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Entrevista ao escritor angolano Ondjaki. 
"O livro fala ou não fala com o leitor" 
"Uma Escuridão Bonita" fala-nos sobre o amor, 
verdade? 
É sobre o encantamento, pode ser na forma do amor, 
de um encontro, de um mistério: do como, quando, em 
que circunstâncias conhecemos os outros. Não acho 
que seja particularmente um livro para crianças. 
Passou pelo teatro e pela sociologia. Porquê? 
Acho que a única coisa que tem sido mais ou menos constante nos últimos tempos é a escrita. 
A sociologia não, foi uma coisa formal, sou licenciado mas não sou sociólogo, não exerço, não 
quero saber. A pintura também é mentira, às vezes circula essa informação que eu pinto, mas 
não pinto, não sei onde foram buscar. Às vezes dizem que sou actor, nunca fui, fiz umas coisas 
no secundário que toda a gente fez. E, bom, fiz um documentário sobre Luanda, isso é verdade. 
Mas são exercícios de sensibilidade para voltar à escrita. 
Há algum exercício que tenha sido mais inspirador? 
Um dos mais eficazes é a observação dos outros, do mundo. Acho que a escrita depende, sim, 
do que vem de dentro, mas muitas vezes também depende dos estímulos que vêm do mundo. 
Já viveu em Lisboa, em Itália... Estar em trânsito ajuda à criação? 
Acho que não. Importante para a escrita não é, pode ser importante para mim conhecer mais 
culturas, mais ruas, mais aeroportos. A única coisa que me trazem é que me cruzo com mais 
pessoas, o que não é necessariamente bom, e permite um acesso temporário, rápido, superficial 
a outras culturas. 
Astérix, Gabriel García Marquez e Jean-Paul Sartre faziam parte das suas leituras em 
criança? 
Acho que ainda hoje sou capaz de ler tanto Astérix, como García Marquez,… Sartre menos. 
Apesar de ainda ter muito respeito, já não leio com o mesmo interesse. Leio tudo e gosto muito 
de ler livros infantis ou ditos infantis. Tenho apreciado o trabalho do Afonso Cruz, gosto muito 
dessas intervenções e cada vez mais está a haver uma fusão entre a linguagem escrita e a 
gráfica, antigamente era muito separado. 
E juntam-se os dois mundos, o infantil e o adulto. Pode resultar? 
Começam finalmente a confundir-se. Não é necessário estar tão claro assim. Ou o livro fala com 
o leitor ou não fala, não interessa se o leitor tem 7 ou 52 anos. É verdade que as pessoas 
procuram os livros mas também é verdade que muitos livros encontram determinadas pessoas. 
E isso não tem a ver com a idade, tem a ver com a metafísica... [sorriso]. 
Quando começou a ler percebeu logo que queria pegar no papel e na caneta? Acho que foi 
um bocadinho mais tarde. Luanda é uma cidade onde as pessoas são viciadas em histórias, de 
inventar e contar, mais do que escrever. A partir daí se a pessoa gostar de escrever é possí vel 
que aconteça, sim.
Porquê esse vício nas histórias? 
Isso não saberia explicar. Acho que é como perguntar ao Chet Baker porque é que tocava 
trompete. Será que ele gostava sequer? Não sei. Ou era uma urgência independentemente do 
gostar ou não gostar? Porque eu não escrevo só aquilo que publico. Nem é por vício, é por 
instinto comportamental. Só sei estar assim, até ao dia em que me acontecer estar de outra 
maneira, em que não precisar de escrever. 
Entrevista ao Jornal i,25 fev.2014, com supressões

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  • 2. Porquê esse vício nas histórias? Isso não saberia explicar. Acho que é como perguntar ao Chet Baker porque é que tocava trompete. Será que ele gostava sequer? Não sei. Ou era uma urgência independentemente do gostar ou não gostar? Porque eu não escrevo só aquilo que publico. Nem é por vício, é por instinto comportamental. Só sei estar assim, até ao dia em que me acontecer estar de outra maneira, em que não precisar de escrever. Entrevista ao Jornal i,25 fev.2014, com supressões