviam de cobaias. Pelos corredores havia corpos mutilados e muito
sangue nas paredes; o trabalho estava completo ali.
Um pouco antes, na forma humana, aquele homem alto e careca matou
com a força bruta seguranças armados, numa demonstração agressiva de que
era uma máquina natural perfeita, permitindo aos companheiros de missão
adentrar o prédio sem serem descobertos. Ágil e mortal, socava, chutava,
nocauteava e fraturava com uma facilidade impressionante, e um dos alfas na
missão parou por um instante vendo-o derrubar dois homens com golpes de
capoeira e afundar seus peitos com cotoveladas.
“Você gosta disso, não? De triturar ossos?”
“É a graça de ser um predador no topo da cadeia!”, riu o recruta, antes de
correr para uma sala, onde houve alguns disparos e mais mortes.
– O que vocês fazem aqui? – indagou Licurgo, olhando algumas
fotografias sobre a mesa. – Que tipo de experiências?
O velho cientista estava apavorado para responder.
– Diga, caramba! – urrou o homem-cão, agarrando o pobre humano e o
jogando sobre aqueles papéis e fotografias. – Não posso matá-lo sem saber o
motivo!
A testa da vítima se chocou com o aço frio da mesa. Foi uma dor intensa.
– Diga-me o que vocês faziam aqui! – tornou a gritar o agente,
ensandecido, esfregando o rosto do cientista em todos aqueles arquivos.
– Eu... eu... – atrapalhou-se o infeliz.
Os demais adentraram a sala, testemunhando a cena. Com um salto
ligeiro, um deles tentou dar cabo da vida do velho, contudo o homem-cão
antecipou o movimento, pondo-se entre os dois, esticando a mão espalmada
sobre o peito peludo do colega.
– Se não quiser ter o peito arrombado e o coração removido, aconselho a
não ficar entre mim e este homem – avisou ele, num sussurro gutural.
“Você nos deve obediência, cão!”, rosnou outro licantropo, caminhando
até a mesa. “Portanto, deixe-nos decidir as coisas por aqui.”
– Só quero saber o que eles estavam fazendo aqui.
“Loki nos informou!”, apontou o homem-lobo detido pela ameaça do ser
canino.
– Não acredito nele, e deviam me ouvir quando digo que há algo errado.
“Chega disso!”
O líder da missão empurrou os dois para o lado e segurou o humano com
ambas as mãos, erguendo-o e levando-o para fora, onde o matou de forma
dolorosa.
“Você deve explicações a Loki por sua desobediência”, sentenciou o lobo
ruivo, saindo da sala, acompanhado pelos demais.
Licurgo rosnou, voltando seus olhos castanhos para toda aquela
papelada. Algo ali o intrigava. Era como se algo o alertasse de que havia
alguma coisa estranha acontecendo, uma peça fora do lugar ou faltando. Não
acreditava nas explicações dadas pelo seu superior sobre aquele local ser um
laboratório clandestino que modificava os genes dos animais em busca de uma
suposta cura para alguma doença. Voltou a rosnar, caminhando em direção a
saída.
Definitivamente, não confiava naqueles lobos.
***
Loki havia lido o relatório e interrogado seus agentes, além de ter acesso
aos documentos das pesquisas realizadas no laboratório. O único que se
negou a dar explicações foi o homem-cão, que se dirigiu ao seu alojamento
assim que chegou, ignorando os olhares severos de seu superior ou o de
repreensão dos colegas; era um cão orgulhoso o bastante para se recusar a
encarar aquelas criaturas lupinas que se achavam superiores a ele, mas que
podiam ser facilmente mortas.
– Preciso saber o que aquele vira-lata anda pensando – disse ele, fitando
a ômega responsável pelo recrutamento de Licurgo.
– Mas, eu... Ele bloqueia seus pensamentos para mim, Loki.
– Sempre?
– Na maioria das vezes.
– Descubra alguma maneira de entrar na mente dele, ora! O importante é
sabermos a razão de ele ter aceitado nosso convite. Isso acalmaria nossos
companheiros, traria um pouco de tranquilidade. Ele a respeita, pelo que
parece, e isso é muito bom. Use isso a seu favor!
Cassandra moveu os olhos para o lado, entendendo o que deveria fazer.
Era algo repugnante, mas de alguma maneira inexplicável ela não receava ter
de fazer; apenas não se sentia preparada.
– Entendi – disse, por fim, respirando fundo. – Eu farei o que for preciso.
***
Licurgo estava quase dormindo quando a jovem ômega o chamou na
porta.
– Muito tarde para conversarmos? – perguntou ela, com a voz suave, ao
ver o rosto marcado por cicatrizes do homem.
– Não muito.
– Posso entrar?
Ele abriu mais a porta, confirmando.
De todos os aposentos, o do homem-cão era o mais simples: uma cama,
uma mesinha com um caderno e uma caneta, uma mochila com roupas que ele
trouxe no dia seguinte ao que foi integrado ao Green Death e o banheiro. Era
evidente que para aquela criatura rara no mundo o luxo não importava, contudo
mais evidente ainda era a forma como os demais o tratavam; ele era um
cachorro no meio de lobos, e nada mudaria aquela condição, nem mesmo se
representasse um novo passo na evolução da raça híbrida.
– Infelizmente não tenho cadeiras, mas pode se sentar na cama – falou
Licurgo, fechando a porta e indicando a cama.
Cassandra sentou-se, vendo o amigo se acomodar no chão frio mesmo,
olhando-a com um leve sorriso.
– Vai me repreender também? – indagou ele, com simpatia.
– Não.
– Então?
– Por que você aceitou estar aqui?
– Por você, eu já disse.
– Só por minha causa?
– Sim, só por você. Você é o elo entre mim e esses lobos arrogantes.
– Portanto, seu ódio pelos de minha raça continua?
– Não é mais ódio, e sim desprezo. E eles não são de sua raça. Você não
é da raça deles. Em momento algum vi uma amostra de superioridade em
como você me trata, mas sim a sinceridade, o companheirismo. Os cães e os
lobos não são tão diferentes como se pensa, sabe? O que os separa é o
orgulho. Eu me orgulho de ser mais forte e independente do que eles, e eles de
serem mais numerosos do que eu. Somos seres divergentes, de naturezas
similares, mas opostas. Eles nasceram para viver nas matas, perto do contato
com suas origens, e eu para estar aqui, no meio da poluição, das cidades,
apesar de nós detestarmos os humanos.
– Eu não detesto os humanos – cortou a ômega, sentindo-se ofendida. –
Só não concordo com a forma que eles tratam a natureza.
– Percebe por que a admiro e a respeito, Cassandra? Você é diferente de
qualquer lobisomem que conheci. É única.
Ele aproximou-se dela antes que os olhos azulados dela percebessem
seus movimentos.
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Estratégia do Lobo

  • 1. 3
  • 2. © Green Death Volume 1 - 2013 Organização: Alfer Medeiros Capa: Silvio Medeiros Revisão: Alfer Medeiros Texto:  Adrianna Alberti  Alastair Dias  Chico Pascoal  Douglas Eralldo  Franklin Lima  Leon Nunes  Verônica Freitas  Wellington Novaes O e-book Green Death - Ecoterrorismo Licantrópico (volume 1) é publicado sob uma Licença Creative Commons - Atribuição NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
  • 3. Índice Apresentação da Série .................................................................... 3 OOKAMI (Chico Pascoal) ................................................................ 6 CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo) .................................. 22 YÄ FERAS (Leon Nunes) ............................................................... 26 BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias) ....................... 34 UM BREVE ENCONTRO A TRÊS (Verônica S. Freitas) .............. 54 DESCOBERTAS (Adrianna Alberti) .............................................. 81 SANTO ARNALDO (Wellington Novaes) ..................................... 97 QUEIMADURAS (Franklin Lima) ................................................. 104
  • 4. Apresentação da Série Bem-vindo, leitor, a uma realização pessoal. Quando escrevi o livro Fúria Lupina Brasil um tempo atrás, não fazia ideia das proporções que o projeto tomaria. Meu livro de estreia não só abriu muitas portas, como também me permitiu conhecer pessoas fabulosas entre leitores, escritores e críticos (ou tudo isso ao mesmo tempo). Nesse livro, lançado em 2010, foi apresentada pela primeira vez a organização Green Death, e muito ouvi falar dela nos feedbacks dados pelos leitores. Da conclusão de que esse grupo ecoterrorista foi marcante para muitas pessoas durante a leitura do Fúria Lupina, surgiu uma ideia interessante: por que não fazer um spinoff com contos de diversos autores, que trouxesse a visão particular de cada um deles sobre a Green Death? Diversos convites foram feitos, alguns foram atendidos, e aqui temos o volume inicial deste projeto coletivo licantropo. Sou muito agradecido a todos que aceitaram o desafio de criar contos dentro do universo de uma outra pessoa, tarefa não muito simples, apesar de algumas liberdades criativas terem sido cedidas. Antes de partirmos para a leitura dos contos dos meus companheiros de letras, seria interessante mostrarmos um pouco do que é esse cenário dentro do qual foram produzidas as histórias: Contexto Conforme dito anteriormente, a Green Death faz parte do universo da série Fúria Lupina, onde lobisomens vivem e atuam em um contexto histórico/cultural real. Assim como na nossa realidade, os lobisomens são tidos como um mito. Isso quer dizer que é da preferência dos homens-lobo que as coisas permaneçam assim, ou seja, as ações do grupo são planejadas de modo a não deixar pistas da existência de tais seres. Aparições em público dos licantropos são evitadas a todo custo. Os Lobisomens São todos bípedes, um meio-termo entre a forma humana e a lupina. Possuem a força de aproximadamente dez homens quando na forma lupina, e 3
  • 5. na forma humana têm força e habilidade correspondentes ao mais exímio atleta. Seus sentidos são extremamente aguçados ao se transformarem em lobisomens, e algo disso é preservado ao voltarem à forma humana. Alguns paradigmas universais dos lobisomens não existem nesta realidade: a prata não é o único material que pode causar danos a estas criaturas, e a lua cheia não provoca transformações involuntárias. Não são imortais, apenas extremamente resistentes. Sua pele é grossa como a de um rinoceronte e seus ferimentos são cicatrizados mais rapidamente. Possuem a capacidade de se comunicar mentalmente com os de sua espécie. A organização hierárquica entre os lobisomens que vivem em alcateia segue o padrão tradicional dos lobos, determinada pela força e poder de liderança, em três níveis: alfa (os mais fortes e com melhores capacidades de persuasão e comunicação), beta (totalmente capacitados, porém com algum ponto negativo que os diferenciam dos alfas) e ômega (não conseguem se transformar em lobisomem e somente mantém suas capacidades de comunicação mental). A Organização Surgiu no final dos anos 80 e, de início, baseava-se em pequenas sabotagens em instalações de fábricas poluidoras na Polônia e na Alemanha. Atualmente, sua base de operações é na Holanda, local onde os coordenadores das células terroristas se reúnem secretamente e transmitem as instruções aos seus subordinados. Sua área de ação é global, mantida por doações de simpatizantes da causa. Quando em campo, atuam em células de 3 a 6 indivíduos, sempre com um alfa coordenando as ações. Os betas são utilizados em confrontos diretos, e os ômegas trabalham no apoio e transporte. Sempre chegam aos lugares dos ataques sob disfarce; possuem conexões no submundo do crime que fornecem todos os documentos falsos necessários para fazerem os ecoterroristas passarem por equipes de TV, membros de ONGs de ajuda comunitária, entre outros. O modo de agir é bem simples: ataques rápidos e violentos, de modo a causar baixas e deixar os inimigos com uma tremenda sujeira para limpar e ter de se explicar com as autoridades locais.
  • 6. Bem, acredito que me estendi demais nas explicações, mas procurei mostrar de forma sucinta o que vem por aí. Fico à disposição para ouvir qualquer dúvida, elogio ou crítica. Agradeço mais uma vez pelo interesse mostrado por este e-book, desejo uma ótima leitura e já me adianto a convidálo a ler outros volumes da série (o volume zero já foi lançado, e os restantes vão surgindo quando menos se espera), caso tenha apreciado este volume. A natureza lupina liberta. A natureza humana destrói! Alfer Medeiros alfer.medeiros@gmail.com www.AlferMedeiros.com.br
  • 7. OOKAMI (Chico Pascoal) Permitam-me uma rápida apresentação: meu nome completo é Mario Yukio Lopes Tsukimori. Sou brasileiro, sansei, terceira geração de descendentes de japoneses. Tsukimori é o meu sobrenome pelo lado paterno; o Lopes é do lado da minha mãe, que descende de imigrantes portugueses açorianos aportados há cem anos na Ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil. Nasci em Bastos, interior do estado de São Paulo, cidade com forte presença da imigração nipônica, para onde meus pais se mudaram logo após se casarem. Há um provérbio antigo na província de Niigata, na ilha de Honshu, terra dos meus avós japoneses, que diz: "Um lobo pode se esconder até mesmo atrás de um junco". Lembro-me que, em certas ocasiões, eu costumava ouvilos repeti-lo, sempre na sua língua mãe, mas à época era pequeno demais para atinar o seu real significado. Mais tarde, já na minha adolescência, meu pai me explicou como seus pais conseguiram, durante a Segunda Guerra Mundial, escapar das perseguições perpetradas pelo Estado Novo contra os súditos de Sua Majestade o Imperador Japonês, e também àquelas promovidas pelos sanguinários militantes nacionalistas do Shindo Remei contra membros da colônia que ousavam duvidar da vitória do Japão: meus avós se utilizavam da ancestral Estratégia do Ookami, que significa lobo em japonês. Que estratégia era essa? Fiquei curioso. Achei em princípio que tivesse a ver com artes marciais, e quis saber maiores detalhes; porém, meu pai, que era um homem introvertido e de pouca conversa, podou-me o ímpeto juvenil como fazia com os seus bonsais; apenas me pediu que tivesse paciência, que esperasse, pois quando chegasse o momento certo me seria dado conhecê-la. Sou por natureza um sujeito apreensivo, detesto esperar. Então, em desacordo com o conselho do meu pai, atirei-me de corpo e alma à pesquisa na Internet, em bibliotecas, nos arquivos do Museu da Imigração no Bairro da Liberdade, e descobri, por exemplo, que os Tsukimori descendemos de uma antiga casa notável desde a Era Meiji por fabricar o molho de soja missô que provia os castelos de Daimyos, Shoguns e Imperadores. Fuçando ainda nos pertences do meu pai, chamou-me a atenção em uma fotografia antiga do casamento dos meus avós um símbolo bordado nas mangas do belíssimo quimono de seda do noivo. Tratava-se de um círculo com uma lua cheia no centro, rodeada por sete árvores. Aquele era o brasão da nossa família, cujo significado correspondia ao seu nome: Tsuki (lua) e Mori (floresta, bosque). Porém, por mais que procurasse qualquer referência à tal Estratégia do Lobo, nada pude encontrar. Como a busca se mostrava infrutífera, com o tempo passei a direcionar meus interesses para outros assuntos comuns aos garotos da minha idade: estudo, esportes, garotas, entre outros.
  • 8. Somente dois anos atrás, depois de ter emigrado ao Japão como o fizeram milhares de brasileiros nipo-descendentes, por conta de mais uma crise econômica que assolava nosso país, é que um acontecimento insólito trouxeme de volta aquele assunto que eu considerava encerrado. Uma noite eu havia sido o último a sair da fábrica nos subúrbios de Gunma onde dava duro montando autopartes, e pedalava sozinho e sem pressa aproveitando os declives da estradinha sinuosa e bem cuidada, rumo ao conjunto habitacional em que dividia um minúsculo apartamento com mais dois amigos brasileiros. Após dez horas de trabalho, estava extremamente extenuado. Tudo o que eu mais almejava naquele momento era um bom banho morno, uma sopa Udon fumegante, e uma cerveja bem gelada. Aquela era uma noite quente, úmida e abafada que, todavia, havia sido recompensada com a presença de uma lua cheia e esplendorosa flutuando qual um balão de prata em um céu de imaculada limpidez. Estrelas, se havia, eram meninas tímidas, pois não as vi. Eu fazia diariamente aquele percurso exceto aos domingos, porque ninguém é de ferro; e confesso que tanto pela manhã, na ida para o trabalho, ainda com resquícios de sono a me entorpecer os sentidos, como à noite, ao voltar para casa, eu não me atinha a certos detalhes do caminho. Naquela hora erma, porém, depois de cruzar a pequena ponte adornada com lanternas de pedra sobre o riacho de águas límpidas, e internando-me no bosque de pinheiros que se estendia a partir da encosta da elevação conhecida como Kitsuneyama, ou Montanha da Raposa, me senti apossado de uma estranha sensação. De um momento para o outro aceleravam-me sobremaneira as batidas do coração. Taquicardia, pensei. E com razão apavorei-me crente que houvesse chegado a minha hora. Logo as veias das minhas têmporas latejavam com tamanha pressão e intensidade que minha cabeça converteu-se em uma bomba prestes a explodir. Ao mesmo tempo todos os músculos do meu corpo contraíram-se em terríveis câimbras. Larguei a bicicleta na beira da estrada e corri aos tropeções em direção a um tronco apodrecido de pinheiro, onde me sentei na vã esperança de que aquela crise passasse. Faltava-me ar. Meus pulmões ardiam como os altos-fornos de uma siderúrgica. Eu não tinha dúvida de que algo ruim estava prestes a me ocorrer. Isso foi só o começo, pois imediatamente, sem que eu pudesse impedir, uma força sobrenatural irrompeu impetuosa de dentro de mim e, à guisa de um daqueles perversos instrumentos medievais de tortura usados para desmembrar hereges, agiu de forma violenta a alongar-me os ossos, a distender minha coluna cervical, a rasgar-me a pele, moldando-me em uma nova criatura. Partes de mim rapidamente se avolumavam e assumiam outros formatos. Articulações rompiam-se e se recompunham de modo que o meu macacão de operário já não me cabia. Isso sem falar no pandemônio que confundia totalmente os meus sentidos. A audição, assim como o olfato, tinham se ampliado sem qualquer controle e eu era capaz de ouvir diálogos íntimos
  • 9. travados a quilômetros dali, assim como a queda suave de uma folha no fundo do bosque, o pio solitário de ave noturna, o cheiro do arroz servido em uma refeição tardia, o odor dos feromônios de alarme de uma lebre ameaçada por um predador. Desesperado tateei minha faces, e constatei com assombro que o meu nariz tinha se alongado ao mesmo tempo que, dentro da minha boca, minha arcada dentária se convertera em poderosa mandíbula. No lugar das mãos, agora eu tinha garras afiadíssimas, e os pelos de tonalidade cinza brotavam espessos da minha epiderme como milhões de agulhas fincadas de dentro para fora. Não foi como se me arrancassem de mim, mas uma sobreposição. O selvagem sobre o domesticado. O feroz sobre o dócil. Não suportando mais tamanha dor, em um dado momento caí ao solo a me debater, a me contorcer em violentos espasmos e convulsões, babando e transpirando em profusão, como se fora um portador de epilepsia ou um endemoninhado que carecesse de um providencial rito de exorção. Rios de lava incandescente corriam em minhas veias. Mas a tortura não se prolongou por mais tempo. Já metamorfoseado em outro ser, ergui-me num salto testando a capacidade das minhas pernas vigorosas. Erguendo os olhos febris, perscrutei através das ramagens dos galhos altos dos pinheiros os contornos de uma lua desnuda e perfeita, testemunha única da minha transformação. Como é inerente aos da minha espécie, senti-me impelido a reverenciá-la e libertei o aulido primitivo que estivera reprimido em minhas entranhas desde que eu viera ao mundo. Sim, eu era um lobisomem de quase três metros de altura e de invejável envergadura. Eu era um Ookami. O segredo da estratégia do lobo, aquela que os meus ancestrais recorriam em momentos de dificuldade, tinha enfim se revelado. E tive a certeza de que aquela era a hora da verdade à qual meu pai se referira. Sentidos apurados, eu podia agora sentir mais intensamente e em toda sua plenitude a natureza à qual de forma instintiva me integrava. O cheiro da terra úmida, o farfalhar das folhas, o ruído das águas escorrendo por entre as pedras do leito do riacho… Comecei então a estudar o território, a familiarizarme com sua topografia, a definir seus limites. Orelhas e focinho em alerta, captei claramente em meio à balbúrdia de sons e odores um pedido silencioso e desesperado por socorro. Um pedido que não saíra de nenhuma garganta, mas que se fazia claro à minha nova percepção. O metabolismo do aminoácido aromático e a tensão arterial provocada pela adrenalina dele derivada que secretava uma presa acuada diante de um predador me fez enveredar em alta velocidade pela mata fechada. O chamado procedia do outro lado da montanha, e se eu tivesse que seguir a estrada vicinal para chegar até lá, mesmo desenvolvendo uma velocidade surpreendente para os padrões humanos, demonstrar-se-ia inútil. Galhos, troncos, espinhos, pedras, ravinas... Aquele era o meu meio, o habitat do lobo. Nada havia que pudesse me impedir de chegar aonde me propunha. Sem perda de tempo fiz meu próprio atalho com desenvoltura, e em
  • 10. questão de minutos alcancei um descampado que na época das férias escolares servia como área de camping. No centro da clareira, formando um círculo, fachos de luz de faróis e o ronco ameaçador de motores. Uma gangue de motoqueiros. Eram Bosozoku. Uma praga no Japão moderno. Hordas de delinquentes juvenis em suas motocicletas envenenadas que se juntam para transgredir as duras regras da sociedade nipônica e praticar barbaridades, principalmente contra trabalhadores imigrantes. É nesses grupos de desordeiros que a máfia japonesa, a temível Yakuza, recruta seus membros. Encurralado pela gangue, identifiquei um grupo composto de cinco rapazes e duas moças. Estavam em estado de pânico, paralisados pelo medo. Vestiam o uniforme cinza da fábrica de autopartes, o mesmo que eu usava antes da transformação, e do qual eu já nem me recordava. Não os reconheci, mas algo em mim dizia que eu devia ajudá-los. “Filhos da puta!”, berrava a plenos pulmões um dos motoqueiros, com elmo no estilo samurai, brandindo um taco de beisebol. De imediato identifiquei-o como sendo o líder do bando. Vociferava em português. As ofensas, mesmo pronunciadas com forte sotaque, me soavam familiares. “Vamos lá, guerreiros! Vamos detonar os vermes!”, exortava colérico, agora em japonês, os seus comandados. “Alguém tem que livrar o nosso país dessa praga!” A resposta do resto do bando ao chefe foi imediata. Entre urros, palavras de ordem e gritos de guerra, tomados de coletiva histeria, eles ergueram suas correntes e tacos e avançaram contra os trabalhadores indefesos. Nesse instante eu intervim. Do alto do pinheiro onde me encarapitara para observar melhor o campo em que teria de lutar, empreendi um salto magistral, aterrissando diante do comandante Bosozoku. Antes que ele pudesse atinar sobre o que estava acontecendo, testei o fio das minhas garras arrancando-lhe com um só golpe a cabeça. Com potência e precisão o golpe atirou-a longe, enquanto o corpo decapitado prosseguiu, ainda por alguns metros, pilotando a moto desgovernada . E o consequente cheiro adocicado de sangue despertou meu apetite. A maioria dos motoqueiros que vinha na empolgação do ataque em massa, ao se dar conta do que sucedera ao seu líder tentou, retroceder e acabou se atropelando mutuamente, o que facilitou meu trabalho. De dois deles, que por azar caíram justamente aos meus pés, dilacerei sem esforço suas gargantas. O barulho do sangue gorgolejando, de ossos partindo, o odor nauseabundo dos excrementos vazados de seus corpos eviscerados, os gritos alucinados de pavor, tudo me excitava enormemente. O espírito kamikaze de lealdade de alguns daqueles caras para com o líder fazia com que não se importassem em se atirar em direção à morte certa, desde que pudessem infligir algum dano ao oponente. Um, de notável habilidade com sua máquina, empinou-a de forma a me atingir. A pancada forte
  • 11. da roda dianteira da moto contra o meu costado fez com que eu perdesse o equilíbrio e dois outros aproveitassem para me acertar. A corrente com que um deles me chicoteou enrolou-se no meu braço e eu o puxei para mim. Dava para ver o pavor instalado em seus olhos miúdos. Deu para sentir a urina encharcando as pernas do seu jeans apertado. Este eu tomei pelos pulsos, um com cada garra, e abri seus braços, aproximando o seu rosto das minhas mandíbulas. Então os estiquei até que a pele se rasgasse e os ligamentos se rompessem, desmembrando-o. Antes que começasse a debandada geral, avancei como um raio sobre os restantes distribuindo dentadas a torto e a direito, rachando cabeças, massacrando-os, estraçalhando-os. Fez-se o inferno na Terra. O às da motocicleta foi o último que liquidei. Apanhei-o antes que alcançasse a estrada, onde talvez levasse vantagem sobre mim, e prendi-o pela nuca como é comum aos lupinos e felinos quando carregam seus filhotes. Era um rapaz musculoso. Ele seria o que primeiro eu devoraria. Fibras. Sua energia e sua juventude haveriam de me revigorar. Olhei em volta. Os trabalhadores já não estavam presentes para testemunhar meu suculento repasto. Aterrorizados, tinham se aproveitado da confusão para cair fora pedalando rapidamente em suas bicicletas em direção à cidade. Aquelas cenas de terror e extrema violência tinham sido impressas em suas mentes de tal forma que, até o dia em que desencarnassem, as carregariam consigo. Sozinho com meus doze cadáveres, deliciei-me mastigando com voracidade incomum as suas melhores partes. Sangue e carne à vontade – era tudo o que me importava naquele momento. E ai de quem ousasse me interromper! Sentia-me absoluto, senhor dos meus instintos, embora, de algum recôndito do meu turvo inconsciente, às vezes aflorasse um resquício de náusea, de repúdio. O inevitável conflito com o meu lado humano, com o meu outro Eu. Ao terminar o meu farto banquete, por volta da meia-noite, espessos edredons de nuvem agasalhavam a Lua. Roia ainda alguns fêmures quando o meu sentido auditivo concentrou-se em uma voz suave e feminina que se sobrepunha às tantas que a minha audição privilegiada conseguia captar. Esta voz, porém, não vinha através de ondas sonoras, mas mentais. E dirigia-se diretamente a mim. “Irasahimasse, irmão Ookami! Seja bem-vindo!” Desconfiado, agucei o olfato e varri os arredores com minha visão. “É inútil, irmão. Concentre-se e entraremos em perfeita sintonia”, aconselhou a voz. “Vamos, faça um pequeno esforço.” “Quem...?”, respondi mentalmente. “Muito bem! Aos poucos irás perceber que não é tão difícil dominar esta técnica. Deixe que eu me apresente: Meu nome é Eucyon. Temos mais em comum do que possa imaginar. Também sou uma mulher-lobo.” “Pensei que eu fosse...”
  • 12. “O único?”, riu-se. “És muito pretensioso. Saiba que somos uma grande alcateia. Não estamos apenas no imaginário popular, na cultura de cada povo. Fazemos-nos presentes em todos os continentes.” “Todos sujeitos a esta... Maldição?” “Se me permite, irmão Ookami, prefiro encarar como sendo uma benção.” A minha misteriosa interlocutora então me revelou que estivera o tempo todo a me observar, tendo inclusive elaborado um relatório completo sobre a minha primeira transfiguração e o meu comportamento diante de uma situação de risco. O objetivo era avaliar se eu realmente tinha potencial para fazer parte dos quadros da organização que ela representava. “Relatório? Organização?”, estranhei. “Uma organização composta por lobisomens, você quer dizer?” “Licantropos. Militamos na Green Death. “ “Nunca ouvi falar...” “Porque não usamos do recurso da visibilidade como o Greenpeace, a WWF ou os Médicos sem Fronteiras. Pelo contrário: acreditamos que quanto mais invisíveis, melhor. Quanto mais acreditarem que somos apenas uma lenda, uma supertição, menos complicado será atingirmos nossos objetivos.” “Uma organização com fins ecológicos?” “A natureza é o nosso meio. Cabe-nos retaliar e vingar as agressões por ela sofridas. Não impomos a ninguém que se junte à nossa causa, mas lhe estendemos o convite. Fique a vontade para pensar a respeito. Dentro de uma semana entrarei novamente em contato. Ah, um conselho, se permite, antes que crie sérios problemas para o decasségui Mario Yukio, cuja forma daqui alguns minutos terá de reassumir: comece a limpar o terreno. Desapareça com todo e qualquer vestígio que possa indicar a presença de um lobisomem nessa região. Sayonara!” A conexão com a minha preceptora interrompeu-se, e em seguida me vi recolhendo os despojos daqueles infelizes, assim como suas motos e armas, e atirando-os em uma fenda estreita e profunda aberta por antigo sismo no alto da montanha. O forte odor de enxofre que emanava das águas termais que corriam nas entranhas da terra disfarçaria o cheiro decorrente da putrefação. Fi-lo com tanta naturalidade, que era como se já o tivesse feito outras tantas vezes. Horas mais tarde, de volta à minha forma humana, cheguei seminu ao alojamento onde encontrei meus companheiros ainda em estado de choque. – Mario! Pensamos que estivesse... – abraçou-me chorando minha amiga Yukari, visivelmente abalada. – Estou bem, Yuka – tranquilizei-a. Embora ela não me dissesse, eu percebia a extensão dos seus sentimentos em relação a mim. O que eu ainda não tivera coragem de lhe contar é que tinha me desgastado muito com uma desilusão amorosa antes de vir para o Japão (um dos motivos que pesou na minha decisão de partir), e que não estava disposto a tão cedo me envolver emocionalmente com alguém.
  • 13. – Os Bosozoku... A criatura... – Já passou. Estamos todos bem agora, não estamos? Foi só um pesadelo. O restante do pessoal também estava aterrorizado e confuso com os estranhos acontecimentos daquela noite. Alguns cogitavam até largar tudo e embarcar imediatamente para o Brasil. Então lhes pedi calma. Sugeri que o melhor a fazermos era dar por encerrado o assunto. Não que fosse tarefa fácil apagar das nossas mentes aquelas cenas medonhas que os que os nossos olhos tinham presenciado. Mas que devíamos tentar tocar normalmente as nossas vidas, continuar, apesar de tudo, correndo atrás dos nossos sonhos. Dos sonhos bons. A semana seguinte foi de angustiante apreensão. Temíamos, e com razão, que a imprensa ou a polícia pudesse levantar qualquer suspeita sobre a o desaparecimento daqueles infelizes. Era como se o homem-lobo que viera em socorro dos trabalhadores decasséguis fosse apenas fruto da sua imaginação. Aqueles dias eu andei meio avoado, disperso. No trabalho cheguei até a ser advertido duas vezes pelo meu supervisor. Yukari e os outros colegas, contudo, não estranharam, já que eles próprios ainda não se haviam recuperado plenamente do choque emocional decorrente do episódio com o lobisomem e os Bosozoku. Depois de analisar minuciosamente, pesar os prós e os contras da proposta apresentada pela Green Death, voltei ao bosque da Montanha da Raposa. O fato de poder me transformar em lobisomem, a princípio me assustara; mas por outro lado não tive dificuldade em aceitar a minha condição de “diferente”. Era uma herança dos meus antepassados, um presente raro. E eu não podia simplesmente renegá-la. Dispor deste dom e não utilizá-lo para um propósito que não fosse apenas a autodefesa, como o fizeram meus avós, me parecia uma atitude puramente egoísta. Então novamente assumi a forma de lobo e contatei Eucyon para comunicar-lhe a minha decisão. Minha preceptora é, na hierarquia da Green Death, uma fêmea ômega. Seu forte é justamente a comunicação mental; e o seu papel dentro da organização é identificar, recrutar, treinar e monitorar agentes. A sede da Green Death está secretamente localizada em algum lugar nos Países Baixos. Eucyon pertence a uma das cinco células terroristas no Continente Asiático e sua base é a ilha de Okinawa, ao sul do arquipélago japonês. Não nos conhecemos pessoalmente. – Ficamos muitíssimo honrados que tenha aceitado, irmão Ookami. Ontem mesmo, em reunião extraordinária, o Conselho da organização reunido na Holanda fez comentários muito positivos em relação ao meu trabalho, ou seja, à sua avaliação; o que significa que oficialmente você já pertence ao quadro da Green Death. Dentro da nossa hierarquia você foi considerado um homem-lobo em nível beta: o que o qualifica para atuar diretamente em confrontos e ações de risco. Meus parabéns. Irashaimasse, irmão Ookami
  • 14. Aquela mesma noite fui informado de que teria o meu batismo de fogo. Fora-me confiada uma missão, e eu teria a oportunidade de finalmente mostrar o meu valor. Em princípio fiquei pensando que tipo de desculpa daria para poder me ausentar do trabalho, ou mesmo o que diria aos meus colegas de alojamento. Mas o pessoal da Green Death era de uma eficiência ímpar e já tinha pensado em tudo. No dia seguinte, na fábrica, mal assinei o ponto digital, o supervisor de serviços da área à qual eu pertencia, Senhor Murakami, chamou-me à sua sala. – Senhor Tsukimori, volte para o alojamento e arrume as suas coisas. Precisamos que viaje imediatamente a Okinawa. Vai ficar uns dias por lá, a trabalho. Eu estava surpreso. Tratasse-se de um alto executivo, vá lá. Mas eu era um simples peão naquela linha de produção, e além do mais um imigrante. Ser destacado para prestar serviço em outra unidade daquela renomada fábrica de autopartes, era algo, senão inédito, quase inimaginável. Pensei no mal estar que causaria, na inveja que despertaria principalmente entre os funcionários efetivos. – Está ficando importante, hein garoto! – parabenizou-me Yukari quando lhe contei. – Nem sei bem porque me escolheram – disfarcei. – Sem falsa modéstia, Mario – brincou Orlando, um paranaense já veterano – De nós, você é que se vira melhor em japonês. Isso conta muito para eles. No dia seguinte ao desembarcar o sul do arquipélago, em Naha, capital de Okinawa, Eucyon me esperava no aeroporto. Minha preceptora era bem diferente da imagem que dela eu fizera dela. Era quase uma adolescente, tingia o cabelo de azul e vestia-se de modo despojado, ao estilo das mundialmente famosas lolitas do distrito de Harajuku. – Tsukimori-san? – Sim. Você deve ser... – Meiko. Meiko Ogata. Seja bem-vindo a Okinawa – Curvou-se numa reverência. Os codinomes, ela tinha me alertado, não deviam ser usados em público. Tomamos um taxi para um bairro localizado nos subúrbios da cidade onde ficava o apaato que Meiko dividia com seu namorado, um americano alto e ruivo. Clarence Sttummer era correspondente de um jornal do Havaí, e também fazia parte da Organização. Era um lobisomem da categoria alfa, e o seu codinome era Red Wolf. – Prazer em conhecê-lo, irmão Ookami – saudou-me o americano estendendo-me gentil sua mão forte. – Sou o responsável pelo planejamento e pela logística da missão. Eucyon me falou muito bem de você. – Obrigado. Vocês são muito gentis.
  • 15. Mais tarde, depois do jantar, o simpático casal explicou-me em detalhes que tipo de ação nós iríamos empreender e como deveríamos proceder. – Há aproximadamente uma semana um navio de bandeira japonesa procedente do porto de Kobe transportou secretamente, para uma região rural do Timor Leste, um enorme carregamento de lixo hospitalar que seria enterrado nas montanhas próximas a Dili, colocando em risco os mananciais que abastecem aquele país. A informação, que nos foi passada dias atrás por nossos alcaguetes, é que a família Yakuza Yamaguchi-gumi e um chefe político timorense estariam por trás do negócio que há de lhes render alguns milhões de dólares. – O ideal seria que tivéssemos conseguido impedi-los antes que os contêineres fossem desembarcados – reforçou Meiko. – No entanto, cremos que ainda há tempo hábil para fazermos algo de modo a evitar a ocorrência de um terrível desastre ambiental. – É do nosso conhecimento que já saltou de paraquedas antes – disseme o alfa. E tive a certeza de que haviam vasculhado a minha vida como que revira um armário. – Uma vez apenas – admiti – Com uma turma de amigos em um aeroclube no Brasil. Por puro exibicionismo. *** O pequeno avião sobrevoou a cidade de Dili mas, contrariando as orientações de pouso fornecidas pelo operador de tráfego do aeroporto, seguiu em frente sempre margeando a costa, até se internar e tomar o rumo dos montes Matebian, elevações consideradas sagradas pelos timorenses. – Casa dos Mortos. É o que Matebian significa na língua nativa de Timor, o Macassai – explicou Red Wolf enquanto eu me preparava para o salto – Desça lá Ookami-san, e faça com que aquela corja se sinta em casa. Entendi o recado e fiz sinal de OK. Lá embaixo, em meio à uma densa névoa, visualizei duas magníficas formações geológicas de aparência tumular. Matebian Mane e Matebian Feto. Homem e Mulher. Era ali, no seio daquela natureza que me pareceu extremamente hostil, que a minha capacidade seria posta à prova. Dentro das coordenadas traçadas por meus preceptores, saltei de modo a aterrissar em uma pequena clareira localizada no meio da selva. E, fora um friozinho na barriga decorrente da ansiedade, não tive qualquer tipo de problema. Aterrissei em meio ao capim alto e, após recolher o paraquedas e ocultálo sob as raízes de uma árvore antiga, retirei um apito do bolso e soprei forte por três vezes. Era o sinal combinado para que o guia que me aguardava me localizasse. Esperei ao longo de alguns minutos, atento a qualquer movimento ou ruído, mas ninguém apareceu; então comecei a temer que tivesse entrado numa fria.
  • 16. A sombra que assomou qual uma projeção cinematográfica em meio à neblina, não obstante fosse gigantesca e em princípio aterradora, pertencia a um homem de baixa estatura, a um pequeno guerreiro descalço que se materializou na minha frente. – Senhor Lopes? – perguntou-me em perfeito português. A voz vigorosa contrastando com a sua débil compleição física. – Sim, sou eu – respondi. Ele aproximou-se para que eu pudesse vê-lo melhor. Era um homem de meia idade. As cãs e a barba grisalhas, a pele morena e curtida, davam-lhe uma aparência venerável. Trazia a tiracolo um embornal de lona e um velho fuzil com o número de série do exército português na culatra. – Olá, como vai? – cumprimentou-me estendendo mão magra e calosa – Sou Isidoro de Souza. Ex-combatente da FRETILIN e veterano das guerras da independência de Timor. Fui designado para guiá-lo ao Covil da Serpente. – Imagino que conheça esta região como a palma da sua mão. – Pode apostar – riu, abrindo um sorriso desdentado de gengivas escuras. – Nasci aqui, aos pés dos Matebian. E aqui pretendo descansar meus ossos, quando a velha da foice me chamar. Mas creia-me, senhor Mario, não estou com pressa nenhuma. Rimos. Isidoro era realmente um sujeito espirituoso e caiu de imediato nas minhas graças. Achei que nos daríamos muito bem e que faríamos ótima parceria. Enquanto seguíamos rumo às montanhas o velho timorense me contou episódios e fatos ocorridos ali durante a guerra, lembrando os companheiros que haviam morrido defendendo a soberania de Timor Lorosae, sua pátria. Explicou também que faríamos uma marcha por cerca de duas horas ao longo de uma trilha escondida na mata, e que se tudo corresse conforme tinha planejado chegaríamos ao nosso objetivo antes do anoitecer. Por volta das cinco da tarde alcançamos uma garganta de quase um quilômetro de extensão, que de tão estreita mal dava para passar um homem. Felizmente sou de compleição delgada, mas mesmo assim tive de percorrê-la inteira de lado. Superado esse obstáculo natural, detivemos-nos finalmente no topo de uma pedra enorme, uma espécie de mirante. – O Covil da Serpente está logo ali embaixo – apontou para um ponto invisível no meio da indevassável neblina. – Foi uma antiga base do exército indonésio. E tem esse nome por causa da estrada sinuosa como uma cobra que conduz até lá. Isidoro, como eu já desconfiava, era um ômega, o único em todo o território Timorense. Sem seu precioso apoio, mesmo para um agente experimentado o que não era o meu caso, a missão se tornaria praticamente inviável. O fato de falar português tinha pesado na minha escolha. Talvez tivesse sido mesmo uma sugestão do meu guia.
  • 17. – Aproveite para descansar, rapaz – sugeriu o veterano – Logo mais, quando a neblina amainar e a luz dos faróis dos caminhões se fizerem visíveis lá no rabo da Serpente, você vai até lá mostrar a que veio. Retirando do embornal de lona um rolo de corda de fibra vegetal, firmou uma das pontas com um nó no galho de uma pequena árvore arraigada nas rochas da encosta, e atirou-a no precipício. – É através desta corda que você vai poder descer até o próximo patamar. Dali em diante vai ter que confiar nos seus instintos de lobo. Ficarei aqui, mas estaremos conectados mentalmente. Caso precise de ajuda, não se faça de rogado. Chame-nos, e eu e a Sonia Braga aqui iremos em seu socorro. – Sonia Braga? – ri. – É como eu a batizei – apontou para a carabina cruzada sobre suas pernas – Um amor antigo, seu Mário. Um casamento. Não desgrudamos um do outro. Naquela bem-humorada comparação, pude comprovar o enorme poder de penetração das telenovelas brasileiras mundo afora. Às sete horas em ponto ouvimos finalmente o rosnado dos motores enfrentando o desafio dos aclives. Vistos do alto, os fachos dos faróis dos veículos eram como lâminas brancas de luz fatiando o fumo da cerração. – Dois camiões trucados e dois veículos menores, provavelmente servindo de escolta – observou Isidoro colocando a mão no meu ombro. – Agora não há mais tempo a perder. Vá! Encaminhei-me relutante à beira do precipício e coloquei as luvas de couro e o equipamento de rapel. Lembrei-me de um tempo em que praticava esportes radicais, e que vencer cachoeiras ou descer rios caudalosos em uma boia era o meu maior desafio. Deixe a mochila comigo – disse o guia. – Não vai precisar dela por enquanto. Desci cerca de dez metros por entre a bruma que se dissipava e alcancei a plataforma inferior, o ponto que Isidoro me havia indicado. Ali, mesmo com a temperatura despencando rapidamente, despi-me e me concentrei. Ouvi um zumbido crescer dentro do silêncio e aos poucos fui entrando em sintonia com o veterano timorense, que me orientaria na minha primeira transformação induzida. Isidoro com a sua experiência e conhecimento do terreno faria com que as coisas se tornassem bem mais fáceis para mim. Em questão de segundos, minha musculatura contraiu-se resistindo à expansão violenta da minha estrutura óssea. Pelos grossos brotavam abundantes em minha derme, e o tremor que agora tomava conta do meu corpo, eu sabia, não era provocado pelo sopro gelado do vento sudoeste que assobiava nas ravinas e saliências rochosas. Urrei, antevendo a imensa e inevitável dor que precederia a pujança e o prazer incomensurável de me libertar da minha forma humana, domesticada, assumindo a condição primitiva e feroz de um homem-lobo.
  • 18. Imagino que tudo tenha ocorrido muito rapidamente. Apenas imagino, pois a cada dolorosa transformação meus neurônios explodiam como se fossem átomos em processo de fissão, e o meu nível de consciência simplesmente inexistia. Logo eu era um lobisomem novamente. Um lobisomem vigoroso e feroz com garras afiadas e mandíbulas de aço. Com focinho alongado e olhos raiados e brilhantes. Meus instintos superdimensionados agora captavam com nitidez os sons mais discretos da montanha, o rumor das águas, o temor noturno dos pequenos animais, o sussurro lamurioso das almas dos combatentes que ainda vagavam por aquelas paragens. E também os cheiros. Principalmente o odor fétido que exalava dos contêineres trazidos pelos caminhões, e que infectava o ar puro dos Matebian. “Jovem Ookami, o momento é este”, ouvi Isidoro me aconselhar dentro da frequência estabelecida entre nós. “O elemento surpresa é seu trunfo. Os facínoras estão fortemente armados, e confiam que ninguém se atreverá a atrapalhar os seus planos. Agora vá, garoto! Ah, se puder, poupe os motoristas. Eles serão úteis para conduzir os veículos de volta à costa.” Não levei mais que dez minutos para alcançar a clareira rodeada de palmeiras conhecidas por Tali Metan, onde ficava a base. Da escuridão, divisei a silhueta dos dois homens que montavam guarda naquela velha construção de arquitetura portuguesa. Interpretando as conversas captadas pelos meus ouvidos, Isidoro identificou-os como sendo de origem indonésia. O primeiro era gordo, falador e cheirava a comida picante; o segundo era monossilábico e, nervoso, fumava um cigarro atrás do outro. Não lhes dei chance para entender o que se passava: avancei dentro das sombras sem que percebessem e, juntando suas cabeças, bati uma contra a outra com uma força que eu ainda não dominava. Um ruído de vasos que se quebrassem. A massa encefálica morna é uma iguaria que não se deve desperdiçar. Considerei-a como a entrada para o banquete que iria apreciar logo em seguida. “Muito bem, rapaz!”, elogiou Isidoro. “Agora chega. Não deve se desconcentrar nem deixar-se desviar do seu objetivo.” Grunhi contrariado, mas as palavras do velho tinham o estranho poder de me dobrar. Obedeci. Isidoro sabia que, uma vez despertado, o meu apetite de besta interferiria de forma negativa prejudicando minhas ações, forçando a saciedade. Não se passaram nem dez minutos e um jipe de fabricação japonesa, sem capota e com tração nas quatro rodas, antecipou-se ao comboio e entrou na clareira. Nele havia três homens: um ao volante e os outros dois, um do lado do carona e outro no banco traseiro, armados com rifles. – Halo! – gritou um deles, ainda antes do veículo estacionar. – Chegamos!
  • 19. Não obtendo qualquer resposta, nem esperou pelos outros. Escalou rapidamente os degraus antigos da velha base e empurrou com o cano da arma a porta entreaberta. – Ei! Se o vagabundos encheram a caveira de Arrack, podem se preparar: o chefe vai comer vocês vivos! Vivos? Exceto os pequenos insetos da noite, não havia mais ninguém vivo lá dentro. A cena com que deparou jogou-o para trás como um coice de uma carabina de grosso calibre após um disparo: à luz pálida e oscilante de uma lâmpada a querosene jaziam os corpos inertes dos dois infelizes. – Puta que pariu! – disse, enquanto retrocedia tropeçando nos pés, sem se arriscar a dar as costas para quem ou o que pudesse vir da escuridão dos cômodos contíguos. Cruzando de volta o umbral da porta de entrada, trôpego, correu em direção ao jipe, para junto dos seus companheiros. Contra o facho dos faróis, porém, não os enxergava, embora acreditasse que estivessem ali. – Fudeu! Algo deu errado! Os caras estão mortos – deu o alerta, o pânico estampado na voz. Suas palavras perderam-se no vazio como tiros a esmo, sem surtir o efeito desejado. Logo ele descobriria que os que haviam permanecido no carro também estavam igualmente mortos, desmembrados, os corpos cruzados um sobre o outro. E teria a indigesta e angustiante certeza, talvez a última, de que aquele terrível fim também lhe estava reservado. Suas pernas curtas, antes mesmo que o cérebro alarmado emitisse qualquer comando, arrastaram-no em tresloucada fuga estrada abaixo, mas não o levaram muito longe: poucos metros à frente esbarrou em um largo paredão de músculos sob pelos, contra o que reagiria disparando furioso a sua arma – se pudesse. Gritaria também se uma garra de aço não o prendesse pelo pescoço, apertando-o até quebrá-lo, emitindo um estalo seco. O silêncio da morte pousou outra vez sobre a noite como uma enorme ave de mau agouro. “Bom trabalho, Ookami-san”, elogiou o ômega, através da frequência das ondas cerebrais. “Primeira fase concluída com sucesso.” Os caminhões basculantes, cada um com dois pequenos contêineres, vencendo o cascalho da estrada estreita com os motores a rugir, apontaram na entrada da clareira cerca de quinze minutos depois. O jipe estava lá. O motor ainda se encontrava ligado, mas não havia sinal dos batedores nem dos homens contratados para montar a guarda no local. Entrementes, na retaguarda, os ocupantes do segundo jipe eram surpreendidos pela minha forma escura e amedrontadora que desabara do alto das enormes palmeiras que ladeavam a estrada. – Meu Deus! – ainda teve tempo de pronunciar em vão a primeira vítima, antes que o fio das minhas garras estraçalhasse a cartilagem da sua garganta, matando-a instantaneamente.
  • 20. O segundo homem, típico sicário arregimentado na periferia pobre de Jacarta, mostrou ótimo reflexo ao sacar de uma pistola automática e disparar duas vezes contra mim. Atirava bem, mas não pôde confirmar jamais se conseguira acertar o alvo. Os estampidos de sua arma, contudo, serviram para alertar os condutores dos caminhões de que algo não corria bem. Aproveitando-se de um segundo de retardamento que representou a inútil resistência oposta pelo seu companheiro atirador, o chofer do jipe abandonou o volante e tentou escapar. Quando percebeu que eu, terrível predador, viria nos seus calcanhares e o alcançaria, tentou uma última e desesperada cartada: atirou-se no abismo. Talvez pensasse que partindo a cabeça nas pedras ou quebrando o pescoço em consequência da queda tivesse uma morte menos traumática. Tiros. O alarme fora dado. E ainda antes de abandonarem as cabines dos caminhões, os homens que as ocupavam já engatilhavam suas reluzentes automáticas. Mera formalidade, pois confiavam ingenuamente que seu poder de fogo pudesse defendê-los de minha ameaça inumana. “Restam quatro”, informou o preceptor. “Posso vê-los através do binóculo para visão noturna.” Eu sabia o que fazer. Difícil mesmo ia ser controlar minha inata ferocidade de modo a poupar a vida de dois daqueles infelizes. Galgando num salto silencioso os contêineres do primeiro caminhão, pousei sobre os escolhidos minha visão. O poder de vida e de morte daqueles homens estava nas minhas garras. Os que saíam pelo lado do carona não veriam jamais a luz do dia seguinte. Gritos angustiados, lamentos sufocados, sangue gorgolejando, ossos partindo, tiros esparsos... Uma batalha que mal começava já se dava por perdida. Os sobreviventes, encurralados entre os dois veículos, não atinavam por que a besta sanguinária, depois de trucidar com extremada fúria seus desditados companheiros diante dos seus olhos, de repente, como se uma mão invisível o impedisse, se contentasse apenas em tomar suas armas. – Agora a parada é comigo, Ookami-san – disse uma voz, proveniente das sombras. A contragosto, me afastei. Carabina em punho, o timorense intimou os prisioneiros. Em japonês, pois eram nipônicos. Com o pouco que sabia do idioma, consegui compreender sua frase seguinte: – Vocês vão ter que levar toda esta imundície de volta, seus bastardos! Só por isso é que estão vivos. Alguma objeção? Nem precisavam responder. Aqueles eram os termos da rendição. Não havia mais o que se pudesse negociar além de suas vidas. Sob a mira do exguerrilheiro e o meu olhar faminto, os motoristas desceram a serra em grande velocidade, amedrontados, e mais preocupados em se safar daquele pesadelo infernal que propriamente cumprir com o que lhes fora determinado.
  • 21. Acompanhando o desenrolar da ação pelo binóculo, Isidoro assistiu satisfeito quando, minutos depois, uma patrulha de capacetes azuis interceptou ambos os veículos. “Relaxa, garoto. Coma alguma coisa.” Não me fiz de rogado e me atirei voraz sobre os cadáveres que jaziam ainda mornos no solo poeirento da clareira, extraindo de ambos seus órgãos internos. Corações e rins eram as iguarias que mais satisfaziam o meu paladar. Mantendo uma razoável distância, Isidoro esperou. Sabia do perigo que significava se aproximar de uma fera quando esta estivesse a se alimentar. Como posteriormente me disse ele, homem-lobo não sujeito à metamorfose corporal, não raro era tomado pelo desejo de provar de carne humana. Quando isso acontecia, porém, seu estômago embrulhava de puro asco e ânsia; e a vontade do homem acabava se impondo à vontade do lobo. Meia hora mais tarde, a bordo de um dos jipes da escolta (o outro fizemos deslizar para o fundo de um precipício, juntamente com os despojos do infelizes mortos), Isidoro e eu, já de volta à forma humana, tomamos o rumo de Díli, a capital timorense. Isidoro conhecia um atalho que nos permitiria evitar a abordagem por parte dos soldados da Força de Paz. Se a estratégia falhasse, no entanto, tínhamos um álibi preparado: eu seria um jovem fotógrafo e ornitólogo com credenciais de uma importante revista brasileira, que ali me encontrava com o intuito de documentar as belezas naturais do país; Isidoro fora contratado como seu guia. Entretanto tudo correu sem maiores incidentes. Quando o sol iluminou o dia, pudemos avistar ao longe as palmeiras que ladeiam o aeroporto de Dili. *** O Hotel Lorosae era uma construção moderna e aço e vidro situado na Avenida Portugal, nas proximidades do porto. Era ali que Red Wolf e Eucyon tinham marcado de me encontrar. A um quarteirão de distância, porém, Isidoro parou o jipe no acostamento e se despediu. – Daqui seguirás sozinho, meu jovem amigo – disse o velho timorense. – O hotel é aquele ali adiante. Por precaução, é bom que não nos vejam juntos. – Foi uma honra combater ao seu lado, comandante Isidoro. Obrigado por tudo – falei, estendendo-lhe a mão. – Não há de que, meu rapaz. Provaste ser um combatente de valor. Vá com Deus. Os sinos da Igreja Matriz de Díli dobravam solenes à distância, anunciando a missa das seis horas quando avancei pelo saguão do Hotel Lorosae. Sentia-me um trapo humano. Sono, fome, tensão haviam me desgastado a tal ponto que não pensava em outra coisa senão em convencer Meiko e Clarence a não embarcarem imediatamente rumo ao Japão. Necessitava de pelo menos mais um dia na capital timorense, para recuperar as baterias.
  • 22. A magnífica manhã do dia seguinte veio nos saudar, três jovens licantropos estrangeiros em uma praia na belíssima Ilha de Ataúro, localizada a cerca de trinta quilômetros de Díli. A natureza ali, quase intocada, com suas águas calmas e translúcidas, peixes coloridos, revoadas de pássaros marinhos das mais diversas espécies e um povo simples e hospitaleiro, parecia de alguma forma agradecer por termos atuado providencialmente em seu socorro quando mais precisava, livrando-a dos tentáculos traiçoeiros que estiveram a ameaçá-la. ~*~ Contato com o autor: chicopascoal.pinto@gmail.com http://microrelatosdocheeko.blogspot.com
  • 23. CANAVIAIS DE MORTE (Douglas Eralldo) A criatura arrastava vagarosamente os pés carcomidos na estrada de terra, fazendo uma poeira fina soltar-se do chão. Do rombo em sua barriga desprendia-se um cordão de vísceras que se enrolava pelas pernas e caía ao chão como um pequeno rabo que, arrastado, desenhava na terra uma linha tortuosa. Sem qualquer coisa que fizesse sentido, a criatura grunhiu chorosamente, como se fosse um lamento fúnebre por seu trágico destino. Seus pares que a acompanhavam na marcha repetiram o grunhido. Ansiavam todos por carne e água. Mas à frente tinham apenas o canavial e uma estrada desértica e solitária. Quando a criatura que ia mais a frente, tomada por seu instinto selvagem de uma fera próxima à morte, parou a caminhada intencionando comer das carnes dos outros caminhantes, o farfalhar vindo do meio do canavial distraiu-a de seus planos. E o que já era macabro ficou ainda pior. Do meio da plantação, um gigantesco lobo de cor marrom saltou contra o pequeno grupo. No salto, feito em uma parábola perfeita, com um único golpe violento, a cabeça de uma das criaturas voou como uma bola acertada por um taco de baseball. Com agilidade surpreendente, ficando sobre duas patas, o lobo deu um giro em trezentos e sessenta graus, e enfiando uma de suas garras no peito de outra criatura, arrancou-lhe o coração febril, cujo pulsar era ritmado e lento. Atordoadas pelo ataque surpresa, as criaturas que até dias atrás eram homens e mulheres trabalhadores do canavial, giravam em círculos, tontas pelo que acontecia. E sem qualquer remorso, o lobo, cujos olhos eram estranhos e temerários, foi uma a uma retirando-as daquele meio termo de sobrevivência, libertando as criaturas da febre mortal que os atingira. Em menos de dois minutos de ataque, o lobo estava no centro de um círculo de corpos decompostos e mutilados. Não havia restado um único zumbi. Mas para não deixar vestígios, ainda como lobo, a fera arrastou os restos mortais dos inimigos para um buraco, que logo depois foi entupido com
  • 24. terra. Mesmo com fome, por via das dúvidas preferiu não comer nenhuma das pessoas zumbificadas. Tinha medo de transformar-se num homem-lobo-zumbi. Eliminado os vestígios dos corpos, o homem-lobo regressou novamente à sua forma humana. Seus constantes problemas de memória deram-lhe o apelido de Jay Bourne. Era um rapaz viril, de porte atlético, rosto quadrado e olhos penetrantes. Os cabelos cortados no estilo militar conferiam a ele um aspecto de força e violência, que quando humano não se confirmava, porém quando licantropo, era um espelho de sua ira. Com a missão ainda pela metade, Jay Bourne seguiu solitário e nu pelo caminho de terra. A sua volta apenas o verde intenso do canavial que tomava grandes proporções do terreno ondulado. E, muito distante no horizonte, o cintilar brilhante do aço da pequena usina. Enquanto caminhava na forma humana, o jovem lembrava-se de como encontrara a Green Death. Sua cabeça parecia querer explodir a cada despertar de suas noites de lobo, das manhãs nas quais acordava com o gosto agridoce do sangue em seus lábios, e com o corpo dolorido pela metamorfose. Foi buscando por respostas para sua identidade como lobisomem que o rapaz, cujo nome sempre esquecia, acabou por ser encontrado pela Green Death através da internet, pelo histórico de pesquisas que fazia na grande rede. Desde então encontrou um objetivo para sua vida, quando soube que não era lobisomem, mas sim um homem-lobo, e principalmente, quando foi alistado para salvar o planeta de seus piores inquilinos: os humanos. Foi na Green Death que recebeu treinamento, e o codinome Jay Bourne. E também aquela primeira missão que serviria para comprovar seu valor perante a organização ecoterrorista. Na região sudeste do Brasil, a organização havia sido informada de que usineiros estavam testando perigosos produtos químicos em seus canaviais, poluindo as águas e o ar. Em alguns dos relatos, os estranhos elementos estavam provocando uma febre mortal nos trabalhadores da região, colocandoos num estado de inconsciência, e ainda pior, degenerando células e tecidos. E Jay Bourne podia ver de perto o tamanho do mal que o veneno poderia significar para o planeta. Não teria pena alguma de matar os usineiros e seus capangas.
  • 25. A menos de um quilômetro da usina construída no meio do nada, e protegida por uma alta cerca de tela, Jay Bourne retornou a sua forma de homem-lobo. Iria atacar com rapidez e força. No entanto, os recentes problemas com zumbis e com trabalhadores sem terra tinham feito os usineiros tomarem medidas de prevenção a ataques. Havia homens armados para todos os lados, e nem bem o homem-lobo entrou no campo de visão dos seguranças, uma saraivada de balas tomou o ambiente. Jay Bourne esquivava-se de cada um dos tiros, mas não raro ouvia o zumbir das balas passar raspando por sua pelagem. Com as garras afiadas e cheio de ira, rasgou a tela e penetrou o perímetro de segurança. Um dos capangas tinha-o na mira, porém Bourne deu uma cambalhota lupina surpreendendo seu algoz, e num só golpe rasgou a garganta do homem, de onde emanou um pequeno chafariz carmesim. Por um instante Jay Bourne pôde contar com a incredulidade dos homens ao ver o lobo de mais de dois metros e meio de envergadura. Eles esperavam por zumbis zonzos, ou algum sem-terra de foice e facão. Jamais um lobo. O homem-lobo aproveitou o pequeno instante de pânico para rasgar meia dúzia de barrigas, e decepar outra dúzia de cabeças. Não tardou para as balas retornarem o ataque, mas contando com a péssima pontaria dos capangas, um a um foi tombando, deixando para trás um rastro de carne, ossos e sangue. A fúria de Jay Bourne só fazia aumentar, e quando entrou no pequeno escritório, encontrou os dois usineiros, com os olhos arregalados pelo terror que presenciavam. Um deles, o mais magro, empunhava um revólver, no entanto o tremor em suas mãos não o permitiria atirar. – Se quiser pode ficar com tudo isto – disse o outro usineiro mostrando uma pilha de dólares sobre a mesa. – Apenas nos deixe viver – falou gaguejando, sabendo que a fera da qual projetava-se a assustadora sombra podia compreendê-lo. Mas Jay Bourne não deu mais tempo para súplicas. Rasgou o pescoço dos dois num único golpe. Faminto depois de tanta ação, como vingança saboreou cada pedaço de carne dos dois usineiros, deixando ao fim apenas os ossos brancos como marfim. A tarde caía sobre a usina, e os abutres se aproximavam atraídos pelo cheiro de sangue e carne morta.
  • 26. Jay Bourne retornou á forma humana depois de se certificar que não restara mais ninguém vivo em todo o complexo industrial no meio do canavial. Dos mortos, roubou uma calça, e um telefone celular. No aparelho discou um número de nove dígitos. – Pode mandar a equipe de limpeza – disse ele ao telefone. – Há muitas pistas a serem apagadas. Sentando-se num tronco caído no pátio, Jay Bourne apenas olhava os corpos espalhados. De um deles havia roubado também um pacote de fumo e papel. Enrolou o artefato e tragou a fumaça. Era sua ode particular por enfim ser um soldado da organização ecoterrorista. O Sol punha-se alaranjado no horizonte, e a fumaça do tabaco dançava no ar, enquanto Jay Bourne aguardava o restante da equipe de limpeza da Green Death. Seus pensamentos formavam um turbilhão de sentimentos, sentindo na boca o gosto amargo da carne, e na consciência dezenas de ponderações a respeito do que fizera naquele dia. As últimas horas tinham-lhe rendido muitas novidades. ~*~ Contato com o autor: douglaseralldo@gmail.com http://www.douglaseralldo.com
  • 27. YÄ FERAS (Leon Nunes) I. A Visita A intenção de Teo, membro da Green Death Brasil, era de preparar um relatório completo acerca das ocorrências pós-embate que resultou na carnificina ocorrida no final de 2009, alguns meses depois do ocorrido. Fora sozinho tanto à Amazônia, onde teve contato com informações mais relevantes, quando à Santa Maria Psiquiatria de modo a completar os dados faltantes. Não era sua responsabilidade, todavia, minuciar os acontecimentos; cria que com o relatório completo, uma vez obtido êxito, ocuparia uma posição mais privilegiada na organização. Era mês de fevereiro, época de carnaval em 2010. A loucura, a confusão e a balbúrdia carnavalesca passavam longe daquelas paredes, o que contribuía para o êxito de sua tarefa, seus objetivos. Teo adentrou a sala do médico psiquiatra do S.M.P. com o crachá no peito escrito “visitante”. Fábio recebeu-o com certa dose de entusiasmo e desconfiança, por se tratar de um suposto colega de profissão mais novo e também pelo assunto a ser discutido: o paciente do Quarto 239. Sem muitas delongas, depois de uma rápida apresentação, Teo incontinenti pediu autorização para falar com o paciente. Fábio, por seu turno, apesar de não ter relutado à ideia, fez questão de explicar certas coisas antes de permitir a entrada do colega; mal sabia que o verdadeiro motivo era outro, cuja necessidade e urgência daquela simples visita não visavam estudos acadêmicos. – Ele balbucia coisas como “fera” – começou a explicar Fábio, um olhar professoral. – Às vezes “dentes pontiagudos salivantes” – informou, enquanto anotava o número do quarto em um papel. – “E.”, como o chamaremos para preservar sua identidade, chegou em estado de choque, devo dizer. Coisas desconexas – deu de ombros. – Também sou um médico, embora residente. Minha área é a psiquiatria, como bem sabe – disse Teo, velhaco. – Quando ouvi falar deste caso, sobre eventos envolvendo licantropia, achei um campo muito rico para estudos. Pensei que o fato de sermos colegas de profissão pudesse abrir
  • 28. algumas portas. Enfim. Parece que ocorreu algo violento na Amazônia. Digamos uma carnagem – disse, arqueando o sobrolho. – Foi encontrado este livro com “E.” – falou Fábio, mostrando algumas fotos tiradas no dia da chegada do paciente ao S.M.P. Estavam dentro de um envelope pardo, que por sua vez repousava intocável dentro da última gaveta da mesa. – E o que significa? – perguntou Teo. – “E.” não quis dizer – respondeu Fábio – Não exatamente. Não sei explicar, mas captei se tratar de algo mais impalpável – falou, com um pontode-interrogação na face. – Não é este o termo exato. Bem, de súbito atinei o nome: Necronomicon – deu de ombros. – Não faço ideia do significado, ignoro; também nada mais sei do caso. – Eu me viro lá dentro. O resto eu faço sozinho. A pesquisa, digo. Fábio conduziu Teo direto ao 239. Diante da porta com uma pequena janela retangular foi possível ver o paciente de costas. Fábio fez questão de frisar que, se precisasse de ajuda, bastava chamar. Viria rápido porque ficaria próximo dali, no corredor. Teo não achava que precisaria de ajuda, saberia lidar com a situação a seu talante. Assim que ficou sozinho com “E.”, o barulho do ferrolho indicou que a porta fora novamente fechada. O relato seria certamente algo que nunca se ouviu no mundo lupino. II. REVELAÇÕES – Um mês. Aqueles dentes pontiagudos salivantes – falou “E.”, quebrando seu longo silêncio. – Os horrores. Horrores duplos, eu digo. A Amazônia. Naquele sítio arqueológico. Na Amazônia. Descobrimos o que aquela floresta tem... um portal. Para os Grandes Antigos! Eles viriam; passariam. Nós os invocaríamos. Foi Sandro quem descobriu: o portal na Amazônia. Poderes vindos de antes da juventude da Terra. Antes da própria Terra; do Cosmos como ainda não conhecemos. YÄ! YÄ. Clamaríamos o retorno dos Old Ones; Nyarlathotep o mais rumorejante... Eu já falei sobre isso? Sobre ser Nyarlathotep o mais rumorejante? Onde estou? É Teo, não?
  • 29. Eu sei. Queríamos o retorno de Cthulhu. Estávamos preparados para invocálos. Eu temi pelo resultado; fui o único. Sandro me convenceu, co’a ajuda de Miguel, convidamos Joca também. Ele era louco por natureza. He-He. Louco. Louco. Sandro, Miguel, Joca, Fabrício. Edgar, o temeroso. Eu temi. Eu. Temi. Pelas nossas vidas; pela minha vida, minha sanidade! Foi um alívio ter saído daquele lugar – falou “E.” batendo a mão na cabeça. – Alívio. Ter vindo para cá. Mas ‘inda escuto rumores. Aqui. Na cabeça. É Nyarlathotep. Foi apenas um contratempo. Oras! Apenas. Eu não tenho medo como você pode imaginar. Você sente. Eu sinto. Você escuta? Eu escuto. “Preparamos ainda em São Paulo nossa bagagem. Carregávamos algumas peças de roupas para o caso de rasgarmos a que vestíamos. Dentro, levávamos o livro. O Necronomicon. Que espécie de medo você acha que senti? Pergunta tola. Pelo que vi, a ansiedade pelo que iria encontrar. Confusão que não se apaga. Fomos dar no Aeroporto de Santarém, acho. Dali, estradas ruinosas, esburacadas, precárias. Até o local determinado por Sandro. Vi nele obstinação. Fui a marca do receio naquele grupo, do medo. Depois do que ocorreu perdi completamente a noção da realidade; entrei em outra. Queria ter esquecido. Queria... Como queria. Mas cada dia que passa, cada hora, minuto, segundo... Tudo! Eu lembro. Eu quero esquecer. Eu lembro. Só o que apagou de minha memória foi como cheguei aqui. Quanto ao resto... Eu já falei? Horror. Fúria. Dentes. “Havíamos transposto o Rio Amazonas num barco alugado; quase nem cabíamos dentro dele. Foi o que deu o dinheiro. Não lembro a cidade em si; quando chegamos ao local, quilômetros de uma área de extração ilegal de madeira, preparamos o terreno, Joca nos guiava com a bússola. Cobrimos a pedra com a alfombra e começamos nosso ritual. YÄ CTHULHU! Empunhei o Necronomicon, pronto para abri-lo. A esta hora a voz de Nyarlathotep vinha atravessando a mata fechada em derredor. O céu quis escurecer mais; ainda... ainda era dia? O tempo era estranho. Quanto tempo se passou? Não sei. Minutos? Não, eu não sei. Horas? Eu apenas estava lá para despertar. Queria ver Cthulhu passar pelo portal... O que vi foi coisa feia. Coisa de outro mundo. Dos filmes, dos livros. De um lugar da imaginação. AH! Eu gritei... gritei. Ouvi os estalos, vi a maldita metamorfose. Fera. Os pelos. As feras.
  • 30. “Eu não sei nem fiz menção de perguntar a Sandro como ele soube daquele lugar, da pedra, um monólito inteiriço em meio à mata. Talvez a marca que ele tinha, um queloide bastante grosso na palma da mão, explique. Ele sempre disse que o sangue é o elo; eu nunca entendi. É Teo, não? Você sabe do que estou falando? Sabe de Cthulhu? Dos Grandes Antigos? Da Amazônia? Deste último com certeza. Sabe. Não sei como, mas sabe. Estávamos lá para abrir o portal e achei ter visto a cauda de Dagon no Amazonas. Parecia um sinal. De repente a aproximação dos homens-peixes... Nunca entendi direito a relação. Não. Foi apenas impressão; o livro ainda estava fechado. Mas na mata eles já estavam prontos. As Crias respondentes. YÄ! Era aquilo e nada mais. Deveria, pelo menos. Sandro estava certo que o portal se abriria. No céu ou no altar, não importava. Ele mesmo se doaria aos esfaimados Seres que haveriam de ser despertos. O sono. A letargia daria lugar a uma nova realidade, porque foi só com o sono Deles que nós, humanos, sobrevivemos e proliferamos e vivemos. Daríamos de volta o que era Deles por direito; esta era a nossa ideia. A ligação. O Necronomicon era a chave; nele estava o encantamento, o chamamento cósmico do não-tempo. Me recuso a responder qual era o conteúdo do livro. Não confio. Não. A tarefa era despertar... E esperar. Pelo resultado. E baseado nos rumores e cicios de Nyarlathotep, seria imediato. Seria. Dentes. Dentes pontiagudos salivantes. “Sandro começou, diante da pedra, o ritual. Havia pousado uma faca que trouxera sem que soubéssemos; pelo menos eu não sabia. Fui o primeiro a escutar, mais ao fundo e quase imperceptível em relação ao som vindo de Nyarlathotep, estalos na mata. Ele recitou. YÄ CTHULHU FTAGHN. Do céu o guincho de Yog-Sothot escutamos... Eu era o único a continuar a ouvir os estalidos anômalos na mata. Sem chances de serem os Mi-Go ou os TchoTcho. Sandro me admoestou. Me havia dispersado um pouco com os barulhos e acabei esquecendo de fazer minha parte. Vamos. Disse ele. Vamos. Miguel. Joca. Fabrício. Fizeram o mesmo, só que com o olhar. Eu abri o Necronomicon, as páginas... As páginas já estavam marcadas. O sangue. Eu falei que o sangue é o elo? Pois então. HE. HE. O elo. O elo. Joca foi quem pegou a faca. Eu vi nos olhos de Miguel uma ponta de desespero. “Sandro sentou na pedra coberta pela alfombra. Acho que não falei sobre o cheiro do chão úmido e apodrecido que ainda sentíamos... Mata
  • 31. fechada... Muito calor... Não sei exatamente como tudo aconteceu, porque, afora o fato de eu ter sido o único a escutar algo anômalo na mata, foi tudo muito... Rápido. Rápido! Mas foi possível ver perfeitamente, pedaço por pedaço, sangue por sangue, o que ocorreu. Sandro vagarosamente deitou. Eu recitava palavras profanas e Miguel posicionava a faca sobre o peito do desmiolado Sandro. Vez ou outra ele a balançava levemente, quase solta na mão. Quando cheguei na parte do chamamento, os olhos de Miguel reviraram e suas mãos cravaram a faca com força, movidas por uma força que não se explica. Incontinenti Joca e Fabrício, não mais eles, vez ou outra gemiam Yä, esclera dos olhos também a mostra. Aquele era nosso objetivo a despeito de meus medos internos. “Eu senti uma agitação cada vez maior dentro daquela mata. Fui o único que não entrou em transe porque não quis o sinal impresso em minha pele. De todos eles, menos em mim – pôs a mão no peito ao falar –, vi o sinal da Elderich. Brilhoso. Ofuscante. E dos céus, além das vozes e cicios e sussurros, a presença maior dos Grandes Antigos. Aquela era a apoteose de Cthulhu! A Amazônia nunca vira coisa igual! De toda forma algo aconteceu que também a Amazônia nunca viu. Errado? Não importa. Aconteceu e somente eu vi. Vi talvez porque em meus olhos refletiam meu medo interior. Deveria ter aceitado o sinal, afinal. “Sandro mal conseguia respirar, estava praticamente morto quando o ataque ocorreu. Aqueles ruídos na mata, eu sabia que algo estava errado. Somente eu escutei os ruídos. Eles aumentavam de intensidade. Os sons, os estalos, o barulho da recomposição corpórea. Eu vi. Ouvi. Como se ossos fossem esmagados; ou melhor, quebrados sem nem mesmo ficarem fora do corpo. Não era os Mi-Go. Os Tcho-Tcho. Eu sabia que não. O ataque foi repentino. Aquelas feras. Dentes pontiagudos salivantes. Os corpos; os pelos dos corpos! Eram malditos cachorros grandes. Focinhos avantajados, dentes pontiagudos. Dois deles, pelagem cinza. Eu... eu me acaçapei a um canto enquanto... O barulho dos ossos triturados. De meus amigos, os ossos. O ataque foi cruel. O primeiro abocanhou Miguel, diante da pedra que Sandro repousava morto; arrancou o braço dele. O segundo pulou em cima de Joca. Pulou. Eu disse que pulou. Pulou. Com uma força animal – ‘E.’ se encolheu um pouco mais. – Dentes salivantes, pontiagudos... E os pedaços dos corpos de
  • 32. Miguel e Joca no meio daqueles dentes pontiagudos e salivantes. Muito sangue. Vi que eles estavam entretidos demais co’a caça. Me aproximei da pedra usada como altar. Segurei firme o Necronomicon. Perdido, voltei à minha posição de antes. Eles, mortos. Aqueles malditos lobisomens. O ataque. Muito sangue; aquelas garras que prendiam os corpos que devoravam com uma fúria inumana. A própria fúria, não sei se irracional, de bestas das selvas brasileiras. Animais que faziam aquilo por prazer. Eu vi. Nos olhos. Deles. Os brilhos daqueles olhos lupinos. Possuídos por irracionalidade dançavam uma dança macabra. O ataque em si, as mordidas, a saliva. As bocas fedorentas. Os sons dos corpos sendo devorados. Os barulhos daquelas bestas sobrepujando os do rumorejante Nyarla. Maiores em meus ouvidos do que os vindos do céu. Aquele banquete. “Eu... não sei. Talvez não me viram. Não. Me viram sim. Em minha cabeça um turbilhão de coisas passava. Era tanto medo que já não sabia do que mais eu tinha medo. As bestas com pelos; as garras. Quando todos haviam sido mortos... Sandro, mesmo morto, foi igualmente devorado; experimentei o que talvez tirou de mim o pouco de sanidade. Acho que já estava sem, por isso os escutei em minha cabeça. Quando todos haviam sido mortos por aqueles lobisomens, ouvi deles um uivo que penetrou meu coração e ficou gravado no fundo de minha alma para meu cérebro nunca mais esquecer. Que eles existem, os lobisomens. Os lobisomens, eles existem; acredite. Um uivo gélido. Penetrou fundo em meu coração e na noite emprestada que se havia formado para o retorno dos Grandes Antigos. Não sei. Dizer que espécie de uivo, não sei. Se ouvi ou se estava em minha cabeça fora do juízo tido como normal, nunca saberei. Apenas fiquei acaçapado. Dentes pontiagudos salivantes. Dentes... feras. Lobisomens! E o ataque. Como aqui cheguei? Dentes pontiagudos salivantes. Eu não quero mais ver – ‘E.’ disse, balançando um pouco o corpo acaçapado no canto, imitando aquela noite. – Não quero. “Isso foi tudo. Do ataque, pelo menos. Feio; muito feio. Os lobisomens, feios. Um deles se metamorfoseou em humano. Eu o olhei sem querer olhar. Aquele que devorara Joca. Não sei mais de Fabrício, talvez foi devorado igual aos outros... Eu não vi, não quis ver. Aquele que devorou Joca. Uma... mulher. Nua. Loura, forte. A mulher-lobo metamorfoseada olhou para mim. Olhos azuis
  • 33. reluzentes, aqueles olhos profundos reluzentes. Ela... ela me disse. Me falou! Sem voz. Em minha cabeça, sequer moveu os lábios sujos de sangue. Corpo sujo do sangue de meus amigos. Aqui! Aqui! Em minha cabeça. A voz dela, ainda em minha cabeça. Não vamos parar. Até o último de vocês. Não vamos. Uma ameaça em minha cabeça; uma voz doce, mas cruel. Na sequência ela voltou ao corpo lupino; os pelos. As garras. Você não acredita, não? Fera. Dentes pontiagudos salivantes. “Mais nada. Assim como chegaram, foram. Hipnotizados. Os dois. Lobisomens; na forma. Não lembro – ‘E.’, ofegante, quase indo às lágrimas pela lembrança. – Acho que foi porque eu carregava o Necronomicon... Algum encantamento... Me salvou... Não sei. Como cheguei aqui, não lembro. Eu senti quando você chegou. Quem... Agora entendo... Quem? Você. Agora eu sei... Você é um deles! A fera! As feras! Saia daqui! O ataque. Dentes pontiagudos salivantes. Muito sangue. Sai. Sai! Eu sei o que você é! Não abriu a boca um só instante para falar. Sai lobisomem! – ‘E.’, agressivo, gritou, cuspindo saliva; uma careta de horror no rosto. – Sai. Sai. SAI! – ‘E.’ continuou aos gritos, encolhendo-se mais, cabeça encaixada nos joelhos. – Fera. Fera. Presas. Os dentes. Dentes pontiagudos salivantes e sangue. Sai! III. REPORTE À GREEN DEATH Tudo leva a crer que a testemunha de fato encontrou nossos agentes Berserkr e Fênix. O único sobrevivente sustenta que chegaram à Amazônia para a prática de rituais, a princípio nada que fosse ofensivo à região senão a eles próprios. Nossos colegas da Green Death acabaram por confundir aquele grupo de jovens suicidas aos desflorestadores na prática ilegal de extração de madeira. Talvez o fato de terem-no deixado vivo esteja ligado ao nefasto livro, o tal Necronomicon. Não é possível comprovar, todavia – do livro apenas uma foto foi possível ver, o artefato sumiu depois do ocorrido. Não é sabido exatamente se foi ou não usado algum encantamento; convém, apesar de algo menor, considerarmos as possibilidades sem, contudo, as contestar. Tal reporte comprova, sem deixar dúvidas, que o grupo da testemunhasobrevivente não foi o responsável pela morte de Berserkr tampouco pelo estrago da missão passada. E a despeito desta confusão, nada atravancará
  • 34. nosso caminho. Nenhum empecilho cessará a continuação de nossas atividades. O ideal não feneceu. Nossa batalha continua. ~*~ Contato com o autor: leonnunesescritor@gmail.com http://leonnunesescritor.blogspot.com
  • 35. BRIGA DE CACHORRO GRANDE (Alastair Dias) O homem encarou a bela jovem que entrava na lanchonete. Era capaz de detectar aquele odor peculiar dos lobos por baixo do perfume que ela usava; uma mistura de vida e de artificialidade, de um espírito selvagem preso no corpo de uma mulher sedutora e independente. Ela não era como os outros, abençoados com o dom de mudar de forma, de ser uma criatura tão perfeita que poderia decidir sobre a vida dos homens que cruzassem seu caminho agitado. O cheiro dela era de impureza, de hormônios tão humanos quanto os daquelas pessoas que estavam ali ao redor, tão frágeis e fúteis quando o mais insignificante dos seres rastejantes. Captados pelo raro espécime, traços psíquicos fortes, alarmados, frases que não eram de sua mente, apesar de a garota se esforçar para contê-los em sua mente. Ele sorriu, desviando o olhar para a rua movimentada lá fora, arranhando de leve a mesa de madeira, escutando os passos da ômega a se aproximar. Era capaz de detectar as batidas cardíacas aceleradas; ela o temia tal como uma presa teme um caçador, mas havia certa confiança, algo ímpar até aquele momento para sua experiência com aquela raça orgulhosa de sua natureza. Algo lhe proporcionava segurança, e era por isso que estava ali. O primeiro encontro com Cassandra foi uma semana antes, durante um encontro entre ele e o Green Death. Se não fosse o pedido dela, aqueles três licantropos estariam mortos por ousar se meter em sua área de atuação. Um brilho em seus olhos azulados o deteve, e aquela súplica mental foi tão intensa que o coração do homem-cão se condoeu de alguma forma; farejando-a antes de partir, dedicou algum tempo a observá-la. Não tardou para que ele quisesse conversar com ela. “Encontre-me na lanchonete perto de um canil, daqui a dois dias!”, pediu ele, ao passar pela ômega numa manhã. “Vá sozinha ou matarei você e quem mais a acompanhar!” O convite foi aceito. – Sente-se, por favor! – pediu o homem, cuja cabeça careca reluzia pela luz da lâmpada do estabelecimento, fitando-a com gentileza. – Juro que não mordo moças lindas.
  • 36. Seu sorriso foi estranho e assustador, mas Cassandra não identificava qualquer sinal de segundas intenções. Hesitou um pouco, mas atendeu ao pedido. – Por que implorou para que eu não matasse seus companheiros, que me atacaram naquela rinha? – surpreendeu-a, pondo as mãos grandes perto das dela, que as recolheram para junto de seu busto. – Era meu direito natural revidar e me vingar, contudo você me impediu. Por quê? – Eu o impedi? – Sim. Eu não pude atacá-los, e tive de sair correndo. Você me impediu de fazer aquilo que venho fazendo há anos com quem se mete em meu caminho. A jovem ajeitou os fios negros que caíam sobre seus olhos, surpresa por aquela revelação tão brusca vinda de uma criatura desconhecida e perigosa. Os relatórios dos encontros com aquele monstro que se denominava Licurgo eram todos repletos de sangue e crueldade; mortes de homens-lobo ocorriam quase sempre, e quem escapava era mutilado sem piedade, servindo de aviso sobre a força descomunal e descontrolada do único espécime de uma nova raça agressiva e indomável, que nutria ódio tanto pelos humanos quanto por aqueles que eram seus semelhantes. – Eu apenas queria que não os matasse... só isso – respondeu ela, com a voz suave. – Muitos clamaram para viver, e eu os abati sem pestanejar. Não me envergonho em ter matado mulheres mais poderosas do que você, as quais eu nunca estuprei, ao contrário do que pensam os da sua espécie. Não sou um monstro. Você, entretanto, salvou todos eles. Consegue entender o motivo de eu a querer hoje aqui? Cassandra balançou a cabeça em negativa, sem compreender aquela conversa. – Sempre achei os lobisomens tão parecidos com os homens que me distanciei justamente de quem era tão próximo a mim – começou ele, com seriedade. – Matei muitos de vocês sem perguntar seus motivos, suas causas; eu era apenas levado pelo desejo de provar ser o melhor, ser acima de tudo aquilo que eu odiava, de pertencer à raça humana. Compreende?
  • 37. – Acho que sim – respondeu a garota, buscando localizar nas ondas mentais do interlocutor sinais de verdade ou de mentira. – Ensine-me sobre vocês, sobre quem são e como surgiram. Quero entender quem eu sou e o motivo de ser assim, uma fera meio homem, meio cão. Por favor, me ajude! Havia sinceridade naqueles olhos castanho-avermelhados. Nem lembrava a besta tão robusta daquela madrugada que quase assassinou o seu irmão; estava ali um homem confuso quanto ao belo dom dado pela vida, uma dádiva que o tornava diferente, e ainda assim impuro. Era um cão assustado entre homens e lobos, contudo disposto a se abrigar junto aos seus parentes puros. – Como posso ter certeza de que não está me enganando? – questionou ela, olhando-o com desconfiança. – Não pode – respondeu Licurgo, levantando-se com firmeza –, mas juro que não a matarei ou a seus companheiros num próximo encontro, pois é certo de que nos veremos novamente. Ele revirou o bolso da calça jeans e retirou algumas notas amassadas, pondo-as sobre a mesa. – Obrigado por ter vindo, Cassandra – concluiu, antes de se afastar. “Foi um prazer imenso conhecê-la.” A ômega ficou surpresa com aquela atitude. E sabia que havia perdido uma oportunidade única e irrecuperável. Abaixando a cabeça, pensou nas longas explicações que teria de dar aos seus superiores. *** “À esquerda, cinco homens drogados”, avisou Cassandra, fazendo o irmão cessar os passos largos e silenciosos. O grande homem-lobo de pelos castanhos e grossos moveu-se com sutileza pela sombra, seguindo a direção indicada pela irmã, cujo poder telepático era além do normal entre os ômegas, conseguindo ser precisa até em mapear quantos humanos estavam ali. Não à toa, as missões das quais participava eram aplaudidas por aqueles holandeses burocratas, e tal habilidade preveniu o grupo quanto ao ataque do homem-cão meses antes. Ele andou sobre as quatro patas, atento ao ambiente, afinal a jovem não poderia prever ações, apenas alertar. Esgueirou-se com agilidade, enxergando
  • 38. os alvos mencionados pela companheira; detectou os odores de tabaco, cocaína, maconha, urina e suor em quantidades tão altas que causavam repulsa. Aguardou o momento oportuno, saltando sobre os dois capangas que estavam mais perto da moita alta em que se escondia; suas garras foram precisas na degolação, e um movimento para frente estripou o terceiro, que tombou de joelhos tentando conter as vísceras de escapar pelos cortes que iam de um lado a outro do corpo, horizontalmente; o quarto foi abocanhado pela cabeça, que explodiu em uma massa sangrenta de ossos quebrados e miolos; e o último teve o pescoço torcido como se fosse uma galinha que serviria de almoço numa data festiva. “Oriente os demais!”, ordenou o líder da missão para a garota dentro de um jipe, quilômetros antes do local, largando os corpos mutilados e subindo a parede adjacente num pulo fenomenal. “Certo”, respondeu Cassandra, antes de passar as coordenadas aos outros dois agentes que seguiam para a rinha em direções opostas. Ela estava explicando para a mulher-lobo como chegar a um ponto em que um dos capangas transava com uma viciada que vendia seu corpo em troca de drogas, quando um rastro forte e agitado a fez olhar instintivamente em volta. Nenhum sinal de movimentação. “Ele está aqui”, informou imediatamente, direcionando seus pensamentos aos três companheiros em campo. “Tomem cuidado!” Era evidente que a criatura estaria em uma rinha onde cães de todas as raças se enfrentavam para o divertimento das pessoas sádicas que tinham muito dinheiro. Aquela fazenda era bem situada, distante da cidade, longe de olhos indesejados; o proprietário tinha muitos amigos na prefeitura e na polícia, o que permitia fazer o que bem entendesse, desde tráfico de drogas a ponto de prostituição, de rinha de animais a comércio clandestino de espécies raras – muitas vindas de outros países – para colecionadores e caçadores que pudessem pagar. Ali era um terreno que interessava tanto ao Green Death quanto a Licurgo. Os sinais mentais dos quatro em ação eram fortes, entretanto somente três estavam amedrontados pela presença do intruso. Com concentração, Cassandra conseguiu contatar o homem-cão, questionando suas intenções.
  • 39. “Jurei não matar você e seus companheiros”, retrucou ele, enquanto escalava com rapidez uma árvore alta e farejava melhor o ar, localizando os alfas ativos. “Costumo cumprir meus juramentos.” Seus olhos ferozes vasculharam toda a área, fixando-se onde as luzes eram constantes. Latidos, uivos, rosnados e a gritaria bestial de seres humanos eram ouvidos. Emitiu um rosnado baixo, saltando para o chão, caindo de uma altura de vinte metros apenas sobre as patas traseiras musculosas. O sangue ardia em suas veias. “Nada de ferrar tudo!”, orientou a ômega, interpretando as ondas psíquicas que ele espalhava sem o mínimo controle. “Nossa existência deve ser mantida em segredo.” – Eu sei – resmungou Licurgo, ao mesmo tempo em que enviava sua resposta. – Eu sei. Correndo com fúria, surgiu entre três homens bêbados que gargalhavam de forma patética enquanto tentavam urinar. Sua bocarra arrancou o braço de um deles, que urrou de dor, sob os olhares surpresos dos outros; ainda mastigando aquele pedaço generoso, agarrou os dois pelos pescoços, cravando as garras negras e afiadas sem misericórdia, estalando os ossos e os encarando com um prazer sádico. Estraçalhou suas gargantas, largando-os apenas quando engoliu uma porção satisfatória de carne. O som da música eletrônica invadiu seus ouvidos quando a ira diminuiu. Pondo-se de quatro, moveu-se cautelosamente rumo para o casebre perto do rio; ali ficava todo o equipamento que produzia a eletricidade da fazenda. Valeu a pena aquela visita investigativa durante o dia sob o pretexto de ser uma pessoa em busca de trabalho, embora as súplicas dos animais presos quase o fizessem atacar logo e pôr fim a tudo aquilo. “Onde estão seus amigos?”, perguntou para a ômega, conforme se dirigia para o local em que estava o gerador de energia. “Eu não consigo detectar os pensamentos deles.” “Não confio ainda em você.” “Ainda acha que quero matá-los?” “Você já tentou isso uma vez.” “E tentaria de novo, quando vocês chegaram meia hora atrás, num jipe, e minha mente estava bloqueada. Eu estava sobre um galho, observando. Vi
  • 40. quando aquele sujeito magro se insinuou para você e sei o que pensou quando identificou os pensamentos e sentiu os hormônios dele. Eu poderia tê-los matado facilmente em qualquer momento, mas preferi não fazer isso.” Cassandra arfou, pega de sobressalto. “Então, ainda acha que quero matá-los como farei com cada humano que encontrar esta noite?”, indagou ele, enquanto socava o peito de um homem armado com uma carabina, afundando seus ossos torácicos. Tomando a arma da vítima, golpeou na cabeça um que saiu do casebre que vigiava, nocauteando-o. Entrando na casa do gerador, desviou de um disparo com destreza e arremessou uma ferramenta no meio da testa do atirador, que caiu com o objeto transpassado em seu crânio, estremecendo. Ele começou a destruir a fiação, desligando toda a energia elétrica. Sem perder tempo, saiu dali, seguindo em sua ânsia por sangue. O local em que ocorriam as lutas de cães era no outro extremo, num casarão reformado especialmente para aquela finalidade. Era um espaço amplo, comportava até mil pessoas ao redor de uma rinha circular cercada por grades. No piso inferior, como um calabouço, estavam os animais e os treinadores; seis portinholas e uma porta maior davam acesso ao ponto em que as pobres criaturas se enfrentavam, sendo que as primeiras eram exclusivas aos combatentes e a outra ao responsável em retirar o derrotado, que em geral era morto e incinerado. Os três agentes do Green Death receberam a mensagem da ômega com desconfiança, pois era muito suspeito alguém com um histórico de assassino de homens-lobo agora querer ajudar. Trocaram breves informações entre si, tomando cuidado para que a criatura não soubesse sobre o que conversavam. Agiriam juntos, preparados para qualquer trapaça que pudesse acontecer. “Ele está indo para a rinha”, avisou Cassandra, assim que o homem-cão reportou seus passos. “O local está sem eletricidade, o que irá nos favorecer por um tempo.” Licurgo rosnou e uivou como um cão raivoso, atiçando os cachorros cativos, que o imitaram. Foi uma algazarra ensurdecedora e medonha, que fez os frequentadores se entreolharem com hesitação. Alguns disparos bastaram para todos correrem para fora, apavorados.
  • 41. De um lado a outro, como anjos da morte, as feras espalhavam corpos e sangue, desmembravam e estripavam, escapando dos tiros como se fossem fantasmas oriundos do inferno, bebendo e comendo indiscriminadamente. O horror de olhos desacostumados com aquelas bestas híbridas logo era substituído por outro, o de ter parte de seus corpos arrancados por garras e presas furiosas; os mais afortunados, contudo, morriam sem conhecer seus assassinos sobrenaturais, sem testemunhar os olhos rasgando as trevas. As pessoas fugiam em carros e motocicletas, apenas ouvindo gritos de ordem e rosnados ferozes, disparos e gritos horrendos de quem encontrava seus destinos de maneira grotesca. Os homens-lobo e o ser canino se encontraram dentro do casarão, encarando-se como oponentes. Todos cobertos de sangue e vestígios de carne e entranhas, ofegantes e poderosos. Três lobos, um castanho e dois negros, e um cão, muito semelhante a um rottweiler, embora maior do que os seus parentes. Inimigos naturais que se viam depois de algum tempo ou raças distintas que possuíam uma origem comum? *** Ninguém no Green Death acreditava que o famigerado Licurgo estava na sala com Loki, conversando calorosamente sobre sua união ao grupo. Por precaução, seis agentes estavam na sala de espera, aguardando qualquer sinal de ameaça; entre eles, a responsável por aquela façanha, Cassandra, cuja habilidade extraordinária de telepatia com licantropos e humanos se mostrou capaz de domesticar aquela fera canina feita de músculos, fúria e desejo vingativo. Na manhã em que o grupo retornou com Licurgo, os olhares foram inevitáveis, e a ômega pôde identificar cada rastro mental. Ódio, surpresa, admiração, frustração, decepção, curiosidade, dor. Eram tantas emoções reunidas que ela precisou bloquear sua mente para aquilo tudo ou enlouqueceria; era como se a presença do homem-cão despertasse neles instintos primitivos e selvagens, contaminando sua natureza lupina, aquilo que eles tanto valorizavam. Mas, para o homem loiro e sorridente, que os parabenizou pela missão tão bem executada e a chegada do provável integrante da causa, havia apenas
  • 42. motivos para comemorar. Ele cumprimentou um a um, e seu aperto de mão foi firme quando tocou a mão grande do espécime raro. – Então, você é o quase lendário Licurgo, o “caçador de lobos”? – questionou o líder das operações da organização em terras brasileiras, com um sorriso desdenhoso. – E presumo que seja você um deus da mentira – retribuiu o careca, sem emitir qualquer expressão que demonstrasse estar brincando –, afinal, você se considera digno de ser chamado de Loki, não? Houve alguns risinhos, mas os olhos verdes e sombrios de Loki os abafaram. – Conhece algo de mitologia nórdica? – estranhou ele, ainda mantendo o sorriso, embora com resquícios de irritação. – De trapaceiros e mentirosos também – retorquiu Licurgo, sem alterar seu tom de voz ou o modo de pronunciar aquelas palavras audaciosas. Um esgar brotou da face do homem, e muitos acharam que ele avançaria contra aquele atrevido. Contudo, com certa calma, pediu que o convidado o acompanhasse até sua sala, onde acertariam alguns detalhes cruciais. E já havia se passado meia hora desde que ambos se fecharam; parecia que a conversa estava sendo produtiva e interessante, pois nenhum membro, alfa, beta ou ômega, detectou o menor sinal de estresse ou alteração que representasse alguma desavença, embora houvesse um aumento de hormônios e elevações de pensamentos, mas tão confusos que era impossível distinguir a quem pertenciam. Quando saíram, foram observados com expectativa por todos, que não puderam disfarçar a curiosidade quanto ao resultado de toda aquela novela que se tornou os encontros e confrontos com aquele espécime há anos. Muito se falava entre os licantropos a respeito do “cachorrosomem”, como ele pejorativamente passou a ser chamado por quem desdenhava de sua natureza canina. – Bem, quero que saúdem o agente Licurgo! – exclamou Loki, com orgulho no tom de voz, tocando no ombro esquerdo daquele homem tão alto e forte, que emitiu um som gutural baixo e mantinha-se sério. – Quero que vocês mostrem a ele o que for preciso, preparem-no quanto ao regulamento e o treinem para que possa estar apto para as missões futuras!
  • 43. “Parabéns, Licurgo!”, pensou Cassandra, concentrando-se para que apenas ele recebesse a mensagem. “Fiz por você, moça”, foi tudo o que o novo integrante respondeu. Os dias seguintes foram de trabalho árduo para os treinadores. Não tanto por terem de ensinar tudo ao novato, que apresentava dominar como poucos seus pensamentos, isolando-os a ponto de que ninguém mais acessasse sua mente, exceto quem ele permitisse; a ômega que o recrutou era capaz de sondar parte de todo aquele oceano de recordações e vontades, mas era mais complicado decifrar e repassar ao seu superior, que parecia cada vez mais fascinado com os avanços do homem-cão. O problema maior da criatura era controlar tanta impulsividade, o que explicava os ataques cruéis e sangrentos aos agentes do Green Death quando se encontravam. Com a ajuda certa, no decorrer do treinamento, ele foi aprendendo sobre a hierarquia, a obedecer ordens e a agir em prol do grupo. Passeando pela madrugada através de ruas desertas e matas densas, onde caçava pequenos animais com a alcateia, Licurgo foi adquirindo os hábitos lupinos, voltando ao estado puro e original. Entretanto, o motivo para sua aceitação em ser recrutado ainda era um mistério que precisava ser desvendado, afinal a suspeita ainda pairava sobre ele. – Os lobos são superiores aos homens – falou um dos agentes, no refeitório, para três amigos, quando a jovem ômega e o recruta passaram por perto – e aos cães também, claro. Todos riram, exceto os dois que iam transitando com suas bandejas. “Ignore-os!”, pediu ela, percebendo o olhar frio do outro para o quarteto. “Sim, vou ignorar esses filhos da puta que se borram de medo quando me veem como realmente sou”, concordou o homem-cão, permitindo aos quatro engraçadinhos captar seus pensamentos. Um deles fez menção de se levantar, mas ao encontrar os olhos provocativos do outro, sentou-se de novo. – Eles são uns idiotas – falou Cassandra, quando eles se sentaram ao redor de uma mesa desocupada. – A maioria aqui tem orgulho de ser homemlobo, sabe? Eu, infelizmente, nasci uma ômega, para a desgraça de meus pais. – Isso é o que a torna diferente desses patetas, moça – consolou Licurgo, quando viu os olhos azulados dela se encherem de lágrimas. – Se você fosse
  • 44. uma alfa ou uma beta, eu a teria matado há muito tempo. Mas, como nunca conheci alguém assim, uma ômega, dei uma chance a seu povo. – E o que tem achado de nós? Mudou algo em relação ao que pensava sobre a gente? – Bem – começou ele, cortando um bife com paciência –, há muito lobinho metido aqui, mas me parece um bom grupo, bem organizado e treinado para todos serem os melhores. Apenas não sei se me aceitariam como sou. – Por que acha isso? Ele olhou em volta, fixando o olhar no quarteto que se mostrou preconceituoso. – Não acho – concluiu. – Tenho certeza, moça. E levou o pedaço de carne mal passada à boca, mastigando-o com calma. *** Licurgo agarrou o infeliz pelo pescoço, quebrando os ossos como se fossem gravetos secos. Virou-se para o homem encolhido num canto da sala, tremendo de medo e balbuciando palavras sem sentido. Andou até ele, abaixando-se e encarando-o com seriedade. – Bom dia, doutor – sussurrou, carregando a voz com um tom rouco e animalesco, apesar de estar na forma humana. – Por que o medo de mim? Do lado de fora do laboratório, os agentes do Green Death destruíam todos os equipamentos, libertando os macacos, gatos, cães, ratos e pássaros que serviam de cobaias. Pelos corredores havia corpos mutilados e muito sangue nas paredes; o trabalho estava completo ali. Um pouco antes, na forma humana, aquele homem alto e careca matou com a força bruta seguranças armados, numa demonstração agressiva de que era uma máquina natural perfeita, permitindo aos companheiros de missão adentrar o prédio sem serem descobertos. Ágil e mortal, socava, chutava, nocauteava e fraturava com uma facilidade impressionante, e um dos alfas na missão parou por um instante vendo-o derrubar dois homens com golpes de capoeira e afundar seus peitos com cotoveladas. “Você gosta disso, não? De triturar ossos?”
  • 45. “É a graça de ser um predador no topo da cadeia!”, riu o recruta, antes de correr para uma sala, onde houve alguns disparos e mais mortes. – O que vocês fazem aqui? – indagou Licurgo, olhando algumas fotografias sobre a mesa. – Que tipo de experiências? O velho cientista estava apavorado para responder. – Diga, caramba! – urrou o homem-cão, agarrando o pobre humano e o jogando sobre aqueles papéis e fotografias. – Não posso matá-lo sem saber o motivo! A testa da vítima se chocou com o aço frio da mesa. Foi uma dor intensa. – Diga-me o que vocês faziam aqui! – tornou a gritar o agente, ensandecido, esfregando o rosto do cientista em todos aqueles arquivos. – Eu... eu... – atrapalhou-se o infeliz. Os demais adentraram a sala, testemunhando a cena. Com um salto ligeiro, um deles tentou dar cabo da vida do velho, contudo o homem-cão antecipou o movimento, pondo-se entre os dois, esticando a mão espalmada sobre o peito peludo do colega. – Se não quiser ter o peito arrombado e o coração removido, aconselho a não ficar entre mim e este homem – avisou ele, num sussurro gutural. “Você nos deve obediência, cão!”, rosnou outro licantropo, caminhando até a mesa. “Portanto, deixe-nos decidir as coisas por aqui.” – Só quero saber o que eles estavam fazendo aqui. “Loki nos informou!”, apontou o homem-lobo detido pela ameaça do ser canino. – Não acredito nele, e deviam me ouvir quando digo que há algo errado. “Chega disso!” O líder da missão empurrou os dois para o lado e segurou o humano com ambas as mãos, erguendo-o e levando-o para fora, onde o matou de forma dolorosa. “Você deve explicações a Loki por sua desobediência”, sentenciou o lobo ruivo, saindo da sala, acompanhado pelos demais. Licurgo rosnou, voltando seus olhos castanhos para toda aquela papelada. Algo ali o intrigava. Era como se algo o alertasse de que havia alguma coisa estranha acontecendo, uma peça fora do lugar ou faltando. Não acreditava nas explicações dadas pelo seu superior sobre aquele local ser um
  • 46. laboratório clandestino que modificava os genes dos animais em busca de uma suposta cura para alguma doença. Voltou a rosnar, caminhando em direção a saída. Definitivamente, não confiava naqueles lobos. *** Loki havia lido o relatório e interrogado seus agentes, além de ter acesso aos documentos das pesquisas realizadas no laboratório. O único que se negou a dar explicações foi o homem-cão, que se dirigiu ao seu alojamento assim que chegou, ignorando os olhares severos de seu superior ou o de repreensão dos colegas; era um cão orgulhoso o bastante para se recusar a encarar aquelas criaturas lupinas que se achavam superiores a ele, mas que podiam ser facilmente mortas. – Preciso saber o que aquele vira-lata anda pensando – disse ele, fitando a ômega responsável pelo recrutamento de Licurgo. – Mas, eu... Ele bloqueia seus pensamentos para mim, Loki. – Sempre? – Na maioria das vezes. – Descubra alguma maneira de entrar na mente dele, ora! O importante é sabermos a razão de ele ter aceitado nosso convite. Isso acalmaria nossos companheiros, traria um pouco de tranquilidade. Ele a respeita, pelo que parece, e isso é muito bom. Use isso a seu favor! Cassandra moveu os olhos para o lado, entendendo o que deveria fazer. Era algo repugnante, mas de alguma maneira inexplicável ela não receava ter de fazer; apenas não se sentia preparada. – Entendi – disse, por fim, respirando fundo. – Eu farei o que for preciso. *** Licurgo estava quase dormindo quando a jovem ômega o chamou na porta. – Muito tarde para conversarmos? – perguntou ela, com a voz suave, ao ver o rosto marcado por cicatrizes do homem. – Não muito. – Posso entrar? Ele abriu mais a porta, confirmando.
  • 47. De todos os aposentos, o do homem-cão era o mais simples: uma cama, uma mesinha com um caderno e uma caneta, uma mochila com roupas que ele trouxe no dia seguinte ao que foi integrado ao Green Death e o banheiro. Era evidente que para aquela criatura rara no mundo o luxo não importava, contudo mais evidente ainda era a forma como os demais o tratavam; ele era um cachorro no meio de lobos, e nada mudaria aquela condição, nem mesmo se representasse um novo passo na evolução da raça híbrida. – Infelizmente não tenho cadeiras, mas pode se sentar na cama – falou Licurgo, fechando a porta e indicando a cama. Cassandra sentou-se, vendo o amigo se acomodar no chão frio mesmo, olhando-a com um leve sorriso. – Vai me repreender também? – indagou ele, com simpatia. – Não. – Então? – Por que você aceitou estar aqui? – Por você, eu já disse. – Só por minha causa? – Sim, só por você. Você é o elo entre mim e esses lobos arrogantes. – Portanto, seu ódio pelos de minha raça continua? – Não é mais ódio, e sim desprezo. E eles não são de sua raça. Você não é da raça deles. Em momento algum vi uma amostra de superioridade em como você me trata, mas sim a sinceridade, o companheirismo. Os cães e os lobos não são tão diferentes como se pensa, sabe? O que os separa é o orgulho. Eu me orgulho de ser mais forte e independente do que eles, e eles de serem mais numerosos do que eu. Somos seres divergentes, de naturezas similares, mas opostas. Eles nasceram para viver nas matas, perto do contato com suas origens, e eu para estar aqui, no meio da poluição, das cidades, apesar de nós detestarmos os humanos. – Eu não detesto os humanos – cortou a ômega, sentindo-se ofendida. – Só não concordo com a forma que eles tratam a natureza. – Percebe por que a admiro e a respeito, Cassandra? Você é diferente de qualquer lobisomem que conheci. É única. Ele aproximou-se dela antes que os olhos azulados dela percebessem seus movimentos.