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© Green Death Volume 0 – 2011

Organização: Alfer Medeiros
Capa: Silvio Medeiros
Revisão: Adriana Cabral

Texto:
 Alastair Dias
 Amanda Reznor
 Carolina Mancini
 Celly Monteiro
 Diego Alves
 Gerson Balione
 IAM Godoy
 Marcelo Claro
 Mariana Albuquerque
 Rosana Raven
 Susy Ramone
 Tânia Souza

O e-book Green Death – Ecoterrorismo Licantrópico (volume 0) é
publicado sob uma Licença Creative Commons – Atribuição –
NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Índice
Apresentação da Série .................................................................... 6
TRILHAS DO TEMPO (Tânia Souza) .............................................. 8
INCÚRIA (Susy Ramone) ............................................................... 23
XINGU – QUANDO AS FORÇAS SE UNEM (Gerson Balione) ... 29
O DOM (Celly Monteiro) ................................................................ 46
SONO MARINHO (Mariana Albuquerque).................................... 50
ACERTO DE CONTAS (Rosana Raven) ....................................... 55
KATYUSHA (Marcelo Claro) .......................................................... 57
DUPLA PERSONALIDADE (Iam Godoy) ...................................... 67
OS HEADSHOOTERS (Amanda Reznor) ..................................... 70
UM CÃO NUNCA SERÁ UM LOBO (Alastair Dias)...................... 85
SOLSTÍCIO (Diego Alves) ............................................................. 92
ABAIXO DE ZERO (Carolina Mancini) ....................................... 106
Apresentação da Série
Bem-vindo, leitor, a uma realização pessoal. Quando escrevi o livro Fúria Lupina
Brasil um tempo atrás, não fazia ideia das proporções que o projeto tomaria. Meu livro de
estreia não só abriu muitas portas, como também me permitiu conhecer pessoas
fabulosas entre leitores, escritores e críticos (ou tudo isso ao mesmo tempo).
Nesse livro, lançado em 2010, foi apresentada pela primeira vez a organização
Green Death, e muito ouvi falar dela nos feedbacks dados pelos leitores. Da conclusão de
que esse grupo ecoterrorista foi marcante para muitas pessoas durante a leitura do Fúria
Lupina, surgiu uma ideia interessante: por que não fazer um spinoff com contos de
diversos autores, que trouxesse a visão particular de cada um deles sobre a Green
Death?
Diversos convites foram feitos, alguns foram atendidos, e aqui temos o volume inicial
deste projeto coletivo licantropo. Sou muito agradecido a todos que aceitaram o desafio
de criar contos dentro do universo de uma outra pessoa, tarefa não muito simples, apesar
de algumas liberdades criativas terem sido cedidas.
Antes de partirmos para a leitura dos contos dos meus companheiros de letras, seria
interessante mostrarmos um pouco do que é esse cenário dentro do qual foram
produzidas as histórias:
Contexto
Conforme dito anteriormente, a Green Death faz parte do universo da série Fúria
Lupina, onde lobisomens vivem e atuam em um contexto histórico/cultural real. Assim
como na nossa realidade, os lobisomens são tidos como um mito. Isso quer dizer que é
da preferência dos homens-lobo que as coisas permaneçam assim, ou seja, as ações do
grupo são planejadas de modo a não deixar pistas da existência de tais seres. Aparições
em público dos licantropos são evitadas a todo custo.
Os Lobisomens
São todos bípedes, um meio-termo entre a forma humana e a lupina. Possuem a
força de aproximadamente dez homens quando na forma lupina, e na forma humana têm
força e habilidade correspondentes ao mais exímio atleta. Seus sentidos são
extremamente aguçados ao se transformarem em lobisomens, e algo disso é preservado
ao voltarem à forma humana. Alguns paradigmas universais dos lobisomens não existem
nesta realidade: a prata não é o único material que pode causar danos a estas criaturas, e
a lua cheia não provoca transformações involuntárias. Não são imortais, apenas
extremamente resistentes. Sua pele é grossa como a de um rinoceronte e seus
ferimentos são cicatrizados mais rapidamente. Possuem a capacidade de se comunicar
mentalmente com os de sua espécie. A organização hierárquica entre os lobisomens que
vivem em alcateia segue o padrão tradicional dos lobos, determinada pela força e poder
de liderança, em três níveis: alfa (os mais fortes e com melhores capacidades de
persuasão e comunicação), beta (totalmente capacitados, porém com algum ponto
negativo que os diferenciam dos alfas) e ômega (não conseguem se transformar em
lobisomem e somente mantém suas capacidades de comunicação mental).
A Organização
Surgiu no final dos anos 80 e, de início, baseava-se em pequenas sabotagens em
instalações de fábricas poluidoras na Polônia e na Alemanha. Atualmente, sua base de
operações é na Holanda, local onde os coordenadores das células terroristas se reúnem
secretamente e transmitem as instruções aos seus subordinados. Sua área de ação é
global, mantida por doações de simpatizantes da causa. Quando em campo, atuam em
células de 3 a 6 indivíduos, sempre com um alfa coordenando as ações. Os betas são
utilizados em confrontos diretos, e os ômegas trabalham no apoio e transporte. Sempre
chegam aos lugares dos ataques sob disfarce; possuem conexões no submundo do crime
que fornecem todos os documentos falsos necessários para fazerem os ecoterroristas
passarem por equipes de TV, membros de ONGs de ajuda comunitária, entre outros. O
modo de agir é bem simples: ataques rápidos e violentos, de modo a causar baixas e
deixar os inimigos com uma tremenda sujeira para limpar e ter de se explicar com as
autoridades locais.

Bem, acredito que me estendi demais nas explicações, mas procurei mostrar de
forma sucinta o que vem por aí. Fico à disposição para ouvir qualquer dúvida, elogio ou
crítica. Agradeço mais uma vez pelo interesse mostrado por este e-book, desejo uma
ótima leitura e já me adianto a convidá-lo a ler outros volumes da série, caso tenha
apreciado este volume.
A natureza lupina liberta. A natureza humana destrói!

Alfer Medeiros
alfer.medeiros@gmail.com
www.AlferMedeiros.com.br
TRILHAS DO TEMPO (Tânia Souza)
Calor. O suor molhava os cabelos grudados no pescoço e um murmúrio de protesto
escapou dos lábios femininos. Em algum lugar, um carro freou bruscamente e o motorista
gritou algo obsceno. As notas de uma canção chegavam aos ouvidos sensíveis, mas não
interrompiam os sonhos que a atormentavam. A mulher enrolada nos lençóis se moveu na
cama, presa a um universo desconhecido, não conseguiu despertar.
O ar da mata não refrescava o calor, mas intensificava os aromas. Em pé à beira de
um rio, ela observa quando eles chegam. O sentimento que a consome é profundo, assim
como a urgência em avisá-los: cuidado com a fera. Ela tenta correr, eles precisam saber.
Cuidado com a fera.
Pela janela transparente, alguma claridade das ruas se insinua, mas não ilumina as
sombras que a envolvem. A moça observa quando a menina ri e mergulha nas águas
turbulentas. Do outro lado, o garoto sobe em um galho e pula no rio, submergindo a
seguir. Inocência. Mas a poucos metros, uma fera espreita. Os olhos do monstro ferem de
vermelho sanguinolento a paz do local. Ticia deseja ir até eles enquanto o suor escorre
entre seus seios e o ar lhe falta. Entretanto, as pernas não se movem, a voz está presa na
garganta e, lentamente, ela vê a fera se aproximar. As sombras vêm junto e a envolvem,
não há nada que possa fazer. Haverá sangue e dor. As crianças gritam. Cruelmente, a
fera destroça suas vítimas.
O grito que tanto guardou, enfim, explode num urro selvagem e Ticia desperta.
Presa entre o mundo do sonho e o da realidade, a mulher-lobo não controla a ferocidade.
Em poucos segundos, o corpo que estremecia na cama salta e se curva no meio do
quarto. A metamorfose tem início. As unhas arrancam lascas do assoalho e a dor é
intensa; enquanto ossos e pele se dilaceram, os pelos crescem e o aposento se torna
pequeno para contê-la. Um rosnado feroz se espalha e as criaturas insones que
percorrem a cidade estremecem de pavor enquanto alguma nova lenda urbana nasce. Os
móveis sofrem o impacto da transformação, mas aos poucos o controle entre a mente
humana e os mais ferozes instintos se estabelece.
Fora apenas um sonho. Lentamente, a transformação retrocede. Apenas um sonho.
***
A bicicleta se desviou de um carro ao cruzar a avenida, ignorando as buzinas. A
ciclista murmurou um palavrão, irritada consigo mesma. Atrasos estavam se tornando
rotina. O ar esfumaçado e a ausência de chuvas, somados à poluição que envolvia a
cidade, ameaçavam sufocá-la. Quando chegou à escola de idiomas, eles já estavam lá,
mas a reunião ainda não havia começado. Os alunos que frequentam o curso no dia a dia
e os comerciantes da vizinhança não sabem, mas a escola é, na verdade, um dos pontos
de encontro dos membros da Green Death, uma das mais cruéis organizações que não
se tem notícia. E sabem menos ainda que entre os pacatos professores, homens e
mulheres de várias partes do mundo, escondem-se criaturas lupinas.
Ticia sentiu os olhares curiosos dos companheiros, consciente de que as noites
tomadas por pesadelos marcaram seu rosto delicado. Sentou-se numa cadeira vazia ao
lado de Paolo.
– Você está bem, querida? – a pergunta vem em tom discreto.
Com um sorriso triste, a moça murmurou uma resposta, quase para si mesma.
– Os sonhos voltaram... – havia medo na voz. – Cada vez mais eu sinto, mas não
entendo. Não sei se é uma lembrança... Uma visão do futuro, mas é tão real.
– A fera novamente? – ao vê-la assentir, ele prossegue. – E as crianças?
– Elas também estão lá, e não há nada que eu possa fazer para salvá-las. Não há
mais vida para eles depois que... – a garota vira-se e o encara diretamente. – Eu os amo
sabe, posso sentir isso, mas e se... Se eu fiz aquilo, eu...
– Suas lembranças estão perdidas há muito tempo, há algo guardado que nem
mesmo você, cara mia, deseja lembrar-se. Nós não poderemos te ajudar, precisa
encontrar-se consigo mesma, eu temo por você. E por nós todos – a voz é firme e
carrega, junto ao carinho, uma advertência.
Ela entendeu o implícito: ali, todos precisavam uns dos outros, não havia espaço
para falhas.
– Eu vou ficar bem, Paolo, acho que uma nova missão é tudo que preciso.
– Não sei se uma missão seria bem vinda agora, talvez precise apenas descansar.
A resposta que daria ficou perdida no silêncio. Paolo era o mais próximo de um pai
para Ticia. Quando a menina sem memórias apareceu no circo onde ele vivia com a irmã
Sophie, logo foi adotada pelos irmãos. Por muito tempo, cada transformação fora
marcada pelo descontrole e pela ferocidade, mas com o passar dos anos e as orientações
recebidas, Ticia encontrou um razoável equilíbrio. Mas Paolo sabia: os sonhos a
perturbavam além do desejado, e sob a aparência de calma e tranquilidade, pulsava uma
criatura de poderes imensuráveis. E, quando livres, extremamente cruéis. Quando a
morte levou de forma natural a bela Sophie, Ticia manifestou o desejo de se estabelecer
em São Paulo, e Paolo permaneceu na cidade com ela. Mas todas essas lembranças
desapareceram quando as luzes se apagaram e a reunião começou.
Os slides apresentados por Nikos mostravam imagens impressionantes de
crueldade e devastação da natureza. Na plateia, o grupo aprendia o máximo possível
sobre a região da próxima missão. Todos os pensamentos alheios à causa
desapareceram frente à seriedade do que estava sendo exposto. No primeiro vídeo, uma
criança coberta de fuligem e dentes cariados, vestida com um minúsculo short, sorri para
a câmera quando um homem armado se aproxima. Antes de a câmera ser desligada,
ainda conseguiram registrar os fornos; pequenos vulcões ardendo escuridão e fumaça na
paisagem árida.
Em seguida, a imagem de um homem preencheu a tela. O rosto quase oculto pelo
chapéu. Nas mãos, um chicote de montaria. Botas. Um visual comum de um fazendeiro.
Nas outras fotos, pilhas de couro de jacaré e outros bichos, coleções de armas de caça
com alta potência. Crianças magras e sujas de carvão trabalhando até o anoitecer.
Homens e mulheres roubados em toda sua dignidade. Escravidão. Tortura. Casas de pau
a pique, cabanas, barracas, condições subumanas.
O palestrante mostrou outro vídeo, o mesmo homem empunhava o chicote com
violência contra um empregado. O trabalhador corria descalço pelo chão aquecido e
coberto de carvão, desviando dos fornos e das madeiras empilhadas enquanto seu
perseguidor, a cavalo, seguia atingindo-o com o chicote. Os homens armados ao redor
gargalhavam enquanto a família chorava, pedindo clemência. Quando se cansou da
diversão, ele mesmo apanhou uma arma e atirou. A munição especial estourou a cabeça
do perseguido. O som do tiro calou o choro, mas as risadas prosseguiram. De cabeça
baixa, os carvoeiros voltaram ao trabalho. Menos a família do morto, a jovem esposa foi
agarrada e levada pelo patrão. A última imagem focalizou-se na expressão sombria do
dono das carvoarias. João Carcará. Os olhos, mesmo parcialmente cobertos pelo chapéu,
eram frios, e Ticia arrepiou-se com a maldade que pressentiu ali.
A voz de Nikos alterou-se ao mostrar a enorme clareira onde antes a mata virgem
reinava. Rios minguados pelo assoreamento. Fornos, animais mortos, em fuga ou em
extinção, aumentavam a sua revolta. A mata nativa estava sendo devastada para
transformar-se em carvão vegetal. No longo ciclo, a madeira era cortada, transformada
em carvão que alimentaria as usinas espalhadas pelo Brasil, para a produção de ferrogusa e aço. A lei, mais uma vez, caminhava em passos lentos demais. Algo precisava ser
feito e esse trabalho já começara em vários outros pontos do país e regiões de fronteira.
Onde antes os bichos andavam soltos, os fornos pipocavam como uma erupção maligna
e estendiam-se por longas extensões. Era hora de detê-los.
O grego que apresentava os slides é o líder desta célula. Um poderoso alfa que
deixou Pátras ainda adolescente e, desde então, percorre o mundo lutando por um ideal
marcado com sangue. Os membros ao seu comando já realizaram grandes feitos. Os
brasileiros Ticia e Carlos são betas, a espanhola Rubia é a única ômega do grupo. Paolo
é italiano e Raul, português. Juntos, formam uma das equipes mais letais da organização
ecoterrorista, lutando de forma constante em regiões onde a devastação da natureza já
começou, entretanto, ainda há muito a ser preservado. Sob o disfarce da escola de
idiomas, conseguem dar apoio a membros de várias partes do mundo, assim como
manter um ponto de encontro e seguir uma rotina fora de suspeita quando não estão em
missão. Em comum, o amor pela natureza, a fúria lupina e a crença de que não há
inocentes quando se trata de destruidores da natureza. Chefes, proprietários ou meros
empregados, todos devem ser punidos pelos pecados contra a natureza.
Naquela manhã, a inquietação de Paolo e Ticia logo é identificada pela ligação
mental do grupo, os demais percebem que há algo errado, mas sob a firme declaração de
que estava preparada, além de nunca ter falhado antes com o grupo, a moça convenceuos de que estava apta.
Mais uma missão lupina tem início.
***
O micro-ônibus parou em frente ao hotel fazenda. Ali, turistas não eram novidades, e
a algazarra de línguas, sotaques e etnias logo se tornava parte da paisagem. O trio
recém-chegado partiria para um acampamento menor. Pescar, preparar a própria comida,
fotografar ou simplesmente descansar com privacidade. Um walkie-talkie para manter
contato e o retorno em dez dias foi combinado. As bases estavam localizadas em partes
mais isoladas da região, tecnologia aliada à rusticidade, um pacote indispensável a
turistas modernos e dispostos a pagar o preço por alguns dias em ambiente “selvagem”.
Palafitas protegiam a construção das cheias e, ainda que no momento fosse período de
seca, era possível ver as marcas de até onde as águas poderiam chegar. Pássaros
diversos e multicoloridos enfeitavam a paisagem deslumbrante. Sobre os assoalhos
suspensos, as barracas estariam protegidas.
A moça soltou os cabelos e suspirou, enlevada. No entanto, uma tensão repentina
causou-lhe um arrepio e ela espreitou a mata que os cercava, desconfiada, mas logo seus
sentidos avançados absorveram a pureza do ar. Do outro lado, Paolo sorriu satisfeito
enquanto se preparava para uma breve excursão na selva. Nikos apenas observava a
vegetação ao seu redor. E em cada um deles se reforçou a necessidade de combater os
destruidores daquele patrimônio natural. Na mesma noite, o grupo entrou em ação,
partindo em busca das carvoarias. A distância era razoável, mas não para a velocidade
lupina.
***
Os passos rápidos na mata cerrada cessaram abruptamente. A fumaça e o cheiro da
madeira armazenada turvavam os aromas naturais e anunciavam que estavam próximos.
Essa mistura de odores invadiu os sentidos da mulher-lobo e a criatura hesitou. Uma
sensação antiga e humana a fez estremecer. Por alguns instantes, sentiu-se prestes a ser
atacada e uivou. Medo? A ordem do alfa e as indagações de Paolo a fizeram calar-se. A
poderosa loba quase entregara a chegada do grupo. Tentando controlar o sentimento de
origem desconhecida, prosseguiu. Finalmente, chegaram ao centro da clareira. O que
viram ali confirmou a imagem que já traziam. Os pequenos fornos pipocavam e os
barracões, seguidos por casas de pau a pique e um galpão, completavam a paisagem
desolada. A decadência humana, o cheiro da podridão e a natureza devastada estavam
por todos os lados.
A lua clareava os vultos das três criaturas monstruosas que avançavam. Saltando
entre os fornos, carvão e pilhas de madeiras, os lobisomens, guiados por Nikos,
atacaram. A única sentinela acordada não viu o que a atingiu. Com força descomunal, a
criatura arrancou-lhe a cabeça por trás e jogou no meio da clareira. Destruíram o que
encontravam pela frente, primeiro os fornos e depois o galpão onde o capataz dormia, o
depósito de mercadoria que servia ao propósito de escravizar os trabalhadores e,
finalmente, cada um dos que se abrigavam nos barracões. A um dos homens armados
que dormiam no galpão foi permitida a fuga. Era preciso que a fúria lupina se espalhasse
e o medo impedisse que um novo acampamento fosse montado.
A mulher-lobo mais uma vez estremeceu. Uma coisinha linda assim no carvão? Não
pode, não... A voz, de onde viera essa voz? Buscou desesperadamente entender, mas...
Controle-se! A voz de Nikos explodiu em sua cabeça e ela recuperou a razão
momentaneamente perdida. Em cada cabana, famílias inteiras foram destruídas, restando
ao final uma paisagem de carne e sangue sobre madeira e carvão destroçados. Pela
primeira vez, Ticia questionou a sanha que sempre a guiara. Aquela gente era tão vítima
quanto os elementos da natureza que foram destruídos.
Mais uma carvoaria clandestina estava desfeita. Em três noites diferentes, três
fazendas sentiram o ataque de uma força desconhecida e levaria um bom tempo para que
pudessem se reestruturar. Mas não era o suficiente. Os ataques sistematizados
destruíram a estrutura das carvoarias, mas o chefe, João Carcará, o homem cuja
crueldade impressionara a todos, este que enriquecia a cada dia por meio da miséria e da
corrupção humana, este ainda estava protegido pela mesma natureza que danificava
constantemente.
Paolo foi em busca da última presa enquanto os demais voltavam ao acampamento.
Ticia sabia que colocara o grupo em risco. Desde que chegara a este lugar, seus
instintos estiveram confusos. Não conseguiu explicar como os sons oriundos das
carvoarias, a fuligem e até mesmo os movimentos furtivos da mata podiam afetá-la tanto,
e Nikos fez-lhe duras advertências, oferecendo mesmo que retornasse à base, se
preferisse assim. Não passaram despercebidas ao grupo as dúvidas que a tomaram
depois do ataque, mas sua fé nos companheiros e o amor pela causa falaram mais alto e
assim, quando o sol chegou e, com ele, a volta de Paolo, ela estava pronta.
***
O homem acendeu o cigarro e a brasa iluminou o quarto. Sorveu lentamente e
expeliu a fumaça. Havia algo lá fora, um novo inimigo o esperava. Mas isso não lhe trouxe
medo. Assim como os malditos sobreviventes delirando sobre lobisomens foram punidos,
também assim seriam os que estavam ousando atacá-lo. Em todas as suas fazendas,
onde outras carvoarias funcionavam, a segurança fora redobrada, mas os ataques
continuaram. Era preciso reagir, os prejuízos estavam sendo enormes e, principalmente, o
medo estava se espalhando. Agora, armadilhas estavam por todos os lados, pois não era
homem para ser caçado. As armas que trazia consigo garantiriam sua sobrevivência.
– Eu não sou a presa, crianças... – o murmúrio perdeu-se na noite escura que
rondava a fazenda.
Perdida no meio da densa vegetação escondia-se a grandiosidade da mansão
luxuosa. Aquela era apenas uma das moradas de João Carcará. Ao contrário de muitos
outros exploradores da mata nativa, ele preferia estabelecer-se próximo às fontes do seu
lucro. Na imponência do casario, rusticidade e luxo, jardins e animais de estimação
exóticos davam o tom. Uma pista e um avião permitiam que ele partisse quando assim
desejasse, e homens armados cercavam o local. Mas a sensação de estar encurralado
começava a dominá-lo. Com ódio no peito, gritou para a noite:
– Eu sou o caçador, meu nome é Carcará!
A uma pequena distância, olhos avermelhados observavam o fiapo de luz na janela
no alto. A mulher-lobo, com as quatro patas no chão, preparava-se para avançar e
concluir sua missão quando o desafio chegou aos seus ouvidos. Primeiro veio a angústia.
Aquela voz doía-lhe de um jeito desconhecido. Depois, o cheiro que veio no ar, havia um
aroma conhecido naquelas terras, ela já estivera ali, podia sentir, mas a memória não
deixava saber mais. Uivou descontroladamente quando a dor das lembranças humanas
abalaram a fera. Sentiu nos braços a força de uma prisão antiga e uma dor lancinante de
uma vida que já não lhe pertencia. Os uivos atraíram a atenção dos guardas e luzes
foram acesas em torno do local. Mas nada importava para ela, presa em sua dor, a
cabeça parecia-lhe que iria explodir e, num processo extremamente dolorido, sentiu que a
transformação estava acontecendo.
A loba uivava enquanto a mulher nua renascia do horror que lhe consumia.
Encolhida em posição fetal, não viu quando os seus companheiros foram atacados por
centenas de homens armados. Logo os ataques chegaram até ela e um golpe de machete
a atingiu, quase dilacerando a perna direita. Quando o atacante se preparava para um
novo golpe, um lobisomem gigantesco saltou sobre ele e, com um safanão, jogou a arma
longe; com os dentes, arrancou o braço que a empunhava. Era Paolo, mas ela não
reagiu, apenas arrastou-se no solo, arranhando a pele e deixando um rastro vermelho
pelo caminho, enquanto a luta prosseguia. Os uivos dominaram a noite e homens e lobos
derramavam seu sangue pelo chão. Lá do alto, o Carcará gargalhava. Vendo a luta feroz
que se desenrolava no pátio, carregou um rifle, fez a mira e acertou. Lobisomens. Então
não era apenas uma lenda. O homem uivou enquanto as balas ricocheteavam nas
criaturas, ocasionalmente, atingindo os homens que ali lutavam. João trocou a munição,
usando as reservadas para caçadas e tiro ao alvo nos jacarés. O primeiro tiro ricocheteou
na pele dura do lobisomem, mas as outras, uma a uma, foram abrindo caminho na pele
rústica. Paolo grunhiu e o sangue do homem lobo se derramou. Ainda assim, ele avançou
em direção a casa. Num salto, o lobisomem estava no piso superior. Muito ferido, não
resistiu aos últimos tiros que o aguardavam e caiu novamente no pátio, inerte. Estavam
sendo derrotados. Do outro lado, Nikos lutava bravamente com mais de vinte homens,
sendo caçado por mais outros, mas não resistiria por muito tempo. Olhando a sua volta,
chamou por Paolo e Ticia, mas não obteve resposta.
Ticia havia desaparecido e o corpo de Paolo, já na forma humana, jazia no solo.
Nikos, gravemente ferido, recuou.
***
– Vai se alembrar, aí de dentro as lembrança têm vida, elas quer contar da dor – a
mulher escondia o rosto nos cabelos lisos e negros enquanto passava o unguento sobre a
pele ferida.
Ticia resmungou, tentando afastar a moça que a arrastara, mesmo machucada, da
beira do rio até aquela cabana escondida.
– A loba quer reinar, mas a menina não deixa. Por isso, precisa lembrar.
O canto choroso prosseguiu e a voz hipnótica da cabocla a envolveu.
– Eu te devolvo, menina, as dores que são tuas, lua já vai alta e tá na hora de
despertar...
Um toque mais firme fez Ticia encolher-se e, aos poucos, a mente recuperava o que
o tempo havia apagado. A dor dos ossos fraturados com o golpe do machado ia
diminuindo gradualmente, o aroma de ervas na pasta acalmava o ardor na pele ferida que
se recuperava, a melodia e o ambiente místico da cabana a envolveram, enquanto vozes
e lembranças de outra manhã distante voltavam como uma tempestade de imagens e
sentimentos. Como num passe de mágica, viu-se novamente no mesmo cenário do sonho
que muitas vezes a perturbara, mas desta vez não havia nada nublando suas atenções,
era apenas ela, em algum miserável lugar, perdido no espaço-tempo daquele mesmo
cerrado onde se encontrava agora.
– Chora mais não... – a voz sussurrada era quase um pedido, e duas crianças
esfarrapadas se esgueiravam entre as árvores. A menor, uma menina de uns nove, dez
anos, soluçava, olhando algumas vezes para trás. O garoto, um pouco maior, segurou
sua mão, guiando-a pela trilha no meio do mato, em direção ao rio de águas escuras que
descia logo a seguir. Devagar, caminharam até a areia cheia de pedregulhos. Nas pedras
maiores, ele ofereceu: – Senta aí... Vou lavar pra você.
A menina sentou-se na pedra e ele, com as mãos em concha, derramou a água
sobre os cabelos escuros. No rosto escondido pela sujeira, grandes olhos amendoados
estavam vermelhos e inchados, lágrimas se misturavam ao sangue que havia descido do
corte no supercílio. O menino tirou a camiseta e molhou no rio, enquanto tentava limpar o
machucado.
Ela não viu, mas ele trazia os olhos úmidos, divididos entre a raiva e a piedade.
A mata estava silenciosa e uma brisa suave anunciava o entardecer. Em meio à
solidão quase absoluta, a água fria e o gesto carinhoso afastaram os soluços. Brincando,
ele apertou a pontinha do nariz delicado...
– Vai acabar virando uma muié-onça, sua brigona! Ou comida dela.
A menina sorriu e ele sorriu de volta. Não estava ficando mais limpa, mas ao menos
o choro havia passado.
– Vem cá – ela disse, puxando-o pelas mãos, enquanto se levantava, entrando no
rio.
– Não por aí, tem poço.
A menina sorriu, desafiante.
– Tenho medo não, Dinho, você tem? – e mergulhou nas águas. O garoto ergueu os
braços e as costelas apareceram no tórax magro. O menino gritou:
– Eu sou o caçador, meu nome é Carcará! Foge, muié-onça! – e se jogou na água,
alcançando-a, e na outra margem, subiram juntos.
Entre risos e mergulhos, quase não viram quando a noite desceu. A volta pra casa
foi lenta. A madrinha haveria de brigar, mas não importava. Em meio à natureza, ela se
sentia viva, limpa. O vento secou as roupas molhadas enquanto caminhavam, e os
cabelos, agora dourados, secavam soltos. O menino segurou a mão pequena da garota e
sorriram.
Naquela noite não haveria sopa para ela. Mais uma vez, enfrentou o capataz e o
golpe seco foi a punição. Mas isso não bastara, alguém já contara à madrinha e agora,
deitada no escuro, não eram os mosquitos zumbindo e sim a fome que a incomodava, e a
lembrança do tapa. Ela não se importava, não iria ao galpão com ele, Dinho sempre
dissera que não fosse. A mão rude doeu-lhe na face, e quando caiu, alguns adultos
desviaram o olhar, mas outros gostaram. Quanto mais cedo a criança aprender seu lugar,
melhor. Virou-se na cama quando alguém tocou seu rosto e silenciou seus lábios.
Entretanto, ela já o esperava, ele sempre viria. Nunca entendera o porquê do olhar da
mulher não trazer o carinho da mãe, apenas raiva e rispidez. Mas havia ele, os olhos
negros e tristes do menino magrela que tornara sua dor um pouco mais suportável. Sob
um fraco claro de luar, goiabas frescas e um pedaço de pão endurecido, assado no forno
no dia anterior, surgiram a sua frente. A menina agarrou o pão com vontade, enquanto
sorria. O menino saiu do quarto tão silencioso quanto entrou. Quase adormecendo,
pensou na mãe e de como era doce estar com ela. Na cama ao lado, a madrinha roncou.
Sonhou com as águas calmas do rio e o silêncio cheiroso da mata.
Ticia despertou do mundo de lembranças. Sentindo ainda o aroma da mata, sentouse na cama, deixando o poncho cair. A dor que a consumia não se originava apenas dos
ferimentos recebidos. Dinho. Soluçava, balançando os cabelos, duvidando de si mesma.
Como pudera esquecer Dinho, como pudera esquecer-se de quem era?
A mulher que a observava se aproximou, tocando-lhe os cabelos, prosseguiu na
cantoria mística, oferecendo-lhe um pouco mais do chá, aumentando a chama para que o
cheiro das ervas queimadas se tornassem mais fortes na cabana.
Uma mulher tocava os seus cabelos... Mas não era a mulher-onça. A voz era cruel,
quase debochada.
– É bonita, a danada. Quando tá limpa, os cabelo brilha que só vendo. Se vai cair na
vida, que não seja no desperdício. Alguma paga tenho que ter dos pratos de comida que
já me levou.
– Novilha fresca?
– Pois se te garanto home, fresquinha.
Ticia moveu-se, angustiada, novilha fresca, tentou se lembrar do homem, mas as
vozes sumiam e voltavam, quando outra cena surgiu, ela era então menina, uma trouxa
sendo arrumada e um adeus frio. Cê vai simbora. O que via agora era uma criança
agarrada em pernas indiferentes, implorando para ficar... Na cabana turvada por ervas,
ela estendeu os braços, implorando como a criança das suas memórias fizera, perdendose novamente no universo das lembranças.
– Coração cheio de orgúio esse, guria, precisa de tento.
– Mas eu prometo comportar, madrinha, prometo. Ele queria me levar pro galpão,
não pode, Dinho mesmo disse pra não ir.
– Você vai pro mundo, minina, vai trabaiá, já tá tudo arranjado, o Seu Zé vai fazer
uma viage e levar você pra uma casa de família do patrão.
Uma casinha miserável, um homem grosseiro e duas notas grandes que a mulher
que se dizia sua madrinha guardou no sutiã...
Ticia soluçou e um suor frio cobriu sua pele quando imagens de uma viagem
sacolejante vieram a sua mente. Pedras raspavam o fundo da caminhonete enquanto ela
empurrava mãos nojentas em suas pernas. O cenário deu lugar a um casarão luxuoso,
um peão encurvado que lhe recebeu e mais notas sendo trocadas de mãos. O cheiro bom
de comida, olhares desconfiados e o silêncio... Um quartinho e alguns momentos de paz
enquanto não trabalhava na cozinha. Um açude azulado, um pomar gigantesco e cães
que rosnavam. A casa enorme, circundada por varandas e flores. E a distância de seu
único amigo.
– Dinhooo! – o grito escapou da garganta de Ticia, como se com isso pudesse deter
as lembranças, mas elas seguiam voltando, cada vez mais claras. João Eduardo... Como
pudera esquecê-lo, Ticia não compreendia, e a mesma dor a sufocava junto com as
lembranças dos sonhos que tivera, então. Aquela menina maltrapilha em suas
lembranças não era ela, o nome, havia um nome... Aquela criança cometera um erro, ela
conhecia seus pensamentos e o erro foi o de pensar que teria paz, livre dos fornos e do
carvão que lhe impediam a respiração. Novamente, outras vozes surgiam dentro dela.
– Seja boa, menina. Não teima, não deixa o patrão com raiva.
– Tome tento do teu lugar... Tudo passa logo nessa vida.
As vozes do passado mostravam outra Ticia, feliz em um vestido com babados.
Pouco se importando com advertências que não compreendia. Uma criança que atendia
pelo nome de Janaína.
– Pra morte não tem saída, menina Janaína, pra viver, sempre tem caminho. Se
alembra disso.
Ticia se lembrava, assim como se lembrava de sorrir e prometer que jamais teimaria
com o patrão. Depois, o estrondo na porta do quartinho. Parado a sua porta, um homem
cheirando a cachaça. Escadas, degraus que subiu quase sem ver, arrastada pela mão
cruel, seguindo-o até um quarto grande e colorido, o tapete macio sob seus pés. O gosto
da cachaça que o patrão obrigou que ela tomasse... Os olhos do patrão. O medo e a
raiva.
– Uma coisinha linda assim no carvão? Não pode não, vamos menina, dá uma
voltinha. A onça comeu sua língua, foi?
A força de um braço de aço lhe prendendo, a boca esmagando a sua. A cama onde
foi jogada sem nem saber como. A corrida pelo quarto e de novo a prisão. O homem
dentro dela e uma dor tão grande, tão imensa e cruel que lhe pareceu que morreria.
Ticia gritou quando as lembranças voltaram, gritou, uivou e soluçou, mas a mulheronça, a curandeira das matas, já não estava lá com ela, apenas a fumaça e o cheiro de
ervas queimadas. Os soluços vieram com força, junto com a memória familiar dos sons de
carnes e ossos sendo destroçados em suas mandíbulas. Da forma como cada um fora
destroncado, atirado contra as paredes e o sabor do sangue alimentando o ódio. E de
certa forma, Ticia agora sabia, naquela noite ela morreu. Foi o nascimento da mulherlobo.
Primeiro, a dor de um estranho que lhe rasgara o corpo e alma, em seguida, uma
dor maior que esmigalhou seus ossos e músculos. Novas imagens do homem que arfava
sem notar o que acontecia com o corpo frágil sob ele sendo jogado para longe, vestido
somente com a camisa, se arrastando pelo tapete. Os seus gritos de menina e fera,
enquanto se transformava em algo que nem nos piores pesadelos imaginara. A criatura
lupina que se levantou, uivou ferozmente para a noite e avançou sobre o monstro
encolhido no chão.
Naquela noite, seus urros estremeceram a casa e dois homens armados invadiram o
quarto. A visão horrenda do lobisomem erguido sobre duas patas e devorando as partes
destroncadas do patrão foi o suficiente. Atiraram quase sem pensar e apenas uma das
balas acertou de raspão. Mas não deteve a fera, ela avançou e um dos capangas tentou
ferir-lhe as costas com uma faca. Não bastou, a loba quebrou o pescoço do outro num só
golpe e virou-se para quem a atacara pelas costas. Os braços foram arrancados,
enquanto os dentes cravaram-se no ombro, jogando o naco de carne para longe.
Quando o lobisomem com cerca de um metro e meio, bípede, saltou as escadas
com os pelos de tom caramelado cobertos por sangue e carne destroçada, não houve
tempo para fuga. As mulheres que estavam encolhidas na cozinha não foram poupadas.
Cada uma delas foi destruída. Unhas, força, dentes e sangue espalharam vísceras pela
casa, o que a jovem e furiosa loba não devorava, rasgava nas garras poderosas. Naquela
noite, a morte chegou para cada alma que ali perambulava. A dor havia ido embora, mas
o ódio, a fúria e o desejo de vingança, ah, esses estavam fervilhando dentro da jovem
pequena fera. Curvada sobre as duas patas, ela uivou enquanto farejava cada suspiro de
medo que emanava da região, as casas dos moradores ao redor não foram poupadas, e
logo uma trilha de sangue e carne estraçalhada indicava o caminho percorrido. Aquela
que deveria ter sido a sua passagem para o universo lupino, seu destino desde o
nascimento, se tornara um gesto de liberdade dos anos de dor e sofrimento na forma
mais violenta possível. Janaína nunca mais existiria.
Ticia lembrou-se vagamente de percorrer as matas, uivando e rosnando a sua dor,
deixando nas árvores as marcas de suas garras até que, finalmente, encontrou-se à beira
de um riacho onde matou a sede e, lentamente, deixou a forma lupina. Vomitou e,
cercada por sangue coagulado e carne, encolheu-se. Do alto de uma árvore, uma onça
pintada observava a garotinha nua e ferida, deitada e chorando próximo às águas. A
criança mais sentiu que viu a onça se aproximar, em olhos semicerrados, pensou ainda
que se esse fosse o seu fim, não importava, não haveria razão para viver. Como num
sonho, as quatro patas foram se transformando e, felinamente, uma mulher nua surgia da
pele da onça. A paz da transformação contrastava com a fúria que a tomara há pouco. A
moça se aproximou e, ajoelhando-se, ergueu-a nos braços. Antes de perder a
consciência, Janaína pensou que, finalmente, seria devorada pela mulher-onça.
– Ela me salvou... Naquela noite, foi ela. Mais uma vez, ela me acolheu – o corpo
febril cobrava o preço de tantas emoções e, dominada pelas poções mágicas, Ticia
adormeceu.
De fato, a sabedoria de tribos antigas e magias ocultas no tempo que acalmaram a
dor da criança. Entre cânticos místicos e preces, untadas por poções desconhecidas, as
lembranças foram aos poucos sendo anuviadas, a mente infante não suportaria a dor da
realidade e a cabocla sabia disso. Por ela, fizera uma escolha. Depois, houvera apenas o
silêncio, dias e dias na cabana minúscula, sendo alimentada pela mulher calada. Quando,
enfim, se recuperou, a moça a pegara pelas mãos e andaram por muitos dias pelas matas
cerradas até que, uma noite, a mulher-onça parou. Era o circo. Paolo e Sophia e, desde
então, toda a paz e tranquilidade que precisara.
A mulher-onça usou de uma magia ancestral para absorver-lhe a dor e as
lembranças cruéis. Este fora o momento de devolvê-las. Ainda que mais uma vez
estivesse nua e encolhida, sofrendo as piores dores enfim reveladas, finalmente ela
dormiria em paz, sabendo quem realmente era.
***
– O menino veio te buscar. Mas o que ele viu, destruiu a pureza e liberou a fera.
– Ele é como eu? – enrolada no poncho gasto, sentia o corpo recuperando-se aos
poucos da última batalha.
– Não, menina, a fera dele é costura em pano de sombras. Eu tava lá quando ele
chegou, os pés em sangue da andança, trazia de arma um canivete e muita coragem no
peito ossudo – a mulher calou-se quando um sorriso miúdo surgiu no rosto de Ticia. – É
verdade, tu haveria de rir, valente mais que ele, como sempre foi. Chegou ao entardecer,
os corpos dos cães, as poças de sangue espalhadas no terreiro, os olhos brilhantes do
jacaré no lago. Foi se achegando e indo em frente. O menino não tinha medo, não. Tinha
era amor.
Ticia levantou os olhos úmidos... O riso sumiu e as lágrimas agora caíam sem
controle.
– A moça sabe o que o guri viu.
Ela assentiu. Sangue nas paredes, carne e ossos espalhados pela casa. E no
quarto, os restos de sua roupa miúda, rasgada e coberta por sangue. Em meio a toda
gente morta e irreconhecível, imaginou o que ele sentiu. Pensou ainda nos móveis
quebrados, nos pedaços de ossos e carnes no quintal, nos cães mortos e na trilha de
sangue que deixara.
– Ele gritou. Verdade que foi um urro de bicho morrendo. Ódio do mais puro quando
cravou as unha no terreiro. A noite tremeu duas vezes e as criaturas da mata se
acoitaram na escuridão. Era uma noite de feras... Certas dor coração de home não guenta
não.
– Ele... O que aconteceu com ele depois?
– Ele morreu menina – vendo o ar confuso da garota, a mulher-onça ergueu uma
das sobrancelhas. – Corpos podem viver sem alma. Mas a morte por vezes é paga
melhor.
– Ele que sempre foi meu anjo, meu guia...
– Pois duvido que o anjo tenha sobrevivido.
– Dinho não está morto, eu sei. Eu sei onde ele está. João Eduardo... João Carcará.
O rosto da mulher-onça era um mistério para Ticia, que meneava a cabeça, negando
a afirmação da mulher a sua frente.
– O corpo ainda anda... Mas alma se foi com a fera.
O silêncio das duas criaturas prevaleceu.
– O que é você?
– Eu sei não. Sei que venho de mundos mais antigos, menina, mais antigos que os
sonhos pode contar... Mas inda assim, os anos não falam quem sou, os caminhos dos
outros eu vejo, mas o meu é uma noite sem lua – a mulher levou as mãos aos seios. –
Indomada já buliu muito aqui dentro de mim, mas dia e noite foro chegando de manso, rio
de água calma e tranquila. A onça dorme no coração da mulher e só nasce quando
quero...
– Há outras como você?
– Como eu, vi poucas, trilha de onça é de solidão...
– E por que me ajudou? Por que não me deixou morrer na beira do rio? – a pergunta
não trazia ingratidão, apenas a curiosidade pelo ato da criatura solitária.
– Conheço tua missão, menina. E também conheci sua mãe.
Mãe. Por muito tempo a família ausente havia sido uma obsessão para Ticia, mas os
longos anos com Sophie e Paolo curaram a dor, acalmaram a curiosidade. Mas naquela
noite de magia, perdida no meio da mata, seu passado estava inteiro de volta. Vendo o
olhar aflito da jovem, a mulher prosseguiu.
– A mãe-loba também buscava solidão. Chegou sem alcateia e outro de vocês aqui
não veio, não. Ela lhe tinha muito amor, menina, a loba dourada era bonita por demais.
– Vocês eram amigas? Como ela era? Onde ela foi? – as perguntas surgiram todas
juntas, inesperadas.
– Havia muito mato, água e bicho, muito espaço para nós. Território marcado deu
conta. Ela queria era a paz.
– Era carinhosa, eu me lembro, mas tão pouco... O que houve com ela?
– Foi os home, menina. Quando os carvoeiro chegaro invadindo a mata, machado e
fogo, ela tentou impedir. Esse teu coração rebelde vei dela. A dor da mata ferida, você
bem sabe... Duas vezes a mulher-lobo atacou e foi bem sucedida. Foi na terceira vez,
saindo no meio da noite pra caçar os monstros que lhe fizero a emboscada. Ela lutou foi
muito, mas sozinha, conseguiu não. Muitos caçadores a perseguiram, mas ela escapou e,
mesmo ferida, vei até mim. Morreu aqui, e suas últimas palavras foram pra que sempre
olhasse por você. E olhei. Quando a moça do governo te levou até a madrinha, pareceu
coisa acertada, mas tempo provou contrário. Também eu lutava com minha fera. Quando
te procurei, era tarde, segui trilha de destruição, de morte. Depois, fiz o que deveria ter
feito antes, levei você até seus iguais. Pra que nascesse de novo, menina. Até que as
noites trouxeram você de volta ao chão onde nasceu. É trilha escrita em dor e sangue,
mulher-lobo, mas é tua.
***
A loba esgueirou-se silenciosamente pelo acampamento, os trabalhadores
ressonavam nos barracos, para ela, não havia mais novidade na respiração ruidosa dos
doentes do pulmão, o cheiro do picumã e da cachaça usada como remédio, na sujeira e
no abandono. Até os dez anos, vivera numa vila junto à carvoaria e nas mais de 12 horas
que trabalhavam diariamente, era comum a presença de baratas, percevejos e
carrapatos, assim como a tosse e as doença do purmão. O cheiro de madeira queimada
ardia em suas narinas. Na produção do carvão vegetal, quase sempre clandestina, não só
a mata nativa sofria, os trabalhadores vivenciavam a super exploração, devendo mais do
que recebiam, a mercê de qualquer abuso. Uma criança tossiu na barraca ao lado e a
mulher-lobo retornou ao abrigo da mata. Naquela noite, a morte estivera muito perto de
cada um deles, mas outro destino aguardava a justiceira. Outro caminho para seguir.
Dinho. Ou ainda João Carcará, o Caçador.
Mas esse mesmo João Carcará conhecia a lenda dos lobisomens, por muito
tempo, quando ainda tinha sentimentos, temera essa e outras criaturas cuja magia
desconhecia, mas respeitava. Depois, a vida, ou a morte, passara apenas a ser um
esporte a mais. Porém, uma única noite ficara marcada em sua mente. E não pela
primeira vez, João questionou quem teria sido o responsável por aquela noite de pesadelo
e crueldade. O ataque presenciado na sua fazendo trouxe de volta essas lembranças. E
um novo ódio nascia no peito do Carcará. Era hora de caçar. De punir. De vingar-se mais
uma vez.
No escuro, o homem ergueu um brinde solitário. A cachaça desceu amarga pela
garganta num só gole. Levantou-se. Atravessando os cômodos pouco iluminados,
caminhou em direção aos fundos até chegar a um aposento afastado da casa. Por alguns
instantes, observou a mata que o cercava. Em seguida, entrou. O homem nu, caído
dentro da cela improvisada, estava amarrado com correntes, o corpo ferido se recuperava
com certa rapidez, mas as torturas renovadas impediam sua melhora. Aquele era Paolo.
Ferido, faminto, feroz. Infelizmente, indefeso.
– Vai falar, homem-lobo? Onde estão os outros? O que querem aqui?
Apenas o silêncio foi sua resposta, ele engoliu o resto da bebida e jogou o copo na
grade que o separava do prisioneiro. João Carcará pegou o aguilhão pendurado no canto
da parede e, com lentidão exasperante, encostou a ponta afiada nas costas do prisioneiro
e um choque percorreu a vítima. Ali, muitas feras já haviam sido aprisionadas, mas aquele
não era apenas mais uma. Um lobisomem. Por muito tempo ouvira o povo murmurar
sobre as criaturas, sobre a noite quando ela se fora. Ainda menino, lembrava-se da avó
contando sobre os lobos que guardavam a mata. Não era crendice, afinal. A matança que
os dois licantropos realizaram entre seus homens e a destruição de várias carvoarias e
trabalhadores, de uma forma nunca antes vista, comprovava. Porém, não havia lógica
naquelas ações, não para ele. Nem perdão para as criaturas.
Com a garrafa na mão, na ausência do copo, bebeu no gargalo, em seguida, repetiu
a dose. Da bebida e do aguilhão. A entrada do empregado interrompeu as divagações e
os gemidos contidos de Paolo.
– Licença... tá aí uma moça querendo falar com o patrão.
João considerou. Não imaginara jamais que um fantasma do passado esperava por
ele. Pensou, sim, que talvez uma caboclinha o distraísse dos pensamentos sombrios. Era
comum ser procurado por moças da região. Algumas em busca de dinheiro, outras, para
selar a paz ou conseguir favores para as famílias. Mulheres casadas ou não, oferecendo
o corpo em troca de alguma migalha. Algumas, em troca da vida de seus próprios
familiares. Ele não recusava ofertas. Nem sempre cumpria promessas. Olhou o homem
que torcia o chapéu nas mãos nervosas, parado na porta. Era um dos seus empregados
mais antigos.
– Deixa entrar, Lito, deixa entrar.
Haveria de chegar o dia de escolher um herdeiro, mas não desejava legar nada a
ninguém. O fruto amargo de suas escolhas não seria repassado.
– Que o governo coma tudo – resmungou. Vivia por viver, matar ou morrer lhe era
indiferente, mas jamais se deixaria levar pelos enganos de algum afeto. Quase sem
querer, a lembrança da menina de cabelos caramelados voltou a sua mente. Janaína. O
homem gemeu na cela improvisada, João se abaixou e, com voz suave, falou:
– Você há de uivar, lobinho, eu espero, tenho pressa não.
A poltrona era macia. Havia cheiro de tabaco e cachaça no ar, e algumas peles
faziam vezes de tapete. Ticia, sentada onde horas antes João bebia, tocou o tecido,
pensativa. Ouviu quando ele se aproximou e a surpresa do seu anfitrião por encontrá-la
tão à vontade.
João observou a moça, os cabelos longos escapavam da proteção da poltrona, que
ela girava suavemente. A visitante parecia confortável demais para seu gosto. Quando ela
girou a poltrona, pondo-se de frente a ele, o passo que ele ameaçara dar paralisou-se no
ar. A garrafa escapou das mãos trêmulas e o líquido sumiu no tapete felpudo. A moça se
levantou.
– Você está... Não pode ser você, ela. Você está...
– Viva – não havia alegria na interrupção. – Estou viva.
João Carcará firmou os olhos. Algumas noites, sob o efeito de muita bebida, ele
sonhara vê-la. Mas não conseguia acreditar. Aproximou-se e ergueu a mão, temendo
tocá-la. Em resposta, ela o fez. Com lágrimas nos olhos, pegou a mão e a levou até sua
face.
– Eu estou viva, Dinho.
– Esse nome não existe mais, como você... Não consigo entender – a mesma mão
que instantes antes torturava, deslizou com suavidade pela pele macia. E de repente, ele
se afastou.
– Mas eu vi os corpos, eu vi suas roupas e todo o sangue.
A moça caminhou até a janela sendo seguida por ele. João precisava ver a face dela
enquanto falavam. Para Ticia, cada palavra trazia agora um mundo de lembranças e dor.
– Eu estava ferida e... Estive longe, muito longe.
– Sabe como eu fiquei, o que a sua morte... – ele engoliu a saliva e a dor. – O que a
sua partida me fez? Eu quase enlouqueci, Janaína, e você estava viva, o tempo todo – a
tristeza começou a dar lugar à raiva. – Por que voltou agora? Depois de tanto tempo...
Ticia não sabia por que voltara, talvez por Paolo, por ela. E por ele. Porque
precisava... Conhecera a alma pura do menino e vira a crueldade do homem. Mais que
isso, sentia a culpa por tê-lo abandonado, a dor do esquecimento. Mas sentia também o
grito da natureza destroçada, do sangue que a terra já bebera em nome do poder, da
ganância e do simples descaso com a vida. A honra de não abandonar sua missão lutava
contra as lembranças da menina Janaína, chorando à beira de um rio enquanto o seu
único amigo procurava lhe dar consolo. Sentiu o ardor das lágrimas antes de caírem.
– Onde está o homem-lobo, Dinho?
– Eu já disse, Dinho não existe mais.
– Você precisa soltá-lo, ou então outros virão.
– Os lobisomens. O ataque na fazenda, naquela noite, foram eles? Me diz, Janaína.
– Assim como Dinho, Janaína não existe mais. Meu nome agora é Ticia. Solte o
homem-lobo, João. Ele é da minha família, entende, precisa soltá-lo.
– Eles te levaram? O que houve, Janaína, eu preciso saber! – lia nos olhos dela a
preocupação com os monstros, mas não permitiria mais aquela insanidade. Era hora de
caçar, de vingar-se do destino mais uma vez. Se foram os lobos que destruíram o que
uma vez fora o melhor que a vida lhe dera, teriam que pagar.
– Logo a morte virá levá-lo, não haverá muito que fazer. E os outros, eu esperarei
por eles também. Você o quer, Janaína? Eu lhe darei ele de volta, tudo que deve fazer é
esperar.
– Espera, Dinho... João... Eu não quero que você se machuque, não mais, eu...
Uma gargalhada irônica foi sua resposta. Para João, somente uma única pessoa
correria o risco de machucar-se ali, mas não permitiria. Gritou por Lito, enquanto tirou a
arma da cintura, encostando-a no peito da moça. – Você fica, Janaína.
Ticia não queria nem tinha forças para lutar, a arma em seu peito impedia que
reagisse. O peão ajudou a imobilizar a moça, prendendo-a com uma corda grosseira.
E, tão rápido como a sua ação, ele saiu seguido pelo homem calado e servil. Ticia
permaneceu presa na sala. Por alguns instantes, não soube o que fazer. A corda não a
deteria, mas sua mente vazia, sim. Lá fora, os homens se reuniram e gritaram,
comemorando algo. O cheiro de morte, a dor lancinante que a atingiu quando se
aproximou da janela e viu o que comemoravam. Ticia compreendeu que o fim havia
chegado. Ela não suportou a dor que lhe consumia ao ver o que restara do amigo. Seu
uivo percorreu a noite, e as criaturas, mágicas ou não, buscaram os mais escuros
recantos para se proteger.
Quando a mulher-lobo saltou pela janela, livre das cordas e levando consigo parede
e vidro, a primeira coisa que viu foi a cabeça decepada de Paolo, exposta no centro do
pátio. Ticia urrou e atacou. Os guardas que observavam a noite, revezando-se em armas,
terços e preces silenciosas, pressentiam o terror que os aguardava, mas nada os
preparara para a fera que saltou em suas costas. O lobisomem agarrou o primeiro homem
e, com força, bateu seu corpo no solo como se fosse feito de palha, jogando-o em
seguida sobre outra sentinela. Dois metros de ódio, garras, músculos e mandíbulas
ameaçadoras atacavam.
Ticia podia sentir o cheiro de Paolo, de sangue antigo, de morte. O cheiro do
Carcará, ele estava ali, ela sabia, mas outros também estavam e era preciso passar por
eles. Mas nada mais lhe importava além da raiva, do desejo de vingança. Paolo se fora,
Nikos gravemente ferido. Dinho, Janaína, eles já não existiam, uma fera maior os havia
devorado há muitas e muitas noites. Um novo ataque direto a atingiu, e enquanto ela
agarrava o homenzinho, mordendo o pescoço até arrancá-lo, os tiros começaram. A
munição pesada, destinada à caça, foi distribuída entre os capangas. A criatura uivou e
avançou, lutando bravamente com os homens que atiravam, mas as balas fizeram um
estrago, e logo estava caída no terreno. O sangue se derramava e ela fazia força para
manter a forma lupina. Arames e correntes foram passados em torno de suas pernas.
Enquanto os homens gritavam, comemorando o feito, a criatura rosnava, os ferimentos
foram tantos que ela não conseguiria se recuperar. Ticia sabia. A mulher-lobo fechou os
olhos, cansada de puxar as correntes, e sentiu quando ele se aproximou. Os homens que
a rodeavam abriram o cerco, afastando-se. Ele encostou o rifle na testa do animal. Mas a
metamorfose começara. A criatura que jazia com os pelos cobertos de sangue já não
tinha forças para urrar, os olhos avermelhados se abriram e fitaram o seu opositor, depois
ela encolheu-se e começou a ganir baixinho. Os músculos retorcidos, os gritos de agonia.
O corpo de moça se revelava aos poucos e os homens se benzeram. O Carcará apenas
esperava.
A moça estava no chão, seu sangue derramava-se na terra. Mas ela não teve medo
de encarar os que a haviam ferido mortalmente, levantando o rosto em direção ao luar. O
assombro tomou os homens, mas o pavor que viram nos olhos do chefe quando ela o
fitou os assombrariam por muitos anos. Descrença, medo, dor e por fim, lágrimas.
Dizem que a dor enlouquece os homens. João Carcará era rico, poderoso e,
principalmente, cruel. Há muito tempo não sabia o que era a razão. Pensava ele mesmo
que não lhe caberia mais nenhuma dor ou insanidade naquela alma destruída. Mas sua
maior caça fora sua maior desgraça. Ali, com ela nos braços, ferida. Sob os seus joelhos,
a terra que tanto sangue já presenciara, ele soube que sempre haveria mais tempo e
espaço para a dor e a loucura no coração dos homens. O sangue subiu aos lábios da
moça em seus braços, quando ela disse:
– Eu sou a mulher-lobo, sim, Dinho, sempre foi meu destino, mas quem é você, o
que você se tornou?
O homem não respondeu, meneando a cabeça enquanto tentava deter o sangue,
cobrindo com as mãos os buracos das balas.
– Ajudaaa! Ajudem!
Ele gritou, mas nenhum dos homens se moveu para ajudá-lo, se afastaram
horrorizados, a memória ainda presa à ferocidade da criatura. João se levantou, mirando
com o rifle os homens que se afastavam. Começou a atirar, gritando que buscassem
ajuda. Logo, estavam cercados apenas por corpos, os poucos sobreviventes
embrenharam-se na mata. João soluçou e tentou explicar
– Janaína, eu me perdi quando você se foi, Janaína... É um pesadelo! – ele gritava
e, em sua dor, as lembranças se sucediam. – Naquela noite, eu prometi, eu soube, não
há nada de bom nesse mundo, há apenas dor e... Você estava morta. Ninguém se
importava, nem a madrinha, nem ninguém... Por que não me disse o que você se tornou,
o que eles fizeram com vo... – a moça estendeu as mãos e tocou os lábios do homem
desesperado ao seu lado.
– Você jamais entenderia. É o meu destino, Dinho, uma mulher-lobo, sim... Como foi
minha mãe, lobisomem como o meu pai. Sempre foi meu destino.
– Minha fé se foi com você, Janaína, como você teve coragem... Eu nunca mais tive
paz, nem pude dormir...
A moça ergueu as mãos e, suavemente, tocou o rosto daquele que por muitos anos
fora seu protetor e, quis o destino, sua última missão. Antes de fechar os olhos,
murmurou.
– Eu sempre estarei com você, Dinho.
Os poucos sobreviventes do ataque à Morada dos Tuiuiús não gostam de falar da
dor, do desespero e dos gritos que homens e feras lançaram na noite, nem do Rei do
Carvão, ajoelhado ao lado daquela que por muito tempo julgara morta. Tampouco da
mulher-lobo que chorou lágrimas de sangue e estendeu as mãos delicadas em direção ao
mais cruel dos carvoeiros, e dos tiros que ele disparou contra seus próprios homens.
Depois, apenas o silêncio da mata, da fuga desesperada.
João Carcará depositou o corpo da moça sobre a terra lavada pelo sangue,
suavemente, tocou-lhe o rosto e levantou-se.
– Dessa vez, eu vou com você, Janaína.
No pátio solitário, um único tiro se ouviu.
Dos corpos nunca encontrados e do fogo que consumira a fazenda não falariam,
contavam, sim, dos lobisomens que destruíram as carvoarias, que vingaram a terra e as
árvores mortas. Conversas de beira de fogão, de estradeiros e comitivas. Dos mistérios
da alma, dos amores e tragédias ali vistos, não poderiam jamais explicar.
Nikos, o único sobrevivente do trio que chegara à região, terminou sua missão, mas
jamais voltaria. Outros viriam... Para a Green Death, a viagem ao Centro-Oeste não seria
a primeira, muito trabalho ainda haveria de ser feito na preservação de um dos mais ricos
ecossistemas do mundo.

~*~
Contato com a autora:
tania.mara.ms@gmail.com
http://alitfan.blogspot.com
INCÚRIA (Susy Ramone)
Três grandes lobisomens noruegueses se esgueiram sorrateiramente pela plantação
de milho. Uma nova descoberta sobre atividades ilícitas os aborda enquanto passam pela
vegetação. Rana, a líder do grupo, foi a primeira a reconhecer o cheiro peculiar das
pequenas moitas de maconha, cujo milharal camufla. Ficou claro naquele instante o tipo
de gente que iriam encontrar. Não estavam ali para desmascarar traficantes, tampouco
em uma operação típica da Green Death. O motivo era outro. Porém, forte o suficiente
para que a equipe fosse mobilizada. Magnus era o mais alarmado dos três. O coração
tiquetaqueava feito bomba-relógio prestes a explodir. Apesar de também ser um alfa, não
compartilhava com Rana a liderança. Não desta vez. Estava agitado, inquieto e
perturbado. Contudo, fizera questão de vir pessoalmente resgatar o que lhe fora tomado.
Aquilo era pessoal. Os motivos do sequestro, desconhecidos. Levavam uma vida acima
de qualquer suspeita, o que tornava a situação ainda mais indigesta e inconcebível.
Arik, um beta, filho mais velho de Magnus, também avançava passo a passo e mal
podia conter a fúria que dominava os seus sentidos. Tenham calma, não ponham tudo a
perder! A advertência chegava telepaticamente. Vinha da sábia loba alfa que,
secretamente, praguejava a presença daqueles dois. Estavam muito abalados e a
probabilidade de meterem os pés pelas mãos era demasiadamente grande.
Mais adiante, uma luz fraca e risos despreocupados escapavam pela janela da
cabana de madeira. O choro angustiado da pequena Jord penetrava como faca afiada em
seus ouvidos lupinos.
A exata localização do cativeiro, onde aqueles terríveis homens mantinham a jovem
ômega, se deu através de um breve trabalho de busca. A relação da Green Death com
organizações influentes e a inexperiência dos sequestradores os conduziram rapidamente
ao esconderijo do bando. Tudo levava a crer que se tratava de uma represália de
empresas atacadas recentemente pela Green Death, mas não havia como ter certeza.
Tudo começou na tarde de ontem, quando homens armados até os dentes
invadiram a escola onde Jord estudava e a capturou. Os membros da alcateia que
estavam mais próximos do local – precisamente seu pai e seu irmão – ouviram os pedidos
de socorro da menina, mas chegaram tarde demais para que alguma coisa fosse feita de
imediato.
A pobre criança, ainda incapaz de controlar seus dons telepáticos com precisão, não
conseguira guiá-los corretamente. Numa corrida desenfreada pelas ruas, cruzando sinais
vermelhos e ignorando qualquer regra de trânsito que pudesse existir, Magnus e Arik
seguiram aquelas súplicas até quando a distância permitiu. Jord estava apavorada
demais para se concentrar em algo que não fosse os seus próprios gritos. Gritos que a
seguir foram debelados por uma austera mordaça. Enquanto os sequestradores ouviam
apenas resmungos e gemidos incompreensíveis, Magnus tinha a alma dilacerada com
aquele pedido urgente de sua filhinha. Sinais que foram se esvaindo conforme a gangue
se afastava. A conexão perdeu-se por completo em meio aos prédios cinza da cidade, e
de modo miserável, aquele pai e aquele irmão foram arremessados no mais profundo
abismo que alguém pode mergulhar.
Não havia tempo para ficar com a cabeça enfiada nas mãos, entregue ao desespero
sem saber o que fazer. Cada minuto era precioso. Arik já grudara no celular e mesmo sob
o olhar reprobatório do pai, contatava a Green Death. Naquele momento, viaturas
atravessavam as ruas em direção à escola. Com as sirenes ligadas, costuravam
velozmente o trânsito, como se ainda houvesse tempo de impedir o que já era
lamentavelmente impossível.
– Mas é claro que vamos ajudar! – Disse a voz do outro lado da linha. – Acalme-se,
Arik. Venham já para cá. Vamos ver o que conseguimos descobrir através das câmeras
de segurança e colocaremos nossos agentes em ação.
Prontamente a equipe se organizou. Não foi difícil encontrar as imagens dos
sequestradores. As informações que conseguiram com a placa do veículo que utilizavam
no momento do crime já eram óbvias. O carro acabara de ser roubado, mas pelo menos
já sabiam o modelo e a cor do veículo a ser localizado. O amadorismo com que os
bandidos planejaram a sua fuga tornara-se evidente. O rastreador os levou ao local exato
em que o carro fora abandonado e a polícia já estava lá recuperando o bem do motorista
assaltado. Passaram direto pela estrada para que os policiais não suspeitassem. Depois
de percorrerem alguns quilômetros, retornaram e, verificando que nem o carro e nem as
pessoas estavam mais ali, foram analisar a área.
Era um pequeno descampado a alguns quilômetros da cidade. Nada ao redor a não
ser algumas árvores murchas que ladeavam a estrada e, mais além, um vilarejo de
pessoas pobres. Seria fácil demais se tivessem se escondido ali. O local do cativeiro
obviamente não era aquele, mesmo porque a terra seca espalhada dava indícios de que
um helicóptero levantara voo, e se Jord estivesse por perto, poderiam senti-la.
Mesmo diante dessa certeza, partiram correndo em direção à vila e confirmaram
com alguns habitantes as suas suspeitas. Segundo as testemunhas, a aeronave havia
pousado e partido rapidamente sem que o motor fosse ao menos desligado. Alguns
diziam que o fato ocorrera há três horas. Calculando o horário em que Jord fora levada e
o tempo necessário para que chegassem ao local, vieram a comprovar mais uma vez as
suas suposições.
Já passava das seis da tarde. Magnus não podia conter a angústia. Conforme o céu
enegrecia, tornava-se cada vez mais obscuro o seu coração lupino. Tão obscuro quanto o
de Arik, que arfava o peito ferozmente, demonstrando cólera enquanto retornavam ao
veículo.
A maneira como chegaram a dados exclusivos sobre a rota que o helicóptero havia
feito se deu com o auxílio de um amigo informante.
A essa altura, as imagens dos sequestradores já haviam sido verificadas e um deles
fora identificado. Era francês. Uma extensa ficha criminal, que vai desde pequenos roubos
até tráfico de drogas e assassinatos, resume em algumas páginas a vida do desvirtuado
indivíduo foragido. A questão que atormenta os membros da organização e a pergunta
que constantemente paira em suas mentes é por quais motivos aquele bando de animais
sequestrariam a pequena Jord? Não houve nenhuma missão na França nos últimos anos
e não conseguiam se lembrar de ninguém daqueles lados que tivesse motivos para
querer armar alguma coisa contra eles.
Uma punhalada golpeou igualmente a todos quando não conseguiram um
helicóptero para que chegassem até o local. Teriam partido imediatamente, mas nenhum
de seus contribuintes secretos poderia ajudar. Alugar uma aeronave estava totalmente
fora de questão. Teriam que aguardar até a manhã seguinte quando um amigo, que há
muito já apoia as estratégias clandestinas da Green Death, prometera disponibilizar o
meio de transporte. Não havia escolha.
Arik sugeriu que fossem de carro, mas depois reconheceu que aquela alternativa
não era viável. Caso saíssem naquele momento, teriam que dirigir por, no mínimo, um dia
e meio para alcançarem o local. Se partissem pela manhã, fariam o percurso em poucas
horas de voo.
A noite estava sendo demasiadamente longa. Desesperadora. A necessidade de
extravasarem toda aquela dor era intoleravelmente latente em suas essências.
Magnus e Arik partiram pela escuridão. Nada mais podia ser feito naquele momento.
Os outros foram para suas casas descansar. O dia seguinte seria cheio. Que
descansassem. Eram-lhes gratos por se envolverem com tanto entusiasmo em um
assunto particular. Aquele grupo era bem mais do que uma organização ecoterrorista. Era
uma família. Não existia prova maior de seu companheirismo e fidelidade. Porém, a
sensação de que fizeram tudo o que podiam não os acalmava os nervos. O que fazer
quando o bastante não é suficiente? Quando o sentimento de que o possível ainda não
fora realizado e insiste em soprar em seus ouvidos com a sutileza de um furacão? Se ao
menos tivessem sido mais ágeis, se ao menos pudessem voltar no tempo... Poderiam ter
feito mais, poderiam ter agido com mais rapidez... A sensação de fracasso, de terem
falhado com Jord avultava suas almas com a ferocidade de um lobo.
No meio do parque da cidade, após as luzes serem apagadas junto com as suas
esperanças de que algo mais pudesse ser feito naquele instante, dois homens se
transformaram em criaturas inimagináveis. A dor, a fúria, o desejo de vingança se
tornaram evidentes com o estalar dos ossos, com a aceleração cardíaca, com o inflar
urgente dos pulmões, com a adrenalina que lhes saltava pelos poros quase sincronizada
com os pelos negros que brotavam de suas peles absurdamente mais grossas e
resistentes.
Seus corpos metamorfoseavam como uma sinfonia sinistra regida pela orquestra
noturna. A transformação da dor e da angústia no mais perfeito balé macabro do alívio se
deu quando seus ossos se reencaixaram e a febre deu lugar aos sentidos apurados. A
sua condição era uma dádiva. A brisa noturna invadiu suas narinas como acalanto para o
sofrimento. Uivos rasgaram o silêncio da noite destruindo, destroçando, dilacerando
qualquer resquício de urgência que os atormentava em suas formas humanas. Um refúgio
para o espírito. Um remédio para a angústia. A respiração tornou-se branda e, a seguir,
emoldurados pela lua, dois lobisomens negros correram livres pela mata.
Assim que a aurora substituiu a noite, Magnus e Arik retomaram suas formas
humanas e abriram um vínculo mental com os agentes que os ajudavam. O helicóptero já
estava disponível, e então se reuniram para que os planos do resgate fossem traçados.
– Eis a rota – Rana disse esticando um mapa sobre a mesa. – Não podemos ir de
helicóptero até o local. Pousaremos aqui nesta clareira e seguiremos a pé para não
levantar suspeitas.
– Certo – Bedolf concordou. – Deste ponto até lá deve ter uns seis quilômetros. Em
nossas formas lupinas faremos o percurso rapidamente. A área agrícola nos dá a
vantagem de passarmos despercebidos.
– Isso mesmo – Ulmer assentiu. – Rana vai liderar. Bedolf e eu a acompanharemos
até o cativeiro, mataremos os caras e recuperaremos a menina. Parece simples.
– E quanto a nós? – Arik perguntou.
– Sugiro que vocês dois fiquem aqui. Não estão em condições psicológicas de
participarem da operação – disse a loba.
– De jeito nenhum! – Magnus discrepou. – Nós precisamos ir. Temos que participar!
– Magnus, eu não acho que vocês devam...
– Façamos o seguinte – ele a interrompeu. – Você lidera e Arik e eu te
acompanhamos.
Todos se entreolharam. Para que um alfa ceda a liderança de uma missão a outro
alfa é porque realmente necessita compartilhá-la.
– Está certo – Rana concordou. – Mas...
– Pode deixar, faremos o que você mandar – Arik falou, por fim, e o helicóptero
partiu com Bedolf na pilotagem.
Agora os três estavam ali, a apenas alguns passos da pequena Jord.
Assim que pousaram na clareira, a seis quilômetros, Rana ordenou que Bedolf
ficasse de prontidão. O plano era matá-los e pegar a menina. Feito isso, enviariam um
sinal telepático e Bedolf deveria decolar e pegá-los no local.
Ulmer ficou incumbido de cobrir a área frontal da cabana. Caso algum daqueles
homens escapasse, cairia direto em suas garras.
Prestem atenção vocês dois. O ataque vai ser rápido. Nós vamos entrar pela janela,
abocanhá-los no pescoço e recuperar Jord. Só isso. Entenderam? Nada de ficarmos
arrancando membros e brincando de terroristas. Entenderam?
Após o consentimento, ela deu o sinal. Agora!
– Mon Dieu! – Gritos ecoaram. Uma saraivada de tiros inúteis espocou. Pescoços
destroçados tingiram o chão de vermelho.
Onze homens foram pegos desprevenidos. Não deu tempo de escaparem. Magnus
não obedecera às ordens de Rana. Atacou quatro deles sem tirá-los a vida e retomava
sua forma humana diante de olhos incrédulos.
Rana ficou furiosa. Eu disse não! Ela gritou em sua mente e pulou com ferocidade
em cima de Magnus. Meio homem, meio lobo, ele revidou. Garras rasgaram a cara da
loba antes que a pata fosse decepada pela instintiva abocanhada da fêmea.
Arik interferiu em favor do pai, mas àquela altura, Rana recuava percebendo o que
acabara de fazer.
Amarrada em uma cadeira no canto, Jord arregalava os olhos de pavor.
Dos quatro bandidos com pernas e braços arrancados por Magnus, três
desfaleceram.
Sem a mão esquerda e já como um homem, Magnus lançou um olhar de ódio à
líder. Aquele ato mudara para sempre a sua vida. Um lobisomem decepado, ao voltar à
forma humana, nunca mais se transforma em lobo.
– Eu só ia perguntar! – Ele justificou a desobediência entre dentes. Com a mão
direita, esbofeteou o sobrevivente com toda a fúria que existia. – Por que sequestraram a
minha filha? – O homem com a perna arrancada deu um último suspiro e sua cabeça
pendeu frouxa no chão.
– Merda! – Magnus berrou.
Rana gemeu com pesar. Não suportou ser desobedecida. Ela e Arik se ergueram
nus em outra forma física. Ulmer adentrou a cabana. O que vocês fizeram?
Ninguém respondeu. Um sinistro silêncio pairou sobre eles. Rana desatou a criança.
Ia abraçá-la, mas Jord se esquivou e correu de encontro ao pai. Arik amarrava tiras de
pano no braço amputado de Magnus. Nada restara da mão para que pudesse ser
reimplantada.
Rana baixou o olhar. Venha, Bedolf. Acabou.
Minutos depois, Bedolf pousou. O mesmo silêncio os acompanhou durante todo o
trajeto para casa. Pedidos de desculpas não seriam necessários naquele momento. Os
dois erraram. Sabiam disso. Magnus porque desobedeceu e Rana porque feriu
gravemente o seu amigo. O que intermediava o ódio de Magnus e o pesar de Rana era o
fato de que Jord estava bem. Isso era mais importante do que as suas atitudes
impensadas.
Para limpar a sujeita que ficou e acobertar os assassinatos, os amigos da Polícia
Federal. Era-lhes interessante que levassem os créditos por terem descoberto e destruído
mais uma plantação clandestina de maconha.
No hospital, enquanto Magnus se recuperava depois da cirurgia, Rana entrou no
quarto com o semblante preocupado e cheio de cicatrizes. Magnus estreitou os olhos e a
seguir adoçou a expressão. Me perdoe. Os dois pensaram no mesmo instante e Magnus
usou o braço bom para puxá-la junto dele. Um abraço de absolvição foi trocado com
sinceridade.
– Eles a sequestraram por engano – Rana falou com a voz embargada. – Achei que
gostaria de saber.
– Eu imaginei.
– Os caras eram novos por aqui. Vieram do norte da França há poucos meses para
localizar um traficante que os devia alguns milhões. Não tinham a mínima ideia de que
este é o nosso território. Nem sequer sabiam da nossa existência. Instalaram-se naquela
área e ameaçaram o dono da plantação de milho. O pobre homem ficou calado, com
medo de que matassem a sua família. Admitiu a coação para a polícia depois que eles
encobriram as nossas ações por lá. Infelizmente, vai ter que responder pela maconha que
os caras plantaram em suas terras. Foi o meio que encontraram de se manter enquanto
procuravam pelo caloteiro.
– Então eles vieram para cobrar uma dívida.
– Sim. E quando localizaram o seu devedor, descobriram onde a filha dele estudava
e parcamente planejaram o sequestro. A garota em questão está na mesma sala de Jord
e tem as mesmas características físicas dela. Isso explica o engano.
– Que estúpidos! – Magnus apertou as pálpebras e suspirou. – Bem, fico aliviado em
saber que não foi uma vingança contra mim ou contra a organização.
– Não. Não foi.
– Eu sinto muito pelo seu rosto, Rana.
– E eu sinto muito pela sua mão.
– Não foi só a minha mão que eu perdi, você sabe...
– Ah, Deus, eu sinto tanto... – Rana desabou a chorar.
– Ei, está tudo bem – Magnus a consolou. – Me desculpe, eu não quis te chatear. Eu
posso viver com isso. Vou me readaptar, não se preocupe – Limpou as lágrimas da moça
e beijou-lhe a testa. – Se tem algo que eu não poderia suportar é viver sem Jord. Está
bem?
Rana balançou a cabeça num gesto afirmativo, mas teria que conviver com aquela
culpa pelo resto dos seus dias. Tirar de um lobisomem o poder da transformação é como
tirar de um homem a sua virilidade. Aquele se tornara o seu fardo. Não tão pesado quanto
o de Magnus, mas viver em paz com a sua consciência estava longe de ser possível.
Toda vez que se olhasse no espelho e visse aquela cicatriz, se lembraria do que fez.
Arik e Jord entraram no quarto com um imenso buquê de flores.
– Ei! – Magnus disse com bom humor. – Guardem isso para o meu enterro!
Todos riram e se abraçaram.

~*~
Contato com a autora:
susyramone@gmail.com
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XINGU – QUANDO AS FORÇAS SE UNEM (Gerson Balione)
Os índios sempre foram os guardiões das florestas. Como guerreiros, protegiam a
fauna e a flora de suas regiões. Mas agora, isso está se transformando numa luta em que
os índios estão levando a pior. Suas terras, fauna e flora vêm sendo dizimadas pelo
progresso do homem branco, que não sabe conviver em harmonia com a natureza.
Em meio ao esforço pela preservação da vida e da cultura indígena, uma guerra
silenciosa foi deflagrada. Na calada da noite, tribos inteiras começaram a ser destruídas.
Políticos inescrupulosos mantinham as chacinas na obscuridade. Até que, fartos, os
índios começaram a reagir. Um pajé da tribo Yudjá (Juruna), vendo a bravura dos irmãos
Itagi (machado de pedra) e Piatã (forte e vigoroso), na luta pela sobrevivência, decidiu
ajudá-los. Reuniu os espíritos da floresta, lançando sobre eles uma magia. Essa magia
daria aos irmãos o poder de se transformarem em feras, meio homem, meio Janauíra
(cachorro vinagre), e assim expulsar os homens brancos da região, impedindo a
devastação do meio ambiente. Agora, o verde da floresta ficará manchado de sangue
para sempre...
Uma guerra está sendo travada no Alto Xingu com a construção da Usina de Belo
Monte. Várias tribos terão que deixar suas terras para a construção da terceira maior
usina hidrelétrica do mundo. Mas a que preço?
***
Área de desmatamento – Implantação do Canteiro de Obras – Usina Belo
Monte – estava escrito numa placa, que foi arrancada e arremessada longe. Um homem
assustado apareceu correndo...
– Desgraçada! – gritou ele, um operário da empresa contratada para o
desmatamento corria desesperadamente. – Só pode ser uma onça! Só pode! –
apreensivo, ouvia os rosnados. – Ai meu Deus! Não quero morrer...
Uma sombra no meio da mata acompanhava-o à distância. Desesperado, corria na
direção do rio. Parou perto da margem. E da mata, a fera saiu, revelando-se para ele.
– Você não é uma onça... Que bicho é esse? – começou a rezar em voz baixa.
Não tinha alternativa se não pular no rio. E foi isso que fez.
– Venha seu... Seu desgraçado!
Outro animal surgiu sorrateiramente por debaixo d’água sem que percebesse. Ele
nadava de costas sem tirar os olhos do animal que o observava parado à margem. O que
vinha pelas costas emergiu das águas soltando um rosnado assustador. Ao virar-se,
deparou-se com outro animal da mesma espécie. Era uma cilada, ele foi exatamente para
onde os bichos queriam que ele fosse, para dentro do rio. Tentou recuar, mas era tarde. O
outro saltou para dentro do rio. E o que se ouviu foram apenas gritos de terror e dor,
desferidos pelo pobre operário nos últimos segundos de sua vida. E uma mancha de
sangue misturou-se às águas do rio.
***
Brasília – Congresso Nacional

29
– Não faz sentido! Esta usina é inviável! – exaltado, um político falava no plenário. –
Este projeto tem grandes problemas!
– Ora! Seu partido de ambientalistas fanáticos! Só dizem besteiras! – respondeu
outro político a favor do projeto.
– Tenho estudos que comprovam que esta usina é uma “usina para comer dinheiro”,
isso sim! – dizia num tom exaltado. –Vocês irão destruir toda a flora e fauna, sem falar
nas tribos que vivem em toda a região... Em época de cheia, ela irá gerar pouco mais que
11 mil MW. Isso já coloca a viabilidade econômica do projeto em dúvida...
Uma confusão generalizada estava formada no congresso, e a sessão teve que ser
encerrada.
***
Alguns meses mais tarde – As manchetes dos jornais diziam:
... IBAMA dá “autorização de supressão de vegetação” ao Consórcio Norte Energia.
O início dessas obras infraestruturais antecede a construção de Belo Monte. O
procedimento envolve a autorização para o desmatamento de 238,1 hectares, sendo 64,5
hectares localizados em Área de Preservação Permanente...
... Político contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte é encontrado
morto em viagem de visita às tribos da região do Alto Xingu...
***
– Fala, doutor! Sabe o que eu queria falar pro senhor? É que nós estamos tendo
problemas com alguns índios e alguns ambientalistas...
– Que se danem os ambientalistas! Não quero saber o que esses caras vão falar! Já
temos a aprovação do projeto... – dizia a voz do outro lado da linha. – Eu quero essa
cambada de índios fora dessa região! Haja o que houver... Mate se for preciso!
– Mas senhor...
– Não tem mas.... Tem que derrubar tudo aí... Depois que estiver tudo no chão,
ninguém pode fazer mais nada. Dinheiro não é problema – o telefone foi desligado
abruptamente.
– O que foi, Sergião? Tá com cara de bunda!
– O Dr. Queiroz está bravo. Disse que é pra fazer o que for preciso pra tirar os índios
de lá... Até matar!
– Até que enfim vamos ter ação neste fim de mundo – disse o outro capanga.
– E vai ser esta noite. Chame o resto do pessoal e mande trazer as armas.
– Pode deixar.
***
A noite caiu e os homens estavam armados até os dentes, iriam expulsar a tribo de
Jurunas que ocupava uma grande área na região. Chegaram fazendo barulho. Vinte
30
homens chegaram armados em seus jipes e pickups. Os índios assustaram-se com o
barulho e os tiros para o alto.
– Vamos, cambada, vocês vão sair na marra daqui! – gritava o chefe do grupo.
Os homens entravam nas cabanas e retiravam as mulheres à força, crianças eram
empurradas para fora e jogadas no chão, sem dó.
– Vamos, seus vagabundos!
Um índio surgiu segurando um facão, mas foi alvejado com vários tiros.
– Vai todo mundo morrer aqui, hein?!
– Falta apenas uma cabana, chefe!
Um ruído estranho veio de dentro da moradia, deixando-os receosos.
– E o que estão esperando?
– Entrem aí! Já matamos um índio e agora estão com frescura?
Os índios foram colocados no meio do terreno, cercados pelos homens armados.
– Quem mora ali? – perguntou um dos homens que segurava o cacique da tribo. –
Quem? – ele nada falou e tomou uma coronhada na cabeça. – Andem logo! – outro ruído
chamou a atenção de todos.
Seguindo as ordens do chefe do bando, três homens adentraram a cabana. Estava
escuro no interior da moradia. Os três entraram e desapareceram na escuridão. Em
seguida, tiros foram disparados e o clarão que se fazia dentro da cabana mostrava a
silhueta dos homens entre as frestas do pau a pique. Mais tiros e gritos e alguns
segundos depois, apenas silêncio. Todos se entreolharam assustados.
– Quem está lá dentro? Perguntou um dos capangas ao líder indígena que, ainda
caído no chão pela coronhada, foi chutado, mas ele nada falou.
Quatro homens foram em direção à cabana e, ao chegarem perto, perceberam o
sangue que escorria em abundância pelas frestas das madeiras do piso elevado,
gotejando na terra. Recuaram alguns passos.
Um dos capangas engatilhou sua arma e apontou para a cabeça do cacique. No
instante seguinte, o telhado da casa espatifou-se indo pelos ares, e a silhueta de duas
formas bizarras pôde ser vista em meio aos destroços de madeira e palha. Uma das feras
caiu bem perto do grupo que estava à porta da cabana, e a outra caiu ao lado do homem
que mantinha o índio na mira. O salto fora de mais de seis metros de distância.
– Minha mãe do céu... o que é isto? – balbuciou um dos homens próximo à cabana.
Foi o primeiro a ter a cabeça arrancada pela patada do animal.
Os outros sequer tiveram tempo de atirar, seus braços foram arrancados ainda
segurando as armas.
O outro animal desferiu um golpe que abriu o ventre de um dos malfeitores antes de
atirar no líder indígena. Ele viu suas próprias visceras se espalharem pelo chão. Ainda
quente, despersavam fumaça em contato com o sereno frio da noite. O ataque foi rápido e
preciso. A fera saltou para o próximo, que atirava sem mira nenhuma. Os dois braços
foram arrancados.
O chefe do bando e mais dois correram para a pickup, onde o motorista olhava
atônito para o que acontecia.
31
– Vamos! Ligue essa merda! – gritava o chefe enquanto corria em direção ao
veículo. O motorista demorou alguns segundos para assimilar o que acontecia.
Os animais corriam muito rápido. Os outros dois jagunços, que também ficaram para
trás, foram atacados. O chefe do bando pulou na carroceria da caminhonete e, enquanto
as rodas derrapavam no barro, via os corpos dos comparsas sendo dilacerados pelos
monstros.
– Vai! Acelera essa merda! Vamos, vamos...
Piatã levantou a cabeça. Com a boca ainda cheia de sangue da vítima, soltou
grunhidos. Itagi, com um dos braços do outro homem ainda na boca, também olhou... Os
dois pararam o que faziam e partiram em disparada atrás dos fugitivos. Agora corriam
sobre as quarto patas para, assim, serem mais rápidos. Corriam lado a lado.
– Eles estão nos seguindo! Acelera isso! – disse o chefe pela janela traseira.
Quando voltou a olhar para trás, as feras haviam sumido. – Ótimo, eles sumiram.
De repente, vindo pela lateral, uma delas pulou na caçamba. Aos gritos, o homem se
debatia e tentava apontar sua arma para a fera que, com um golpe de sua pata, o jogou
para fora. O motorista, aos gritos, alternava em olhar para trás e para frente e, com uma
das mãos, tentava pegar a arma sobre o banco. Nessa tentativa, perdeu o controle da
caminhonete, saiu da estrada e bateu de frente contra um tronco de uma árvore tombada.
O impacto arremessou o animal e o chefe para fora do pequeno caminhão, passando por
cima da cabine. Ainda no ar, agarrado ao homem, o animal despedaçou seu corpo como
uma folha de papel picada e lançada ao vento, desaparecendo em seguida na densa
mata. Ainda atordoado, o motorista sangrava na testa. Conseguiu sair de dentro do
utilitário. Ouvia sons de bichos por toda parte. Assustado, correu sem direção. Viu a
sombra de algo cruzar sua frente e desaparecer. Desesperado, nem percebeu que cada
vez mais se embrenhava na mata. Ouviu outro barulho, agora parecia uma onça, mas ao
olhar para trás, viu outro bicho. Tinha mais ou menos um metro e noventa de altura,
andava ereto como um homem, mas parecia um cachorro. O focinho curto mostrava os
dentes. Foi recuando a cada passo da fera. Não percebeu o barranco que descia até um
rio, escorregou e caiu. Antes mesmo de encostar na água, a outra fera saltou de dentro
do rio, pegando-o ainda no ar. A última imagem que viu, antes de afundar na água escura
e ter o corpo devorado, foi a outra fera pulando de cima do barranco.
***
Holanda – sede secreta da Green Death
Dentro de uma sala sem janelas, à meia luz, quatro pessoas, três homens e uma
mulher, encontavam-se sentadas em torno de uma mesa retangular. Defronte a um telão.
– Senhores! Prestem atenção nas imagens que iremos ver no telão... Pode rodar! –
disse Huygens, o alfa, chefe do grupo.
Êsi Ája (cachorro cavalo), um nigeriano musculoso, Luna (lua), uma espanhola de
cabelos prateados como a lua e Gek (louco), todos betas, olhavam atentamente as
imagens.
– Estas fotos foram tiradas por nosso contato no Brasil – as fotos mostravam
pessoas destroçadas e muito sangue. Marcas de garras chamaram a atenção de Luna.
– Quem eram eles?

32
– Não se sabe ao certo. O que nosso contato descobriu é que estão acontecendo
alguns conflitos na região do Alto Xingu envolvendo a construção de uma hidrelétrica,
massacre de índios e políticos corruptos. Muitos índios vêm desaparecendo e, de uns
tempos para cá, algumas mortes estranhas começaram a acontecer. Estas pastas azuis
contêm um relatório sobre os acontecimentos. Já tivemos um grupo atuando nessa região
há tempos. Mas estes fatos são novos.
– Que marcas são essas no chão? – perguntou Êsi Ája após ver as pegadas na
terra.
– É exatamente isso que queremos descobrir. Não se parecem com as nossas. O
que dá a entender é que eles possuem membranas entre os dedos. Possivelmente são
adaptados para a água. Pelo tamanho das pegadas, deduzimos que não são tão grandes
quanto nós. Achamos que se trata de uma nova espécie lupina que vem tentando
proteger as tribos na região. Nós iremos até lá para descobrir. Vamos encontrar com
nosso contato no Aeroporto de Belém/Brigadeiro Protásio de Oliveira em Belém do Pará,
e de lá seguiremos, também de avião, até a cidade de Altamira. Seremos um grupo de
biólogos/turistas. André é nosso contato brasileiro. Ele é um simpatizante pela nossa
causa. Está infiltrado como fotógrafo criminalista na polícia científica da região... Luna
será nossa interprete, pois é a única que fala português. Leiam o relatório. Sairemos
amanhã pela manhã.
***
Brasília – Gabinete do Senador Queiroz
– Como assim sumiram? Já falei para não me ligar... é pra esperar que eu entro em
contato... E quem teve acesso aos corpos? Só a policia local? Ótimo! Vai entrar um
numerário na sua conta, mas é pra distribuir pro pessoal. Assim ninguém abre a boca.
Vou dar um jeito nesses índios desgraçados... Vê se limpa tudo por aí e não quero ver
meu nome nesta sujeira.
***
Cidade Novo Gama – GO
– ...E o que Vossa Excelência precisa?
– Matadores profissionais, para atuar no limite extremo.
– E é pra matar quem?
– Quem entrar no caminho. Índio, mulher, velho, criança, ativista. É para tirar todo
mundo de lá.
– Isso vai custar caro para Excelentíssimo Senhor.
Ao comando do Senador, seu segurança abriu uma maleta de alumínio que
caregava. Ao abri-la, o brilho dourado das barras de ouro reluziu com a fraca luz da casa.
– Hehehe! Caralho, doutor! Então, só pra eu ficar mais à vontade... Eu vou com
meus melhores homens, naquele fim de mundo, matar índios e ecologistas. E tu vem com
uma maleta cheia de ouro pra me pagar? Chefia, isso tá cheirando coisa grande... Tu é
homem de poder. Entrou aqui no favelão pra falar comigo pessoalmente... Não sei, não...
– confabulou alguma coisa com o irmão ao seu lado. – É o seguinte, Vossa Excelência...
Vou querer mais uma dessas pastas cheias...
– Pera aí, mas o combinado...
33
– Combinado o caralho! – disse o outro que permanecera calado até então.
Neste momento, outro segurança que acompanhava o Senador sacou uma
automática, mas da penumbra, em torno da velha casa, seis homens apontaram fuzis e
pistolas com mira a laser para o Senador.
– Tu tá maluco, doutor? Tá querendo morrer?
O Senador mandou o segurança abaixar a arma.
– Assim tá melhor. Quero outra quantia desta ou nada feito. E quero amanhã!
– E como vou saber que você vai executar o serviço?
– O senhor tá contratando os Irmãos Rocha, somos profissionais.
– Então está certo – o Senador suava em abundância. – Mando as coordenadas
junto com o resto do ouro, amanhã.
***
Cidade de Altamira
– Que fim de mundo é esse? – perguntou Gek.
– Estamos na Amazônia – respondeu André. – Vamos, aquela Land Rover é minha.
Êsi Ajá e Luna apenas olhavam. Huygens conferia algumas anotações enquanto o
carro sacolejava por conta dos buracos nas ruas de terra da cidade. Gek imitou um lobo
uivando enquanto olhava para André que sorria. Recebeu um tapa na cabeça do amigo
nigeriano.
Já acomodados na casa de André, Huygens dava as últimas coordenadas para o
grupo.
– Amanhã partiremos para o local do último conflito. Faremos uma busca minuciosa
na região onde foram encontrados os últimos corpos.
***
Era madrugada quando um jato Legacy pousou na pista do Aeroporto de Altamira.
Sete homens seguiam para duas caminhonetes de cabine estendida. Um terceiro veículo
era carregado com as bagagens e algumas caixas. Seguiram para uma fazenda distante
da cidade.
***
– Vai levar umas três horas até chegarmos ao local – disse André enquanto
colocava algumas mochilas no porta-malas de seu Land Rover. – Depois, mais uma hora
de caminhada.
Luna passava a informação para os amigos.
No caminho, viram uma grande movimentação de caminhões levando garimpeiros.
Gek pediu à amiga que perguntasse o que estava acontecendo.
– Ouro, meu amigo. Gold... É a nova corrida do ouro.
Ela traduziu. Huygens anotava algumas informações em seu laptop.
***

34
– Chegamos – disse André, estacionando o veículo. – O local do canteiro de obras
da hidrelétrica está abandonado. Depois das últimas mortes, os trabalhadores ficaram
com medo.
As bagagens foram retiradas do veículo, cada um pegou a sua e rumaram para
dentro da mata. André partiu de volta para a cidade.
Pessoas normais levariam uma hora para chegar até o local. O grupo chegou em
meia hora, apenas. Vasculharam tudo atrás de pistas sobre a nova raça lupina. Mas até
então, nada.
– Estou sentindo cheiro de sangue – disse Gek levantando suas narinas. – Vem dali
– apontou ele.
Ele foi à frente, seguido por seus amigos. Chegou numa pequena clareira onde
cinco corpos estavam amontoados.
– São índios! – disse ele. – E com certeza não foram atacados por nenhum animal –
as perfurações de balas eram visíveis em suas cabeças.
Mentalmente, avisou seus companheiros.
– Isso é recente, coisa de algumas horas. Fiquem atentos.
Rapidamente, todos estavam em alerta.
– Vamos encontrar um lugar seguro para nossas coisas – disse o alfa do grupo. –
Gek, leve nossas mochilas para o alto daquela árvore.
Todos estavam nus. Suas roupas foram guardadas nas respectivas mochilas e a
transformação em lobos começou. Gek olhava fixamente para Luna enquanto ela se
transformava.
– Você me excita quando faz isso, sabia? – disse ele para a garota. Ela apenas
sorriu. Com rapidez e agilidade incrível, Gek escalou os galhos carregando as quatro
mochilas. Após deixá-las bem escondidas, saltou lá de cima aos pés da beldade lupina,
agora transformada numa loba de dois metros e trinta de altura e de pelos prateados
como o luar. Êsi Ája fazia jus ao seu nome Cachorro-Cavalo. Um lobo gigante, de
músculos salientes e de pelos negros como a sombra. Gek tinha dois metros e trinta de
pelagem castanha e arrepiada como seu compatriota, Huygens.
Cada um vasculharia uma região e deveriam se encontrar ao amanhecer. O contato
seria mental. A velocidade com que corriam e saltavam era espantosa.
A noite caiu sobre a floresta e apenas a luz da lua iluminava a mata. Luna ouviu
ruídos e parou sobre uma pedra alta e lisa. Seus pelos prateados brilhavam à luz do luar.
Suas orelhas movimentavam-se procurando a direção do som, até que o barulho ficou
mais nítido. Eram gritos. Ela saltou da pedra e, sorrateiramente, foi na direção do
alvoroço. Avistou uma clareira, uma fogueira iluminava o local. Quatro homens seguravam
duas índias nuas, um deles abria as calças.
– Desgraçados – pensou ela.
Mentalmente passou a informação para seu grupo, mas estavam muito distantes uns
dos outros. Não daria tempo, decidiu agir sozinha.
– Vamos, sua gostosa. O cacique aqui vai te mostrar o tamanho da lança.
Entretidos com as mulheres, riam sem parar, nem perceberam a chegada da fera
lupina. Com um golpe violento da garra direita, entrou pelas costas e atravessou o peito
35
do garimpeiro que estava preste a estuprar uma delas. O sangue jorrou, sujando a mulher
e os outros garimpeiros.
Atônitos e congelados, viram o corpo do amigo ser suspenso no ar e arremessado a
vários metros de distância, como um boneco de pano. Luna urrou e parou na frente dos
homens, seus dois metros e pouco de altura e dentes salientes fizeram os homens
recuarem, um deles caiu sentado. As nativas agora se abraçavam encolhidas. Estavam
assustadas, de suas bocas só se ouvia as palavras Piatã e Itagi, sucessivamente. Luna
passou por elas sem dar muita atenção. Queria os garimpeiros.
O homem caído arrastava-se de costas sem tirar os olhos do lobo gigante e
acinzentado. Seus pelos brilhantes refletiam as tonalidades avermelhadas da fogueira.
– Mãe de Deus! Que bicho é esse? – disse um dos garimpeiros que recuava. Queria
chegar até a espingarda que estava encostada no tronco de uma árvore.
O outro tentou virar e correr, mas a fera prateada o agarrou pela perna, levantou-o e
jogou-o no chão com tamanha violência que deu para ouvir os ossos do corpo do homem
se partirem.
O que estava no chão também tentou correr, mas foi pisado nas costas. Com uma
das patas, Luna ergueu-o rasgando-lhe a garganta com suas potentes garras. As índias
continuavam paradas no mesmo lugar e dizendo as mesmas palavras: Piatã e Itagi. A
lupina prateada não entendia o que elas falavam. O som de um clique seguido de um
estampido a fez virar. O tiro acertou seu ombro direito. Parado perto da árvore, o
garimpeiro segurava a espingarda. Trêmulo, não conseguia uma mira perfeita. Num único
salto, a ferra partiu para cima do homem que não teve tempo de dar outro tiro. Sua
cabeça foi esmagada com uma única mordida.
Ela virou-se na direção das índias. O sangue que escorria do ferimento no ombro
manchava seu pelo prateado. Quase chegando perto das moças, uma pancada forte nas
costas a jogou longe.
Levantou a cabeça e viu um vulto passar muito rápido entre ela e as índias. Tentou
se levantar, mas outra pancada forte jogou-a para o outro lado. Viu outro vulto.
– São eles... – pensou.
Não queria machucá-los, queria fazer contato. Pôs-se de pé em posição de defesa.
O sangue saía em profusão do seu ferimento, minando sua energia. Finalmente, os dois
se revelaram para ela. Eram menores, mas muito fortes. Tentou um contato mental.
Piatã e Itagi nunca tinham tido um contato mental. Aquilo os deixara confusos por
alguns instantes.
– Sou amiga... – mentalizou Luna.
Aquilo ecoou nas cabeças dos irmãos, que se entreolharam.
– Sou amiga... E estou aqui para ajudar.
Piatã correu em sua direção e Itagi deu a volta. Ferida seriamente no ombro, só
podia tentar se defender de possíveis golpes até a chegada de seus amigos.
– Onde estão vocês? Estou ferida e fiz contato com a nova espécie.
– Calma, minha querida, estamos chegando – Gek respondeu por telepatia.
Com outro golpe, Piatã jogou-a de encontro a uma árvore que se partiu com o peso
da loba.
36
Quando Piatã preparava outro golpe, de dentro da mata, Êsi Aja, o lobo gigante e
negro, agarrou-o pela cintura, empurrando para longe.
– Não queremos machucá-los – mentalizou Êsi Ája rapidamente.
Outra confusão mental e Piatã soltou grunhidos para Itagi. Cada um pegou uma das
índias, colocando-as nos ombros e correram mata adentro. Gek e Êsi Ája foram atrás.
Huygens parou para socorrer Luna.
– Esses caras são rápidos – disse Gek ao amigo.
Mesmo carregando as índias nos ombros, eles corriam muito, até que chegaram
num barranco onde um rio desaguava, e de lá saltaram para dentro d’água, sumindo na
escuridão.
– Vamos voltar. Iremos nos encontrar novamente – disse Gek.
Êsi Ája tentava farejá-los inutilmente.
Voltaram para o local onde estava Luna. Huygens analisava o ferimento.
– Você ficará bem – Huygens usou sua telepatia para tranquilizá-la.
Ela então devorou um dos garimpeiros. Isso a faria repor as energias e se recuperar
mais rápido das lesões.
Êsi Ája e Gek chegaram ao local. Gek correu até a loba, queria ter certeza de que
estaria bem. Ela estava lambuzada de sangue.
Caminharam sob a forma animal, seguindo o curso do rio. Queriam encontrar a nova
raça. O ombro da fera espanhola já não sangrava mais, a recuperação era incrível. Nesta
caminhada, acabaram descobrindo um garimpo. Possivelmente, os homens que Luna
matara eram dali. Os papéis encontrados indicavam a localização exata. Provavelmente
seria um garimpo clandestino. Huygens havia se transformado em humano. Nu,
vasculhava tudo. Acabou por encontrar documentos que o fizeram entender as mortes de
índios e ativistas da região. Ouro, eles estavam sobre o maior filão de ouro já encontrado
no mundo. Alguém muito poderoso estava por trás disso tudo.
– Mas por que não há ninguém aqui? – perguntou Gek, agora na forma humana
também.
– Eles achavam que estavam bem escondidos na mata. Os únicos que poderiam
descobrir tudo isso eram os índios da região – disse Huygens.
– Por isso as matanças... Então quer dizer que isso aqui não vai ficar abandonado
por muito tempo – foi dizendo Gek. – O dono vai chegar logo, logo.
– Eles estão com muita pressa, pois tudo isso será inundado quando a hidrelétrica
estiver pronta.
Luna estava deitada, recuperando-se, enquanto Êsi Ája fazia ronda no perímetro.
– Ficaremos por aqui enquanto Gek irá retornar onde deixamos nossas coisas.
Passe esta mensagem para André, no local marcado. E pegue algumas coisas, mas traga
somente o necessário.
– Por que eu? – reclamou.
– Vá!
Já na forma lupina, sumiu na mata, mas foi reclamando mentalmente até onde o
limite da telepatia permitia.
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Green Death - Ecoterrorismo Licantrópico (volume 0)

  • 1. 3
  • 2. © Green Death Volume 0 – 2011 Organização: Alfer Medeiros Capa: Silvio Medeiros Revisão: Adriana Cabral Texto:  Alastair Dias  Amanda Reznor  Carolina Mancini  Celly Monteiro  Diego Alves  Gerson Balione  IAM Godoy  Marcelo Claro  Mariana Albuquerque  Rosana Raven  Susy Ramone  Tânia Souza O e-book Green Death – Ecoterrorismo Licantrópico (volume 0) é publicado sob uma Licença Creative Commons – Atribuição – NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
  • 3. Índice Apresentação da Série .................................................................... 6 TRILHAS DO TEMPO (Tânia Souza) .............................................. 8 INCÚRIA (Susy Ramone) ............................................................... 23 XINGU – QUANDO AS FORÇAS SE UNEM (Gerson Balione) ... 29 O DOM (Celly Monteiro) ................................................................ 46 SONO MARINHO (Mariana Albuquerque).................................... 50 ACERTO DE CONTAS (Rosana Raven) ....................................... 55 KATYUSHA (Marcelo Claro) .......................................................... 57 DUPLA PERSONALIDADE (Iam Godoy) ...................................... 67 OS HEADSHOOTERS (Amanda Reznor) ..................................... 70 UM CÃO NUNCA SERÁ UM LOBO (Alastair Dias)...................... 85 SOLSTÍCIO (Diego Alves) ............................................................. 92 ABAIXO DE ZERO (Carolina Mancini) ....................................... 106
  • 4. Apresentação da Série Bem-vindo, leitor, a uma realização pessoal. Quando escrevi o livro Fúria Lupina Brasil um tempo atrás, não fazia ideia das proporções que o projeto tomaria. Meu livro de estreia não só abriu muitas portas, como também me permitiu conhecer pessoas fabulosas entre leitores, escritores e críticos (ou tudo isso ao mesmo tempo). Nesse livro, lançado em 2010, foi apresentada pela primeira vez a organização Green Death, e muito ouvi falar dela nos feedbacks dados pelos leitores. Da conclusão de que esse grupo ecoterrorista foi marcante para muitas pessoas durante a leitura do Fúria Lupina, surgiu uma ideia interessante: por que não fazer um spinoff com contos de diversos autores, que trouxesse a visão particular de cada um deles sobre a Green Death? Diversos convites foram feitos, alguns foram atendidos, e aqui temos o volume inicial deste projeto coletivo licantropo. Sou muito agradecido a todos que aceitaram o desafio de criar contos dentro do universo de uma outra pessoa, tarefa não muito simples, apesar de algumas liberdades criativas terem sido cedidas. Antes de partirmos para a leitura dos contos dos meus companheiros de letras, seria interessante mostrarmos um pouco do que é esse cenário dentro do qual foram produzidas as histórias: Contexto Conforme dito anteriormente, a Green Death faz parte do universo da série Fúria Lupina, onde lobisomens vivem e atuam em um contexto histórico/cultural real. Assim como na nossa realidade, os lobisomens são tidos como um mito. Isso quer dizer que é da preferência dos homens-lobo que as coisas permaneçam assim, ou seja, as ações do grupo são planejadas de modo a não deixar pistas da existência de tais seres. Aparições em público dos licantropos são evitadas a todo custo. Os Lobisomens São todos bípedes, um meio-termo entre a forma humana e a lupina. Possuem a força de aproximadamente dez homens quando na forma lupina, e na forma humana têm força e habilidade correspondentes ao mais exímio atleta. Seus sentidos são extremamente aguçados ao se transformarem em lobisomens, e algo disso é preservado ao voltarem à forma humana. Alguns paradigmas universais dos lobisomens não existem nesta realidade: a prata não é o único material que pode causar danos a estas criaturas, e
  • 5. a lua cheia não provoca transformações involuntárias. Não são imortais, apenas extremamente resistentes. Sua pele é grossa como a de um rinoceronte e seus ferimentos são cicatrizados mais rapidamente. Possuem a capacidade de se comunicar mentalmente com os de sua espécie. A organização hierárquica entre os lobisomens que vivem em alcateia segue o padrão tradicional dos lobos, determinada pela força e poder de liderança, em três níveis: alfa (os mais fortes e com melhores capacidades de persuasão e comunicação), beta (totalmente capacitados, porém com algum ponto negativo que os diferenciam dos alfas) e ômega (não conseguem se transformar em lobisomem e somente mantém suas capacidades de comunicação mental). A Organização Surgiu no final dos anos 80 e, de início, baseava-se em pequenas sabotagens em instalações de fábricas poluidoras na Polônia e na Alemanha. Atualmente, sua base de operações é na Holanda, local onde os coordenadores das células terroristas se reúnem secretamente e transmitem as instruções aos seus subordinados. Sua área de ação é global, mantida por doações de simpatizantes da causa. Quando em campo, atuam em células de 3 a 6 indivíduos, sempre com um alfa coordenando as ações. Os betas são utilizados em confrontos diretos, e os ômegas trabalham no apoio e transporte. Sempre chegam aos lugares dos ataques sob disfarce; possuem conexões no submundo do crime que fornecem todos os documentos falsos necessários para fazerem os ecoterroristas passarem por equipes de TV, membros de ONGs de ajuda comunitária, entre outros. O modo de agir é bem simples: ataques rápidos e violentos, de modo a causar baixas e deixar os inimigos com uma tremenda sujeira para limpar e ter de se explicar com as autoridades locais. Bem, acredito que me estendi demais nas explicações, mas procurei mostrar de forma sucinta o que vem por aí. Fico à disposição para ouvir qualquer dúvida, elogio ou crítica. Agradeço mais uma vez pelo interesse mostrado por este e-book, desejo uma ótima leitura e já me adianto a convidá-lo a ler outros volumes da série, caso tenha apreciado este volume. A natureza lupina liberta. A natureza humana destrói! Alfer Medeiros alfer.medeiros@gmail.com www.AlferMedeiros.com.br
  • 6. TRILHAS DO TEMPO (Tânia Souza) Calor. O suor molhava os cabelos grudados no pescoço e um murmúrio de protesto escapou dos lábios femininos. Em algum lugar, um carro freou bruscamente e o motorista gritou algo obsceno. As notas de uma canção chegavam aos ouvidos sensíveis, mas não interrompiam os sonhos que a atormentavam. A mulher enrolada nos lençóis se moveu na cama, presa a um universo desconhecido, não conseguiu despertar. O ar da mata não refrescava o calor, mas intensificava os aromas. Em pé à beira de um rio, ela observa quando eles chegam. O sentimento que a consome é profundo, assim como a urgência em avisá-los: cuidado com a fera. Ela tenta correr, eles precisam saber. Cuidado com a fera. Pela janela transparente, alguma claridade das ruas se insinua, mas não ilumina as sombras que a envolvem. A moça observa quando a menina ri e mergulha nas águas turbulentas. Do outro lado, o garoto sobe em um galho e pula no rio, submergindo a seguir. Inocência. Mas a poucos metros, uma fera espreita. Os olhos do monstro ferem de vermelho sanguinolento a paz do local. Ticia deseja ir até eles enquanto o suor escorre entre seus seios e o ar lhe falta. Entretanto, as pernas não se movem, a voz está presa na garganta e, lentamente, ela vê a fera se aproximar. As sombras vêm junto e a envolvem, não há nada que possa fazer. Haverá sangue e dor. As crianças gritam. Cruelmente, a fera destroça suas vítimas. O grito que tanto guardou, enfim, explode num urro selvagem e Ticia desperta. Presa entre o mundo do sonho e o da realidade, a mulher-lobo não controla a ferocidade. Em poucos segundos, o corpo que estremecia na cama salta e se curva no meio do quarto. A metamorfose tem início. As unhas arrancam lascas do assoalho e a dor é intensa; enquanto ossos e pele se dilaceram, os pelos crescem e o aposento se torna pequeno para contê-la. Um rosnado feroz se espalha e as criaturas insones que percorrem a cidade estremecem de pavor enquanto alguma nova lenda urbana nasce. Os móveis sofrem o impacto da transformação, mas aos poucos o controle entre a mente humana e os mais ferozes instintos se estabelece. Fora apenas um sonho. Lentamente, a transformação retrocede. Apenas um sonho. *** A bicicleta se desviou de um carro ao cruzar a avenida, ignorando as buzinas. A ciclista murmurou um palavrão, irritada consigo mesma. Atrasos estavam se tornando rotina. O ar esfumaçado e a ausência de chuvas, somados à poluição que envolvia a cidade, ameaçavam sufocá-la. Quando chegou à escola de idiomas, eles já estavam lá, mas a reunião ainda não havia começado. Os alunos que frequentam o curso no dia a dia e os comerciantes da vizinhança não sabem, mas a escola é, na verdade, um dos pontos de encontro dos membros da Green Death, uma das mais cruéis organizações que não se tem notícia. E sabem menos ainda que entre os pacatos professores, homens e mulheres de várias partes do mundo, escondem-se criaturas lupinas. Ticia sentiu os olhares curiosos dos companheiros, consciente de que as noites tomadas por pesadelos marcaram seu rosto delicado. Sentou-se numa cadeira vazia ao lado de Paolo. – Você está bem, querida? – a pergunta vem em tom discreto. Com um sorriso triste, a moça murmurou uma resposta, quase para si mesma.
  • 7. – Os sonhos voltaram... – havia medo na voz. – Cada vez mais eu sinto, mas não entendo. Não sei se é uma lembrança... Uma visão do futuro, mas é tão real. – A fera novamente? – ao vê-la assentir, ele prossegue. – E as crianças? – Elas também estão lá, e não há nada que eu possa fazer para salvá-las. Não há mais vida para eles depois que... – a garota vira-se e o encara diretamente. – Eu os amo sabe, posso sentir isso, mas e se... Se eu fiz aquilo, eu... – Suas lembranças estão perdidas há muito tempo, há algo guardado que nem mesmo você, cara mia, deseja lembrar-se. Nós não poderemos te ajudar, precisa encontrar-se consigo mesma, eu temo por você. E por nós todos – a voz é firme e carrega, junto ao carinho, uma advertência. Ela entendeu o implícito: ali, todos precisavam uns dos outros, não havia espaço para falhas. – Eu vou ficar bem, Paolo, acho que uma nova missão é tudo que preciso. – Não sei se uma missão seria bem vinda agora, talvez precise apenas descansar. A resposta que daria ficou perdida no silêncio. Paolo era o mais próximo de um pai para Ticia. Quando a menina sem memórias apareceu no circo onde ele vivia com a irmã Sophie, logo foi adotada pelos irmãos. Por muito tempo, cada transformação fora marcada pelo descontrole e pela ferocidade, mas com o passar dos anos e as orientações recebidas, Ticia encontrou um razoável equilíbrio. Mas Paolo sabia: os sonhos a perturbavam além do desejado, e sob a aparência de calma e tranquilidade, pulsava uma criatura de poderes imensuráveis. E, quando livres, extremamente cruéis. Quando a morte levou de forma natural a bela Sophie, Ticia manifestou o desejo de se estabelecer em São Paulo, e Paolo permaneceu na cidade com ela. Mas todas essas lembranças desapareceram quando as luzes se apagaram e a reunião começou. Os slides apresentados por Nikos mostravam imagens impressionantes de crueldade e devastação da natureza. Na plateia, o grupo aprendia o máximo possível sobre a região da próxima missão. Todos os pensamentos alheios à causa desapareceram frente à seriedade do que estava sendo exposto. No primeiro vídeo, uma criança coberta de fuligem e dentes cariados, vestida com um minúsculo short, sorri para a câmera quando um homem armado se aproxima. Antes de a câmera ser desligada, ainda conseguiram registrar os fornos; pequenos vulcões ardendo escuridão e fumaça na paisagem árida. Em seguida, a imagem de um homem preencheu a tela. O rosto quase oculto pelo chapéu. Nas mãos, um chicote de montaria. Botas. Um visual comum de um fazendeiro. Nas outras fotos, pilhas de couro de jacaré e outros bichos, coleções de armas de caça com alta potência. Crianças magras e sujas de carvão trabalhando até o anoitecer. Homens e mulheres roubados em toda sua dignidade. Escravidão. Tortura. Casas de pau a pique, cabanas, barracas, condições subumanas. O palestrante mostrou outro vídeo, o mesmo homem empunhava o chicote com violência contra um empregado. O trabalhador corria descalço pelo chão aquecido e coberto de carvão, desviando dos fornos e das madeiras empilhadas enquanto seu perseguidor, a cavalo, seguia atingindo-o com o chicote. Os homens armados ao redor gargalhavam enquanto a família chorava, pedindo clemência. Quando se cansou da diversão, ele mesmo apanhou uma arma e atirou. A munição especial estourou a cabeça do perseguido. O som do tiro calou o choro, mas as risadas prosseguiram. De cabeça baixa, os carvoeiros voltaram ao trabalho. Menos a família do morto, a jovem esposa foi agarrada e levada pelo patrão. A última imagem focalizou-se na expressão sombria do
  • 8. dono das carvoarias. João Carcará. Os olhos, mesmo parcialmente cobertos pelo chapéu, eram frios, e Ticia arrepiou-se com a maldade que pressentiu ali. A voz de Nikos alterou-se ao mostrar a enorme clareira onde antes a mata virgem reinava. Rios minguados pelo assoreamento. Fornos, animais mortos, em fuga ou em extinção, aumentavam a sua revolta. A mata nativa estava sendo devastada para transformar-se em carvão vegetal. No longo ciclo, a madeira era cortada, transformada em carvão que alimentaria as usinas espalhadas pelo Brasil, para a produção de ferrogusa e aço. A lei, mais uma vez, caminhava em passos lentos demais. Algo precisava ser feito e esse trabalho já começara em vários outros pontos do país e regiões de fronteira. Onde antes os bichos andavam soltos, os fornos pipocavam como uma erupção maligna e estendiam-se por longas extensões. Era hora de detê-los. O grego que apresentava os slides é o líder desta célula. Um poderoso alfa que deixou Pátras ainda adolescente e, desde então, percorre o mundo lutando por um ideal marcado com sangue. Os membros ao seu comando já realizaram grandes feitos. Os brasileiros Ticia e Carlos são betas, a espanhola Rubia é a única ômega do grupo. Paolo é italiano e Raul, português. Juntos, formam uma das equipes mais letais da organização ecoterrorista, lutando de forma constante em regiões onde a devastação da natureza já começou, entretanto, ainda há muito a ser preservado. Sob o disfarce da escola de idiomas, conseguem dar apoio a membros de várias partes do mundo, assim como manter um ponto de encontro e seguir uma rotina fora de suspeita quando não estão em missão. Em comum, o amor pela natureza, a fúria lupina e a crença de que não há inocentes quando se trata de destruidores da natureza. Chefes, proprietários ou meros empregados, todos devem ser punidos pelos pecados contra a natureza. Naquela manhã, a inquietação de Paolo e Ticia logo é identificada pela ligação mental do grupo, os demais percebem que há algo errado, mas sob a firme declaração de que estava preparada, além de nunca ter falhado antes com o grupo, a moça convenceuos de que estava apta. Mais uma missão lupina tem início. *** O micro-ônibus parou em frente ao hotel fazenda. Ali, turistas não eram novidades, e a algazarra de línguas, sotaques e etnias logo se tornava parte da paisagem. O trio recém-chegado partiria para um acampamento menor. Pescar, preparar a própria comida, fotografar ou simplesmente descansar com privacidade. Um walkie-talkie para manter contato e o retorno em dez dias foi combinado. As bases estavam localizadas em partes mais isoladas da região, tecnologia aliada à rusticidade, um pacote indispensável a turistas modernos e dispostos a pagar o preço por alguns dias em ambiente “selvagem”. Palafitas protegiam a construção das cheias e, ainda que no momento fosse período de seca, era possível ver as marcas de até onde as águas poderiam chegar. Pássaros diversos e multicoloridos enfeitavam a paisagem deslumbrante. Sobre os assoalhos suspensos, as barracas estariam protegidas. A moça soltou os cabelos e suspirou, enlevada. No entanto, uma tensão repentina causou-lhe um arrepio e ela espreitou a mata que os cercava, desconfiada, mas logo seus sentidos avançados absorveram a pureza do ar. Do outro lado, Paolo sorriu satisfeito enquanto se preparava para uma breve excursão na selva. Nikos apenas observava a vegetação ao seu redor. E em cada um deles se reforçou a necessidade de combater os destruidores daquele patrimônio natural. Na mesma noite, o grupo entrou em ação, partindo em busca das carvoarias. A distância era razoável, mas não para a velocidade lupina. ***
  • 9. Os passos rápidos na mata cerrada cessaram abruptamente. A fumaça e o cheiro da madeira armazenada turvavam os aromas naturais e anunciavam que estavam próximos. Essa mistura de odores invadiu os sentidos da mulher-lobo e a criatura hesitou. Uma sensação antiga e humana a fez estremecer. Por alguns instantes, sentiu-se prestes a ser atacada e uivou. Medo? A ordem do alfa e as indagações de Paolo a fizeram calar-se. A poderosa loba quase entregara a chegada do grupo. Tentando controlar o sentimento de origem desconhecida, prosseguiu. Finalmente, chegaram ao centro da clareira. O que viram ali confirmou a imagem que já traziam. Os pequenos fornos pipocavam e os barracões, seguidos por casas de pau a pique e um galpão, completavam a paisagem desolada. A decadência humana, o cheiro da podridão e a natureza devastada estavam por todos os lados. A lua clareava os vultos das três criaturas monstruosas que avançavam. Saltando entre os fornos, carvão e pilhas de madeiras, os lobisomens, guiados por Nikos, atacaram. A única sentinela acordada não viu o que a atingiu. Com força descomunal, a criatura arrancou-lhe a cabeça por trás e jogou no meio da clareira. Destruíram o que encontravam pela frente, primeiro os fornos e depois o galpão onde o capataz dormia, o depósito de mercadoria que servia ao propósito de escravizar os trabalhadores e, finalmente, cada um dos que se abrigavam nos barracões. A um dos homens armados que dormiam no galpão foi permitida a fuga. Era preciso que a fúria lupina se espalhasse e o medo impedisse que um novo acampamento fosse montado. A mulher-lobo mais uma vez estremeceu. Uma coisinha linda assim no carvão? Não pode, não... A voz, de onde viera essa voz? Buscou desesperadamente entender, mas... Controle-se! A voz de Nikos explodiu em sua cabeça e ela recuperou a razão momentaneamente perdida. Em cada cabana, famílias inteiras foram destruídas, restando ao final uma paisagem de carne e sangue sobre madeira e carvão destroçados. Pela primeira vez, Ticia questionou a sanha que sempre a guiara. Aquela gente era tão vítima quanto os elementos da natureza que foram destruídos. Mais uma carvoaria clandestina estava desfeita. Em três noites diferentes, três fazendas sentiram o ataque de uma força desconhecida e levaria um bom tempo para que pudessem se reestruturar. Mas não era o suficiente. Os ataques sistematizados destruíram a estrutura das carvoarias, mas o chefe, João Carcará, o homem cuja crueldade impressionara a todos, este que enriquecia a cada dia por meio da miséria e da corrupção humana, este ainda estava protegido pela mesma natureza que danificava constantemente. Paolo foi em busca da última presa enquanto os demais voltavam ao acampamento. Ticia sabia que colocara o grupo em risco. Desde que chegara a este lugar, seus instintos estiveram confusos. Não conseguiu explicar como os sons oriundos das carvoarias, a fuligem e até mesmo os movimentos furtivos da mata podiam afetá-la tanto, e Nikos fez-lhe duras advertências, oferecendo mesmo que retornasse à base, se preferisse assim. Não passaram despercebidas ao grupo as dúvidas que a tomaram depois do ataque, mas sua fé nos companheiros e o amor pela causa falaram mais alto e assim, quando o sol chegou e, com ele, a volta de Paolo, ela estava pronta. *** O homem acendeu o cigarro e a brasa iluminou o quarto. Sorveu lentamente e expeliu a fumaça. Havia algo lá fora, um novo inimigo o esperava. Mas isso não lhe trouxe medo. Assim como os malditos sobreviventes delirando sobre lobisomens foram punidos, também assim seriam os que estavam ousando atacá-lo. Em todas as suas fazendas, onde outras carvoarias funcionavam, a segurança fora redobrada, mas os ataques continuaram. Era preciso reagir, os prejuízos estavam sendo enormes e, principalmente, o
  • 10. medo estava se espalhando. Agora, armadilhas estavam por todos os lados, pois não era homem para ser caçado. As armas que trazia consigo garantiriam sua sobrevivência. – Eu não sou a presa, crianças... – o murmúrio perdeu-se na noite escura que rondava a fazenda. Perdida no meio da densa vegetação escondia-se a grandiosidade da mansão luxuosa. Aquela era apenas uma das moradas de João Carcará. Ao contrário de muitos outros exploradores da mata nativa, ele preferia estabelecer-se próximo às fontes do seu lucro. Na imponência do casario, rusticidade e luxo, jardins e animais de estimação exóticos davam o tom. Uma pista e um avião permitiam que ele partisse quando assim desejasse, e homens armados cercavam o local. Mas a sensação de estar encurralado começava a dominá-lo. Com ódio no peito, gritou para a noite: – Eu sou o caçador, meu nome é Carcará! A uma pequena distância, olhos avermelhados observavam o fiapo de luz na janela no alto. A mulher-lobo, com as quatro patas no chão, preparava-se para avançar e concluir sua missão quando o desafio chegou aos seus ouvidos. Primeiro veio a angústia. Aquela voz doía-lhe de um jeito desconhecido. Depois, o cheiro que veio no ar, havia um aroma conhecido naquelas terras, ela já estivera ali, podia sentir, mas a memória não deixava saber mais. Uivou descontroladamente quando a dor das lembranças humanas abalaram a fera. Sentiu nos braços a força de uma prisão antiga e uma dor lancinante de uma vida que já não lhe pertencia. Os uivos atraíram a atenção dos guardas e luzes foram acesas em torno do local. Mas nada importava para ela, presa em sua dor, a cabeça parecia-lhe que iria explodir e, num processo extremamente dolorido, sentiu que a transformação estava acontecendo. A loba uivava enquanto a mulher nua renascia do horror que lhe consumia. Encolhida em posição fetal, não viu quando os seus companheiros foram atacados por centenas de homens armados. Logo os ataques chegaram até ela e um golpe de machete a atingiu, quase dilacerando a perna direita. Quando o atacante se preparava para um novo golpe, um lobisomem gigantesco saltou sobre ele e, com um safanão, jogou a arma longe; com os dentes, arrancou o braço que a empunhava. Era Paolo, mas ela não reagiu, apenas arrastou-se no solo, arranhando a pele e deixando um rastro vermelho pelo caminho, enquanto a luta prosseguia. Os uivos dominaram a noite e homens e lobos derramavam seu sangue pelo chão. Lá do alto, o Carcará gargalhava. Vendo a luta feroz que se desenrolava no pátio, carregou um rifle, fez a mira e acertou. Lobisomens. Então não era apenas uma lenda. O homem uivou enquanto as balas ricocheteavam nas criaturas, ocasionalmente, atingindo os homens que ali lutavam. João trocou a munição, usando as reservadas para caçadas e tiro ao alvo nos jacarés. O primeiro tiro ricocheteou na pele dura do lobisomem, mas as outras, uma a uma, foram abrindo caminho na pele rústica. Paolo grunhiu e o sangue do homem lobo se derramou. Ainda assim, ele avançou em direção a casa. Num salto, o lobisomem estava no piso superior. Muito ferido, não resistiu aos últimos tiros que o aguardavam e caiu novamente no pátio, inerte. Estavam sendo derrotados. Do outro lado, Nikos lutava bravamente com mais de vinte homens, sendo caçado por mais outros, mas não resistiria por muito tempo. Olhando a sua volta, chamou por Paolo e Ticia, mas não obteve resposta. Ticia havia desaparecido e o corpo de Paolo, já na forma humana, jazia no solo. Nikos, gravemente ferido, recuou. *** – Vai se alembrar, aí de dentro as lembrança têm vida, elas quer contar da dor – a mulher escondia o rosto nos cabelos lisos e negros enquanto passava o unguento sobre a pele ferida.
  • 11. Ticia resmungou, tentando afastar a moça que a arrastara, mesmo machucada, da beira do rio até aquela cabana escondida. – A loba quer reinar, mas a menina não deixa. Por isso, precisa lembrar. O canto choroso prosseguiu e a voz hipnótica da cabocla a envolveu. – Eu te devolvo, menina, as dores que são tuas, lua já vai alta e tá na hora de despertar... Um toque mais firme fez Ticia encolher-se e, aos poucos, a mente recuperava o que o tempo havia apagado. A dor dos ossos fraturados com o golpe do machado ia diminuindo gradualmente, o aroma de ervas na pasta acalmava o ardor na pele ferida que se recuperava, a melodia e o ambiente místico da cabana a envolveram, enquanto vozes e lembranças de outra manhã distante voltavam como uma tempestade de imagens e sentimentos. Como num passe de mágica, viu-se novamente no mesmo cenário do sonho que muitas vezes a perturbara, mas desta vez não havia nada nublando suas atenções, era apenas ela, em algum miserável lugar, perdido no espaço-tempo daquele mesmo cerrado onde se encontrava agora. – Chora mais não... – a voz sussurrada era quase um pedido, e duas crianças esfarrapadas se esgueiravam entre as árvores. A menor, uma menina de uns nove, dez anos, soluçava, olhando algumas vezes para trás. O garoto, um pouco maior, segurou sua mão, guiando-a pela trilha no meio do mato, em direção ao rio de águas escuras que descia logo a seguir. Devagar, caminharam até a areia cheia de pedregulhos. Nas pedras maiores, ele ofereceu: – Senta aí... Vou lavar pra você. A menina sentou-se na pedra e ele, com as mãos em concha, derramou a água sobre os cabelos escuros. No rosto escondido pela sujeira, grandes olhos amendoados estavam vermelhos e inchados, lágrimas se misturavam ao sangue que havia descido do corte no supercílio. O menino tirou a camiseta e molhou no rio, enquanto tentava limpar o machucado. Ela não viu, mas ele trazia os olhos úmidos, divididos entre a raiva e a piedade. A mata estava silenciosa e uma brisa suave anunciava o entardecer. Em meio à solidão quase absoluta, a água fria e o gesto carinhoso afastaram os soluços. Brincando, ele apertou a pontinha do nariz delicado... – Vai acabar virando uma muié-onça, sua brigona! Ou comida dela. A menina sorriu e ele sorriu de volta. Não estava ficando mais limpa, mas ao menos o choro havia passado. – Vem cá – ela disse, puxando-o pelas mãos, enquanto se levantava, entrando no rio. – Não por aí, tem poço. A menina sorriu, desafiante. – Tenho medo não, Dinho, você tem? – e mergulhou nas águas. O garoto ergueu os braços e as costelas apareceram no tórax magro. O menino gritou: – Eu sou o caçador, meu nome é Carcará! Foge, muié-onça! – e se jogou na água, alcançando-a, e na outra margem, subiram juntos. Entre risos e mergulhos, quase não viram quando a noite desceu. A volta pra casa foi lenta. A madrinha haveria de brigar, mas não importava. Em meio à natureza, ela se sentia viva, limpa. O vento secou as roupas molhadas enquanto caminhavam, e os
  • 12. cabelos, agora dourados, secavam soltos. O menino segurou a mão pequena da garota e sorriram. Naquela noite não haveria sopa para ela. Mais uma vez, enfrentou o capataz e o golpe seco foi a punição. Mas isso não bastara, alguém já contara à madrinha e agora, deitada no escuro, não eram os mosquitos zumbindo e sim a fome que a incomodava, e a lembrança do tapa. Ela não se importava, não iria ao galpão com ele, Dinho sempre dissera que não fosse. A mão rude doeu-lhe na face, e quando caiu, alguns adultos desviaram o olhar, mas outros gostaram. Quanto mais cedo a criança aprender seu lugar, melhor. Virou-se na cama quando alguém tocou seu rosto e silenciou seus lábios. Entretanto, ela já o esperava, ele sempre viria. Nunca entendera o porquê do olhar da mulher não trazer o carinho da mãe, apenas raiva e rispidez. Mas havia ele, os olhos negros e tristes do menino magrela que tornara sua dor um pouco mais suportável. Sob um fraco claro de luar, goiabas frescas e um pedaço de pão endurecido, assado no forno no dia anterior, surgiram a sua frente. A menina agarrou o pão com vontade, enquanto sorria. O menino saiu do quarto tão silencioso quanto entrou. Quase adormecendo, pensou na mãe e de como era doce estar com ela. Na cama ao lado, a madrinha roncou. Sonhou com as águas calmas do rio e o silêncio cheiroso da mata. Ticia despertou do mundo de lembranças. Sentindo ainda o aroma da mata, sentouse na cama, deixando o poncho cair. A dor que a consumia não se originava apenas dos ferimentos recebidos. Dinho. Soluçava, balançando os cabelos, duvidando de si mesma. Como pudera esquecer Dinho, como pudera esquecer-se de quem era? A mulher que a observava se aproximou, tocando-lhe os cabelos, prosseguiu na cantoria mística, oferecendo-lhe um pouco mais do chá, aumentando a chama para que o cheiro das ervas queimadas se tornassem mais fortes na cabana. Uma mulher tocava os seus cabelos... Mas não era a mulher-onça. A voz era cruel, quase debochada. – É bonita, a danada. Quando tá limpa, os cabelo brilha que só vendo. Se vai cair na vida, que não seja no desperdício. Alguma paga tenho que ter dos pratos de comida que já me levou. – Novilha fresca? – Pois se te garanto home, fresquinha. Ticia moveu-se, angustiada, novilha fresca, tentou se lembrar do homem, mas as vozes sumiam e voltavam, quando outra cena surgiu, ela era então menina, uma trouxa sendo arrumada e um adeus frio. Cê vai simbora. O que via agora era uma criança agarrada em pernas indiferentes, implorando para ficar... Na cabana turvada por ervas, ela estendeu os braços, implorando como a criança das suas memórias fizera, perdendose novamente no universo das lembranças. – Coração cheio de orgúio esse, guria, precisa de tento. – Mas eu prometo comportar, madrinha, prometo. Ele queria me levar pro galpão, não pode, Dinho mesmo disse pra não ir. – Você vai pro mundo, minina, vai trabaiá, já tá tudo arranjado, o Seu Zé vai fazer uma viage e levar você pra uma casa de família do patrão.
  • 13. Uma casinha miserável, um homem grosseiro e duas notas grandes que a mulher que se dizia sua madrinha guardou no sutiã... Ticia soluçou e um suor frio cobriu sua pele quando imagens de uma viagem sacolejante vieram a sua mente. Pedras raspavam o fundo da caminhonete enquanto ela empurrava mãos nojentas em suas pernas. O cenário deu lugar a um casarão luxuoso, um peão encurvado que lhe recebeu e mais notas sendo trocadas de mãos. O cheiro bom de comida, olhares desconfiados e o silêncio... Um quartinho e alguns momentos de paz enquanto não trabalhava na cozinha. Um açude azulado, um pomar gigantesco e cães que rosnavam. A casa enorme, circundada por varandas e flores. E a distância de seu único amigo. – Dinhooo! – o grito escapou da garganta de Ticia, como se com isso pudesse deter as lembranças, mas elas seguiam voltando, cada vez mais claras. João Eduardo... Como pudera esquecê-lo, Ticia não compreendia, e a mesma dor a sufocava junto com as lembranças dos sonhos que tivera, então. Aquela menina maltrapilha em suas lembranças não era ela, o nome, havia um nome... Aquela criança cometera um erro, ela conhecia seus pensamentos e o erro foi o de pensar que teria paz, livre dos fornos e do carvão que lhe impediam a respiração. Novamente, outras vozes surgiam dentro dela. – Seja boa, menina. Não teima, não deixa o patrão com raiva. – Tome tento do teu lugar... Tudo passa logo nessa vida. As vozes do passado mostravam outra Ticia, feliz em um vestido com babados. Pouco se importando com advertências que não compreendia. Uma criança que atendia pelo nome de Janaína. – Pra morte não tem saída, menina Janaína, pra viver, sempre tem caminho. Se alembra disso. Ticia se lembrava, assim como se lembrava de sorrir e prometer que jamais teimaria com o patrão. Depois, o estrondo na porta do quartinho. Parado a sua porta, um homem cheirando a cachaça. Escadas, degraus que subiu quase sem ver, arrastada pela mão cruel, seguindo-o até um quarto grande e colorido, o tapete macio sob seus pés. O gosto da cachaça que o patrão obrigou que ela tomasse... Os olhos do patrão. O medo e a raiva. – Uma coisinha linda assim no carvão? Não pode não, vamos menina, dá uma voltinha. A onça comeu sua língua, foi? A força de um braço de aço lhe prendendo, a boca esmagando a sua. A cama onde foi jogada sem nem saber como. A corrida pelo quarto e de novo a prisão. O homem dentro dela e uma dor tão grande, tão imensa e cruel que lhe pareceu que morreria. Ticia gritou quando as lembranças voltaram, gritou, uivou e soluçou, mas a mulheronça, a curandeira das matas, já não estava lá com ela, apenas a fumaça e o cheiro de ervas queimadas. Os soluços vieram com força, junto com a memória familiar dos sons de carnes e ossos sendo destroçados em suas mandíbulas. Da forma como cada um fora destroncado, atirado contra as paredes e o sabor do sangue alimentando o ódio. E de certa forma, Ticia agora sabia, naquela noite ela morreu. Foi o nascimento da mulherlobo. Primeiro, a dor de um estranho que lhe rasgara o corpo e alma, em seguida, uma dor maior que esmigalhou seus ossos e músculos. Novas imagens do homem que arfava sem notar o que acontecia com o corpo frágil sob ele sendo jogado para longe, vestido somente com a camisa, se arrastando pelo tapete. Os seus gritos de menina e fera, enquanto se transformava em algo que nem nos piores pesadelos imaginara. A criatura
  • 14. lupina que se levantou, uivou ferozmente para a noite e avançou sobre o monstro encolhido no chão. Naquela noite, seus urros estremeceram a casa e dois homens armados invadiram o quarto. A visão horrenda do lobisomem erguido sobre duas patas e devorando as partes destroncadas do patrão foi o suficiente. Atiraram quase sem pensar e apenas uma das balas acertou de raspão. Mas não deteve a fera, ela avançou e um dos capangas tentou ferir-lhe as costas com uma faca. Não bastou, a loba quebrou o pescoço do outro num só golpe e virou-se para quem a atacara pelas costas. Os braços foram arrancados, enquanto os dentes cravaram-se no ombro, jogando o naco de carne para longe. Quando o lobisomem com cerca de um metro e meio, bípede, saltou as escadas com os pelos de tom caramelado cobertos por sangue e carne destroçada, não houve tempo para fuga. As mulheres que estavam encolhidas na cozinha não foram poupadas. Cada uma delas foi destruída. Unhas, força, dentes e sangue espalharam vísceras pela casa, o que a jovem e furiosa loba não devorava, rasgava nas garras poderosas. Naquela noite, a morte chegou para cada alma que ali perambulava. A dor havia ido embora, mas o ódio, a fúria e o desejo de vingança, ah, esses estavam fervilhando dentro da jovem pequena fera. Curvada sobre as duas patas, ela uivou enquanto farejava cada suspiro de medo que emanava da região, as casas dos moradores ao redor não foram poupadas, e logo uma trilha de sangue e carne estraçalhada indicava o caminho percorrido. Aquela que deveria ter sido a sua passagem para o universo lupino, seu destino desde o nascimento, se tornara um gesto de liberdade dos anos de dor e sofrimento na forma mais violenta possível. Janaína nunca mais existiria. Ticia lembrou-se vagamente de percorrer as matas, uivando e rosnando a sua dor, deixando nas árvores as marcas de suas garras até que, finalmente, encontrou-se à beira de um riacho onde matou a sede e, lentamente, deixou a forma lupina. Vomitou e, cercada por sangue coagulado e carne, encolheu-se. Do alto de uma árvore, uma onça pintada observava a garotinha nua e ferida, deitada e chorando próximo às águas. A criança mais sentiu que viu a onça se aproximar, em olhos semicerrados, pensou ainda que se esse fosse o seu fim, não importava, não haveria razão para viver. Como num sonho, as quatro patas foram se transformando e, felinamente, uma mulher nua surgia da pele da onça. A paz da transformação contrastava com a fúria que a tomara há pouco. A moça se aproximou e, ajoelhando-se, ergueu-a nos braços. Antes de perder a consciência, Janaína pensou que, finalmente, seria devorada pela mulher-onça. – Ela me salvou... Naquela noite, foi ela. Mais uma vez, ela me acolheu – o corpo febril cobrava o preço de tantas emoções e, dominada pelas poções mágicas, Ticia adormeceu. De fato, a sabedoria de tribos antigas e magias ocultas no tempo que acalmaram a dor da criança. Entre cânticos místicos e preces, untadas por poções desconhecidas, as lembranças foram aos poucos sendo anuviadas, a mente infante não suportaria a dor da realidade e a cabocla sabia disso. Por ela, fizera uma escolha. Depois, houvera apenas o silêncio, dias e dias na cabana minúscula, sendo alimentada pela mulher calada. Quando, enfim, se recuperou, a moça a pegara pelas mãos e andaram por muitos dias pelas matas cerradas até que, uma noite, a mulher-onça parou. Era o circo. Paolo e Sophia e, desde então, toda a paz e tranquilidade que precisara. A mulher-onça usou de uma magia ancestral para absorver-lhe a dor e as lembranças cruéis. Este fora o momento de devolvê-las. Ainda que mais uma vez estivesse nua e encolhida, sofrendo as piores dores enfim reveladas, finalmente ela dormiria em paz, sabendo quem realmente era. ***
  • 15. – O menino veio te buscar. Mas o que ele viu, destruiu a pureza e liberou a fera. – Ele é como eu? – enrolada no poncho gasto, sentia o corpo recuperando-se aos poucos da última batalha. – Não, menina, a fera dele é costura em pano de sombras. Eu tava lá quando ele chegou, os pés em sangue da andança, trazia de arma um canivete e muita coragem no peito ossudo – a mulher calou-se quando um sorriso miúdo surgiu no rosto de Ticia. – É verdade, tu haveria de rir, valente mais que ele, como sempre foi. Chegou ao entardecer, os corpos dos cães, as poças de sangue espalhadas no terreiro, os olhos brilhantes do jacaré no lago. Foi se achegando e indo em frente. O menino não tinha medo, não. Tinha era amor. Ticia levantou os olhos úmidos... O riso sumiu e as lágrimas agora caíam sem controle. – A moça sabe o que o guri viu. Ela assentiu. Sangue nas paredes, carne e ossos espalhados pela casa. E no quarto, os restos de sua roupa miúda, rasgada e coberta por sangue. Em meio a toda gente morta e irreconhecível, imaginou o que ele sentiu. Pensou ainda nos móveis quebrados, nos pedaços de ossos e carnes no quintal, nos cães mortos e na trilha de sangue que deixara. – Ele gritou. Verdade que foi um urro de bicho morrendo. Ódio do mais puro quando cravou as unha no terreiro. A noite tremeu duas vezes e as criaturas da mata se acoitaram na escuridão. Era uma noite de feras... Certas dor coração de home não guenta não. – Ele... O que aconteceu com ele depois? – Ele morreu menina – vendo o ar confuso da garota, a mulher-onça ergueu uma das sobrancelhas. – Corpos podem viver sem alma. Mas a morte por vezes é paga melhor. – Ele que sempre foi meu anjo, meu guia... – Pois duvido que o anjo tenha sobrevivido. – Dinho não está morto, eu sei. Eu sei onde ele está. João Eduardo... João Carcará. O rosto da mulher-onça era um mistério para Ticia, que meneava a cabeça, negando a afirmação da mulher a sua frente. – O corpo ainda anda... Mas alma se foi com a fera. O silêncio das duas criaturas prevaleceu. – O que é você? – Eu sei não. Sei que venho de mundos mais antigos, menina, mais antigos que os sonhos pode contar... Mas inda assim, os anos não falam quem sou, os caminhos dos outros eu vejo, mas o meu é uma noite sem lua – a mulher levou as mãos aos seios. – Indomada já buliu muito aqui dentro de mim, mas dia e noite foro chegando de manso, rio de água calma e tranquila. A onça dorme no coração da mulher e só nasce quando quero... – Há outras como você? – Como eu, vi poucas, trilha de onça é de solidão... – E por que me ajudou? Por que não me deixou morrer na beira do rio? – a pergunta não trazia ingratidão, apenas a curiosidade pelo ato da criatura solitária.
  • 16. – Conheço tua missão, menina. E também conheci sua mãe. Mãe. Por muito tempo a família ausente havia sido uma obsessão para Ticia, mas os longos anos com Sophie e Paolo curaram a dor, acalmaram a curiosidade. Mas naquela noite de magia, perdida no meio da mata, seu passado estava inteiro de volta. Vendo o olhar aflito da jovem, a mulher prosseguiu. – A mãe-loba também buscava solidão. Chegou sem alcateia e outro de vocês aqui não veio, não. Ela lhe tinha muito amor, menina, a loba dourada era bonita por demais. – Vocês eram amigas? Como ela era? Onde ela foi? – as perguntas surgiram todas juntas, inesperadas. – Havia muito mato, água e bicho, muito espaço para nós. Território marcado deu conta. Ela queria era a paz. – Era carinhosa, eu me lembro, mas tão pouco... O que houve com ela? – Foi os home, menina. Quando os carvoeiro chegaro invadindo a mata, machado e fogo, ela tentou impedir. Esse teu coração rebelde vei dela. A dor da mata ferida, você bem sabe... Duas vezes a mulher-lobo atacou e foi bem sucedida. Foi na terceira vez, saindo no meio da noite pra caçar os monstros que lhe fizero a emboscada. Ela lutou foi muito, mas sozinha, conseguiu não. Muitos caçadores a perseguiram, mas ela escapou e, mesmo ferida, vei até mim. Morreu aqui, e suas últimas palavras foram pra que sempre olhasse por você. E olhei. Quando a moça do governo te levou até a madrinha, pareceu coisa acertada, mas tempo provou contrário. Também eu lutava com minha fera. Quando te procurei, era tarde, segui trilha de destruição, de morte. Depois, fiz o que deveria ter feito antes, levei você até seus iguais. Pra que nascesse de novo, menina. Até que as noites trouxeram você de volta ao chão onde nasceu. É trilha escrita em dor e sangue, mulher-lobo, mas é tua. *** A loba esgueirou-se silenciosamente pelo acampamento, os trabalhadores ressonavam nos barracos, para ela, não havia mais novidade na respiração ruidosa dos doentes do pulmão, o cheiro do picumã e da cachaça usada como remédio, na sujeira e no abandono. Até os dez anos, vivera numa vila junto à carvoaria e nas mais de 12 horas que trabalhavam diariamente, era comum a presença de baratas, percevejos e carrapatos, assim como a tosse e as doença do purmão. O cheiro de madeira queimada ardia em suas narinas. Na produção do carvão vegetal, quase sempre clandestina, não só a mata nativa sofria, os trabalhadores vivenciavam a super exploração, devendo mais do que recebiam, a mercê de qualquer abuso. Uma criança tossiu na barraca ao lado e a mulher-lobo retornou ao abrigo da mata. Naquela noite, a morte estivera muito perto de cada um deles, mas outro destino aguardava a justiceira. Outro caminho para seguir. Dinho. Ou ainda João Carcará, o Caçador. Mas esse mesmo João Carcará conhecia a lenda dos lobisomens, por muito tempo, quando ainda tinha sentimentos, temera essa e outras criaturas cuja magia desconhecia, mas respeitava. Depois, a vida, ou a morte, passara apenas a ser um esporte a mais. Porém, uma única noite ficara marcada em sua mente. E não pela primeira vez, João questionou quem teria sido o responsável por aquela noite de pesadelo e crueldade. O ataque presenciado na sua fazendo trouxe de volta essas lembranças. E um novo ódio nascia no peito do Carcará. Era hora de caçar. De punir. De vingar-se mais uma vez. No escuro, o homem ergueu um brinde solitário. A cachaça desceu amarga pela garganta num só gole. Levantou-se. Atravessando os cômodos pouco iluminados, caminhou em direção aos fundos até chegar a um aposento afastado da casa. Por alguns
  • 17. instantes, observou a mata que o cercava. Em seguida, entrou. O homem nu, caído dentro da cela improvisada, estava amarrado com correntes, o corpo ferido se recuperava com certa rapidez, mas as torturas renovadas impediam sua melhora. Aquele era Paolo. Ferido, faminto, feroz. Infelizmente, indefeso. – Vai falar, homem-lobo? Onde estão os outros? O que querem aqui? Apenas o silêncio foi sua resposta, ele engoliu o resto da bebida e jogou o copo na grade que o separava do prisioneiro. João Carcará pegou o aguilhão pendurado no canto da parede e, com lentidão exasperante, encostou a ponta afiada nas costas do prisioneiro e um choque percorreu a vítima. Ali, muitas feras já haviam sido aprisionadas, mas aquele não era apenas mais uma. Um lobisomem. Por muito tempo ouvira o povo murmurar sobre as criaturas, sobre a noite quando ela se fora. Ainda menino, lembrava-se da avó contando sobre os lobos que guardavam a mata. Não era crendice, afinal. A matança que os dois licantropos realizaram entre seus homens e a destruição de várias carvoarias e trabalhadores, de uma forma nunca antes vista, comprovava. Porém, não havia lógica naquelas ações, não para ele. Nem perdão para as criaturas. Com a garrafa na mão, na ausência do copo, bebeu no gargalo, em seguida, repetiu a dose. Da bebida e do aguilhão. A entrada do empregado interrompeu as divagações e os gemidos contidos de Paolo. – Licença... tá aí uma moça querendo falar com o patrão. João considerou. Não imaginara jamais que um fantasma do passado esperava por ele. Pensou, sim, que talvez uma caboclinha o distraísse dos pensamentos sombrios. Era comum ser procurado por moças da região. Algumas em busca de dinheiro, outras, para selar a paz ou conseguir favores para as famílias. Mulheres casadas ou não, oferecendo o corpo em troca de alguma migalha. Algumas, em troca da vida de seus próprios familiares. Ele não recusava ofertas. Nem sempre cumpria promessas. Olhou o homem que torcia o chapéu nas mãos nervosas, parado na porta. Era um dos seus empregados mais antigos. – Deixa entrar, Lito, deixa entrar. Haveria de chegar o dia de escolher um herdeiro, mas não desejava legar nada a ninguém. O fruto amargo de suas escolhas não seria repassado. – Que o governo coma tudo – resmungou. Vivia por viver, matar ou morrer lhe era indiferente, mas jamais se deixaria levar pelos enganos de algum afeto. Quase sem querer, a lembrança da menina de cabelos caramelados voltou a sua mente. Janaína. O homem gemeu na cela improvisada, João se abaixou e, com voz suave, falou: – Você há de uivar, lobinho, eu espero, tenho pressa não. A poltrona era macia. Havia cheiro de tabaco e cachaça no ar, e algumas peles faziam vezes de tapete. Ticia, sentada onde horas antes João bebia, tocou o tecido, pensativa. Ouviu quando ele se aproximou e a surpresa do seu anfitrião por encontrá-la tão à vontade. João observou a moça, os cabelos longos escapavam da proteção da poltrona, que ela girava suavemente. A visitante parecia confortável demais para seu gosto. Quando ela girou a poltrona, pondo-se de frente a ele, o passo que ele ameaçara dar paralisou-se no ar. A garrafa escapou das mãos trêmulas e o líquido sumiu no tapete felpudo. A moça se levantou. – Você está... Não pode ser você, ela. Você está... – Viva – não havia alegria na interrupção. – Estou viva.
  • 18. João Carcará firmou os olhos. Algumas noites, sob o efeito de muita bebida, ele sonhara vê-la. Mas não conseguia acreditar. Aproximou-se e ergueu a mão, temendo tocá-la. Em resposta, ela o fez. Com lágrimas nos olhos, pegou a mão e a levou até sua face. – Eu estou viva, Dinho. – Esse nome não existe mais, como você... Não consigo entender – a mesma mão que instantes antes torturava, deslizou com suavidade pela pele macia. E de repente, ele se afastou. – Mas eu vi os corpos, eu vi suas roupas e todo o sangue. A moça caminhou até a janela sendo seguida por ele. João precisava ver a face dela enquanto falavam. Para Ticia, cada palavra trazia agora um mundo de lembranças e dor. – Eu estava ferida e... Estive longe, muito longe. – Sabe como eu fiquei, o que a sua morte... – ele engoliu a saliva e a dor. – O que a sua partida me fez? Eu quase enlouqueci, Janaína, e você estava viva, o tempo todo – a tristeza começou a dar lugar à raiva. – Por que voltou agora? Depois de tanto tempo... Ticia não sabia por que voltara, talvez por Paolo, por ela. E por ele. Porque precisava... Conhecera a alma pura do menino e vira a crueldade do homem. Mais que isso, sentia a culpa por tê-lo abandonado, a dor do esquecimento. Mas sentia também o grito da natureza destroçada, do sangue que a terra já bebera em nome do poder, da ganância e do simples descaso com a vida. A honra de não abandonar sua missão lutava contra as lembranças da menina Janaína, chorando à beira de um rio enquanto o seu único amigo procurava lhe dar consolo. Sentiu o ardor das lágrimas antes de caírem. – Onde está o homem-lobo, Dinho? – Eu já disse, Dinho não existe mais. – Você precisa soltá-lo, ou então outros virão. – Os lobisomens. O ataque na fazenda, naquela noite, foram eles? Me diz, Janaína. – Assim como Dinho, Janaína não existe mais. Meu nome agora é Ticia. Solte o homem-lobo, João. Ele é da minha família, entende, precisa soltá-lo. – Eles te levaram? O que houve, Janaína, eu preciso saber! – lia nos olhos dela a preocupação com os monstros, mas não permitiria mais aquela insanidade. Era hora de caçar, de vingar-se do destino mais uma vez. Se foram os lobos que destruíram o que uma vez fora o melhor que a vida lhe dera, teriam que pagar. – Logo a morte virá levá-lo, não haverá muito que fazer. E os outros, eu esperarei por eles também. Você o quer, Janaína? Eu lhe darei ele de volta, tudo que deve fazer é esperar. – Espera, Dinho... João... Eu não quero que você se machuque, não mais, eu... Uma gargalhada irônica foi sua resposta. Para João, somente uma única pessoa correria o risco de machucar-se ali, mas não permitiria. Gritou por Lito, enquanto tirou a arma da cintura, encostando-a no peito da moça. – Você fica, Janaína. Ticia não queria nem tinha forças para lutar, a arma em seu peito impedia que reagisse. O peão ajudou a imobilizar a moça, prendendo-a com uma corda grosseira. E, tão rápido como a sua ação, ele saiu seguido pelo homem calado e servil. Ticia permaneceu presa na sala. Por alguns instantes, não soube o que fazer. A corda não a deteria, mas sua mente vazia, sim. Lá fora, os homens se reuniram e gritaram, comemorando algo. O cheiro de morte, a dor lancinante que a atingiu quando se
  • 19. aproximou da janela e viu o que comemoravam. Ticia compreendeu que o fim havia chegado. Ela não suportou a dor que lhe consumia ao ver o que restara do amigo. Seu uivo percorreu a noite, e as criaturas, mágicas ou não, buscaram os mais escuros recantos para se proteger. Quando a mulher-lobo saltou pela janela, livre das cordas e levando consigo parede e vidro, a primeira coisa que viu foi a cabeça decepada de Paolo, exposta no centro do pátio. Ticia urrou e atacou. Os guardas que observavam a noite, revezando-se em armas, terços e preces silenciosas, pressentiam o terror que os aguardava, mas nada os preparara para a fera que saltou em suas costas. O lobisomem agarrou o primeiro homem e, com força, bateu seu corpo no solo como se fosse feito de palha, jogando-o em seguida sobre outra sentinela. Dois metros de ódio, garras, músculos e mandíbulas ameaçadoras atacavam. Ticia podia sentir o cheiro de Paolo, de sangue antigo, de morte. O cheiro do Carcará, ele estava ali, ela sabia, mas outros também estavam e era preciso passar por eles. Mas nada mais lhe importava além da raiva, do desejo de vingança. Paolo se fora, Nikos gravemente ferido. Dinho, Janaína, eles já não existiam, uma fera maior os havia devorado há muitas e muitas noites. Um novo ataque direto a atingiu, e enquanto ela agarrava o homenzinho, mordendo o pescoço até arrancá-lo, os tiros começaram. A munição pesada, destinada à caça, foi distribuída entre os capangas. A criatura uivou e avançou, lutando bravamente com os homens que atiravam, mas as balas fizeram um estrago, e logo estava caída no terreno. O sangue se derramava e ela fazia força para manter a forma lupina. Arames e correntes foram passados em torno de suas pernas. Enquanto os homens gritavam, comemorando o feito, a criatura rosnava, os ferimentos foram tantos que ela não conseguiria se recuperar. Ticia sabia. A mulher-lobo fechou os olhos, cansada de puxar as correntes, e sentiu quando ele se aproximou. Os homens que a rodeavam abriram o cerco, afastando-se. Ele encostou o rifle na testa do animal. Mas a metamorfose começara. A criatura que jazia com os pelos cobertos de sangue já não tinha forças para urrar, os olhos avermelhados se abriram e fitaram o seu opositor, depois ela encolheu-se e começou a ganir baixinho. Os músculos retorcidos, os gritos de agonia. O corpo de moça se revelava aos poucos e os homens se benzeram. O Carcará apenas esperava. A moça estava no chão, seu sangue derramava-se na terra. Mas ela não teve medo de encarar os que a haviam ferido mortalmente, levantando o rosto em direção ao luar. O assombro tomou os homens, mas o pavor que viram nos olhos do chefe quando ela o fitou os assombrariam por muitos anos. Descrença, medo, dor e por fim, lágrimas. Dizem que a dor enlouquece os homens. João Carcará era rico, poderoso e, principalmente, cruel. Há muito tempo não sabia o que era a razão. Pensava ele mesmo que não lhe caberia mais nenhuma dor ou insanidade naquela alma destruída. Mas sua maior caça fora sua maior desgraça. Ali, com ela nos braços, ferida. Sob os seus joelhos, a terra que tanto sangue já presenciara, ele soube que sempre haveria mais tempo e espaço para a dor e a loucura no coração dos homens. O sangue subiu aos lábios da moça em seus braços, quando ela disse: – Eu sou a mulher-lobo, sim, Dinho, sempre foi meu destino, mas quem é você, o que você se tornou? O homem não respondeu, meneando a cabeça enquanto tentava deter o sangue, cobrindo com as mãos os buracos das balas. – Ajudaaa! Ajudem! Ele gritou, mas nenhum dos homens se moveu para ajudá-lo, se afastaram horrorizados, a memória ainda presa à ferocidade da criatura. João se levantou, mirando
  • 20. com o rifle os homens que se afastavam. Começou a atirar, gritando que buscassem ajuda. Logo, estavam cercados apenas por corpos, os poucos sobreviventes embrenharam-se na mata. João soluçou e tentou explicar – Janaína, eu me perdi quando você se foi, Janaína... É um pesadelo! – ele gritava e, em sua dor, as lembranças se sucediam. – Naquela noite, eu prometi, eu soube, não há nada de bom nesse mundo, há apenas dor e... Você estava morta. Ninguém se importava, nem a madrinha, nem ninguém... Por que não me disse o que você se tornou, o que eles fizeram com vo... – a moça estendeu as mãos e tocou os lábios do homem desesperado ao seu lado. – Você jamais entenderia. É o meu destino, Dinho, uma mulher-lobo, sim... Como foi minha mãe, lobisomem como o meu pai. Sempre foi meu destino. – Minha fé se foi com você, Janaína, como você teve coragem... Eu nunca mais tive paz, nem pude dormir... A moça ergueu as mãos e, suavemente, tocou o rosto daquele que por muitos anos fora seu protetor e, quis o destino, sua última missão. Antes de fechar os olhos, murmurou. – Eu sempre estarei com você, Dinho. Os poucos sobreviventes do ataque à Morada dos Tuiuiús não gostam de falar da dor, do desespero e dos gritos que homens e feras lançaram na noite, nem do Rei do Carvão, ajoelhado ao lado daquela que por muito tempo julgara morta. Tampouco da mulher-lobo que chorou lágrimas de sangue e estendeu as mãos delicadas em direção ao mais cruel dos carvoeiros, e dos tiros que ele disparou contra seus próprios homens. Depois, apenas o silêncio da mata, da fuga desesperada. João Carcará depositou o corpo da moça sobre a terra lavada pelo sangue, suavemente, tocou-lhe o rosto e levantou-se. – Dessa vez, eu vou com você, Janaína. No pátio solitário, um único tiro se ouviu. Dos corpos nunca encontrados e do fogo que consumira a fazenda não falariam, contavam, sim, dos lobisomens que destruíram as carvoarias, que vingaram a terra e as árvores mortas. Conversas de beira de fogão, de estradeiros e comitivas. Dos mistérios da alma, dos amores e tragédias ali vistos, não poderiam jamais explicar. Nikos, o único sobrevivente do trio que chegara à região, terminou sua missão, mas jamais voltaria. Outros viriam... Para a Green Death, a viagem ao Centro-Oeste não seria a primeira, muito trabalho ainda haveria de ser feito na preservação de um dos mais ricos ecossistemas do mundo. ~*~ Contato com a autora: tania.mara.ms@gmail.com http://alitfan.blogspot.com
  • 21. INCÚRIA (Susy Ramone) Três grandes lobisomens noruegueses se esgueiram sorrateiramente pela plantação de milho. Uma nova descoberta sobre atividades ilícitas os aborda enquanto passam pela vegetação. Rana, a líder do grupo, foi a primeira a reconhecer o cheiro peculiar das pequenas moitas de maconha, cujo milharal camufla. Ficou claro naquele instante o tipo de gente que iriam encontrar. Não estavam ali para desmascarar traficantes, tampouco em uma operação típica da Green Death. O motivo era outro. Porém, forte o suficiente para que a equipe fosse mobilizada. Magnus era o mais alarmado dos três. O coração tiquetaqueava feito bomba-relógio prestes a explodir. Apesar de também ser um alfa, não compartilhava com Rana a liderança. Não desta vez. Estava agitado, inquieto e perturbado. Contudo, fizera questão de vir pessoalmente resgatar o que lhe fora tomado. Aquilo era pessoal. Os motivos do sequestro, desconhecidos. Levavam uma vida acima de qualquer suspeita, o que tornava a situação ainda mais indigesta e inconcebível. Arik, um beta, filho mais velho de Magnus, também avançava passo a passo e mal podia conter a fúria que dominava os seus sentidos. Tenham calma, não ponham tudo a perder! A advertência chegava telepaticamente. Vinha da sábia loba alfa que, secretamente, praguejava a presença daqueles dois. Estavam muito abalados e a probabilidade de meterem os pés pelas mãos era demasiadamente grande. Mais adiante, uma luz fraca e risos despreocupados escapavam pela janela da cabana de madeira. O choro angustiado da pequena Jord penetrava como faca afiada em seus ouvidos lupinos. A exata localização do cativeiro, onde aqueles terríveis homens mantinham a jovem ômega, se deu através de um breve trabalho de busca. A relação da Green Death com organizações influentes e a inexperiência dos sequestradores os conduziram rapidamente ao esconderijo do bando. Tudo levava a crer que se tratava de uma represália de empresas atacadas recentemente pela Green Death, mas não havia como ter certeza. Tudo começou na tarde de ontem, quando homens armados até os dentes invadiram a escola onde Jord estudava e a capturou. Os membros da alcateia que estavam mais próximos do local – precisamente seu pai e seu irmão – ouviram os pedidos de socorro da menina, mas chegaram tarde demais para que alguma coisa fosse feita de imediato. A pobre criança, ainda incapaz de controlar seus dons telepáticos com precisão, não conseguira guiá-los corretamente. Numa corrida desenfreada pelas ruas, cruzando sinais vermelhos e ignorando qualquer regra de trânsito que pudesse existir, Magnus e Arik seguiram aquelas súplicas até quando a distância permitiu. Jord estava apavorada demais para se concentrar em algo que não fosse os seus próprios gritos. Gritos que a seguir foram debelados por uma austera mordaça. Enquanto os sequestradores ouviam apenas resmungos e gemidos incompreensíveis, Magnus tinha a alma dilacerada com aquele pedido urgente de sua filhinha. Sinais que foram se esvaindo conforme a gangue se afastava. A conexão perdeu-se por completo em meio aos prédios cinza da cidade, e de modo miserável, aquele pai e aquele irmão foram arremessados no mais profundo abismo que alguém pode mergulhar. Não havia tempo para ficar com a cabeça enfiada nas mãos, entregue ao desespero sem saber o que fazer. Cada minuto era precioso. Arik já grudara no celular e mesmo sob o olhar reprobatório do pai, contatava a Green Death. Naquele momento, viaturas atravessavam as ruas em direção à escola. Com as sirenes ligadas, costuravam
  • 22. velozmente o trânsito, como se ainda houvesse tempo de impedir o que já era lamentavelmente impossível. – Mas é claro que vamos ajudar! – Disse a voz do outro lado da linha. – Acalme-se, Arik. Venham já para cá. Vamos ver o que conseguimos descobrir através das câmeras de segurança e colocaremos nossos agentes em ação. Prontamente a equipe se organizou. Não foi difícil encontrar as imagens dos sequestradores. As informações que conseguiram com a placa do veículo que utilizavam no momento do crime já eram óbvias. O carro acabara de ser roubado, mas pelo menos já sabiam o modelo e a cor do veículo a ser localizado. O amadorismo com que os bandidos planejaram a sua fuga tornara-se evidente. O rastreador os levou ao local exato em que o carro fora abandonado e a polícia já estava lá recuperando o bem do motorista assaltado. Passaram direto pela estrada para que os policiais não suspeitassem. Depois de percorrerem alguns quilômetros, retornaram e, verificando que nem o carro e nem as pessoas estavam mais ali, foram analisar a área. Era um pequeno descampado a alguns quilômetros da cidade. Nada ao redor a não ser algumas árvores murchas que ladeavam a estrada e, mais além, um vilarejo de pessoas pobres. Seria fácil demais se tivessem se escondido ali. O local do cativeiro obviamente não era aquele, mesmo porque a terra seca espalhada dava indícios de que um helicóptero levantara voo, e se Jord estivesse por perto, poderiam senti-la. Mesmo diante dessa certeza, partiram correndo em direção à vila e confirmaram com alguns habitantes as suas suspeitas. Segundo as testemunhas, a aeronave havia pousado e partido rapidamente sem que o motor fosse ao menos desligado. Alguns diziam que o fato ocorrera há três horas. Calculando o horário em que Jord fora levada e o tempo necessário para que chegassem ao local, vieram a comprovar mais uma vez as suas suposições. Já passava das seis da tarde. Magnus não podia conter a angústia. Conforme o céu enegrecia, tornava-se cada vez mais obscuro o seu coração lupino. Tão obscuro quanto o de Arik, que arfava o peito ferozmente, demonstrando cólera enquanto retornavam ao veículo. A maneira como chegaram a dados exclusivos sobre a rota que o helicóptero havia feito se deu com o auxílio de um amigo informante. A essa altura, as imagens dos sequestradores já haviam sido verificadas e um deles fora identificado. Era francês. Uma extensa ficha criminal, que vai desde pequenos roubos até tráfico de drogas e assassinatos, resume em algumas páginas a vida do desvirtuado indivíduo foragido. A questão que atormenta os membros da organização e a pergunta que constantemente paira em suas mentes é por quais motivos aquele bando de animais sequestrariam a pequena Jord? Não houve nenhuma missão na França nos últimos anos e não conseguiam se lembrar de ninguém daqueles lados que tivesse motivos para querer armar alguma coisa contra eles. Uma punhalada golpeou igualmente a todos quando não conseguiram um helicóptero para que chegassem até o local. Teriam partido imediatamente, mas nenhum de seus contribuintes secretos poderia ajudar. Alugar uma aeronave estava totalmente fora de questão. Teriam que aguardar até a manhã seguinte quando um amigo, que há muito já apoia as estratégias clandestinas da Green Death, prometera disponibilizar o meio de transporte. Não havia escolha. Arik sugeriu que fossem de carro, mas depois reconheceu que aquela alternativa não era viável. Caso saíssem naquele momento, teriam que dirigir por, no mínimo, um dia e meio para alcançarem o local. Se partissem pela manhã, fariam o percurso em poucas horas de voo.
  • 23. A noite estava sendo demasiadamente longa. Desesperadora. A necessidade de extravasarem toda aquela dor era intoleravelmente latente em suas essências. Magnus e Arik partiram pela escuridão. Nada mais podia ser feito naquele momento. Os outros foram para suas casas descansar. O dia seguinte seria cheio. Que descansassem. Eram-lhes gratos por se envolverem com tanto entusiasmo em um assunto particular. Aquele grupo era bem mais do que uma organização ecoterrorista. Era uma família. Não existia prova maior de seu companheirismo e fidelidade. Porém, a sensação de que fizeram tudo o que podiam não os acalmava os nervos. O que fazer quando o bastante não é suficiente? Quando o sentimento de que o possível ainda não fora realizado e insiste em soprar em seus ouvidos com a sutileza de um furacão? Se ao menos tivessem sido mais ágeis, se ao menos pudessem voltar no tempo... Poderiam ter feito mais, poderiam ter agido com mais rapidez... A sensação de fracasso, de terem falhado com Jord avultava suas almas com a ferocidade de um lobo. No meio do parque da cidade, após as luzes serem apagadas junto com as suas esperanças de que algo mais pudesse ser feito naquele instante, dois homens se transformaram em criaturas inimagináveis. A dor, a fúria, o desejo de vingança se tornaram evidentes com o estalar dos ossos, com a aceleração cardíaca, com o inflar urgente dos pulmões, com a adrenalina que lhes saltava pelos poros quase sincronizada com os pelos negros que brotavam de suas peles absurdamente mais grossas e resistentes. Seus corpos metamorfoseavam como uma sinfonia sinistra regida pela orquestra noturna. A transformação da dor e da angústia no mais perfeito balé macabro do alívio se deu quando seus ossos se reencaixaram e a febre deu lugar aos sentidos apurados. A sua condição era uma dádiva. A brisa noturna invadiu suas narinas como acalanto para o sofrimento. Uivos rasgaram o silêncio da noite destruindo, destroçando, dilacerando qualquer resquício de urgência que os atormentava em suas formas humanas. Um refúgio para o espírito. Um remédio para a angústia. A respiração tornou-se branda e, a seguir, emoldurados pela lua, dois lobisomens negros correram livres pela mata. Assim que a aurora substituiu a noite, Magnus e Arik retomaram suas formas humanas e abriram um vínculo mental com os agentes que os ajudavam. O helicóptero já estava disponível, e então se reuniram para que os planos do resgate fossem traçados. – Eis a rota – Rana disse esticando um mapa sobre a mesa. – Não podemos ir de helicóptero até o local. Pousaremos aqui nesta clareira e seguiremos a pé para não levantar suspeitas. – Certo – Bedolf concordou. – Deste ponto até lá deve ter uns seis quilômetros. Em nossas formas lupinas faremos o percurso rapidamente. A área agrícola nos dá a vantagem de passarmos despercebidos. – Isso mesmo – Ulmer assentiu. – Rana vai liderar. Bedolf e eu a acompanharemos até o cativeiro, mataremos os caras e recuperaremos a menina. Parece simples. – E quanto a nós? – Arik perguntou. – Sugiro que vocês dois fiquem aqui. Não estão em condições psicológicas de participarem da operação – disse a loba. – De jeito nenhum! – Magnus discrepou. – Nós precisamos ir. Temos que participar! – Magnus, eu não acho que vocês devam... – Façamos o seguinte – ele a interrompeu. – Você lidera e Arik e eu te acompanhamos.
  • 24. Todos se entreolharam. Para que um alfa ceda a liderança de uma missão a outro alfa é porque realmente necessita compartilhá-la. – Está certo – Rana concordou. – Mas... – Pode deixar, faremos o que você mandar – Arik falou, por fim, e o helicóptero partiu com Bedolf na pilotagem. Agora os três estavam ali, a apenas alguns passos da pequena Jord. Assim que pousaram na clareira, a seis quilômetros, Rana ordenou que Bedolf ficasse de prontidão. O plano era matá-los e pegar a menina. Feito isso, enviariam um sinal telepático e Bedolf deveria decolar e pegá-los no local. Ulmer ficou incumbido de cobrir a área frontal da cabana. Caso algum daqueles homens escapasse, cairia direto em suas garras. Prestem atenção vocês dois. O ataque vai ser rápido. Nós vamos entrar pela janela, abocanhá-los no pescoço e recuperar Jord. Só isso. Entenderam? Nada de ficarmos arrancando membros e brincando de terroristas. Entenderam? Após o consentimento, ela deu o sinal. Agora! – Mon Dieu! – Gritos ecoaram. Uma saraivada de tiros inúteis espocou. Pescoços destroçados tingiram o chão de vermelho. Onze homens foram pegos desprevenidos. Não deu tempo de escaparem. Magnus não obedecera às ordens de Rana. Atacou quatro deles sem tirá-los a vida e retomava sua forma humana diante de olhos incrédulos. Rana ficou furiosa. Eu disse não! Ela gritou em sua mente e pulou com ferocidade em cima de Magnus. Meio homem, meio lobo, ele revidou. Garras rasgaram a cara da loba antes que a pata fosse decepada pela instintiva abocanhada da fêmea. Arik interferiu em favor do pai, mas àquela altura, Rana recuava percebendo o que acabara de fazer. Amarrada em uma cadeira no canto, Jord arregalava os olhos de pavor. Dos quatro bandidos com pernas e braços arrancados por Magnus, três desfaleceram. Sem a mão esquerda e já como um homem, Magnus lançou um olhar de ódio à líder. Aquele ato mudara para sempre a sua vida. Um lobisomem decepado, ao voltar à forma humana, nunca mais se transforma em lobo. – Eu só ia perguntar! – Ele justificou a desobediência entre dentes. Com a mão direita, esbofeteou o sobrevivente com toda a fúria que existia. – Por que sequestraram a minha filha? – O homem com a perna arrancada deu um último suspiro e sua cabeça pendeu frouxa no chão. – Merda! – Magnus berrou. Rana gemeu com pesar. Não suportou ser desobedecida. Ela e Arik se ergueram nus em outra forma física. Ulmer adentrou a cabana. O que vocês fizeram? Ninguém respondeu. Um sinistro silêncio pairou sobre eles. Rana desatou a criança. Ia abraçá-la, mas Jord se esquivou e correu de encontro ao pai. Arik amarrava tiras de pano no braço amputado de Magnus. Nada restara da mão para que pudesse ser reimplantada. Rana baixou o olhar. Venha, Bedolf. Acabou.
  • 25. Minutos depois, Bedolf pousou. O mesmo silêncio os acompanhou durante todo o trajeto para casa. Pedidos de desculpas não seriam necessários naquele momento. Os dois erraram. Sabiam disso. Magnus porque desobedeceu e Rana porque feriu gravemente o seu amigo. O que intermediava o ódio de Magnus e o pesar de Rana era o fato de que Jord estava bem. Isso era mais importante do que as suas atitudes impensadas. Para limpar a sujeita que ficou e acobertar os assassinatos, os amigos da Polícia Federal. Era-lhes interessante que levassem os créditos por terem descoberto e destruído mais uma plantação clandestina de maconha. No hospital, enquanto Magnus se recuperava depois da cirurgia, Rana entrou no quarto com o semblante preocupado e cheio de cicatrizes. Magnus estreitou os olhos e a seguir adoçou a expressão. Me perdoe. Os dois pensaram no mesmo instante e Magnus usou o braço bom para puxá-la junto dele. Um abraço de absolvição foi trocado com sinceridade. – Eles a sequestraram por engano – Rana falou com a voz embargada. – Achei que gostaria de saber. – Eu imaginei. – Os caras eram novos por aqui. Vieram do norte da França há poucos meses para localizar um traficante que os devia alguns milhões. Não tinham a mínima ideia de que este é o nosso território. Nem sequer sabiam da nossa existência. Instalaram-se naquela área e ameaçaram o dono da plantação de milho. O pobre homem ficou calado, com medo de que matassem a sua família. Admitiu a coação para a polícia depois que eles encobriram as nossas ações por lá. Infelizmente, vai ter que responder pela maconha que os caras plantaram em suas terras. Foi o meio que encontraram de se manter enquanto procuravam pelo caloteiro. – Então eles vieram para cobrar uma dívida. – Sim. E quando localizaram o seu devedor, descobriram onde a filha dele estudava e parcamente planejaram o sequestro. A garota em questão está na mesma sala de Jord e tem as mesmas características físicas dela. Isso explica o engano. – Que estúpidos! – Magnus apertou as pálpebras e suspirou. – Bem, fico aliviado em saber que não foi uma vingança contra mim ou contra a organização. – Não. Não foi. – Eu sinto muito pelo seu rosto, Rana. – E eu sinto muito pela sua mão. – Não foi só a minha mão que eu perdi, você sabe... – Ah, Deus, eu sinto tanto... – Rana desabou a chorar. – Ei, está tudo bem – Magnus a consolou. – Me desculpe, eu não quis te chatear. Eu posso viver com isso. Vou me readaptar, não se preocupe – Limpou as lágrimas da moça e beijou-lhe a testa. – Se tem algo que eu não poderia suportar é viver sem Jord. Está bem? Rana balançou a cabeça num gesto afirmativo, mas teria que conviver com aquela culpa pelo resto dos seus dias. Tirar de um lobisomem o poder da transformação é como tirar de um homem a sua virilidade. Aquele se tornara o seu fardo. Não tão pesado quanto o de Magnus, mas viver em paz com a sua consciência estava longe de ser possível. Toda vez que se olhasse no espelho e visse aquela cicatriz, se lembraria do que fez. Arik e Jord entraram no quarto com um imenso buquê de flores.
  • 26. – Ei! – Magnus disse com bom humor. – Guardem isso para o meu enterro! Todos riram e se abraçaram. ~*~ Contato com a autora: susyramone@gmail.com http://susyramone.blogspot.com
  • 27. XINGU – QUANDO AS FORÇAS SE UNEM (Gerson Balione) Os índios sempre foram os guardiões das florestas. Como guerreiros, protegiam a fauna e a flora de suas regiões. Mas agora, isso está se transformando numa luta em que os índios estão levando a pior. Suas terras, fauna e flora vêm sendo dizimadas pelo progresso do homem branco, que não sabe conviver em harmonia com a natureza. Em meio ao esforço pela preservação da vida e da cultura indígena, uma guerra silenciosa foi deflagrada. Na calada da noite, tribos inteiras começaram a ser destruídas. Políticos inescrupulosos mantinham as chacinas na obscuridade. Até que, fartos, os índios começaram a reagir. Um pajé da tribo Yudjá (Juruna), vendo a bravura dos irmãos Itagi (machado de pedra) e Piatã (forte e vigoroso), na luta pela sobrevivência, decidiu ajudá-los. Reuniu os espíritos da floresta, lançando sobre eles uma magia. Essa magia daria aos irmãos o poder de se transformarem em feras, meio homem, meio Janauíra (cachorro vinagre), e assim expulsar os homens brancos da região, impedindo a devastação do meio ambiente. Agora, o verde da floresta ficará manchado de sangue para sempre... Uma guerra está sendo travada no Alto Xingu com a construção da Usina de Belo Monte. Várias tribos terão que deixar suas terras para a construção da terceira maior usina hidrelétrica do mundo. Mas a que preço? *** Área de desmatamento – Implantação do Canteiro de Obras – Usina Belo Monte – estava escrito numa placa, que foi arrancada e arremessada longe. Um homem assustado apareceu correndo... – Desgraçada! – gritou ele, um operário da empresa contratada para o desmatamento corria desesperadamente. – Só pode ser uma onça! Só pode! – apreensivo, ouvia os rosnados. – Ai meu Deus! Não quero morrer... Uma sombra no meio da mata acompanhava-o à distância. Desesperado, corria na direção do rio. Parou perto da margem. E da mata, a fera saiu, revelando-se para ele. – Você não é uma onça... Que bicho é esse? – começou a rezar em voz baixa. Não tinha alternativa se não pular no rio. E foi isso que fez. – Venha seu... Seu desgraçado! Outro animal surgiu sorrateiramente por debaixo d’água sem que percebesse. Ele nadava de costas sem tirar os olhos do animal que o observava parado à margem. O que vinha pelas costas emergiu das águas soltando um rosnado assustador. Ao virar-se, deparou-se com outro animal da mesma espécie. Era uma cilada, ele foi exatamente para onde os bichos queriam que ele fosse, para dentro do rio. Tentou recuar, mas era tarde. O outro saltou para dentro do rio. E o que se ouviu foram apenas gritos de terror e dor, desferidos pelo pobre operário nos últimos segundos de sua vida. E uma mancha de sangue misturou-se às águas do rio. *** Brasília – Congresso Nacional 29
  • 28. – Não faz sentido! Esta usina é inviável! – exaltado, um político falava no plenário. – Este projeto tem grandes problemas! – Ora! Seu partido de ambientalistas fanáticos! Só dizem besteiras! – respondeu outro político a favor do projeto. – Tenho estudos que comprovam que esta usina é uma “usina para comer dinheiro”, isso sim! – dizia num tom exaltado. –Vocês irão destruir toda a flora e fauna, sem falar nas tribos que vivem em toda a região... Em época de cheia, ela irá gerar pouco mais que 11 mil MW. Isso já coloca a viabilidade econômica do projeto em dúvida... Uma confusão generalizada estava formada no congresso, e a sessão teve que ser encerrada. *** Alguns meses mais tarde – As manchetes dos jornais diziam: ... IBAMA dá “autorização de supressão de vegetação” ao Consórcio Norte Energia. O início dessas obras infraestruturais antecede a construção de Belo Monte. O procedimento envolve a autorização para o desmatamento de 238,1 hectares, sendo 64,5 hectares localizados em Área de Preservação Permanente... ... Político contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte é encontrado morto em viagem de visita às tribos da região do Alto Xingu... *** – Fala, doutor! Sabe o que eu queria falar pro senhor? É que nós estamos tendo problemas com alguns índios e alguns ambientalistas... – Que se danem os ambientalistas! Não quero saber o que esses caras vão falar! Já temos a aprovação do projeto... – dizia a voz do outro lado da linha. – Eu quero essa cambada de índios fora dessa região! Haja o que houver... Mate se for preciso! – Mas senhor... – Não tem mas.... Tem que derrubar tudo aí... Depois que estiver tudo no chão, ninguém pode fazer mais nada. Dinheiro não é problema – o telefone foi desligado abruptamente. – O que foi, Sergião? Tá com cara de bunda! – O Dr. Queiroz está bravo. Disse que é pra fazer o que for preciso pra tirar os índios de lá... Até matar! – Até que enfim vamos ter ação neste fim de mundo – disse o outro capanga. – E vai ser esta noite. Chame o resto do pessoal e mande trazer as armas. – Pode deixar. *** A noite caiu e os homens estavam armados até os dentes, iriam expulsar a tribo de Jurunas que ocupava uma grande área na região. Chegaram fazendo barulho. Vinte 30
  • 29. homens chegaram armados em seus jipes e pickups. Os índios assustaram-se com o barulho e os tiros para o alto. – Vamos, cambada, vocês vão sair na marra daqui! – gritava o chefe do grupo. Os homens entravam nas cabanas e retiravam as mulheres à força, crianças eram empurradas para fora e jogadas no chão, sem dó. – Vamos, seus vagabundos! Um índio surgiu segurando um facão, mas foi alvejado com vários tiros. – Vai todo mundo morrer aqui, hein?! – Falta apenas uma cabana, chefe! Um ruído estranho veio de dentro da moradia, deixando-os receosos. – E o que estão esperando? – Entrem aí! Já matamos um índio e agora estão com frescura? Os índios foram colocados no meio do terreno, cercados pelos homens armados. – Quem mora ali? – perguntou um dos homens que segurava o cacique da tribo. – Quem? – ele nada falou e tomou uma coronhada na cabeça. – Andem logo! – outro ruído chamou a atenção de todos. Seguindo as ordens do chefe do bando, três homens adentraram a cabana. Estava escuro no interior da moradia. Os três entraram e desapareceram na escuridão. Em seguida, tiros foram disparados e o clarão que se fazia dentro da cabana mostrava a silhueta dos homens entre as frestas do pau a pique. Mais tiros e gritos e alguns segundos depois, apenas silêncio. Todos se entreolharam assustados. – Quem está lá dentro? Perguntou um dos capangas ao líder indígena que, ainda caído no chão pela coronhada, foi chutado, mas ele nada falou. Quatro homens foram em direção à cabana e, ao chegarem perto, perceberam o sangue que escorria em abundância pelas frestas das madeiras do piso elevado, gotejando na terra. Recuaram alguns passos. Um dos capangas engatilhou sua arma e apontou para a cabeça do cacique. No instante seguinte, o telhado da casa espatifou-se indo pelos ares, e a silhueta de duas formas bizarras pôde ser vista em meio aos destroços de madeira e palha. Uma das feras caiu bem perto do grupo que estava à porta da cabana, e a outra caiu ao lado do homem que mantinha o índio na mira. O salto fora de mais de seis metros de distância. – Minha mãe do céu... o que é isto? – balbuciou um dos homens próximo à cabana. Foi o primeiro a ter a cabeça arrancada pela patada do animal. Os outros sequer tiveram tempo de atirar, seus braços foram arrancados ainda segurando as armas. O outro animal desferiu um golpe que abriu o ventre de um dos malfeitores antes de atirar no líder indígena. Ele viu suas próprias visceras se espalharem pelo chão. Ainda quente, despersavam fumaça em contato com o sereno frio da noite. O ataque foi rápido e preciso. A fera saltou para o próximo, que atirava sem mira nenhuma. Os dois braços foram arrancados. O chefe do bando e mais dois correram para a pickup, onde o motorista olhava atônito para o que acontecia. 31
  • 30. – Vamos! Ligue essa merda! – gritava o chefe enquanto corria em direção ao veículo. O motorista demorou alguns segundos para assimilar o que acontecia. Os animais corriam muito rápido. Os outros dois jagunços, que também ficaram para trás, foram atacados. O chefe do bando pulou na carroceria da caminhonete e, enquanto as rodas derrapavam no barro, via os corpos dos comparsas sendo dilacerados pelos monstros. – Vai! Acelera essa merda! Vamos, vamos... Piatã levantou a cabeça. Com a boca ainda cheia de sangue da vítima, soltou grunhidos. Itagi, com um dos braços do outro homem ainda na boca, também olhou... Os dois pararam o que faziam e partiram em disparada atrás dos fugitivos. Agora corriam sobre as quarto patas para, assim, serem mais rápidos. Corriam lado a lado. – Eles estão nos seguindo! Acelera isso! – disse o chefe pela janela traseira. Quando voltou a olhar para trás, as feras haviam sumido. – Ótimo, eles sumiram. De repente, vindo pela lateral, uma delas pulou na caçamba. Aos gritos, o homem se debatia e tentava apontar sua arma para a fera que, com um golpe de sua pata, o jogou para fora. O motorista, aos gritos, alternava em olhar para trás e para frente e, com uma das mãos, tentava pegar a arma sobre o banco. Nessa tentativa, perdeu o controle da caminhonete, saiu da estrada e bateu de frente contra um tronco de uma árvore tombada. O impacto arremessou o animal e o chefe para fora do pequeno caminhão, passando por cima da cabine. Ainda no ar, agarrado ao homem, o animal despedaçou seu corpo como uma folha de papel picada e lançada ao vento, desaparecendo em seguida na densa mata. Ainda atordoado, o motorista sangrava na testa. Conseguiu sair de dentro do utilitário. Ouvia sons de bichos por toda parte. Assustado, correu sem direção. Viu a sombra de algo cruzar sua frente e desaparecer. Desesperado, nem percebeu que cada vez mais se embrenhava na mata. Ouviu outro barulho, agora parecia uma onça, mas ao olhar para trás, viu outro bicho. Tinha mais ou menos um metro e noventa de altura, andava ereto como um homem, mas parecia um cachorro. O focinho curto mostrava os dentes. Foi recuando a cada passo da fera. Não percebeu o barranco que descia até um rio, escorregou e caiu. Antes mesmo de encostar na água, a outra fera saltou de dentro do rio, pegando-o ainda no ar. A última imagem que viu, antes de afundar na água escura e ter o corpo devorado, foi a outra fera pulando de cima do barranco. *** Holanda – sede secreta da Green Death Dentro de uma sala sem janelas, à meia luz, quatro pessoas, três homens e uma mulher, encontavam-se sentadas em torno de uma mesa retangular. Defronte a um telão. – Senhores! Prestem atenção nas imagens que iremos ver no telão... Pode rodar! – disse Huygens, o alfa, chefe do grupo. Êsi Ája (cachorro cavalo), um nigeriano musculoso, Luna (lua), uma espanhola de cabelos prateados como a lua e Gek (louco), todos betas, olhavam atentamente as imagens. – Estas fotos foram tiradas por nosso contato no Brasil – as fotos mostravam pessoas destroçadas e muito sangue. Marcas de garras chamaram a atenção de Luna. – Quem eram eles? 32
  • 31. – Não se sabe ao certo. O que nosso contato descobriu é que estão acontecendo alguns conflitos na região do Alto Xingu envolvendo a construção de uma hidrelétrica, massacre de índios e políticos corruptos. Muitos índios vêm desaparecendo e, de uns tempos para cá, algumas mortes estranhas começaram a acontecer. Estas pastas azuis contêm um relatório sobre os acontecimentos. Já tivemos um grupo atuando nessa região há tempos. Mas estes fatos são novos. – Que marcas são essas no chão? – perguntou Êsi Ája após ver as pegadas na terra. – É exatamente isso que queremos descobrir. Não se parecem com as nossas. O que dá a entender é que eles possuem membranas entre os dedos. Possivelmente são adaptados para a água. Pelo tamanho das pegadas, deduzimos que não são tão grandes quanto nós. Achamos que se trata de uma nova espécie lupina que vem tentando proteger as tribos na região. Nós iremos até lá para descobrir. Vamos encontrar com nosso contato no Aeroporto de Belém/Brigadeiro Protásio de Oliveira em Belém do Pará, e de lá seguiremos, também de avião, até a cidade de Altamira. Seremos um grupo de biólogos/turistas. André é nosso contato brasileiro. Ele é um simpatizante pela nossa causa. Está infiltrado como fotógrafo criminalista na polícia científica da região... Luna será nossa interprete, pois é a única que fala português. Leiam o relatório. Sairemos amanhã pela manhã. *** Brasília – Gabinete do Senador Queiroz – Como assim sumiram? Já falei para não me ligar... é pra esperar que eu entro em contato... E quem teve acesso aos corpos? Só a policia local? Ótimo! Vai entrar um numerário na sua conta, mas é pra distribuir pro pessoal. Assim ninguém abre a boca. Vou dar um jeito nesses índios desgraçados... Vê se limpa tudo por aí e não quero ver meu nome nesta sujeira. *** Cidade Novo Gama – GO – ...E o que Vossa Excelência precisa? – Matadores profissionais, para atuar no limite extremo. – E é pra matar quem? – Quem entrar no caminho. Índio, mulher, velho, criança, ativista. É para tirar todo mundo de lá. – Isso vai custar caro para Excelentíssimo Senhor. Ao comando do Senador, seu segurança abriu uma maleta de alumínio que caregava. Ao abri-la, o brilho dourado das barras de ouro reluziu com a fraca luz da casa. – Hehehe! Caralho, doutor! Então, só pra eu ficar mais à vontade... Eu vou com meus melhores homens, naquele fim de mundo, matar índios e ecologistas. E tu vem com uma maleta cheia de ouro pra me pagar? Chefia, isso tá cheirando coisa grande... Tu é homem de poder. Entrou aqui no favelão pra falar comigo pessoalmente... Não sei, não... – confabulou alguma coisa com o irmão ao seu lado. – É o seguinte, Vossa Excelência... Vou querer mais uma dessas pastas cheias... – Pera aí, mas o combinado... 33
  • 32. – Combinado o caralho! – disse o outro que permanecera calado até então. Neste momento, outro segurança que acompanhava o Senador sacou uma automática, mas da penumbra, em torno da velha casa, seis homens apontaram fuzis e pistolas com mira a laser para o Senador. – Tu tá maluco, doutor? Tá querendo morrer? O Senador mandou o segurança abaixar a arma. – Assim tá melhor. Quero outra quantia desta ou nada feito. E quero amanhã! – E como vou saber que você vai executar o serviço? – O senhor tá contratando os Irmãos Rocha, somos profissionais. – Então está certo – o Senador suava em abundância. – Mando as coordenadas junto com o resto do ouro, amanhã. *** Cidade de Altamira – Que fim de mundo é esse? – perguntou Gek. – Estamos na Amazônia – respondeu André. – Vamos, aquela Land Rover é minha. Êsi Ajá e Luna apenas olhavam. Huygens conferia algumas anotações enquanto o carro sacolejava por conta dos buracos nas ruas de terra da cidade. Gek imitou um lobo uivando enquanto olhava para André que sorria. Recebeu um tapa na cabeça do amigo nigeriano. Já acomodados na casa de André, Huygens dava as últimas coordenadas para o grupo. – Amanhã partiremos para o local do último conflito. Faremos uma busca minuciosa na região onde foram encontrados os últimos corpos. *** Era madrugada quando um jato Legacy pousou na pista do Aeroporto de Altamira. Sete homens seguiam para duas caminhonetes de cabine estendida. Um terceiro veículo era carregado com as bagagens e algumas caixas. Seguiram para uma fazenda distante da cidade. *** – Vai levar umas três horas até chegarmos ao local – disse André enquanto colocava algumas mochilas no porta-malas de seu Land Rover. – Depois, mais uma hora de caminhada. Luna passava a informação para os amigos. No caminho, viram uma grande movimentação de caminhões levando garimpeiros. Gek pediu à amiga que perguntasse o que estava acontecendo. – Ouro, meu amigo. Gold... É a nova corrida do ouro. Ela traduziu. Huygens anotava algumas informações em seu laptop. *** 34
  • 33. – Chegamos – disse André, estacionando o veículo. – O local do canteiro de obras da hidrelétrica está abandonado. Depois das últimas mortes, os trabalhadores ficaram com medo. As bagagens foram retiradas do veículo, cada um pegou a sua e rumaram para dentro da mata. André partiu de volta para a cidade. Pessoas normais levariam uma hora para chegar até o local. O grupo chegou em meia hora, apenas. Vasculharam tudo atrás de pistas sobre a nova raça lupina. Mas até então, nada. – Estou sentindo cheiro de sangue – disse Gek levantando suas narinas. – Vem dali – apontou ele. Ele foi à frente, seguido por seus amigos. Chegou numa pequena clareira onde cinco corpos estavam amontoados. – São índios! – disse ele. – E com certeza não foram atacados por nenhum animal – as perfurações de balas eram visíveis em suas cabeças. Mentalmente, avisou seus companheiros. – Isso é recente, coisa de algumas horas. Fiquem atentos. Rapidamente, todos estavam em alerta. – Vamos encontrar um lugar seguro para nossas coisas – disse o alfa do grupo. – Gek, leve nossas mochilas para o alto daquela árvore. Todos estavam nus. Suas roupas foram guardadas nas respectivas mochilas e a transformação em lobos começou. Gek olhava fixamente para Luna enquanto ela se transformava. – Você me excita quando faz isso, sabia? – disse ele para a garota. Ela apenas sorriu. Com rapidez e agilidade incrível, Gek escalou os galhos carregando as quatro mochilas. Após deixá-las bem escondidas, saltou lá de cima aos pés da beldade lupina, agora transformada numa loba de dois metros e trinta de altura e de pelos prateados como o luar. Êsi Ája fazia jus ao seu nome Cachorro-Cavalo. Um lobo gigante, de músculos salientes e de pelos negros como a sombra. Gek tinha dois metros e trinta de pelagem castanha e arrepiada como seu compatriota, Huygens. Cada um vasculharia uma região e deveriam se encontrar ao amanhecer. O contato seria mental. A velocidade com que corriam e saltavam era espantosa. A noite caiu sobre a floresta e apenas a luz da lua iluminava a mata. Luna ouviu ruídos e parou sobre uma pedra alta e lisa. Seus pelos prateados brilhavam à luz do luar. Suas orelhas movimentavam-se procurando a direção do som, até que o barulho ficou mais nítido. Eram gritos. Ela saltou da pedra e, sorrateiramente, foi na direção do alvoroço. Avistou uma clareira, uma fogueira iluminava o local. Quatro homens seguravam duas índias nuas, um deles abria as calças. – Desgraçados – pensou ela. Mentalmente passou a informação para seu grupo, mas estavam muito distantes uns dos outros. Não daria tempo, decidiu agir sozinha. – Vamos, sua gostosa. O cacique aqui vai te mostrar o tamanho da lança. Entretidos com as mulheres, riam sem parar, nem perceberam a chegada da fera lupina. Com um golpe violento da garra direita, entrou pelas costas e atravessou o peito 35
  • 34. do garimpeiro que estava preste a estuprar uma delas. O sangue jorrou, sujando a mulher e os outros garimpeiros. Atônitos e congelados, viram o corpo do amigo ser suspenso no ar e arremessado a vários metros de distância, como um boneco de pano. Luna urrou e parou na frente dos homens, seus dois metros e pouco de altura e dentes salientes fizeram os homens recuarem, um deles caiu sentado. As nativas agora se abraçavam encolhidas. Estavam assustadas, de suas bocas só se ouvia as palavras Piatã e Itagi, sucessivamente. Luna passou por elas sem dar muita atenção. Queria os garimpeiros. O homem caído arrastava-se de costas sem tirar os olhos do lobo gigante e acinzentado. Seus pelos brilhantes refletiam as tonalidades avermelhadas da fogueira. – Mãe de Deus! Que bicho é esse? – disse um dos garimpeiros que recuava. Queria chegar até a espingarda que estava encostada no tronco de uma árvore. O outro tentou virar e correr, mas a fera prateada o agarrou pela perna, levantou-o e jogou-o no chão com tamanha violência que deu para ouvir os ossos do corpo do homem se partirem. O que estava no chão também tentou correr, mas foi pisado nas costas. Com uma das patas, Luna ergueu-o rasgando-lhe a garganta com suas potentes garras. As índias continuavam paradas no mesmo lugar e dizendo as mesmas palavras: Piatã e Itagi. A lupina prateada não entendia o que elas falavam. O som de um clique seguido de um estampido a fez virar. O tiro acertou seu ombro direito. Parado perto da árvore, o garimpeiro segurava a espingarda. Trêmulo, não conseguia uma mira perfeita. Num único salto, a ferra partiu para cima do homem que não teve tempo de dar outro tiro. Sua cabeça foi esmagada com uma única mordida. Ela virou-se na direção das índias. O sangue que escorria do ferimento no ombro manchava seu pelo prateado. Quase chegando perto das moças, uma pancada forte nas costas a jogou longe. Levantou a cabeça e viu um vulto passar muito rápido entre ela e as índias. Tentou se levantar, mas outra pancada forte jogou-a para o outro lado. Viu outro vulto. – São eles... – pensou. Não queria machucá-los, queria fazer contato. Pôs-se de pé em posição de defesa. O sangue saía em profusão do seu ferimento, minando sua energia. Finalmente, os dois se revelaram para ela. Eram menores, mas muito fortes. Tentou um contato mental. Piatã e Itagi nunca tinham tido um contato mental. Aquilo os deixara confusos por alguns instantes. – Sou amiga... – mentalizou Luna. Aquilo ecoou nas cabeças dos irmãos, que se entreolharam. – Sou amiga... E estou aqui para ajudar. Piatã correu em sua direção e Itagi deu a volta. Ferida seriamente no ombro, só podia tentar se defender de possíveis golpes até a chegada de seus amigos. – Onde estão vocês? Estou ferida e fiz contato com a nova espécie. – Calma, minha querida, estamos chegando – Gek respondeu por telepatia. Com outro golpe, Piatã jogou-a de encontro a uma árvore que se partiu com o peso da loba. 36
  • 35. Quando Piatã preparava outro golpe, de dentro da mata, Êsi Aja, o lobo gigante e negro, agarrou-o pela cintura, empurrando para longe. – Não queremos machucá-los – mentalizou Êsi Ája rapidamente. Outra confusão mental e Piatã soltou grunhidos para Itagi. Cada um pegou uma das índias, colocando-as nos ombros e correram mata adentro. Gek e Êsi Ája foram atrás. Huygens parou para socorrer Luna. – Esses caras são rápidos – disse Gek ao amigo. Mesmo carregando as índias nos ombros, eles corriam muito, até que chegaram num barranco onde um rio desaguava, e de lá saltaram para dentro d’água, sumindo na escuridão. – Vamos voltar. Iremos nos encontrar novamente – disse Gek. Êsi Ája tentava farejá-los inutilmente. Voltaram para o local onde estava Luna. Huygens analisava o ferimento. – Você ficará bem – Huygens usou sua telepatia para tranquilizá-la. Ela então devorou um dos garimpeiros. Isso a faria repor as energias e se recuperar mais rápido das lesões. Êsi Ája e Gek chegaram ao local. Gek correu até a loba, queria ter certeza de que estaria bem. Ela estava lambuzada de sangue. Caminharam sob a forma animal, seguindo o curso do rio. Queriam encontrar a nova raça. O ombro da fera espanhola já não sangrava mais, a recuperação era incrível. Nesta caminhada, acabaram descobrindo um garimpo. Possivelmente, os homens que Luna matara eram dali. Os papéis encontrados indicavam a localização exata. Provavelmente seria um garimpo clandestino. Huygens havia se transformado em humano. Nu, vasculhava tudo. Acabou por encontrar documentos que o fizeram entender as mortes de índios e ativistas da região. Ouro, eles estavam sobre o maior filão de ouro já encontrado no mundo. Alguém muito poderoso estava por trás disso tudo. – Mas por que não há ninguém aqui? – perguntou Gek, agora na forma humana também. – Eles achavam que estavam bem escondidos na mata. Os únicos que poderiam descobrir tudo isso eram os índios da região – disse Huygens. – Por isso as matanças... Então quer dizer que isso aqui não vai ficar abandonado por muito tempo – foi dizendo Gek. – O dono vai chegar logo, logo. – Eles estão com muita pressa, pois tudo isso será inundado quando a hidrelétrica estiver pronta. Luna estava deitada, recuperando-se, enquanto Êsi Ája fazia ronda no perímetro. – Ficaremos por aqui enquanto Gek irá retornar onde deixamos nossas coisas. Passe esta mensagem para André, no local marcado. E pegue algumas coisas, mas traga somente o necessário. – Por que eu? – reclamou. – Vá! Já na forma lupina, sumiu na mata, mas foi reclamando mentalmente até onde o limite da telepatia permitia. 37