1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS - UEA
ESCOLA SUPERIOR DE ARTES E TURISMO - ESAT
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO
E PRODUÇÃO CULTURAL
NEILA NEWDIRLEY CÂMARA PINTO
ANÁLISE DO CASO-CONCRETO USO DE GRAFISMOS INDIGENAS NA
PRODUÇÃO DE MODA, SOB ENFOQUE DO DIREITO CULTURAL
MANAUS
2021
2. NEILA NEWDIRLEY CÂMARA PINTO
ANÁLISE DO CASO-CONCRETO: USO DE GRAFISMOS INDIGENAS NA
PRODUÇÃO DE MODA, SOB ENFOQUE DO DIREITO CULTURAL
Análise de caso-concreto “Uso de
Grafismos Indígenas na produção de
moda”, apresentado ao curso de Pós-
Graduação Lato Sensu em Gestão e
Produção Cultural da Universidade do
Estado do Amazonas – UEA, como
requisito para obtenção de nota no
módulo de Direito Cultural Prof. Renato
Dolabella Mello, Dr.
MANAUS
2021
3. 1. INTRODUÇÃO
É recorrente no âmbito do design, o uso de grafismos concebidos por diversas tribos
indígenas brasileiras. O presente texto trata de um sucinto estudo amparado sob os
aspectos antropológicos e legais das manifestações iconográficas das tribos indígenas
brasileiras e suas aplicações por meio dos grafismos indígenas, e a legalidade e proteção
desse uso frente aos interesses comerciais no âmbito da moda.
4. 2. USO DE GRAFISMOS INDÍGENAS NA PRODUÇÃO DE MODA
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021), no período colonial
discutiu-se sobre a origem dos índios, sobretudo na Europa. Enquanto uns os jugavam
descendentes das tribos judaicas, outros sequer os tinham como humanos. Porém,
atualmente, tem-se uma perspectiva de corrente migratória formadora dos povos
ameríndios há cerca de 12 a 14 mil anos atrás.
De acordo com Vilela et. al (2017) estimava-se 100 milhões de indígenas distribuídos
na área sul do continente, cerca de cinco milhões em território brasileiro. Os autores citam
Andrés Ruiz- Linares, da University College de Londres, cujos estudos apontam que este
povoamento se deu em função de três ciclos migratórios, a partir de um ponto principal
coberto de gelo, que ligava Ásia e América, o Estreito de Bering.
Passados muitos séculos depois, muitas das construções de cosmologia, mitos e
costumes e cultura material e imaterial dos povos originários não são amplamente
conhecidos por grande parte da sociedade. Porém, Vidal (2000) expõe que desde o século
XV, pintura e as manifestações gráficas foram relatados por cronistas e viajantes, cita
[...] inúmeros estudiosos nunca deixaram de registrá-las e
de se surpreender com essas manifestações insistentemente
presentes ora na arte rupestre, ora no corpo do índio, ora em
objetos utilitários e rituais, nas casas, na areia e, mais tarde,
no papel. (VIDAL, 2000).
Segundo a pesquisadora e organizadora do livro intitulado Grafismos Indígenas, Luz
Vidal, é recente o interesse por tais manifestações simbólicas, culturais e estéticas -
pintura, a arte gráfica e os ornamentos do corpo - as quais passaram a ser entendidas
como manifestações da vida em sociedade, material visual que exprime a concepção tribal
de pessoa humana, a categorização social e material e outras mensagens referentes à
ordem cósmica (VIDAL, 2000).
5. Dentre as manifestações utilizadas aplicação da simbologia de cada povo indígena,
estão os grafismos. Genericamente, se pode defini-los como elementos estético-formais
aplicáveis a diversos tipos de superfícies e em diversos contextos de uso. Uma das
maneiras pela quais os povos indígenas tradicionalmente expõem os grafismos, consiste
na sua aplicação utilizando o corpo para tal manifestação.
A pintura corporal para os índios tem sentidos diversos, não
somente na vaidade, ou na busca pela estética perfeita, mas
pelos valores que são considerados e transmitidos através
desta arte. Entre muitas tribos a pintura corporal é utilizada
como uma forma de distinguir a divisão interna dentro de
uma determinada sociedade indígena, como uma forma de
indicar os grupos sociais nela existentes, embora existam
tribos que utilizam a pintura corporal segundo suas
preferências. (RIBEIRO , 2012)
Por sua vez, na antropologia há o ramo da antropologia estética. As manifestações
artísticas indígenas, no qual o grafismo indígena é um de seus veículos principais de
manifestação da cultura da comunidade, é manifestado por meio da pintura corporal, e
que constitui um dos espectros de estudo antropológicos.
Nas sociedades indígenas, o aprendizado da arte da pintura
começa desde criança. [...] Esta habilidade é elemento
culturalmente transmitido, ainda assim não é considerada
uma produção de conhecimento que confira ao índio uma
especialidade. Em alguns povos, a pintura significa
preparação para a luta, batalha; para outros, serve para
ornamentar [...] Ela é transmitida por meio da memória
cultural herdada de seus antepassados e pela mitologia que
explica sua existência [...] Desvendar as diferentes formas
de pinturas e seus significados nas diversas culturas
6. indígenas torna-se relevante quando se considera que é neste
ato que as diversas etnias enfrentam o fenômeno da
aculturação. (RIBEIRO , 2012)
Sabendo dessas questões, no ano de 2002, na disciplina de Antropologia Cultural,
ministrada no curso de Desenho Industrial (Universidade Federal do Amazonas) foi
proposta uma atividade projetual, para criação de algum produto ou linguagem visual,
com a finalidade de aplicação da simbologia indígena, nas criações desenvolvidas.
Nas figuras 1 a 3, são evidenciados os resultados do projeto desenvolvido como
solicitação da disciplina, no qual, se escolheu fazer a aplicação da manifestação dos
grafismos indígenas, por meio da criação de produção de moda, com uma colação de seis
peças para uso masculino, a partir da simbologia de grafismos dos Xikrin, Karajás/Javaé
e dos Xavantes.
Estes padrões são evidenciados no livro de Luz Vidal, e não reportam quaisquer
referências quanto aos autores dos padrões gráficos ou datação da primeira manifestação
daquele padrão, em função de que estes, são simbologias pertencentes aos grupos étnicos,
atendo-se a explicitar apenas a contextualização de uso e aplicação dos grafismos.
Observa-se que a estética criada para a coleção de moda, preconiza o uso de cada
peça, em acordo com a aproximação da simbologia estipulada pela tribo para cada ocasião
de uso.
Figura 1. Pinturas masculinas Xikrin para ocasiões específicas: (esquerda) a-mi-kra: dedo do jacaré: fim do ritual de
iniciação masculina (esquerda); (direita) djoi-mrõ-ko: fim de resguardo do ritual de iniciação
Fonte: Acervo pessoal (2002); motivos da pintura corporal, Vidal (2000)
7. Figura 2. Pintura corporal Karajá/Javaé
Fonte: Acervo pessoal (2002); motivos da pintura corporal, Vidal (2000)
Figura 3. Motivos da pintura corporal Xavante – danhanapré e pintura do wapté, jovem não iniciado.
Fonte: croquis de acervo pessoal (2002); motivos da pintura corporal, Vidal (2000)
Observa-se que, essas peças não foram confeccionadas no âmbito real, uma vez que
além de não ter havido oportunidade adequada para sua apresentação, uma das questões
que pairava como dúvida, seria como lidar com a questão de direitos de uso dessa
iconografia no âmbito da divulgação dos padrões de arte indígena ou como elemento
comercial, no contexto da produção de moda. Assim, pretende-se no próximo item,
abordar algumas perspectivas sobre a discussão de uso de elementos estéticos indígenas
fora de seus contextos originais.
3. QUESTÕES JURÍDICAS DA UTILIZAÇÃO DA ICONOGRAFIA INDIGENA
PARA FINS DE APRESENTAÇÃO FORA DO CONTEXTO ORIGINAL OU
COMERCIAIS
Em geral, atribui-se o sentido de cultura ao arcabouço de conhecimento, valores,
crenças, hábitos, expressões artísticas, dentre outros aspectos produzidos dentro de uma
sociedade ou de um grupo social. Com os povos originários brasileiros, não é diferente.
Entretanto, observa-se que mesmo no conjunto de valores culturais dos povos indígenas
8. brasileiros, há a diferenciação da sua produção cultural. Comumente, chama-se esse
resultado conjunto de expressões culturais de cultura material, quando há um suporte
como resultado – em geral, artefatos, adornos, utensílios etc., ou imaterial – tradições da
oralidade, canto, rituais etc. Para Denis (1996) apud Cavalcante et. al (2013), cultura
material é o conjunto de artefatos produzidos e utilizados por um determinado grupo
social (DENIS, 1996). Para o autor, essa produção material especifica, ultrapassa as
funções primarias de objetos cotidianos, pois são elaborados a partir de simbologias e
fatores psicológicos e afetivos que não possuem significados fixos ou únicos.
Nesse sentido, a utilização de grafismos indígenas fora de seu contexto original,
produz uma nova materialidade, distinta da materialidade original cujo suporte inicial é o
um artefato produzido ou o corpo. Porém, o artefato produzido para uso cotidiano, seja
um produto da moda ou de qualquer outro tipo, produzido por meio de padrões industriais,
e fora do contexto da aldeia e das simbologias que a permeiam seria apropriação e uso
indevidos e moralmente questionáveis?
Uma das questões a pontuar inicialmente, sobre a utilização de grafismos indígenas
no âmbito comercial, trata-se na Convenção UNESCO (Paris, 2005) sobre a Proteção e
promoção da Diversidade das Expressões Culturais, cujo texto foi ratificado pelo Brasil
por meio do Decreto Legislativo 485/2006, em que se aponta como um de seus objetivos
no item “e”, o de promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a
conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional, e em seus
princípios diretores afirma no princípio 3, Princípio da igual dignidade e do respeito por
todas as culturas, “A proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais
pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por todas as culturas,
incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos indígenas.”
Como signatário dessa Carta, entende-se aqui, que a tratativa entre as partes que
pretendessem utilizar da expressão cultural indígena, ou mesmo que na legislação
brasileira, devesse estabelecer mecanismos reguladores para a anuência e a proteção da
utilização com fins diferenciados dos originais.
Ainda que signatário dessa Convenção, no Brasil, a abordagem mais conhecida na
legislação trata-se do artigo 45 da Lei de Direitos Autorais, n. 9610/98, em que cita-se:
9. Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o
prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao
domínio público:
I - as de autores falecidos que não tenham deixado
sucessores; II - as de autor desconhecido, ressalvada a
proteção
De forma complementar, observa-se que no artigo 7, as obras intelectuais protegidas
são as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte,
tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura,
litografia e arte cinética;
X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à
geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo,
cenografia e ciência;
XI - as adaptações, traduções e outras transformações de
obras originais, apresentadas como criação intelectual
nova;
Esta perspectiva permite questionar se um croqui de moda e seu resultado comercial
– a roupa, que é obtido por meio da transformação da obra original, o grafismo, não
poderia ser enquadrado conforme a descrição em na lei.
De outro modo, a lei também regula o direito patrimonial do autor, cujo tempo de
proteção de uma obra até que a mesma caia em domínio público, é atualmente de 70
anos, conforme artigos de considerando-se que o autor dessa obra seja conhecido, ou caso
não seja vivo, seus herdeiros possuam tal direito adquirido. Então como elucidar o
componente, quem é o indígena responsável pela criação de um determinado padrão de
grafismo?
10. Talvez a brecha legal que assegure o direito do patrimônio intelectual e os direitos
autorais dos grupos indígenas, quanto as suas produções materiais e imateriais, recaiam
sobre a Portaria 177/2006, que instrui sobre a proteção dos Direitos Autorais Indígenas,
e discorre em seu artigo 2:
Art. 2 o Direitos autorais dos povos indígenas são os
direitos morais e patrimoniais sobre as manifestações,
reproduções e criações estéticas, artísticas, literárias e
científicas; e sobre as interpretações, grafismos e
fonogramas de caráter coletivo ou individual, material e
imaterial indígenas.
Segundo Faria (2009), a portaria não é o instrumento legal mais assertivo, porém o autor
o considera inovador quanto ao fato de ter apresentado ao direito autoral brasileiro, a noção
do direito autoral coletivo, que refletiria a primeira vista o direito que pela luz de outras leis
aqui citadas, poderiam ser superadas, caso, tal matéria fosse regulamentada e passasse a valer
com força de lei.
11. CONCLUSÃO
Nesta curta reflexão sobre a questão dos direitos autorais, notou-se que há pontos,
que não se aplicam a todas as questões que possam aparecer, em termos de usos de
grafismos ou iconografia indígena que possam ser explorados de outros modos que não
na vida dos povos originários, haja vista, que a lei não define claramente, como a criação
intelectual indígena pode ser resguardada, no sentido de ainda que seja explorada
comercialmente, haja também, o direito de tais manifestações serem protegidas e
negociadas, por assim dizer, com outros fins que não o da práxis comunitária.
Porém há um caminho a ser discutido, quanto isso, pois existe a indicação da portaria
177/2006 da Funai, que visa a proteção dos direitos autorais coletivos das populações
indígenas brasileiras.
Enquanto tal questão não é definida claramente, entende-se que a melhor forma de
dispor comercialmente de tais padrões elaborados pelas tribos, é negociar diretamente
com seus autores nativos, visto que estes, ainda que não resguardados juridicamente por
tais manifestações intelectuais, são reconhecidamente seus autores.
12. REFERÊNCIAS
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Nº 177/PRES, de 16 de fevereiro 2006 (uel.br)
_______. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A origem dos índios. Brasil.
Brasília, 2021. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-
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______. Lei Ordinária n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a
legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. In: Diário Oficial da União,
Brasília, n.º 36, 20 fevereiro, 1998, Seção 1.
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