SlideShare uma empresa Scribd logo
AMOR FORA

DE SÉRIE



  Prof. PAULINO GIL
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil




              AMOR FORA DE SÉRIE

                                                                    ( Prof. PAULINO GIL )




Esta história foi concebida por ocasião da recente festividade comemorativa do Dia de
nossa Padroeira.   (Festa da padroeira de Jambeiro de 1990)

Como se viu, apesar do mau tempo ocorrido na véspera, que coibiu a vinda de muita
gente, a festa esteve bonita e agradou bem.
Aliás, no ano passado – 1989 – aquela multidão que aqui compareceu, pode-se dizer
que foi mesmo quase demais. Nunca se tinha visto tanta gente assim em Jambeiro ! A
cidade ficou superlotada (a fila dos “necessitados”, certa hora, chegou a ir do mercado
até quase o coreto ...). Foi fogo ! Os automóveis tiveram de estacionar desde a ponte
do Capivari e desde o bambual do Edu.
Mas também, pudera! Jambeiro é tida como a cidade de ar mais puro ou limpo do Vale
do Paraíba. E que é uma gracinha de cidade, que agrada e cativa toda gente que tem o
prazer de conhecê-la, o que por si só já é uma atração. Acrescente-se a isso a presença
dos velhos conterrâneos e dos numerosos devotos que costumam vir homenagear a
querida Virgem das Dores. E ainda mais: na ocasião, aqui estava presente o virtuoso
Sacerdote, Pe. José Sazami Kumagawa. Ora, como tem acontecido em outros lugares,
onde suas bênçãos de cura dadas em nome de Jesus têm realizado coisas maravilhosas,
a presença do caro Pe. José costuma atrair multidões.




                                                                                                  2
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Neste ano, porém, tudo foi mais calmo e aprazível. As tradicionais barraquinhas, com os
mais variados artigos, ocupara toda a Rua Nova e outros espaços. A Praça fervilhou de
moças bonitas, que deixavam a rapaziada de boa aberta e olhos parados. E enquanto a
criançada brincava pelo jardim e as famílias se confraternizavam, no coreto uma banda
bem afinada executava alegres melodias. Destoando de tudo, apenas um casalzinho
estranho, parecendo drogado, desavergonhadamente trocava carícias impróprias para
lugares públicos. Junto ao barracão dos festeiros, à sombra daquela frondoso tipuana,
ali plantada no tempo do prefeito Joãozinho Bellotti, vários grupos barulhentos discutiam
política, enquanto sorviam louros chopes gelados.
Vagando por ali e dando voltas ao barracão dos festeiros, nosso estimado Jaburu
apregoava os lances feitos às prendas que leiloava em benefício da festa.
Numa mesa isolada, também eu enxugava distraidamente um delicioso copo de chope,
enquanto curtia toda aquela movimentação. De repente, alguém parou ao meu lado e
deu três pancadinhas na mesa. Meio espantado, encarei o cara. Era um senhor de meia
idade, bem vestido e de óculos escuros, que me fitava sorridente. Surpreso, também
sorri, tentando identificar quem era. Então ele tirou os óculos e me perguntou :
– Você não é o ... ? E disse o meu nome.
Num relance reconheci quem havia dito meu nome. E foi tão grande a demonstração de
alegria que ambos sentimos, que até chamou atenção             Pois ouvi duas mulheres
cochicharem :
– Óia, Chica, Mode que esses dois veio ficaro loco !
– É caduquice, comadre ! Mas não era para menos.
Acontecia ali o inesperado e agradabilíssimo reencontro de dois antigos conterrâneos
que não se viam fazia mais de cinqüenta anos ! Dois amigos e companheiros desde os
tempos da meninice, juventude e mocidade, que juntos passaram em Jambeiro.
Antes de me abraçar, meu conterrâneo rápido recolocara os óculos.
– Desejava permanecer incógnito, explicou.




                                                                                              3
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Sentia o coração angustiado ao rever aqueles lugares que lhe traziam muitas
recordações. E se via sem coragem de falar ou abraçar os raros conhecidos antigos que
deviam estar por ali.
Conversamos naquela mesinha durante vários e saboroso chopes (por duas vezes o
Jaburu chegou até nós. Primeiro ofereceu um belo bolo majestoso. Depois trouxe duas
galinhas carijós amarradas pelas pernas e pererecando. Mas vendo que os dois “home”
não eram de leilão, não voltou mais ...)
Conversamos     muito.   Relatamos   fatos   dos   nossos    passados      desconhecidos        e
relembramos casos dos nossos tempos passados. E foi um desses casos, referente a um
amor seu, que eu achei fora de série. Contarei mais à frente. Após algum silêncio,
meu amigo falou :
– Eu não devia estar assim tão sentimental. Mas é que me sinto como naquele pungente
soneto que você conhece e que diz assim : ...
Eu logo pressenti. Nem os louros chopes conseguiram alegrar a alma do meu caro
conterrâneo. Pois ele, fitando as bolhas de espuma que se desfaziam no copo, recitou
baixinho, comovidamente, aquele célebre e centenário soneto do poeta Luiz Guimarães
Júnior :


                                Visita à casa paterna


                           Como a ave que volta ao ninho antigo,
                           depois de um longo e tenebroso inverno,
                           eu quis também rever o lar paterno,
                           o meu primeiro e virginal abrigo.


                           Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
                           o fantasma talvez do amor materno,
                           tomou-me pelas mãos, olhou-me grave e terno,
                           e, passo a passo, caminhou comigo.




                                                                                                4
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil




                           Era esta a sala ... (Oh! Se me lembro ! E quanto !)
                           em que da luz noturna à claridade
                           minhas irmãs e minha mãe ... O pranto


                           jorrou-me em ondas ... Resistir quem há de ?
                           Uma ilusão gemia em cada canto,
                           chorava em cada canto uma saudade ...




Foi sempre assim o meu companheiro. Retraído, sensível, romântico. Na sua juventude
fora até meio poeta.
Certa hora ele disse :
– Quando aqui cheguei hoje pela manhã, apreciando de passagem as modificações da
cidade, fui direto à igreja. Estava havendo Missa. Orei ao Santíssimo Sacramento e
agradeci a Deus o estar ali, após tantos anos, forte e feliz. E, ao mesmo tempo em que
acompanhava o culto, não pude deixar de ir observando aquelas partes que tantos fatos
me recordavam ... Fixei a velha e venerável Imagem de Nossa Senhora das Dores,             de
origem portuguesa, que há mais de cento e vinte anos fora trazida de Caçapava, nos
braços de um grupo de cavaleiros jambeirenses dirigidos pelo Capitão Jesuíno Batista.
Admirei o velho altar, doado à matriz por um rico fazendeiro que residia em Caçapava, o
major José de Almeida Telles, e que foi entregue depois de sua morte. O belíssimo altar
parece estar novo ainda.
– Parece novo mesmo, mas é que acaba de ser restaurado neste ano, graças aos
esforços do atual Pároco, Padre Clair de Castro.
– Muito bem ! Voltei-me para o coro e me parece ouvir longínquos sons de instrumentos
musicais e dos cantos maviosos daquelas moças, que enchiam a igreja com as lindas e
saudosas melodias sagradas daqueles tempos. Nos bancos, repletos de assistentes, não
vejo a Pia União das Filhas de Maria à qual pertenciam quase todas as moças solteiras.




                                                                                             5
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



E então me lembrei da Isabel, a Belinha, que era uma delas. Foi minha primeira
namorada e a única que tive aqui. Mas veja você : entre toda aquela gente, a não ser
três senhoras, não reconheci mais ninguém ! Apenas lá, junto do altar, tomando parte
na celebração, notei um senhor idoso, atarracado, que me pareceu ser o Elias, filho do
Chiquinho Sacristão. Como está mudado ! Na hora da elevação, repicaram os sinos. Mas
eu não ouvir soar o velho sino grande, que em companhia do João Fubá (João Zenatti),
tantas vezes eu tangi à hora das ave-marias ... Diziam que sua boa sonoridade era
devida a meio quilo de ouro que nele haviam fundido. Certa vez quiseram levá-lo de
Jambeiro, mas o povo não consentiu. Fui um dos últimos a sair da igreja. Da porta
divisei a linda paisagem tão minha conhecida. Lá embaixo ainda estava, firme, a antiga
casa que o Capitão Jesuíno Batista comprou quando veio residir no povoado de Nossa
Senhora do Capivari. No nosso tempo, ali era a chácara do João Bento de Moura e lá
nos fundos o ribeirão formava aqueles grandes poços nos quais íamos nadar, nus.
Lembra-se ?
– Se me lembro ! Às vezes tomávamos pegas de algum vizinho e tínhamos de sair
correndo, pelados, pelo pasto afora ... Um dia pegaram as roupas do Zé Martinzinho e o
coitado teve de descer se arrastando pelo rio até o quintal de sua casa, que era ali onde
hoje está a farmácia, vizinha do bangalô.
Meu amigo soltou uma gargalhada gostosa e eu fiquei alegre, achando que ele tinha
perdido a tristeza. Então ele continuou a contar à descida da igreja :
Fui descendo. Ao chegar à esquina onde foi a sede integralista, lembrei-me da festa de
Natal que ali realizamos em 25 de dezembro de 1937. O salão, enfeitado, estava repleto
de senhoras que com suas crianças aguardavam a distribuição de presentes. De repente,
o recinto foi invadido por soldados armados, a mando de um daqueles indignos oficiais
da Força que, reformados por desdouro, para cá eram remetidos com funções de
Delegado de Polícia. Aconteceu então um pandemônio indescritível. E a comemoração,
já fracassada, só foi terminar tarde, graças à proteção de um comando enviado pelo
glorioso VI Regimento de Caçapava.




                                                                                               6
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Veio-me então a lembrança de alguns companheiros : o “chefe” José Anísio Cunha e
seu primo José Clóvis Cunha; Adgemir Telles de Siqueira (Sinhô Coletor);
Joaquim Tiago dos Santos e seus irmãos; Sílvio Zuim, Chico Sennes, Zé
Martinzinho, Vítor Pereira Barros, José Gil, Milton Bernardes de Almeida, Ary
Lopes, Siqueira do Caxias, a turma do Eugênio Durão e outros, de cujos nomes não
me recordo.
– Como vão eles?
– Esses que você citou não “vão” mais, porque todos eles já se foram há bastante
tempo.
O Luiz – Luiz Mota, esse era o nome do meu amigo – balançou a cabeça com um sorriso
tristonho.
– Aqui é assim, falei. O tempo passa gostoso e despercebido. Mas, quando vai chegando
a chamada de sua “classe”, o “sorteado” costuma bater as botas ... E assim a macacada
velha vai sumindo. Entretanto, a propósito, você sabe que a atual média de vida dos
jambeirenses, daqueles que antes não se matam com algum vício, é a mais alta do
Brasil? Pois é de oitenta anos ! Mas muitos não respeitam essa tabela. E em vez de
irem preparando uma boa “partida” para ser bem recebidos no outro lado, são
renitentes e vão dando um jeitinho de ficar mais tempo por aqui ... Olhe ali atrás,
naquela cadeira : é o Dito Dias, nosso velho companheiro dos animados “rastapés” no
salão do Hilário. Tá firme ainda. Aqueles dois láa na esquina : um é o João Pedreiro,
que já passou dos 87, mas parece que só tem sessenta. O outro é o Joaquim Leandro,
filho do Dito Leandro, aquele esperto e risonho breganhista de cavalos que tanto
admirávamos. E lá na janela está o Urbano do Leopoldo. Tem mais de 86. E seu
romântico nome – Urbano Paixão de Almeida – faz lembrar a clássica canção “Luar do
sertão”, do Catulo da Paixão Cearense ... Naquele grupo, ao lado do coreto, estão dois
dos meus irmãos: o mais alto é o Tito Gil, marido da professora Maria Jurema de
Siqueira, que residem em São José. O mais baixo é o Nenzinho Gil, viúvo da Tivica
Moura.   Já passou dos 86. Sempre alegre e conversador, costuma vir de Taubaté,
dando, no seu fusquinha, cento e vinte na Dutra ... Aquele altão que está com eles é o




                                                                                            7
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



filho do Antonio Italiano, o Valentim Vanzella, também residente em Taubaté. Você
se lembra do seu sogro, o bom Dante Pazzini, que morreu de uma picada de cobra
cascavel? E aquele último, de óculos, é o Pedrinho, filho do Pedro Rocha. É
farmacêutico em São José. Se irmão, já falecido – o Euclides – foi um dos nossos
grandes companheiros de reinações aqui na terra ...
Fui continuando a identificar para o meu amigo todos os velhos jambeirenses do nosso
tempo de infância e mocidade que apareciam na Praça. Ele demonstrava satisfação e
também revelava casos interessantes que havia tido com eles.
O Luiz continuou a narrar na descida da Rua de Cima : ao deixar minha saudosa
esquina, reconheci, numa casa em frente, a figura sempre simpática de D. Florinha,
viúva do Alberto José da Silva Ramos. Bem disposta e sorridente, nem parece ter os
89 anos que lhe atribuem. E então me lembrei que os Silva Ramos são uma grande
família que sempre dignificou Jambeiro.
Passando pela Casa Paroquial, lembrei-me do José Pinto da Cunha, que a construiu e
nela morou com sua digna família.         Zezinho Cunha e sua esposa, D. Horminda
Angélica Cunha, foram os pais do nosso caro Pe. Ernesto Cunha, das religiosas
Maria Bernadete (Clementina), Angélica (Jovina) e Maria Helena, e de entre outras,
da Maria Eugênia (Eugeninha) e dos nossos companheiros de infância, Luiz e
Norberto.
Ao passar pelo solar dos Gurgel, senti não ir abraçar aqueles três conterrâneos da velha
guarda que ali estavam: Leonor, já nos seus 86 anos, viúva do ex-prefeito Octavio
Enéas de Almeida; a Clarice, com 84 e aquele seu sorrisinho simpático de sempre; e
o nosso amigão Olavo, apreciado ator das representações artísticas que seu pai,
quando prefeito, proporcionava à população jambeirense. Está comigo na idade, pois
ambos temos 80 anos. Também, pudera! Eles têm por quem puxar: seus pais – o
Major Gurgel viveu 89 anos; e sua mãe, D. Zoraide Pires Gurgel, passou dos 95
anos ! Por sua vez, o sempre lembrado poeta jambeirense, João Gurgel Júnior, irmão
desses meus amigos, achegou aos 85 !




                                                                                             8
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Talvez para sempre, despedi-me daquela sólida e aprazível residência que já completou
118 anos. Mandou construí-la o Coronel Luiz Bernardo, como presente de núpcias ao
seu amigo e cunhado, Major João do Amaral Gurgel, pelo seu primeiro casamento
com Maria Caetana de Almeida Gil. Ali terminava o loteamento feito pelo Capitão
Jesuíno Batista e cujo último lote, onde está a casa, fora adquirido pelo Major
Gurgel. A outra casa, na esquina de baixo, onde hoje residem duas filhas do saudoso
Agenor Guedes, foi construída por Francisco Rebello Sennes (Chico Sennes).
A Prefeitura e o Correio são construções mais recentes, da década de 50. Ali onde está
a Prefeitura, há muitos anos, antes de o povoadinho do Capivari se transformar na
cidade de Jambeiro, existiu a casa de morada do coronel Joaquim Bernardo de
Almeida Gil.    Defronte à “Casa Grande”, última relíquia do nosso passado, parei.
Aquele casarão já tem 118 anos. Foi construído com prazo estabelecido para entrega, a
aafim de que nela seu proprietário, sr. Durão, pudesse realizar a sua Festa do Divino de
1872, ficando essa data como a de sua construção. A inscrição que lá está chegou com
quatro anos de atraso. Esse sr. Durão, pelo visto, deve ter sido pessoa de relevo em
nossa cidade.   Entretanto, sua história como que desapareceu do conhecimento de
nossa gente. Vocês, que moram aqui, devem fazer pesquisas para elucidar o caso.
O que eu guardei, desde jovem, é que o sr. Durão era irmão de D. Felisbella Botto,
que era mãe de dois benfazejos médicos que aqui residiram por muitos anos : os irmãos
Luiz Augusto Botto (o Centro de Saúde de Jambeiro tem o seu nome, forma de
homenagem de gratidão a quem, por 18 anos, tanto serviu nosso povo, até 1906) e
Carlos Botto. Esta minha passagem pela “Casa Grande” me trouxe a lembrança de um
fato que ali aconteceu comigo e mais três colegas de “reinação”. Isso se passou há mais
de 65 anos, pelo que dois daqueles coleguinhas já não mais existem. Eu vou contar
agora para você:


(Não interrompi o Luizinho, pois ele logo se lembrou de que o fato que estava me
contando já era do meu conhecimento, porque eu também tomei parte nele.                   Mas




                                                                                             9
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



aproveito o parêntese com umas considerações sobre o café em Jambeiro, naquele
tempo).


De fato, com os altos preços do produto, a fazendeirada andava com os bolsos cheios de
dinheiro. Quase todos possuíam automóveis. E como hoje acontece com as pastagens,
quase toda a área do município era coberta por cafezais.      No auge de sua pujança
econômica, Jambeiro – que então contava com uns dez mil habitantes – chegou a ter
dois milhões e quinhentos mil cafeeiros, conforme um registro da Municipalidade, de
1930. E produzia quarenta e cinco mil arrobas. Mas, com a grande crise de 1929, a
quebradeira foi geral. Muitos dispuseram de suas propriedades e se mudaram daqui.
Foi então que começaram a chegar os mineiros e se iniciou a produção do leite.
Nessa época os maiores cafeicultores do município foram: Joaquim Franco de Almeida
(Sinhô Bernardo) (Fazenda Bom Jardim), com 200.000 pés; Pantaleão & Almeida
(Fazenda da Laje), com 200.000 pés; Leopoldo Franco de Almeida, com 150.000;
Antonio Castilho Marcondes (Fazenda do Banco), com 100.000; Benedito Pinto da Cunha
(Fazenda Santo Ângelo), com 100.000; Hilário Fermino, com 80.000.
Agora, volto à história que o Luizinho contou sobre a “Casa Grande” : – Em 1920, disse
ele, com os altos preços do café, a fazendeirada gastava à vontade. Por isso, naquele
ano, o primeiro baile de Carnaval realizado na “Casa Grande” foi animadíssimo. Houve
fartura de tudo, principalmente, é claro, de confete, serpentina e lança-perfume. Os
foliões, vestidos a caráter, se divertiam a valer. Alegre e decentemente. Aliás, naquele
tempo ainda não havia a licença e a depravação de agora, que transformaram a grande
festa popular num desagradável “bumbunval”.       O piso do salão ficou com uma tão
grossa camada de confete que nem se podia dançar. Só pular. E foi então que nós dois
– lembra-se? – mais o Zé Batalha, o Edu e parece que o Luiz Pinto da Cunha,
apesar de garotos, conseguimos penetrar no salão, graças ao Edu, “dono da casa”, e
tivemos uma “luminosa” idéia. E tudo combinado, voltamos na manhã seguinte e cada
um encheu um saco de estopa com aquele confete do salão. Escondemos os sacos
naquele porão onde o Sinhô Bernardo guardava arreios etc.. E à noite, quando a folia




                                                                                            10
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



tomou conta da cidade, nossa farra começou. Saímos para o meio da multidão, a atirar
com fartura, mãos cheias de confete pelas cabeças, pescoços e bocas de quantas moças
e meninas encontrávamos. No começo elas até gostaram e pediam mais. Mas quando
começaram a sentir ardume e comichão por todo o corpo, nossa farra terminou.
Botaram a boca no mundo. A reclamação foi geral. Chegaram a nos perseguir para
desforra.   Largamos os sacos por ali mesmo e sumimos para escapar da sanha
vingadora das folionas enraivecidas. Foi um escarcéu danado. Entretanto, tudo isso
aconteceu porque não havíamos tido outra idéia, que teria sido luminosíssima, de ao
menos peneirar a areia e demais sujeiras daquele confete imundo.
– Que saudades ! exclamou o Luizinho. E terminou:
– Depois que a inépcia político-administrativa destruiu nossa maior relíquia do passado
– que era a antiga e histórica sede da fazenda do Capivari (ali onde agora está o Grupo
Escolar), hoje só nos resta a querida “Casa Grande” !
–   Com um saudoso olhar, dei adeus à “Casa Grande”. Passei pelo atual Correio e
admirei uma pitoresca vivenda, com uma placa : “Alameda Vô Orôncio”. Em sua frente,
um animado grupo de pessoas, do qual sobressaía a figura simpática de um ancião de
respeitáveis cãs, assistia à passagem do povo que descia da igreja. Entre as senhoras,
reconheci logo suas três irmãs: a Ana Luíza, a Florentina e a Flora.
–   Sim, eram elas mesmas.       Ali é a residência de festas e férias do meu primo e
cunhado, o Orôncio Geraldo Rebello, o de cabelos brancos, marido da Flora.
– Passei devagar, sentindo não ir abraçá-las. Na ponte, parei. Há cinqüenta anos, era
mais baixa, com piso de terra e grades de madeira. E logo me lembrei de um fato, um
tanto grotesco e gozado, que ali me aconteceu e do qual nunca mais me esqueci. E que
também nunca revelei a ninguém. Foi num sábado, em que eu e Belinha, descendo da
reza, paramos para namoricar. Eu, como disse um poeta, permaneci ali.
“Tolhido pelos raios sedutores / do seu olhar inebriante. E enquanto / sorvia, estático e
ditoso, / o cálido sorriso de seus lábios, / quedei-me extasiado diante dela, / como um
sapo, muito humilde e feio, / fitando a lua, tão radiosa e bela !




                                                                                               11
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



E ali ficamos, trocando afetos, ao som do coro maravilhoso dos batráquios e do plácido
marulhar do córrego sob a ponte. Mas o tempo, traidor, passou depressa e silencioso.
E nós, naquele idílio entorpecente, até nos esquecemos dele ...                De repente,
despertamos assustados, com os gritos do irmãozinho da Belinha, que chegou correndo
e esbaforido:
– Linda ! Linda ! O pai não encontrou você em casa e vem vindo buscá-la. Corri na
frente para avisar !
– Nossa ! E agora ?! Fuja, Luiz, esconda-se, suma ! exclamou a Belinha. E pegando
na mão do irmão, desandou para sua casa.
E eu ? Diante daquele súbito escarcéu, não mantive a calma e até me desorientei. E
sem calcular nada, com um salto transpus a guarda da ponte e fui cair bem no meio do
córrego. Um dos sapatos (era até um par novo que eu estava estreando naquele dia ...)
ficou atolado no lodo. Nem liguei. Varei o alto capinzal que naquele tempo cobria o
córrego e me enfiei numa espessa moita de mamona, lá do outro lado. Graças à pouca
iluminação que havia, ali era bem escuro. O pai superzeloso logo chegou. Olhou de um
lado e doutro da ponte. Espiou atrás daquele velho muro que ia desde o ribeirão até
onde hoje é a Prefeitura. Soltou uma gargalhada e resmungou :
– Safado ! Sumiu, hem ?
E foi logo embora.     Deixei o esconderijo só depois da meia-noite.           Nunca tinha
suportando tanto pernilongo a zumbir e me picar, que foi uma barbaridade ! Recuperei
o sapato, saí para a rua deserta, fui pegar o coitado do cavalo e toquei para a fazenda.
A caminho, lamentei o azar daquela noite e a minha grande “burricidade”. Sim ! Pois
eu, como adulto, devia ter esperado a “fera”, que certamente não ia me comer vivo.
Conversaríamos e pronto ! Parece que tudo aconteceu devido à minha solidariedade ao
desespero da minha amada. E me senti feliz pelo sacrifício feito por amor ao meu amor
...
– Gostei da história, seu ! De fato, até hoje ninguém sabia dessa sua aventura com os
pernilongos. Inda bem que você continua poetando ...




                                                                                            12
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Já fazia tempo que eu e o Luizinho ocupávamos aquela mesa junto à Barraca da Festa.
Notamos então que outras pessoas ansiosas desejavam também se deliciar com uns
chopes, desocupamos lugar e saímos em direção à Rua do Colégio.              O Luiz, mais
desequilibrado do que eu, segurava no meu braço. Logo avistamos, na calçada à nossa
direita, o Setembrino de Moraes, o querido Bino, negociando suas bijuterias.
Conversando com ele estava sua irmã, a sempre risonha e alegre Zuleika.              Ambos
residem em Taubaté e são os últimos remanescentes dos quatorze filhos do prestantes
casal Júlio e Silvina de Moraes. Logo adiante encontramos nosso conterrâneo
Agostinho Ribeiro do Prado. Residentes em Mogi das Cruzes, o Agostinho e sua
bondosa esposa Mariinha sempre estão presentes em Jambeiro, quase todos os
domingos, na Missa do Pe. José Kumagawa, devotos que são de Nossa Senhora
Rosa Mística, e nunca faltam na Festa da Padroeira de nossa terra. E assim íamos
revendo e abraçando velhos amigos e antigos ex-colegas.        E para maior satisfação
estava entre eles justamente nossa ex-diretora do saudoso Grupo Escolar, a caríssima
Maria Olímpia Vieira, atualmente residente em Águas de São Pedro. Com ela estava
sua irmã paterna, nossa estimada amiga, Profª Maria Iracema Vieira Silva,
acompanhada de seu marido, Antonio Fernandes Silva, residentes em São Paulo. E mais
a prima de ambas, a Zélia Franco Bastos, filha do Cel. João Franco de Camargo e
Mariquinha Vieira. E ainda o nosso ex-colega, Prof. Edison de Freitas Ramalho,
com sua esposa, a sempre amável Zélia Lara Ramalho, residentes em Caçapava.
Até então o Luiz ainda não havia sido reconhecido.      Mas naquele instante de nada
adiantaram seus disfarces. Pois quando eu ia apresentá-lo como um amigo meu, foi
justamente o Édison quem, abrindo os braços, bradou :
– Ah ! Essa não ! Você por aqui, Luizinho ?!      Como vai, nego ?            E abraçou-o
efusivamente.
O mesmo fizeram todos os que o conheciam, com grandes demonstrações de amizade.
E ali permanecemos na mais cordial e animada palestra, recordando gentes, coisas e
fatos do nosso longínquo passado, quando éramos tão diferentes ... E não era para
menos. Da parte do Édison, a nossa grande amizade vem desde quando ele, eu, o




                                                                                           13
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Luizinho, o Edu e outros jambeirenses fomos colegas no Ginásio São Joaquim, em
Lorena. Depois, compartilhamos a mesma pensão, quando estudamos em São Paulo.
E ainda nós quatro exercemos o magistério aqui no Grupo Escolar de Jambeiro.
Uma feliz e cordial coincidência !    E da minha parte, além da amizade provinda da
naturalidade e do convívio que tivemos desde a infância, também me ligo às caras
“parentes Vieiras” – Maria Olímpia, Iracema e Zélia Franco – pelo nosso sangue
comum, que herdei desde minha bisavó Ana Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil.
Mas aconteceu que com todo aquele “comício” ali na Praça, o Luiz acabou se
transformando. Guardou os óculos pretos e pôs-se a rir, quase chorando de alegria, por
todos os cantos da boca.
Estávamos naquela “boa”, quando ...
Estávamos naquela alegre reunião ali na Praça, quando a nós se juntou um elemento de
grande valia para toda a nossa comunidade. Abstraindo-se de qualquer política
partidária, sua atividade em nosso meio como que representa o cérebro e o coração –
conhecimentos e sentimentos – que congregam toda a gente jambeirense, daqui e
de fora. Pelo seu ingente trabalho, ele colhe e recolhe; interpreta, reproduz e torna
públicos os mais variados assuntos, informações e notícias de alguma maneira ligados a
nossa terra. Esse dedicado jambeirense e nosso grande amigo (que não estou elogiando,
mas apenas qualificando) é o restaurador, editor e diretor do nosso velho “O
JAMBEIRENSE”, em sua fase atual. Ele vinha acompanhado de seu primo Irineu
Serafim (que ele considera como se fora outro irmão, posto que amigo e fiel
companheiro desde menino), também diretor do nosso jornal, há quase seis anos.
A agradável presença de ambos foi motivo para mais uma rodada de abraços e
cumprimentos. E o Luizinho assim falou aos nossos antigos alunos do querido Grupo
Escolar :
– Como a maioria dos alunos daquele tempo, eu também considerei e estimei seus pais,
os saudosos Edgard de Souza Moraes e Antonio Serafim. E prezo muito o que vocês e
seus irmãos sabem honrar plenamente a memória de um e de outro. E é ainda com




                                                                                           14
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



grande prazer que lhes dou meus parabéns pela pertinácia e galhardia com que vocês
vêm publicando “O JAMBEIRENSE”.
Atraídas pelos aplausos, várias pessoas acorreram ao local para saber o que havia
acontecido. Uma delas era outro nosso ex-aluno, por sinal muito distinto, o Julinho
Serafim, irmão mais velho do Irineu, que contou alguns casos engraçados do tempo
de escola, que provocaram gostosas gargalhadas de nossa ex-diretora, Maria Olímpia
Vieira. Logo mais o diretor do jornal se retirou e lá foi ao encontro de nossas
conterrâneas, antigas alunas do Grupo, filhas do divertido João Fubá e da Mulata :
Zilda, Áurea e Jandyra, que se achavam no meio de um grupo da Família Braz : o
Dito Bento e seus primos (filhos da saudosa Brazília) : João Batista, Aloísio, Dita,
Arlinda e Noêmia. Depois, toda a turma se dispersou, entre abraços. O Luizinho e eu
continuamos pela Rua Major Gurgel (Rua do Colégio dos velhos tempos).
Antes, porém, de chegarmos à ponte, tivemos mais um apreciado encontro: foi com as
duas irmãs, Esther e Nancy Ivo, filhas do ex-prefeito Benedicto Ivo e da Palmyra.
Residentes em São José dos Campos, elas por aqui raramente aparecem para nos darem
o ar de suas graças.   A Nancy, mais jovem, ainda nos lembra as feições amáveis
daquela garotinha bonita que também foi nossa aluna.
Na ponte paramos para contemplar o velho ribeirão que costumávamos percorrer de
ponta a ponta, enfrentando os inúmeros cacos de vidro que às vezes nos feriam
dolorosamente. Como se fosse ontem, ele continua indiferente, marulhento e calmo, a
correr como nos longínquos tempos da nossa infância descuidada ...
Ficamos ali na ponte bom tempo, vendo passar velhos e novos conhecidos. Dos antigos,
pudemos abraçar o Waldemar “da Farmácia”, nosso antigo companheiro. Por ele
recordamos o sempre alegre e brincalhão João de Oliveira, nosso saudoso
farmacêutico dos velhos tempos, e o Adgemir Telles de Siqueira, o “Sinhô Coletor”,
grande amigo e companheiro que eu considerava um verdadeiro irmão. Dos novos, tive
o prazer de apresentar ao Luizinho dois amigos, gente boa que veio de Minas Gerais,
os irmãos Jonas e Antoninho Santiago.          Este último foi um bom prefeito que
Jambeiro teve. E ainda abraçamos o Dr. João Leite Vilhena e sua digna esposa, d.




                                                                                           15
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Márcia Prado Vilhena. São os atuais proprietários da fazenda “Rancho Alegre”, onde
tive o prazer de nascer, já faz oitenta anos.
Certa hora, o Luizinho me perguntou o que era aquela construção nova, ali ao lado.
Expliquei-lhe que era a nova casa de cultos dos membros da “Assembléia de Deus”.
Como ele se mostrasse admirado, eu esclareci que Jambeiro havia mudado muito em
matéria de religião. Havia também a Igreja Presbiteriana, a Congregação Cristã do Brasil
e as “Testemunhas de Jeová”. E todas se respeitam entre si, no mais singular
ecumenismo. O que ainda não existe por aqui, pelo menos por enquanto, é mesquita,
sinagoga, centro espírita, terreiro de macumba ou algumas dessas seitas moderninhas,
oriental ou americana, que fazem tanto sucesso entre a gente de televisão... Então o
Luizinho comentou :
– Pois acho esquisito! Em 1934 houve um recenseamento geral no Estado. Eu e o
Valentim Vanzella fomos escolhidos para recenseadores. Dividimos o município em
duas partes e durante um mês visitamos casa por casa e entrevistamos adulto por
adulto.   Engraçado !      No final dos trabalhos não havíamos encontrado nenhum
recenseado que se declarasse não católico ! Agora sei que na maioria aqueles católicos
só iam à igreja para serem batizados, para casamento e, às vezes ... quando morriam ...
– Isso mesmo ! São os intrincados problemas dos tempos contemporâneos que só
mesmo Deus irá resolver, no final.
– Tá certo ! Mas por que, então, existe na Bíblia aquela passagem de Mateus (XVI, 18 e
19), que parece tão clara ?! – Olhe, nego : “Não cai a folha de uma árvore sem Deus
querer”. Sejamos honestos, rezemos, que no final certamente Ele nos escolherá. E
amém!
Procurei logo mudar de assunto, antes que o Luizinho, instruído e religioso como é,
começasse um sermão que era capaz de ir acabar no inferno.
Eu estava curioso mas era pela história da Belinha, após aquela noite em que ele saltou
da ponte, caiu no brejo e foi chupado pela pernilongada.
Com muito jeito toquei no assunto. Ele respondeu :




                                                                                              16
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



– Você é mesmo especula! Por que recordar coisas que se deram há tanto tempo e que
só a mim dizem respeito?
– Curiosidade apenas, pois sempre me encafifou esse caso de você namorar uma
lindíssima e fina mocinha, namoro difícil, fora de série mesmo, e de repente tudo dá
em nada. Você era invejado por todos nós. No entanto, passados mais de cinco anos,
quando vocês chegaram ao ponto bem quente de se casarem, puf !, tudo estoura como
uma bolha de sabão e cada um vai para seu lado e logo se casam com novos amores ...
Com cara de gozação, Luizinho me fita e diz :
– Olha, seu ! Se for alguma novela que você pretende escrever, eu quero parte nos
lucros ... E você bem sabe que só mesmo um cara boboca é capaz de contar.
– E você sabe que só mesmo uma cara boboca é capaz de revelar a outro, mais boboca
ainda, intimidades de seu namoro. Mas, ‘por serdes vós quem sois’, e sem macular a
memória da Belinha, vou lhe falar do meu inditoso amor. Aliás, primeiros amores,
meu e dela ... Dizem os entendidos que ‘a tendência natural do homem da mulher é
procura o companheiro ideal para a constituição de um lar baseado no amor. Ora, o
namoro é o ponto de partida dessa procura recíproca, da descoberta de um pelo outro.
Assim o rapaz descobre como é e como sente uma mulher: por que ela chora, do que
gosta, por que grita ou ataca. A mulher descobre o que é um homem, como age ou
reage, o que pensa, o que exige. E ao se encontrarem e se conhecerem pelo namoro, e
ao se afirmarem um diante do outro, ele se sente mais homem e ela, mais mulher’.
Conosco não houve nada disso. Você deve lembrar-se. Aos sábados e domingos, pouco
antes da reza nos encontrávamos na ponte e subíamos até a igreja. Após a reza
fazíamos uma parada rápida naquela esquina saudosa. Nem dava para eu me ofuscar
ante seus olhos rutilantes ou para sorver o meigo e melífluo sorriso que surgia de seus
lábios de rubi, sorriso capaz de despetalar botões de rosa desabrochando ...
Atento, eu ouvia meu amigo espargir suas jóias poéticas, como se estivesse com o
coração pulsando no passado. E ele continuou :
– Logo descíamos. Ao nosso lado passavam casais de jovens alegres, mãos ou ombros
dados, rindo ou cochichando coisas. Logo iriam dar voltas na praça ou se encorujar




                                                                                             17
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



nalgum cantinho estratégico, até a hora de ir terminar a noite no salão do Hilário. E
nós dois ? Mal chegávamos à ponte, Belinha já se despedia, dizendo: – Adeus, meu
bem ! Até o próximo sábado ...
Às vezes era noite de lua, delícia dos amantes. Pois nós nunca fruímos juntos, uma vez
sequer, uma daquelas românticas noites que, como até hoje, banhavam de prata nossa
cidade, no fantástico luzir da lua cheia, quando surge, esplendorosa e bela, por trás do
morro do Cruzeiro!... E assim envelhecemos cinco anos naquele romance, que pareceu
fora de série, mas que foi simplesmente idiota ! Dessa forma, quando ou como eu iria
saber afinal quem era a Belinha, o que sentia, do que gostava, por que chorava, ou
gritava, ou brigava, ou plantava bananeira, sei lá o quê !
Fiquei com pena do Luizinho, mas o critiquei :
– Puxa vida, seu ! Você então ainda não era homem?! Por que não pediu mais um
pouco de condescendência ao pai da moça, por sinal um dos homens dignos da cidade
?! Ou por que não forçou a Belinha a ser mais determinada?!”
– Chi !... Aí é que a vaca iria pro brejo ! Quando eu reclamava, a pobrezinha respondia :
‘Case logo comigo e pronto !’ Papai disse que, se você ficar noivo, ele nos deixa ir aonde
quisermos. Até sugeriu que eu podia lhe preparar um jantar com um prato de minha
especialidade, o ‘bife de peito de pato’, que é uma gostosura ! ‘Mas se você me
desobedecer ou der muita confiança para aquele pilantra (foi assim que ele falou), não a
deixarei mais sair de casa !’
Veja você ! Era aquilo : queriam me amarrar logo num casório, que eu desejava muito,
mas para o qual ainda não estava em condições.
– É ! Você estava atrapalhado ! Mas o que aconteceu depois daquele pulo no brejo?
Enfrentou o velho ?
No sábado seguinte, depois daquele pernilongado pulo no brejo, Belinha chegou, linda
e risonha como sempre, e foi logo perguntando : – ‘Como é que você se arranjou
naquela noite do pega do papai ?’ Quando lhe contei tudo o que me havia acontecido,
ela quase deu uma gargalhada, mas logo tapou a boca com a mão, deixando
transparecer um muxoxo e dizendo : ‘Coitadinho do meu bem ! Tudo por minha causa !




                                                                                                18
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Sinto muito, desculpe o papai.’ E me apertou a mão (só por esse aperto de mão, coisa
raríssima entre nós, perdoei a família inteira ...) Mas enquanto íamos subindo a rua, eu
notava em seu rosto um risinho cínico de gozação. Ela continuou naquela vozinha de
‘mel com açúcar’ : – ‘Isso tudo, meu bem, faz aumentar ainda mais meu amor por você.
Um dia iremos rir juntos de todas essas coisas que nos acontecem. Você sabe que ‘o
coração é um tesouro que se abre com um beijo’. E meu coração é todo seu. Um dia
você o abrirá ... Mas eu vou ter uma conversa com a mamãe e depois com papai.
Afinal, já tenho dezessete anos, não sou nenhuma boba e eles têm de permitir que ao
menos possamos dar umas voltinhas na praça ...’ Era assim nossa prosa : ingênua,
quase infantil, como aliás eram os pensamentos e sentimentos de dois jovens
namorados sem malícia. Após a reza ela disse : ‘Rezei por nós para logo sermos muito
felizes. Para compensar o que você passou, no próximo sábado vou lhe trazer, bem
quentinhas ...’
Nesse instante o Luiz interrompeu sua narração, porque fui cumprimentar no meio da
rua uma estimada conterrânea que eu não via há muitos anos, a Olivinha Batalha, e
seu digno esposo, o farmacêutico Adhemar Pinto de Siqueira, que residem em
Caçapava. E ainda abracei duas amiguinhas, a Marina Cunha e a Nair do saudoso Zé
Ivo, esta última nossa ex-aluna aqui no antigo Grupo Escolar.
Deixando a ponte e seguindo pela Rua Major Gurgel (a “rua do Colégio”), paramos na
esquina do armazém do Hélio Almeida e do seu sobrinho Domingos, e o Luiz pôs-se
a recordar:
– Foi aqui a loja de fazendas do nosso amigo Jorge José (o Jorge Turco), sírio de fina
raça que aqui residiu muitos anos.
E esquecendo de continuar o caso da Belinha, ele passou a contar um caso político
acontecido ali naquela rua com ele e outros companheiros e no qual o Jorge Turco
também teve a sua parte, ainda que fora de qualquer política. E assim começou : –
Você se lembra bem de como foi a política aqui em nossa terra nos anos de trinta e três
a trinta e sete.   Havia a política dos velhos partidos tradicionais daquele tempo,
sustentados por elementos um tanto idosos da nossa melhor sociedade. Apareceu então




                                                                                            19
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



o Integralismo, com idéias e ideais novos que empolgaram a mocidade da época por
todo o Brasil. E aqui em nossa terra aconteceu o mesmo. Fundou-se um “núcleo” e a
maioria de nossa rapaziada aderiu, juntamente com muitas moças.                      E havia
companheiros cujos pais pertenciam aos diretórios tradicionais.         Foi um alvoroço !
“Blusas verdes” encontrando-se com “camisas verdes” e saudando-se com o ritual, braço
erguido e o brado “Anauê !”, que era um sarro ! Os “verdes” chegaram a ter até três
vereadores numa Câmara de sete membros.             Mas logo vieram as animosidades
políticas...
Luizinho continuou:
– Sentindo que o Integralismo tomava conta do município, os chefes políticos da Capital
vieram em auxílio dos seus correligionários daqui, remetendo, como Delegados de Polícia
de nossa cidade, oficiais da Força Pública, em geral reformados por escassa distinção. E
eles cumpriam sua missão de maneira muito arbitrária. Agora, ao me lembrar do Jorge
Turco, ocorre-me um dos casos acontecidos com o companheiro Eugênio Corrêa
Durão, pessoa digna, por sinal pai de dois sacerdotes conterrâneos, o Pe. Hygino e o
Pe. José Luiz Corrêa (o primeiro foi vigário de Natividade da Serra durante quase 50
anos e o segundo, vigário de Redenção da Serra; aquele faleceu em 25 de maio de 1975
e este, em 21 de dezembro de 1953, em acidente automobilístico). O Eugênio Durão
tinha um armazém lá no “Jambeirinho”, onde os fregueses tardios ou amigos do bairro
costumavam ficar até nove horas da noite, batendo um papo descontraído.                 Pois o
Delegado, um capitão nessa época, proibiu que o estabelecimento ficasse aberto depois
das 18 horas. Motivo: alegação de que lá se faziam “reuniões subversivas” ... (!)
Ora, a nossa turma não suportava, sem mais nem menos, arbitrariedades muito tolas. E
então, o Zé Anízio Cunha (irmão da Marina, da Edith, do Tito e do Walther) e eu
fomos atrevidamente pedir satisfações ao velho capitão-delegado. Nossa sorte foi que o
cabo e um dos soldados do Destacamento estavam ausentes na ocasião ...
– Dá licença, senhor capitão ! bradamos da porta e fomos entrando, indo ficar na
frente do Delegado.




                                                                                             20
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Exposto o assunto, iniciou-se uma desagradável discussão, que logo se azedou,
esquentou e até pegou fogo, quando o Zé Anísio, sacudindo o indicador em riste diante
do nariz do Delegado, exclamou :
– O senhor é um energúmeno!
O Delegado bufou. Eu, que apesar da tensão em que estávamos, mantinha a calma,
achei graça na expressão um tanto exótica do companheiro e sorri. O Delegado então
me encarou e, também sacudindo o dedo diante do meu nariz, bradou furioso :
– O senhor é o responsável por todas essas confusões que se dão aqui na cidade ! O
senhor está preso ! (!)
– ‘Preso uma ova !’, respondi.
E sem mais aquela, saí correndo da cadeia. Vendo que eu já havia sumido, o capitão
gritou :
– Prenda esse outro mesmo !’
Era o Zé Anísio, que já estava na rua e murmurou:
– ‘Prender-me ?! A isso, quique !’     E desabalou rua afora, indo se abrigar na casa de
sua avó, d. Ditinha, que morava perto da ponte onde está hoje o templo da
“Assembléia de Deus”. (Soubemos depois que o soldado, aliás nosso amigo, não pôde
cumprir logo a ordem ... porque estava lá nos fundos, sem botas e cortando as unhas
dos pés ...) Quanto a mim, quando chegamos à esquina da loja do Jorge Turco, ele
estava na porta e vendo-me correndo daquele jeito, perguntou :
– Professor Luizinho, o que aconteceu ?
– Depois lhe explico, seu Jorge.        Agora, faça o favor de ir esperar-me lá nas
gabirobeiras, para irmos a Caçapava.
E continuei correndo, ganhei a Rua Nova, passei pela chácara do Alencar, varei todo o
“bairrinho” e entrei por uma trilha que ia dar no ponto combinado, na fazenda do Sinhô
Bernardo.




                                                                                             21
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil




Quando cheguei nas gabirobeiras, o seu Jorge já me esperava, em companhia do
saudoso companheiro Adgemir Telles de Siqueira, o Sinhô Coletor. Em Caçapava,
fomos falar com o doutor juiz de Direito que, graças ao conhecimento do Adgemir, nos
recebeu complacentemente. Ciente do caso, o íntegro magistrado naquela ocasião nos
fez compreender que o país se achava sob uma violenta ditadura que não respeitava
nenhuma lei, recomendando-nos, por isso, muita prudência. E escreveu uma carta para
levarmos ao Delegado. Voltamos logo a Jambeiro. Ali, na chegada ao bambual, um
decidido grupo de companheiros me esperava para irmos enfrentar a polícia que,
segundo disseram, estava de prontidão para me prender. Acalmei-os e segui direto para
a Delegacia, na qual fui logo entrando na sala do Delegado (os soldados até se
espantaram).
– Senhor Delegado, disse eu. O senhor doutor juiz de Direito me mandou trazer-lhe
esta carta, dizendo que muito confia no seu reconhecimento para solucionar nosso caso.
O capitão colocou os óculos, pigarreou e leu a carta, devagar. Depois, soltando outro
pigarro, falou :
– Está bem ! Fica encerrado o caso. O armazém está desobrigado de fechar as portas.
Mas o senhor ... tome cuidado ! disse-me com o dedo em riste apontando meu nariz ...
Coitado do velho capitão ! Tinha de fazer papel de boneco para atender os políticos da
situação, os quais, depois que se encheram dele, o enxotaram daqui. Tempos depois,
um amigo me revelou que, quando o capitão se foi (eu já não estava mais aqui), ele me
deixou um abraço, dizendo que, apesar de tudo, eu tinha sido a única pessoa que o
considerava aqui ... Certamente ele esqueceu aquela rapariga, pobre e bonita, que com
ele se amasiou e com a qual saía de braço dado a dar voltas pelas ruas da cidade ...
Gostei muito da narração resumida que o Luizinho fez daquele episódio acontecido na
época em que fazíamos política.     Ele me fez lembrar, comovido e saudoso, aqueles
passados e agitados tempos da nossa romântica e amalucada mocidade. E foi por isso
mesmo que logo lhe pedi que continuasse a história da Belinha, que ele havia




                                                                                             22
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



interrompido justamente quando ela dizia que “no próximo sábado vou lhe trazer, bem
quentinhas ...”.
Luizinho sorriu abando a cabeça e disse:
– Você está curioso pela história ou está com o apetite aguçado pelos quitutes que ela
me trouxe ?
– Por ambas as coisas, respondi.
Então ele continuou :
–   Como você viu, nosso amor, puro e sincero, estava esquentando mesmo. Eu já
estava querendo estourar, pois fazia mais de quatro anos que vivíamos aquela agonia de
só nos encontrarmos durante meia hora por semana. Ela também já estava ficando
nervosinha, prometendo enfrentar o pai, em busca da liberdade.
Quando o Luizinho acabou de narrar suas peripécias com o capitão-delegado, logo lhe
perguntei : –      Mas o que foi de tão gostoso que a Belinha lhe prometeu trazer ?
Trouxe? – Se trouxe! Você se recorda das festas da Padroeira ou do Divino, quando o
maestro Júlio de Moraes, com sua bandinha afinada, acordava toda a cidade com a
alvorada ? Nós, garotos, pulávamos cedo da cama para seguir a banda pelas ruas.
Depois a alvorada terminava, com seus músicos e acompanhantes chegando à casa do
festeiro.    Ali então era servido para todos o gostoso café com “bolos de arroz”
quentinhos, que a gente lambuzava com manteiga !... Pois foi isso que a Belinha
trouxe, embrulhadinho num guardanapo cor de rosa : meia dúzia daquelas rodelas
cheirosas e ainda quentinhas de “bolos de arroz” ! Comi todos os bolos ali mesmo na
ponte, pois estavam saborosíssimos e eu, em verdade, nem havia jantado ainda. Disse
que nem sabia como agradecer aquela delícia e a sua gentileza. Ela respondeu :
– Um dia você vai saborear muito disso e de outras coisas gostosas que ainda lhe farei
quando estivermos em nossa casinha. Case logo comigo e você verá, meu bem ! Eu já
estou achando a vida insípida, não sei, ando até perdendo o gosto de muita coisa.
Quando começamos a namorar eu tinha apenas treze anos e agora já vou fazer
dezoito...




                                                                                           23
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Fingi que não havia entendido a indireta, consolei-a e prometi que no próximo sábado
iríamos fazer nossos planos. Devia mesmo ser verdadeiro aquele seu sofrimento, pois
eu curtia as mesmas angústias que ela. Seria a falta de um amor mais próximo e
constante, com esperança certa de uma vida linda e feliz ? Ânsia de ser uma esposa
amada ou um marido querido? Certamente que sim! Pois não foi o próprio Criador que,
vendo Adão num paraíso maravilhoso, mas sozinho, refletiu : ‘Não é bom que o homem
esteja só’   e fez Eva para sua companheira ?      Era isso mesmo ! Eu e a Belinha
estávamos sentindo o mesmo suplício da solidão amorosa.             Sem dúvida que nós
precisávamos nos encontrar no amor, para formar um só corpo na vida ... Naquela
tarde conversamos apenas na ponte. Belinha alegou que nem ia à reza, porque seu
irmão (o nosso amigo Donato) havia chegado de São Paulo com um colega e ela
precisava ajudar a mãe a hospedá-los. Conversamos mais um pouco e, depois de se
desvencilhar do meu agarrado aperto de mão, sempre com aquele melífluo sorriso de
despetalar flores, disse :
– Até sábado, meu amor ! Sonhe comigo!
E se foi. Lá adiante, já na Praça, virou-se para me ver e, passando a mão nos cabemos,
tremeu os dedos como último sinal de adeus ... Subi a rua sozinho e fui rezar por nós
dois. À noite, em casa ...
Luizinho continuou :
– Em casa, já deitado, comecei a maturar : ‘Papai vai vender a fazenda e distribuir parte
da herança aos filhos. Com minha parte, compro e construo uma casa naquele terreno
que fica bem em frente da “nossa esquina”, lá na ruía de cima (esse terreno atualmente
está ocupado com a residência do conterrâneo e amigo Tarcisio, filho do Alberto Ramos
e de d. Florinha). E como estou substituindo uma professora por um ano no Grupo
Escolar, já vou economizando dinheiro e ainda conto pontos para o ingresso no
Magistério. Depois escolherei uma escolinha aqui mesmo no município e ... pronto !
Daqui a seis meses descerei a escadaria da igreja, de braço dado com minha amada
Belinha ! E assim, unidos para sempre, começaremos nossa vida, que haverá de ser
muito longa e feliz !... Adormeci sonhando com o lindo vestido branco que ela vestiria




                                                                                             24
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



... Entretanto, no outro dia, vi que o meu sonho de felicidade não era assim tão fácil de
se realizar. Pois, ao chegar ao Grupo Escolar, soube que iríamos ter a visita do inspetor
escolar. Tivemos. Mas, para mim, quem esteve ali na figura antipática do tal inspetor,
foi o diabo ! Sim ! Simplesmente o diabo, ainda que sem chifres, sem rabo, sem pêlos
e sem vomitar fogo pelas ventas. Porque, dias depois, o “Diário Oficial” publicava minha
substituição por outra professora.   Ora, isso, naquela ocasião, considerando minhas
intenções para com a Belinha, era uma coisa infernalmente diabólica !                    Havia
acontecido uma reunião entre os maiorais da situação política, nossos adversários, em
que, após muitos ‘comes e bebes’, o chifrudo sem chifres se comprometeu a fazer a
substituição do ‘substituto efetivo’, que era eu ... Então fiquei sem receber o dinheiro
que iria me ajudar no casamento e sem contar os pontos para meu ingresso no
magistério.    Quando contei isso à Belinha, a pobrezinha até chorou.             Consolei-a,
prometendo que, de qualquer jeito, nos casaríamos antes de ela fazer dezenove anos ...
A propósito do malfadado acontecimento que tanto me prejudicou, não me esqueço da
solidariedade que tive de todos os meus colegas e, principalmente, da querida Diretora,
minha sempre estimada Maria Olímpia Vieira, que tudo fez, mas inutilmente, para me
defender.
Nesse momento, eu e o Luizinho havíamos chegado ao Ginásio.              Então ele criticou
acerbamente a demolição do antigo prédio onde funcionou nosso antigo Grupo Escolar.
Aquela casa fora a antiga sede da fazenda do Capivari, núcleo em cujos arredores se
formou o povoado que hoje é Jambeiro. Enquanto em outros lugares se preservam
com carinho suas antigas construções, como relíquias do passado, aqui a inépcia
administrativa destruiu uma das poucas que tínhamos. E para que ?! Só para usar seu
terreno.    Entretanto, bem em frente, no outro lado da rua, existia uma ampla área
desocupada, que o fundador da cidade, o coronel Almeida Gil, havia separado de sua
fazenda e reservado para futuras construções de edifícios públicos, como ali hoje estão a
Cadeia e o Centro de Saúde.
Debatendo ainda o caso da destruição da velha sede da fazenda do Capivari, Luizinho
se admirou de que, na ocasião. Não houvesse ninguém mais esclarecido capaz de evitar




                                                                                             25
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



tal descalabro. Contei-lhe então que houve uma pessoa, a saudosa Adélia Moraes, a
única que protestou contra a demolição (v. N. da R.). – Aquela casa, continuou o
Luizinho, tinha história: fora construída no começo do século passado, para substituir
outra bem menor que existia no lugar. Amigos de Taubaté, que costumavam pernoitar
no lugar em suas viagens ao Litoral, ajudaram na construção. Antes de ser modificada,
possuía oito quartos – incluindo as alcovas –, sala de visita, salão de refeições, grande
copa-cozinha e outras dependências. Existia, ainda, uma sala-oratório, onde de vez em
quando se celebravam missas, batizados e casamentos. Quando sua proprietária, Ana
Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil, faleceu, a casa coube por herança à sua filha
Maria Caetana, primeira esposa do Major João do Amaral Gurgel. Este a reformou
e a vendeu ao Governo do Estado por vinte contos de réis. No velho casarão, além do
nosso saudoso Grupo Escolar, chegou a funcionar um hospital e até um colégio, que
ainda hoje dá o apelido à rua (“Rua do Colégio”). Esse colégio foi fundado e dirigido pela
conceituada educadora Amélia Franco, que hoje tem sua memória homenageada com
seu nome dado a um orfanato situado na Rua Ana Dias, em Santos.
E o Luizinho concluiu :
– Foi mesmo uma barbaridade a destruição do velho edifício !
Já entardecia e eu estava ansioso e curioso para que o meu amigo terminasse a sua
íntima novela com a Belinha. E também me parecia que ele estava como que gostando
de narrá-la. Seria, por acaso, o desabafo de uma mágoa profunda e antiga que o estava
atormentando ? Ou seria o sofrimento de certos amores irrealizados, que costumam
deixar “uma ferida viva dentro do peito” por toda a vida ? Quem sabe ? Ele então
continuou :
– Como de costume, num sábado à tarde, vim à cidade e logo recebi um recado da
Belinha, de que naquela tarde ela não poderia vir falar comigo. Viria no dia seguinte,
pois o irmão havia chegado com aquele amigo estudante, e ela tinha de ajudar a mãe a
hospedá-los.   Enfim, a mesma xaropada de outras vezes, pensei. No domingo nos
encontramos. Logo de chegada, ela começou a falar do tal estudante. ‘O rapaz é muito
fino’, disse. ‘Educado e atencioso. E muito divertido. Gosta de contar piadas que até o




                                                                                             26
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



papai acha gozadas.’ Ela recebera de presente finos bombons, dos quais me trouxe
dois. Eram finos, mesmo, mas, não sei por que, achei-os um tanto amargos ... Seria
meu primeiro ciúme ? Mas não dei nenhuma demonstração. Então ela me contou um
sonho que tivera : íamos os dois, de mãos dadas, caminhando alegres por uma longa
estrada margeada de flores.      De repente, sua mão se desprendeu da minha. E,
enquanto eu ia caminhando mais depressa para a frente, ela foi ficando para trás. Disse
que queria me chamar, gritar, mas sua voz não saía. E enquanto eu ia desaparecendo
na estrada, ela ficou só e desesperada. Acordou chorando, com sua mãe a sacudi-la
para despertar do pesadelo ...
E o Luizinho continuou :
– Sonhos! Eu não acredito em sonhos. Mas às vezes acontece que algum se transforma
em verdadeiro prenúncio de acontecimento que depois se dá. O sonho da Belinha foi
um deles : realizou-se bem dolorosamente como ela havia sonhado. Mas deixe isso pra
lá. Nos outros encontros semanais que tivemos, ela se mostrava cada vez mais gentil e
doce.   Contou, sorrindo, que já começara a fazer algumas pecinhas do seu futuro
enxoval. Mas escondido até da mãe. Com jeitinho encantador, me perguntava dos
meus gostos, das cores que eu apreciava e de outras coisinhas assim. Os casados
costumam dizer que o noivado é o melhor tempo do namoro. Muito certo ! Pois como
foi maravilhosa aquela época em que nós dois, como que usufruindo da familiaridade
pura do nosso amor, parecíamos um casal de pombinhos que iniciava a construção do
seu futuro ninho ... Certa noite, lá na solitária esquina, caí das nuvens quando ela,
repentinamente, me disse : ‘Beije minhas mãos !’ E me apresentou suas mãos, que eu
cobri de beijos e ainda fiz acariciar meu rosto. Depois disso, ficou ruborizada e toda
trêmula por aquela tão simples intimidade. Como já lhe expliquei e você certamente
sabia ou sabe, o puro, difícil e já longo namoro com a Belinha constituía o primeiro
amor de cada um de nós. E pelo meu gênio um tanto acanhado e as suas maneiras
recatadas, nunca houve nada demais entre nós dois. Daí, a reação que ela tivera com
aquela prova de carinho. Depois continuamos nosso doce papinho. Ela já havia contado
à mãe nossos planos futuros.     Mas quando novamente pediu licença para dar uma




                                                                                           27
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



voltinha na praça comigo, a mãe negou e outra vez aconselhou: ‘Não faça isso ! Seu
pai é capaz de castigar você e nem a deixar sair de casa.’ ‘Paciência’, pensei comigo.
Esse sogro feroz deve ter lá suas razões, mas um dia ele me pagará ! (Ah! Matutei
comigo muitos anos depois: ‘Por que a Belinha não enfrentou o pai, a mãe, a família
inteira e não fez o meu gosto, como eu tanto desejava ? Certamente isso iria evitar que
um fato semelhante, acontecido depois, viesse mudar nosso destino ...’) Na verdade, o
“perigo” em dar um passeio na praça com a Belinha, para fazer meus amigos babarem
de inveja, afinal havia só para mim.     Pois quando o futuro sogro feroz me visse
passeando ali com sua prendada filhinha, certamente viria conversar comigo, para
marcarmos o casamento o mais rápido possível,       Coisa que infelizmente ainda não
estava dentro de minhas possibilidades ... No domingo seguinte (era uma das nossas
grandes festas), a Belinha apareceu ainda mais bonita : usava um vestido novo,
penteara melhor ainda seus belos cabelos cor de jabuticaba madura e passara na face
uma leve camada de ruge. E seus olhos inolvidáveis brilhavam ainda mais ! Estava
linda mesmo ! Lindíssima ! E para mais expandir todo aquele encantamento, surgiu de
trás do morro do Cruzeiro, radiosa e fulgurante como sempre, nossa velha amiga, a lua,
a banhar de prata aquela adorável figura por mim tão amada !
– O momento era de um verdadeiro encantamento. Olhos nos olhos, nós dois como
que nos magnetizávamos mutuamente. O Largo da Igreja estava deserto e lá embaixo a
banda no coreto tocava uma daquelas lindas valsas antigas. Estávamos frente a frente e
eu peguei em suas mãos. Ela gracejou dizendo: ‘Está querendo acostumar, hem ?
Aquilo que aconteceu naquela noite foi uma loucurinha que eu fiz sem pensar ...’ Mas
não retirou as suas mãos.
E eu disse : ‘Mas você, afinal, não é toda minha ?’ E ela respondeu :       ‘Em sonho, em
pensamento e de coração, sou ! Mas agora nem aliança nós temos ainda.’ Engoli quieto
a indireta. Aproximamo-nos mais um pouco. Ambos tremíamos. Eu, mais do que ela.
E notei que seu peito começou a arfar lentamente.
Ela ainda falou : ‘Você vai ser meu, mesmo ?’ Respondi-lhe : ‘Sim, meu bem, todo seu !’
Eu estava como que estático, o coração pulsando forte e o sangue subindo ao rosto.




                                                                                            28
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



Não sei como é que não tive uma vertigem ... Seu peito tornou-se ofegante. Olhos nos
olhos, olhos nos lábios, de repente aconteceu uma coisa que eu nunca esperava que
acontecesse e que me deixou meio aturdido.
Belinha espalmou suas mãos sobre minhas orelhas e me puxou para si. Senti então
seus lábios macios e quentes sugarem os meus violentamente.             Correspondi rápido.
Deve ter durado uns quatro segundos o nosso primeiro beijo.
Que maravilha ! Belinha afastou-se logo, com as mãos no peito, exclamando : ‘Nossa!
O que é que eu fiz ?! Que loucura ! Mas também você ficou aí parado sem resolver
nada e eu não agüentei ...’ Eu só disse : ‘Não fique assim ! Esta foi a coisa mais
maravilhosa que, graças a você, aconteceu na minha vida ! E nem houve malícia, pois
nós nem nos abraçamos ...’ E ficamos nos olhando sem nem ter o que dizer.
Mas logo, ela, ainda com um sorrisinho nervoso, convidou-me para irmos embora.
E, de mãos dadas se balançando os braços, descemos a rua que também estava
deserta. Na ponte paramos um pouco, pois ela logo se despediu e disse:
‘Bobo ! Para mim também foi a coisa mais gostosa que já me aconteceu na vida !’
E se foi, sorridente e apressada ...
Ah! Pensei muitos anos depois : ‘Por que a Belinha naquela hora não me convidou
para dar uma voltinha na praça ?’
Voltei alegre para casa, relembrando tudo o que havia acontecido naquela noite. A lua
ainda clareava a estrada. E, às vezes, uma estrela cadente riscava o céu estrelado. Lá
longe cantavam alguns galos e cães alegres latiam nas residências. Vagalumes brilhavam
por toda parte. E ao passar pela lagoa que margeava a estrada, até parei para ouvir a
orquestra encantadora da saparia. Como eu estava feliz !
Depois de ouvir o caso do beijo da Belinha, que, pelo seu romantismo, até me deixou
com inveja, perguntei ao Luizinho :
– Mas como é que com todo esse encantamento amoroso no qual vocês viviam, estando
já em ponto de casamento, por que, afinal, vocês não se casaram, mas acabaram indo
cada qual para o seu lado ?! Como é que você deixou aquela prendada moça, que nós
todos cobiçávamos, inutilmente, pois ela não dava bola pra ninguém e só gostava de




                                                                                              29
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



você ?! Como pôde desprezar o seu amor ?! Eu acho que você ficou louco ! Desprezar
uma lindeza daquela, que, como você mesmo disse, ‘tinha sorriso que o magnetizava a
cada instante e cujo mágico olhar até despetalava recém abertas e cuja formosura de
todo o corpo causava arrepios aos que a contemplavam ?! E cuja voz, límpida e doce,
evolando daqueles lábios de rubi e dentes de luz, era como uma melodia acariciante
embalando um sonho maravilhoso ?! Como é que você rejeitou tudo isso, se aquela flor
rara estava ali, ansiosa ao seu dispor ?! Era só colhê-la ! Você ficou doido mesmo ! O
que aconteceu, homem?
Luizinho, num suspiro, respondeu :
– Pois é ! ‘Quando o diabo torce o rabo, o homem apanha’ ... Eu levei uma tunda por
me deixar vencer pelo demônio do ciúme ...
– Mas você possuía amigos. Lamentamos o rompimento entre vocês dois, mas você
nunca nos procurou. Talvez tivéssemos podido ajuda ...
– Qual ! O que tem de acontecer, acontece ... ão há remédio para um coração
envenenado ...
Nessa hora, o Luizinho e eu havíamos dado a volta pela Rua do Colégio e chegado a
um bairro de Jambeiro, formado próximo ao antigo campo de futebol.
Luizinho admirou as novas ruas que ali foram abertas, no bairro novo do Jardim
Centenário, situado na antiga “horta” do Luiz Bernardo, que depois foi do Joaquim
Ivo e, mais tarde, do Hilário Fermino. E nos lembramos das antigas jabuticabeiras
que ali existiram e que encheram de alegria a nossa meninice. Com o povo que tinha
vindo à Festa, todas as ruas estavam tomadas por centenas de ônibus e outros carros
dos romeiros.
Já estava quase na hora da procissão.        Paramos perto da igreja de São Benedito,
construída no inicio dos anos 60. Depois de observar tudo por ali, o Luizinho continuou
a narrar sua história do namoro com a Belinha.
– Hoje eu nem acredito que tive um namoro assim, que durou cinco anos e terminou de
uma maneira tão pueril ... Eu já me havia esquecido de muita coisa, mas esta vida à
querida terra natal me fez recordar muitas passagens da minha vida naquele tempo. O




                                                                                            30
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



antigo Jambeiro era bem menor e muito mais sossegado.            Havia poucos moços e
moças. E, quando cada um formava seu par ainda bem jovem, o namoro geralmente ia
até o casamento. Só comigo e a Belinha não aconteceu assim ...
Luizinho continuou:
– Dizem que ‘a paixão é como uma medalha : de um lado é o amor e do outro é o
ódio’. E que, às vezes, por um acontecimento infausto, a medalha vira e a face do amor
é substituída pela face do ódio. Pois foi o que aconteceu comigo. Por um motivo até
ridículo, um forte rancor tomou conta de mim contra a Belinha. Depois eu pensei como
fui covarde em me deixar vencer assim pelo lado maldito da paixão : destino inesperado
e cruel, ao qual sucumbi sem lutar, como um moço imaturo dominado pelo ciúme.
Eu havia passado uma semana felicíssima na roça. Vim à cidade ansioso por me
encontrar com minha amada. Mas a primeira notícia que tive dela foi um aviso de que
ela não poderia vir encontrar-se comigo, porque havia chegado visita ...
Isso foi como uma baciada de gelo sobre meu entusiasmo amoroso ... À noitinha, eu
estava conversando com uns amigos no canto da praça que dá para a rua de baixo.
Em frente era o salão do Hilário, que existia onde hoje está a bomba de gasolina.
O salão era a sede do nosso clube. E, a propósito, naquela hora, nossas queridas Déa
Lopes e Rosinha Almeida (onde e como estarão elas hoje ?) estavam tocando a
vitrola, em preparação do nosso domingueiro bailinho “arrasta-pé”.
De repente aconteceu a desgraça, que virou a face do amor na medalha da nossa
paixão.
Vindo da rua de baixo, surgem quatro jovens passeando: de um lado estava o Cláudio,
irmão da Belinha, conversando com sua prima Araci. Ao lado da Araci estava a
Belinha que bonita e risonha, proseava com o amigo do Cláudio, ao seu lado.
A vista daquela cena foi para mim pior do que um terremoto !            Caí das nuvens :
arregalei os olhos, abri a boca e derrubei o queixo ... Quase gritei. Senti o sangue
ferver e o coração pular.




                                                                                            31
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



E, por cargas d’água, bem naquele instante, a vitrola do Clube começou a tocar aquela
marchinha antiga que dizia assim : ‘Por causa dela, oi, por causa dela, / meu coração
bateu tanto, / quase quebrou minha costela ...’
E como que para me torturar ainda mais, um dos companheiros exclamou: ‘Ih !
Luizinho ! Olha lá a Belinha, rindo e feliz com aquele cara amigo do Cláudio!’
(Quase esmurrei o imbecil companheiro).
Belinha, quando me viu, virou o rosto, dissimulando. Eu também virei a cara, zunindo
de raiva ! O grupo subiu e desceu a rua de cima. Foi em seguida à Rua do Colégio.
Deu três voltas na Praça e foi embora.
Eu, que nunca tinha sentido tanto ciúme, fiquei arrasado ! Nem esperei o “arrasta-pé”.
Fui logo para minha casa. Na estrada até senti tonturas. Enxuguei os olhos várias
vezes. E fui pensando. E fui xingando. E fui sofrendo como nunca sofrera antes por
causa de uma mulher ...
Que diferença daquela outra noite que me foi tão feliz ! Esta, ao contrário, estava
tenebrosa e feia. Ao longe uivavam os cães esfaimados. E uma coruja suindara, em
vôos rasantes, rasgava mortalha sobre minha cabeça ... Como eu estava infeliz !
Passei um mês sem vir à cidade. Distraí-me na roça, curtindo a minha amargura
amorosa. Quando vim, recebi um recado da Belinha para ir falar com ela. Não atendi.
Respondi, enviando-lhe uma carta por intermédio da Araci, que era o nosso “correio”.
Eu continuava terrivelmente frustrado e detestando a Belinha.
Na carta, disse que não a queria mais, pois, além de me trair, ainda me ofendera ao
passear com aquele moço, coisa que comigo sempre recusara fazer.                /e para que
soubesse quais eram meus novos sentimentos para com ela, junto à carta enviei-lhe uns
versos que decorara de um jornal da época.
Diziam assim : ‘Eu te odeio, / sabes ? / Muito ! / Com prazer e com rancor. / Desejo-te /
tudo o que te leve ao desespero : / que não tenhas fé / nem esperança / e que a vida te
atormente, / a cada passo. / Quero que sofras, / muito, sempre ... / Em dias longos, /
em noites sem fim. / Que desejes a morte, / mas que tu vivas muito ! / Que não tenhas
lágrimas, / para que teus olhos não chorem / e a dor te sufoque ! / Quero que me ames




                                                                                             32
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



/ a mim que te odeio ! / Que me queiras / como eu te quis, / para que sintas tudo / e
sofras tudo / o que senti / e sofri, / quando me traíste ...’
Ao ler minha declaração de ódio, Belinha, primeiro deve ter ficado magoada e furiosa.
Mas depois, conhecendo meu caráter, pelo qual eu não seria capaz de odiar a ninguém,
e muito menos a ela, julgou que eu estava bancando o “machão” ... para me vingar ...
Acertou ! E, por isso, continuou fazendo o que pôde para reatarmos nosso namoro.
Eu fugia sempre, mas depois que a Araci me contou certas coisas, resolvi falar com a
Belinha.
Luizinho continuou :
– Em atenção aos seus veementes pedidos, resolvi encontrar-me com a Belinha.
Esperei-a na ‘nossa’ esquina, logo que terminou a reza. Trocamos secos cumprimentos.
Achei-a com as feições abatidas.
Ela começou a falar :      ‘Por que você fez isso comigo ?!            Eu já lhe mandei pedir
desculpas. Até perdão eu implorei pelo que fiz ! Por que continua me evitando e
desprezando desse modo ?!’ E disse outras coisas comoventes, que me arderam dentro
do peito.
Mas eu a ouvia como que distante, indiferente, maldoso. Apenas respondi que ela havia
me traído e ofendido muito.
Tempos depois foi que eu percebi o quanto fui bruto e perverso ao humilhar a
pobrezinha daquele jeito !...       Mas o ciúme violento e a afronta sofrida haviam
empedernido de tal modo meus sentimentos, que eu não sentia nenhuma piedade.
E o que até hoje me faz lembrar minha vileza foi o que em seguida aconteceu.
Pois de repente, Belinha chegou bem perto de mim, com lágrimas nos olhos, encarou-
me e disse : ‘Meu bem, meu amor ! Abrace-me, beije-me ! Faça o que quiser comigo !
Pois sou toda sua !’
Assustei-me, até ! Senti um tremor e o coração bateu forte. E já ia abrindo os braços
para estreitá-la em meu peito, quando me contive. E falei : ‘Não, moça ! Você não é
disso ! Eu sei o que isso significa para você e eu a respeito muito ! Para mim a situação
também está horrível !       Vamos esperar um pouco, quem sabe ...’                  Irritada pela




                                                                                                   33
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



humilhação recebida, Belinha interrompeu-me e respondeu, exaltada : ‘Você é mau !
Malvado ! Pois eu também não quero mais saber de você !’ E, enxugando as lágrimas
no dorso da mão, saiu rápida, deixando-me sozinho ...      E foi descendo a rua, só e
apressada ...
Acompanhei-a com o olhar, até que desapareceu lá em baixo, na Praça ... E assim,
naquela hora, pelo meu orgulho, nascido de um ciúme diabólico, terminava, como num
sonho maravilhoso que acabasse em pesadelo, nosso lindo “amor fora de série” ... E
eu perdia a Belinha para sempre ...
Luizinho deu um suspiro e ficou quieto por uns instantes. Depois, continuou :
– O resto você sabe. Fui logo embora daqui e comecei a lecionar no Grupo Escolar de
uma cidade do Oeste. E seis meses depois me casava com uma linda e amável colega,
com a qual fui muito feliz. Tempos depois eu soube que a Belinha também havia se
casado. E justamente com aquele moço, amigo de seu irmão, que aqui vinha passear e
lhe trazia bombons ... E que, por sinal, deu um ótimo marido, pelo que certamente
foram muito felizes também ...
Os sinos da igreja começaram a repicar, chamando os romeiros para a procissão ...
Os sinos da igreja repicaram festivos, chamando os romeiros para o inicio da procissão.
O Luizinho e eu, que acabávamos de dar a volta pelo Jardim Centenário – o bairro
novo da cidade – chegando à ponte da rua de baixo, também atendemos ao chamado
dos sinos e subimos até a igreja. Acompanhamos com o povo o tradicional desfile da
Imagem da Padroeira pelas ruas da cidade. De volta à igreja, Luizinho rezou um pouco
e logo saímos.   Seu carro havia ficado lá para cima, à sombra da velha e solitária
paineira próxima à Vila Vicentina.    Tomamos o carro e viemos descendo a rua
congestionada de ônibus e de carros das famílias que já se iam retirando da cidade. Ao
passar pela “sua” esquina, fez um sinal com o braço e murmurou :
– ‘Adeus, esquina saudosa !’
E assim foi dizendo adeus a todos os pontos que lhe recordavam alguma coisa da
meninice ou da juventude em sua terra natal : a “Casa Grande”, a ponte dos
pernilongos, o mercado, a cadeia e outros. A Praça continuava apinhada de veículos




                                                                                           34
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil



que partiam e do povo que vagava por entre as barraquinhas ou descansava nos bancos
do jardim. Seguimos pela Rua do Colégio (Major Gurgel) até o final e paramos lá na
chácara do Marciano. Despedimo-nos com um longo abraço e palavras cordiais de uma
separação que poderá ser para sempre.
O Luizinho ainda fez um gesto de saudação para o Santo Cruzeiro lá no alto, e
embarcou. Antes de desaparecer na curva do bambual, pôs o braço para fora e fez um
último sinal de adeus. Para quem seria ? Para mim, seu velho amigo ? Para a cidade
natal que ficava talvez para sempre ? Ou como lembrança do antigo amor que teve com
sua amada Belinha ?
Voltei para a Praça comovido, pensando no Luizinho e em outras coisas, como se
estivesse vivendo há sessenta anos ... Como estava tudo tão diferente ! A mocidade do
nosso tempo, entusiasta e descontraída, há muito já não existia ... Como única exceção,
apenas via o Dito Dias, tranqüilamente acomodado lá à porta de sua casa ...
A visita do Luizinho à terra natal e nossas recordações foram mesmo comoventes !
E agora estava eu ali sozinho, no meio daquele povaréu ...
E então me veio à mente a lembrança daquele antigo e romântico poeta, que,
versejando uma visita à velha casa paterna, assim termina seu dolorido soneto :
‘... resistir, quem há de ?
Uma ilusão gemia em cada canto,
chorava em cada canto uma saudade !...’




                                                                                            35
AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil




N. da R. : Exatamente na edição de 19/09/1993 “O Jambeirense” noticiou o
falecimento, no Rio de Janeiro, da “Belinha”, que foi protagonista, ao lado do “Luizinho”,
desta série “Amor fora de série”...


N. da R.: “sr. Durão” – trata-se de Innocencio Corrêa Durão, “natural de Miranda
do Corvo, província da Beira Baixa ou Coimbra, no reino de Portugal, residente nesta
Villa, capitalista”, que faleceu em Jambeiro, às 5 horas da madrugada, na “rua do
Comércio”, aos 70 anos. Deixou os filhos : Maria da Conceição Durão (casada com o
Cel. Antonio Baptista de Oliveira Costa (Cel. Batista); Benedicto, José, João e Eugênio
(este se casou com D. Maria Antonia da Conceição, com quem teve os seguintes filhos :
Pe. Hygino Corrêa da Conceição Apparecida, Francisco, Philomena, Pedro, Elvira, Pe.
José Luiz Corrêa, Olívia, Vicente, Eugênia, João e Geraldo).

N. da R.:    Na ocasião da demolição da velha sede da fazenda do Capivari – onde
funcionaram as Escolas Reunidas e, depois, o antigo Grupo Escolar – uma sobrinha do
prof. Júlio de Paula Moraes, Adélia de Souza Moraes (a querida “tia Adélia”), ao ouvir
o estocar de foguetes em regozijo pelo início do destelhamento do velho prédio, assim
manifestou seu repúdio pela demolição :
– Burros ! A gente solta foguete quando se cobre uma nova casa, e não quando ela é
demolida !




                                                                                              36

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

O Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulosO Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulos
Iuri Montenegro
 

Mais procurados (17)

O trovadoresco nº 72 junho 2011
O trovadoresco nº 72 junho 2011O trovadoresco nº 72 junho 2011
O trovadoresco nº 72 junho 2011
 
O Bandeirante - n.236 - 072012
O Bandeirante -  n.236 - 072012O Bandeirante -  n.236 - 072012
O Bandeirante - n.236 - 072012
 
Revista encontro literário edital 01.2011
Revista encontro literário   edital 01.2011Revista encontro literário   edital 01.2011
Revista encontro literário edital 01.2011
 
Entrevista Paulo Cesar Pinheiro
Entrevista Paulo Cesar PinheiroEntrevista Paulo Cesar Pinheiro
Entrevista Paulo Cesar Pinheiro
 
O Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulosO Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulos
 
O Índio Enfeitiçado (conto)
O Índio Enfeitiçado (conto)O Índio Enfeitiçado (conto)
O Índio Enfeitiçado (conto)
 
Jornal Mente Ativa 17
Jornal Mente Ativa 17Jornal Mente Ativa 17
Jornal Mente Ativa 17
 
Depois de uma tragedia
Depois de uma tragediaDepois de uma tragedia
Depois de uma tragedia
 
Mademoiselle Zhivago-Comentários
Mademoiselle Zhivago-ComentáriosMademoiselle Zhivago-Comentários
Mademoiselle Zhivago-Comentários
 
Letras Taquarenses Ano IX Nº 63 Mar/Abr 2015 * Antonio Cabral Filho - Rj
Letras Taquarenses Ano IX Nº 63 Mar/Abr 2015 * Antonio Cabral Filho - RjLetras Taquarenses Ano IX Nº 63 Mar/Abr 2015 * Antonio Cabral Filho - Rj
Letras Taquarenses Ano IX Nº 63 Mar/Abr 2015 * Antonio Cabral Filho - Rj
 
Canastra véia - De Cosme Ferreira Marques
Canastra véia   - De Cosme Ferreira MarquesCanastra véia   - De Cosme Ferreira Marques
Canastra véia - De Cosme Ferreira Marques
 
Ladino
LadinoLadino
Ladino
 
Sinopse uim carnaval_2013
Sinopse uim carnaval_2013Sinopse uim carnaval_2013
Sinopse uim carnaval_2013
 
Boletim esperança 05
Boletim esperança 05Boletim esperança 05
Boletim esperança 05
 
Jornal Mente Ativa 16
Jornal Mente Ativa 16Jornal Mente Ativa 16
Jornal Mente Ativa 16
 
Mensagem de avivamento espiritual
Mensagem de avivamento espiritualMensagem de avivamento espiritual
Mensagem de avivamento espiritual
 
Letras Taquarenses N 67 Out 2015 (Lt67out15) * Antonio Cabral Filho - RJ
Letras Taquarenses N 67 Out 2015 (Lt67out15) * Antonio Cabral Filho - RJLetras Taquarenses N 67 Out 2015 (Lt67out15) * Antonio Cabral Filho - RJ
Letras Taquarenses N 67 Out 2015 (Lt67out15) * Antonio Cabral Filho - RJ
 

Semelhante a Amor fora de série - Paulino Gil

A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - LiteraturaA Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
Hadassa Castro
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
Regina Gouveia
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
Regina Gouveia
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
Regina Gouveia
 

Semelhante a Amor fora de série - Paulino Gil (20)

385 an 26 junho 2012.ok
385 an 26 junho 2012.ok385 an 26 junho 2012.ok
385 an 26 junho 2012.ok
 
A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - LiteraturaA Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
A Geração De 45 - Prof. Kelly Mendes - Literatura
 
O POEMA - TEORIA 1.pptx
O POEMA - TEORIA 1.pptxO POEMA - TEORIA 1.pptx
O POEMA - TEORIA 1.pptx
 
Dom casmurro
Dom casmurroDom casmurro
Dom casmurro
 
174626
174626174626
174626
 
Literatura aula 2- Gênero Lírico, épico e dramático.pptx
Literatura aula 2- Gênero Lírico, épico e dramático.pptxLiteratura aula 2- Gênero Lírico, épico e dramático.pptx
Literatura aula 2- Gênero Lírico, épico e dramático.pptx
 
Zai Gezunt 09
Zai Gezunt 09Zai Gezunt 09
Zai Gezunt 09
 
Texto Narrativo
Texto NarrativoTexto Narrativo
Texto Narrativo
 
Estorias do vo jaco
Estorias do vo jacoEstorias do vo jaco
Estorias do vo jaco
 
Nostalgias à velha casa
Nostalgias à velha casa  Nostalgias à velha casa
Nostalgias à velha casa
 
O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Dom casmurro
Dom casmurroDom casmurro
Dom casmurro
 
Literatura de Cordel
Literatura de Cordel Literatura de Cordel
Literatura de Cordel
 
Cplp miolo contos
Cplp miolo contosCplp miolo contos
Cplp miolo contos
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4
 
O feretro
O feretroO feretro
O feretro
 
O feretro
O feretroO feretro
O feretro
 

Último

OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdfOFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
AndriaNascimento27
 
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdfAS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
ssuserbb4ac2
 
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdfInstrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
ssuserbb4ac2
 
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdfmanual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
rarakey779
 
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptxPERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
tchingando6
 
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdfGRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
rarakey779
 

Último (20)

Tesis de Maestría de Pedro Sousa de Andrade (Resumen).pdf
Tesis de Maestría de Pedro Sousa de Andrade (Resumen).pdfTesis de Maestría de Pedro Sousa de Andrade (Resumen).pdf
Tesis de Maestría de Pedro Sousa de Andrade (Resumen).pdf
 
Atividade português 7 ano página 38 a 40
Atividade português 7 ano página 38 a 40Atividade português 7 ano página 38 a 40
Atividade português 7 ano página 38 a 40
 
OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdfOFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
OFICINA - CAFETERIA DAS HABILIDADES.pdf_20240516_002101_0000.pdf
 
Slides Lição 9, CPAD, Resistindo à Tentação no Caminho, 2Tr24.pptx
Slides Lição 9, CPAD, Resistindo à Tentação no Caminho, 2Tr24.pptxSlides Lição 9, CPAD, Resistindo à Tentação no Caminho, 2Tr24.pptx
Slides Lição 9, CPAD, Resistindo à Tentação no Caminho, 2Tr24.pptx
 
Curso de Direito do Trabalho - Maurício Godinho Delgado - 2019.pdf
Curso de Direito do Trabalho - Maurício Godinho Delgado - 2019.pdfCurso de Direito do Trabalho - Maurício Godinho Delgado - 2019.pdf
Curso de Direito do Trabalho - Maurício Godinho Delgado - 2019.pdf
 
Slides Lição 9, Betel, Ordenança para uma vida de santificação, 2Tr24.pptx
Slides Lição 9, Betel, Ordenança para uma vida de santificação, 2Tr24.pptxSlides Lição 9, Betel, Ordenança para uma vida de santificação, 2Tr24.pptx
Slides Lição 9, Betel, Ordenança para uma vida de santificação, 2Tr24.pptx
 
São Filipe Neri, fundador da a Congregação do Oratório 1515-1595.pptx
São Filipe Neri, fundador da a Congregação do Oratório 1515-1595.pptxSão Filipe Neri, fundador da a Congregação do Oratório 1515-1595.pptx
São Filipe Neri, fundador da a Congregação do Oratório 1515-1595.pptx
 
curso-de-direito-constitucional-gilmar-mendes.pdf
curso-de-direito-constitucional-gilmar-mendes.pdfcurso-de-direito-constitucional-gilmar-mendes.pdf
curso-de-direito-constitucional-gilmar-mendes.pdf
 
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdfAS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
AS COLUNAS B E J E SUAS POSICOES CONFORME O RITO.pdf
 
Atividades-Sobre-o-Conto-Venha-Ver-o-Por-Do-Sol.docx
Atividades-Sobre-o-Conto-Venha-Ver-o-Por-Do-Sol.docxAtividades-Sobre-o-Conto-Venha-Ver-o-Por-Do-Sol.docx
Atividades-Sobre-o-Conto-Venha-Ver-o-Por-Do-Sol.docx
 
América Latina: Da Independência à Consolidação dos Estados Nacionais
América Latina: Da Independência à Consolidação dos Estados NacionaisAmérica Latina: Da Independência à Consolidação dos Estados Nacionais
América Latina: Da Independência à Consolidação dos Estados Nacionais
 
Atividade-9-8o-ano-HIS-Os-caminhos-ate-a-independencia-do-Brasil-Brasil-Colon...
Atividade-9-8o-ano-HIS-Os-caminhos-ate-a-independencia-do-Brasil-Brasil-Colon...Atividade-9-8o-ano-HIS-Os-caminhos-ate-a-independencia-do-Brasil-Brasil-Colon...
Atividade-9-8o-ano-HIS-Os-caminhos-ate-a-independencia-do-Brasil-Brasil-Colon...
 
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdfInstrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
Instrucoes_A_M_Pranchas_01_a_33_Encadern (4).pdf
 
CIDADANIA E PROFISSIONALIDADE 4 - PROCESSOS IDENTITÁRIOS.pptx
CIDADANIA E PROFISSIONALIDADE 4 - PROCESSOS IDENTITÁRIOS.pptxCIDADANIA E PROFISSIONALIDADE 4 - PROCESSOS IDENTITÁRIOS.pptx
CIDADANIA E PROFISSIONALIDADE 4 - PROCESSOS IDENTITÁRIOS.pptx
 
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdfmanual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
manual-de-introduc3a7c3a3o-ao-direito-25-10-2011.pdf
 
Conteúdo sobre a formação e expansão persa
Conteúdo sobre a formação e expansão persaConteúdo sobre a formação e expansão persa
Conteúdo sobre a formação e expansão persa
 
Poema - Reciclar é preciso
Poema            -        Reciclar é precisoPoema            -        Reciclar é preciso
Poema - Reciclar é preciso
 
Apresentação sobre as etapas do desenvolvimento infantil
Apresentação sobre as etapas do desenvolvimento infantilApresentação sobre as etapas do desenvolvimento infantil
Apresentação sobre as etapas do desenvolvimento infantil
 
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptxPERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
PERFIL M DO LUBANGO e da Administraçao_041137.pptx
 
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdfGRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA UM GUIA COMPLETO DO IDIOMA.pdf
 

Amor fora de série - Paulino Gil

  • 1. AMOR FORA DE SÉRIE Prof. PAULINO GIL
  • 2. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil AMOR FORA DE SÉRIE ( Prof. PAULINO GIL ) Esta história foi concebida por ocasião da recente festividade comemorativa do Dia de nossa Padroeira. (Festa da padroeira de Jambeiro de 1990) Como se viu, apesar do mau tempo ocorrido na véspera, que coibiu a vinda de muita gente, a festa esteve bonita e agradou bem. Aliás, no ano passado – 1989 – aquela multidão que aqui compareceu, pode-se dizer que foi mesmo quase demais. Nunca se tinha visto tanta gente assim em Jambeiro ! A cidade ficou superlotada (a fila dos “necessitados”, certa hora, chegou a ir do mercado até quase o coreto ...). Foi fogo ! Os automóveis tiveram de estacionar desde a ponte do Capivari e desde o bambual do Edu. Mas também, pudera! Jambeiro é tida como a cidade de ar mais puro ou limpo do Vale do Paraíba. E que é uma gracinha de cidade, que agrada e cativa toda gente que tem o prazer de conhecê-la, o que por si só já é uma atração. Acrescente-se a isso a presença dos velhos conterrâneos e dos numerosos devotos que costumam vir homenagear a querida Virgem das Dores. E ainda mais: na ocasião, aqui estava presente o virtuoso Sacerdote, Pe. José Sazami Kumagawa. Ora, como tem acontecido em outros lugares, onde suas bênçãos de cura dadas em nome de Jesus têm realizado coisas maravilhosas, a presença do caro Pe. José costuma atrair multidões. 2
  • 3. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Neste ano, porém, tudo foi mais calmo e aprazível. As tradicionais barraquinhas, com os mais variados artigos, ocupara toda a Rua Nova e outros espaços. A Praça fervilhou de moças bonitas, que deixavam a rapaziada de boa aberta e olhos parados. E enquanto a criançada brincava pelo jardim e as famílias se confraternizavam, no coreto uma banda bem afinada executava alegres melodias. Destoando de tudo, apenas um casalzinho estranho, parecendo drogado, desavergonhadamente trocava carícias impróprias para lugares públicos. Junto ao barracão dos festeiros, à sombra daquela frondoso tipuana, ali plantada no tempo do prefeito Joãozinho Bellotti, vários grupos barulhentos discutiam política, enquanto sorviam louros chopes gelados. Vagando por ali e dando voltas ao barracão dos festeiros, nosso estimado Jaburu apregoava os lances feitos às prendas que leiloava em benefício da festa. Numa mesa isolada, também eu enxugava distraidamente um delicioso copo de chope, enquanto curtia toda aquela movimentação. De repente, alguém parou ao meu lado e deu três pancadinhas na mesa. Meio espantado, encarei o cara. Era um senhor de meia idade, bem vestido e de óculos escuros, que me fitava sorridente. Surpreso, também sorri, tentando identificar quem era. Então ele tirou os óculos e me perguntou : – Você não é o ... ? E disse o meu nome. Num relance reconheci quem havia dito meu nome. E foi tão grande a demonstração de alegria que ambos sentimos, que até chamou atenção Pois ouvi duas mulheres cochicharem : – Óia, Chica, Mode que esses dois veio ficaro loco ! – É caduquice, comadre ! Mas não era para menos. Acontecia ali o inesperado e agradabilíssimo reencontro de dois antigos conterrâneos que não se viam fazia mais de cinqüenta anos ! Dois amigos e companheiros desde os tempos da meninice, juventude e mocidade, que juntos passaram em Jambeiro. Antes de me abraçar, meu conterrâneo rápido recolocara os óculos. – Desejava permanecer incógnito, explicou. 3
  • 4. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Sentia o coração angustiado ao rever aqueles lugares que lhe traziam muitas recordações. E se via sem coragem de falar ou abraçar os raros conhecidos antigos que deviam estar por ali. Conversamos naquela mesinha durante vários e saboroso chopes (por duas vezes o Jaburu chegou até nós. Primeiro ofereceu um belo bolo majestoso. Depois trouxe duas galinhas carijós amarradas pelas pernas e pererecando. Mas vendo que os dois “home” não eram de leilão, não voltou mais ...) Conversamos muito. Relatamos fatos dos nossos passados desconhecidos e relembramos casos dos nossos tempos passados. E foi um desses casos, referente a um amor seu, que eu achei fora de série. Contarei mais à frente. Após algum silêncio, meu amigo falou : – Eu não devia estar assim tão sentimental. Mas é que me sinto como naquele pungente soneto que você conhece e que diz assim : ... Eu logo pressenti. Nem os louros chopes conseguiram alegrar a alma do meu caro conterrâneo. Pois ele, fitando as bolhas de espuma que se desfaziam no copo, recitou baixinho, comovidamente, aquele célebre e centenário soneto do poeta Luiz Guimarães Júnior : Visita à casa paterna Como a ave que volta ao ninho antigo, depois de um longo e tenebroso inverno, eu quis também rever o lar paterno, o meu primeiro e virginal abrigo. Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, o fantasma talvez do amor materno, tomou-me pelas mãos, olhou-me grave e terno, e, passo a passo, caminhou comigo. 4
  • 5. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Era esta a sala ... (Oh! Se me lembro ! E quanto !) em que da luz noturna à claridade minhas irmãs e minha mãe ... O pranto jorrou-me em ondas ... Resistir quem há de ? Uma ilusão gemia em cada canto, chorava em cada canto uma saudade ... Foi sempre assim o meu companheiro. Retraído, sensível, romântico. Na sua juventude fora até meio poeta. Certa hora ele disse : – Quando aqui cheguei hoje pela manhã, apreciando de passagem as modificações da cidade, fui direto à igreja. Estava havendo Missa. Orei ao Santíssimo Sacramento e agradeci a Deus o estar ali, após tantos anos, forte e feliz. E, ao mesmo tempo em que acompanhava o culto, não pude deixar de ir observando aquelas partes que tantos fatos me recordavam ... Fixei a velha e venerável Imagem de Nossa Senhora das Dores, de origem portuguesa, que há mais de cento e vinte anos fora trazida de Caçapava, nos braços de um grupo de cavaleiros jambeirenses dirigidos pelo Capitão Jesuíno Batista. Admirei o velho altar, doado à matriz por um rico fazendeiro que residia em Caçapava, o major José de Almeida Telles, e que foi entregue depois de sua morte. O belíssimo altar parece estar novo ainda. – Parece novo mesmo, mas é que acaba de ser restaurado neste ano, graças aos esforços do atual Pároco, Padre Clair de Castro. – Muito bem ! Voltei-me para o coro e me parece ouvir longínquos sons de instrumentos musicais e dos cantos maviosos daquelas moças, que enchiam a igreja com as lindas e saudosas melodias sagradas daqueles tempos. Nos bancos, repletos de assistentes, não vejo a Pia União das Filhas de Maria à qual pertenciam quase todas as moças solteiras. 5
  • 6. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil E então me lembrei da Isabel, a Belinha, que era uma delas. Foi minha primeira namorada e a única que tive aqui. Mas veja você : entre toda aquela gente, a não ser três senhoras, não reconheci mais ninguém ! Apenas lá, junto do altar, tomando parte na celebração, notei um senhor idoso, atarracado, que me pareceu ser o Elias, filho do Chiquinho Sacristão. Como está mudado ! Na hora da elevação, repicaram os sinos. Mas eu não ouvir soar o velho sino grande, que em companhia do João Fubá (João Zenatti), tantas vezes eu tangi à hora das ave-marias ... Diziam que sua boa sonoridade era devida a meio quilo de ouro que nele haviam fundido. Certa vez quiseram levá-lo de Jambeiro, mas o povo não consentiu. Fui um dos últimos a sair da igreja. Da porta divisei a linda paisagem tão minha conhecida. Lá embaixo ainda estava, firme, a antiga casa que o Capitão Jesuíno Batista comprou quando veio residir no povoado de Nossa Senhora do Capivari. No nosso tempo, ali era a chácara do João Bento de Moura e lá nos fundos o ribeirão formava aqueles grandes poços nos quais íamos nadar, nus. Lembra-se ? – Se me lembro ! Às vezes tomávamos pegas de algum vizinho e tínhamos de sair correndo, pelados, pelo pasto afora ... Um dia pegaram as roupas do Zé Martinzinho e o coitado teve de descer se arrastando pelo rio até o quintal de sua casa, que era ali onde hoje está a farmácia, vizinha do bangalô. Meu amigo soltou uma gargalhada gostosa e eu fiquei alegre, achando que ele tinha perdido a tristeza. Então ele continuou a contar à descida da igreja : Fui descendo. Ao chegar à esquina onde foi a sede integralista, lembrei-me da festa de Natal que ali realizamos em 25 de dezembro de 1937. O salão, enfeitado, estava repleto de senhoras que com suas crianças aguardavam a distribuição de presentes. De repente, o recinto foi invadido por soldados armados, a mando de um daqueles indignos oficiais da Força que, reformados por desdouro, para cá eram remetidos com funções de Delegado de Polícia. Aconteceu então um pandemônio indescritível. E a comemoração, já fracassada, só foi terminar tarde, graças à proteção de um comando enviado pelo glorioso VI Regimento de Caçapava. 6
  • 7. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Veio-me então a lembrança de alguns companheiros : o “chefe” José Anísio Cunha e seu primo José Clóvis Cunha; Adgemir Telles de Siqueira (Sinhô Coletor); Joaquim Tiago dos Santos e seus irmãos; Sílvio Zuim, Chico Sennes, Zé Martinzinho, Vítor Pereira Barros, José Gil, Milton Bernardes de Almeida, Ary Lopes, Siqueira do Caxias, a turma do Eugênio Durão e outros, de cujos nomes não me recordo. – Como vão eles? – Esses que você citou não “vão” mais, porque todos eles já se foram há bastante tempo. O Luiz – Luiz Mota, esse era o nome do meu amigo – balançou a cabeça com um sorriso tristonho. – Aqui é assim, falei. O tempo passa gostoso e despercebido. Mas, quando vai chegando a chamada de sua “classe”, o “sorteado” costuma bater as botas ... E assim a macacada velha vai sumindo. Entretanto, a propósito, você sabe que a atual média de vida dos jambeirenses, daqueles que antes não se matam com algum vício, é a mais alta do Brasil? Pois é de oitenta anos ! Mas muitos não respeitam essa tabela. E em vez de irem preparando uma boa “partida” para ser bem recebidos no outro lado, são renitentes e vão dando um jeitinho de ficar mais tempo por aqui ... Olhe ali atrás, naquela cadeira : é o Dito Dias, nosso velho companheiro dos animados “rastapés” no salão do Hilário. Tá firme ainda. Aqueles dois láa na esquina : um é o João Pedreiro, que já passou dos 87, mas parece que só tem sessenta. O outro é o Joaquim Leandro, filho do Dito Leandro, aquele esperto e risonho breganhista de cavalos que tanto admirávamos. E lá na janela está o Urbano do Leopoldo. Tem mais de 86. E seu romântico nome – Urbano Paixão de Almeida – faz lembrar a clássica canção “Luar do sertão”, do Catulo da Paixão Cearense ... Naquele grupo, ao lado do coreto, estão dois dos meus irmãos: o mais alto é o Tito Gil, marido da professora Maria Jurema de Siqueira, que residem em São José. O mais baixo é o Nenzinho Gil, viúvo da Tivica Moura. Já passou dos 86. Sempre alegre e conversador, costuma vir de Taubaté, dando, no seu fusquinha, cento e vinte na Dutra ... Aquele altão que está com eles é o 7
  • 8. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil filho do Antonio Italiano, o Valentim Vanzella, também residente em Taubaté. Você se lembra do seu sogro, o bom Dante Pazzini, que morreu de uma picada de cobra cascavel? E aquele último, de óculos, é o Pedrinho, filho do Pedro Rocha. É farmacêutico em São José. Se irmão, já falecido – o Euclides – foi um dos nossos grandes companheiros de reinações aqui na terra ... Fui continuando a identificar para o meu amigo todos os velhos jambeirenses do nosso tempo de infância e mocidade que apareciam na Praça. Ele demonstrava satisfação e também revelava casos interessantes que havia tido com eles. O Luiz continuou a narrar na descida da Rua de Cima : ao deixar minha saudosa esquina, reconheci, numa casa em frente, a figura sempre simpática de D. Florinha, viúva do Alberto José da Silva Ramos. Bem disposta e sorridente, nem parece ter os 89 anos que lhe atribuem. E então me lembrei que os Silva Ramos são uma grande família que sempre dignificou Jambeiro. Passando pela Casa Paroquial, lembrei-me do José Pinto da Cunha, que a construiu e nela morou com sua digna família. Zezinho Cunha e sua esposa, D. Horminda Angélica Cunha, foram os pais do nosso caro Pe. Ernesto Cunha, das religiosas Maria Bernadete (Clementina), Angélica (Jovina) e Maria Helena, e de entre outras, da Maria Eugênia (Eugeninha) e dos nossos companheiros de infância, Luiz e Norberto. Ao passar pelo solar dos Gurgel, senti não ir abraçar aqueles três conterrâneos da velha guarda que ali estavam: Leonor, já nos seus 86 anos, viúva do ex-prefeito Octavio Enéas de Almeida; a Clarice, com 84 e aquele seu sorrisinho simpático de sempre; e o nosso amigão Olavo, apreciado ator das representações artísticas que seu pai, quando prefeito, proporcionava à população jambeirense. Está comigo na idade, pois ambos temos 80 anos. Também, pudera! Eles têm por quem puxar: seus pais – o Major Gurgel viveu 89 anos; e sua mãe, D. Zoraide Pires Gurgel, passou dos 95 anos ! Por sua vez, o sempre lembrado poeta jambeirense, João Gurgel Júnior, irmão desses meus amigos, achegou aos 85 ! 8
  • 9. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Talvez para sempre, despedi-me daquela sólida e aprazível residência que já completou 118 anos. Mandou construí-la o Coronel Luiz Bernardo, como presente de núpcias ao seu amigo e cunhado, Major João do Amaral Gurgel, pelo seu primeiro casamento com Maria Caetana de Almeida Gil. Ali terminava o loteamento feito pelo Capitão Jesuíno Batista e cujo último lote, onde está a casa, fora adquirido pelo Major Gurgel. A outra casa, na esquina de baixo, onde hoje residem duas filhas do saudoso Agenor Guedes, foi construída por Francisco Rebello Sennes (Chico Sennes). A Prefeitura e o Correio são construções mais recentes, da década de 50. Ali onde está a Prefeitura, há muitos anos, antes de o povoadinho do Capivari se transformar na cidade de Jambeiro, existiu a casa de morada do coronel Joaquim Bernardo de Almeida Gil. Defronte à “Casa Grande”, última relíquia do nosso passado, parei. Aquele casarão já tem 118 anos. Foi construído com prazo estabelecido para entrega, a aafim de que nela seu proprietário, sr. Durão, pudesse realizar a sua Festa do Divino de 1872, ficando essa data como a de sua construção. A inscrição que lá está chegou com quatro anos de atraso. Esse sr. Durão, pelo visto, deve ter sido pessoa de relevo em nossa cidade. Entretanto, sua história como que desapareceu do conhecimento de nossa gente. Vocês, que moram aqui, devem fazer pesquisas para elucidar o caso. O que eu guardei, desde jovem, é que o sr. Durão era irmão de D. Felisbella Botto, que era mãe de dois benfazejos médicos que aqui residiram por muitos anos : os irmãos Luiz Augusto Botto (o Centro de Saúde de Jambeiro tem o seu nome, forma de homenagem de gratidão a quem, por 18 anos, tanto serviu nosso povo, até 1906) e Carlos Botto. Esta minha passagem pela “Casa Grande” me trouxe a lembrança de um fato que ali aconteceu comigo e mais três colegas de “reinação”. Isso se passou há mais de 65 anos, pelo que dois daqueles coleguinhas já não mais existem. Eu vou contar agora para você: (Não interrompi o Luizinho, pois ele logo se lembrou de que o fato que estava me contando já era do meu conhecimento, porque eu também tomei parte nele. Mas 9
  • 10. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil aproveito o parêntese com umas considerações sobre o café em Jambeiro, naquele tempo). De fato, com os altos preços do produto, a fazendeirada andava com os bolsos cheios de dinheiro. Quase todos possuíam automóveis. E como hoje acontece com as pastagens, quase toda a área do município era coberta por cafezais. No auge de sua pujança econômica, Jambeiro – que então contava com uns dez mil habitantes – chegou a ter dois milhões e quinhentos mil cafeeiros, conforme um registro da Municipalidade, de 1930. E produzia quarenta e cinco mil arrobas. Mas, com a grande crise de 1929, a quebradeira foi geral. Muitos dispuseram de suas propriedades e se mudaram daqui. Foi então que começaram a chegar os mineiros e se iniciou a produção do leite. Nessa época os maiores cafeicultores do município foram: Joaquim Franco de Almeida (Sinhô Bernardo) (Fazenda Bom Jardim), com 200.000 pés; Pantaleão & Almeida (Fazenda da Laje), com 200.000 pés; Leopoldo Franco de Almeida, com 150.000; Antonio Castilho Marcondes (Fazenda do Banco), com 100.000; Benedito Pinto da Cunha (Fazenda Santo Ângelo), com 100.000; Hilário Fermino, com 80.000. Agora, volto à história que o Luizinho contou sobre a “Casa Grande” : – Em 1920, disse ele, com os altos preços do café, a fazendeirada gastava à vontade. Por isso, naquele ano, o primeiro baile de Carnaval realizado na “Casa Grande” foi animadíssimo. Houve fartura de tudo, principalmente, é claro, de confete, serpentina e lança-perfume. Os foliões, vestidos a caráter, se divertiam a valer. Alegre e decentemente. Aliás, naquele tempo ainda não havia a licença e a depravação de agora, que transformaram a grande festa popular num desagradável “bumbunval”. O piso do salão ficou com uma tão grossa camada de confete que nem se podia dançar. Só pular. E foi então que nós dois – lembra-se? – mais o Zé Batalha, o Edu e parece que o Luiz Pinto da Cunha, apesar de garotos, conseguimos penetrar no salão, graças ao Edu, “dono da casa”, e tivemos uma “luminosa” idéia. E tudo combinado, voltamos na manhã seguinte e cada um encheu um saco de estopa com aquele confete do salão. Escondemos os sacos naquele porão onde o Sinhô Bernardo guardava arreios etc.. E à noite, quando a folia 10
  • 11. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil tomou conta da cidade, nossa farra começou. Saímos para o meio da multidão, a atirar com fartura, mãos cheias de confete pelas cabeças, pescoços e bocas de quantas moças e meninas encontrávamos. No começo elas até gostaram e pediam mais. Mas quando começaram a sentir ardume e comichão por todo o corpo, nossa farra terminou. Botaram a boca no mundo. A reclamação foi geral. Chegaram a nos perseguir para desforra. Largamos os sacos por ali mesmo e sumimos para escapar da sanha vingadora das folionas enraivecidas. Foi um escarcéu danado. Entretanto, tudo isso aconteceu porque não havíamos tido outra idéia, que teria sido luminosíssima, de ao menos peneirar a areia e demais sujeiras daquele confete imundo. – Que saudades ! exclamou o Luizinho. E terminou: – Depois que a inépcia político-administrativa destruiu nossa maior relíquia do passado – que era a antiga e histórica sede da fazenda do Capivari (ali onde agora está o Grupo Escolar), hoje só nos resta a querida “Casa Grande” ! – Com um saudoso olhar, dei adeus à “Casa Grande”. Passei pelo atual Correio e admirei uma pitoresca vivenda, com uma placa : “Alameda Vô Orôncio”. Em sua frente, um animado grupo de pessoas, do qual sobressaía a figura simpática de um ancião de respeitáveis cãs, assistia à passagem do povo que descia da igreja. Entre as senhoras, reconheci logo suas três irmãs: a Ana Luíza, a Florentina e a Flora. – Sim, eram elas mesmas. Ali é a residência de festas e férias do meu primo e cunhado, o Orôncio Geraldo Rebello, o de cabelos brancos, marido da Flora. – Passei devagar, sentindo não ir abraçá-las. Na ponte, parei. Há cinqüenta anos, era mais baixa, com piso de terra e grades de madeira. E logo me lembrei de um fato, um tanto grotesco e gozado, que ali me aconteceu e do qual nunca mais me esqueci. E que também nunca revelei a ninguém. Foi num sábado, em que eu e Belinha, descendo da reza, paramos para namoricar. Eu, como disse um poeta, permaneci ali. “Tolhido pelos raios sedutores / do seu olhar inebriante. E enquanto / sorvia, estático e ditoso, / o cálido sorriso de seus lábios, / quedei-me extasiado diante dela, / como um sapo, muito humilde e feio, / fitando a lua, tão radiosa e bela ! 11
  • 12. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil E ali ficamos, trocando afetos, ao som do coro maravilhoso dos batráquios e do plácido marulhar do córrego sob a ponte. Mas o tempo, traidor, passou depressa e silencioso. E nós, naquele idílio entorpecente, até nos esquecemos dele ... De repente, despertamos assustados, com os gritos do irmãozinho da Belinha, que chegou correndo e esbaforido: – Linda ! Linda ! O pai não encontrou você em casa e vem vindo buscá-la. Corri na frente para avisar ! – Nossa ! E agora ?! Fuja, Luiz, esconda-se, suma ! exclamou a Belinha. E pegando na mão do irmão, desandou para sua casa. E eu ? Diante daquele súbito escarcéu, não mantive a calma e até me desorientei. E sem calcular nada, com um salto transpus a guarda da ponte e fui cair bem no meio do córrego. Um dos sapatos (era até um par novo que eu estava estreando naquele dia ...) ficou atolado no lodo. Nem liguei. Varei o alto capinzal que naquele tempo cobria o córrego e me enfiei numa espessa moita de mamona, lá do outro lado. Graças à pouca iluminação que havia, ali era bem escuro. O pai superzeloso logo chegou. Olhou de um lado e doutro da ponte. Espiou atrás daquele velho muro que ia desde o ribeirão até onde hoje é a Prefeitura. Soltou uma gargalhada e resmungou : – Safado ! Sumiu, hem ? E foi logo embora. Deixei o esconderijo só depois da meia-noite. Nunca tinha suportando tanto pernilongo a zumbir e me picar, que foi uma barbaridade ! Recuperei o sapato, saí para a rua deserta, fui pegar o coitado do cavalo e toquei para a fazenda. A caminho, lamentei o azar daquela noite e a minha grande “burricidade”. Sim ! Pois eu, como adulto, devia ter esperado a “fera”, que certamente não ia me comer vivo. Conversaríamos e pronto ! Parece que tudo aconteceu devido à minha solidariedade ao desespero da minha amada. E me senti feliz pelo sacrifício feito por amor ao meu amor ... – Gostei da história, seu ! De fato, até hoje ninguém sabia dessa sua aventura com os pernilongos. Inda bem que você continua poetando ... 12
  • 13. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Já fazia tempo que eu e o Luizinho ocupávamos aquela mesa junto à Barraca da Festa. Notamos então que outras pessoas ansiosas desejavam também se deliciar com uns chopes, desocupamos lugar e saímos em direção à Rua do Colégio. O Luiz, mais desequilibrado do que eu, segurava no meu braço. Logo avistamos, na calçada à nossa direita, o Setembrino de Moraes, o querido Bino, negociando suas bijuterias. Conversando com ele estava sua irmã, a sempre risonha e alegre Zuleika. Ambos residem em Taubaté e são os últimos remanescentes dos quatorze filhos do prestantes casal Júlio e Silvina de Moraes. Logo adiante encontramos nosso conterrâneo Agostinho Ribeiro do Prado. Residentes em Mogi das Cruzes, o Agostinho e sua bondosa esposa Mariinha sempre estão presentes em Jambeiro, quase todos os domingos, na Missa do Pe. José Kumagawa, devotos que são de Nossa Senhora Rosa Mística, e nunca faltam na Festa da Padroeira de nossa terra. E assim íamos revendo e abraçando velhos amigos e antigos ex-colegas. E para maior satisfação estava entre eles justamente nossa ex-diretora do saudoso Grupo Escolar, a caríssima Maria Olímpia Vieira, atualmente residente em Águas de São Pedro. Com ela estava sua irmã paterna, nossa estimada amiga, Profª Maria Iracema Vieira Silva, acompanhada de seu marido, Antonio Fernandes Silva, residentes em São Paulo. E mais a prima de ambas, a Zélia Franco Bastos, filha do Cel. João Franco de Camargo e Mariquinha Vieira. E ainda o nosso ex-colega, Prof. Edison de Freitas Ramalho, com sua esposa, a sempre amável Zélia Lara Ramalho, residentes em Caçapava. Até então o Luiz ainda não havia sido reconhecido. Mas naquele instante de nada adiantaram seus disfarces. Pois quando eu ia apresentá-lo como um amigo meu, foi justamente o Édison quem, abrindo os braços, bradou : – Ah ! Essa não ! Você por aqui, Luizinho ?! Como vai, nego ? E abraçou-o efusivamente. O mesmo fizeram todos os que o conheciam, com grandes demonstrações de amizade. E ali permanecemos na mais cordial e animada palestra, recordando gentes, coisas e fatos do nosso longínquo passado, quando éramos tão diferentes ... E não era para menos. Da parte do Édison, a nossa grande amizade vem desde quando ele, eu, o 13
  • 14. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Luizinho, o Edu e outros jambeirenses fomos colegas no Ginásio São Joaquim, em Lorena. Depois, compartilhamos a mesma pensão, quando estudamos em São Paulo. E ainda nós quatro exercemos o magistério aqui no Grupo Escolar de Jambeiro. Uma feliz e cordial coincidência ! E da minha parte, além da amizade provinda da naturalidade e do convívio que tivemos desde a infância, também me ligo às caras “parentes Vieiras” – Maria Olímpia, Iracema e Zélia Franco – pelo nosso sangue comum, que herdei desde minha bisavó Ana Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil. Mas aconteceu que com todo aquele “comício” ali na Praça, o Luiz acabou se transformando. Guardou os óculos pretos e pôs-se a rir, quase chorando de alegria, por todos os cantos da boca. Estávamos naquela “boa”, quando ... Estávamos naquela alegre reunião ali na Praça, quando a nós se juntou um elemento de grande valia para toda a nossa comunidade. Abstraindo-se de qualquer política partidária, sua atividade em nosso meio como que representa o cérebro e o coração – conhecimentos e sentimentos – que congregam toda a gente jambeirense, daqui e de fora. Pelo seu ingente trabalho, ele colhe e recolhe; interpreta, reproduz e torna públicos os mais variados assuntos, informações e notícias de alguma maneira ligados a nossa terra. Esse dedicado jambeirense e nosso grande amigo (que não estou elogiando, mas apenas qualificando) é o restaurador, editor e diretor do nosso velho “O JAMBEIRENSE”, em sua fase atual. Ele vinha acompanhado de seu primo Irineu Serafim (que ele considera como se fora outro irmão, posto que amigo e fiel companheiro desde menino), também diretor do nosso jornal, há quase seis anos. A agradável presença de ambos foi motivo para mais uma rodada de abraços e cumprimentos. E o Luizinho assim falou aos nossos antigos alunos do querido Grupo Escolar : – Como a maioria dos alunos daquele tempo, eu também considerei e estimei seus pais, os saudosos Edgard de Souza Moraes e Antonio Serafim. E prezo muito o que vocês e seus irmãos sabem honrar plenamente a memória de um e de outro. E é ainda com 14
  • 15. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil grande prazer que lhes dou meus parabéns pela pertinácia e galhardia com que vocês vêm publicando “O JAMBEIRENSE”. Atraídas pelos aplausos, várias pessoas acorreram ao local para saber o que havia acontecido. Uma delas era outro nosso ex-aluno, por sinal muito distinto, o Julinho Serafim, irmão mais velho do Irineu, que contou alguns casos engraçados do tempo de escola, que provocaram gostosas gargalhadas de nossa ex-diretora, Maria Olímpia Vieira. Logo mais o diretor do jornal se retirou e lá foi ao encontro de nossas conterrâneas, antigas alunas do Grupo, filhas do divertido João Fubá e da Mulata : Zilda, Áurea e Jandyra, que se achavam no meio de um grupo da Família Braz : o Dito Bento e seus primos (filhos da saudosa Brazília) : João Batista, Aloísio, Dita, Arlinda e Noêmia. Depois, toda a turma se dispersou, entre abraços. O Luizinho e eu continuamos pela Rua Major Gurgel (Rua do Colégio dos velhos tempos). Antes, porém, de chegarmos à ponte, tivemos mais um apreciado encontro: foi com as duas irmãs, Esther e Nancy Ivo, filhas do ex-prefeito Benedicto Ivo e da Palmyra. Residentes em São José dos Campos, elas por aqui raramente aparecem para nos darem o ar de suas graças. A Nancy, mais jovem, ainda nos lembra as feições amáveis daquela garotinha bonita que também foi nossa aluna. Na ponte paramos para contemplar o velho ribeirão que costumávamos percorrer de ponta a ponta, enfrentando os inúmeros cacos de vidro que às vezes nos feriam dolorosamente. Como se fosse ontem, ele continua indiferente, marulhento e calmo, a correr como nos longínquos tempos da nossa infância descuidada ... Ficamos ali na ponte bom tempo, vendo passar velhos e novos conhecidos. Dos antigos, pudemos abraçar o Waldemar “da Farmácia”, nosso antigo companheiro. Por ele recordamos o sempre alegre e brincalhão João de Oliveira, nosso saudoso farmacêutico dos velhos tempos, e o Adgemir Telles de Siqueira, o “Sinhô Coletor”, grande amigo e companheiro que eu considerava um verdadeiro irmão. Dos novos, tive o prazer de apresentar ao Luizinho dois amigos, gente boa que veio de Minas Gerais, os irmãos Jonas e Antoninho Santiago. Este último foi um bom prefeito que Jambeiro teve. E ainda abraçamos o Dr. João Leite Vilhena e sua digna esposa, d. 15
  • 16. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Márcia Prado Vilhena. São os atuais proprietários da fazenda “Rancho Alegre”, onde tive o prazer de nascer, já faz oitenta anos. Certa hora, o Luizinho me perguntou o que era aquela construção nova, ali ao lado. Expliquei-lhe que era a nova casa de cultos dos membros da “Assembléia de Deus”. Como ele se mostrasse admirado, eu esclareci que Jambeiro havia mudado muito em matéria de religião. Havia também a Igreja Presbiteriana, a Congregação Cristã do Brasil e as “Testemunhas de Jeová”. E todas se respeitam entre si, no mais singular ecumenismo. O que ainda não existe por aqui, pelo menos por enquanto, é mesquita, sinagoga, centro espírita, terreiro de macumba ou algumas dessas seitas moderninhas, oriental ou americana, que fazem tanto sucesso entre a gente de televisão... Então o Luizinho comentou : – Pois acho esquisito! Em 1934 houve um recenseamento geral no Estado. Eu e o Valentim Vanzella fomos escolhidos para recenseadores. Dividimos o município em duas partes e durante um mês visitamos casa por casa e entrevistamos adulto por adulto. Engraçado ! No final dos trabalhos não havíamos encontrado nenhum recenseado que se declarasse não católico ! Agora sei que na maioria aqueles católicos só iam à igreja para serem batizados, para casamento e, às vezes ... quando morriam ... – Isso mesmo ! São os intrincados problemas dos tempos contemporâneos que só mesmo Deus irá resolver, no final. – Tá certo ! Mas por que, então, existe na Bíblia aquela passagem de Mateus (XVI, 18 e 19), que parece tão clara ?! – Olhe, nego : “Não cai a folha de uma árvore sem Deus querer”. Sejamos honestos, rezemos, que no final certamente Ele nos escolherá. E amém! Procurei logo mudar de assunto, antes que o Luizinho, instruído e religioso como é, começasse um sermão que era capaz de ir acabar no inferno. Eu estava curioso mas era pela história da Belinha, após aquela noite em que ele saltou da ponte, caiu no brejo e foi chupado pela pernilongada. Com muito jeito toquei no assunto. Ele respondeu : 16
  • 17. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil – Você é mesmo especula! Por que recordar coisas que se deram há tanto tempo e que só a mim dizem respeito? – Curiosidade apenas, pois sempre me encafifou esse caso de você namorar uma lindíssima e fina mocinha, namoro difícil, fora de série mesmo, e de repente tudo dá em nada. Você era invejado por todos nós. No entanto, passados mais de cinco anos, quando vocês chegaram ao ponto bem quente de se casarem, puf !, tudo estoura como uma bolha de sabão e cada um vai para seu lado e logo se casam com novos amores ... Com cara de gozação, Luizinho me fita e diz : – Olha, seu ! Se for alguma novela que você pretende escrever, eu quero parte nos lucros ... E você bem sabe que só mesmo um cara boboca é capaz de contar. – E você sabe que só mesmo uma cara boboca é capaz de revelar a outro, mais boboca ainda, intimidades de seu namoro. Mas, ‘por serdes vós quem sois’, e sem macular a memória da Belinha, vou lhe falar do meu inditoso amor. Aliás, primeiros amores, meu e dela ... Dizem os entendidos que ‘a tendência natural do homem da mulher é procura o companheiro ideal para a constituição de um lar baseado no amor. Ora, o namoro é o ponto de partida dessa procura recíproca, da descoberta de um pelo outro. Assim o rapaz descobre como é e como sente uma mulher: por que ela chora, do que gosta, por que grita ou ataca. A mulher descobre o que é um homem, como age ou reage, o que pensa, o que exige. E ao se encontrarem e se conhecerem pelo namoro, e ao se afirmarem um diante do outro, ele se sente mais homem e ela, mais mulher’. Conosco não houve nada disso. Você deve lembrar-se. Aos sábados e domingos, pouco antes da reza nos encontrávamos na ponte e subíamos até a igreja. Após a reza fazíamos uma parada rápida naquela esquina saudosa. Nem dava para eu me ofuscar ante seus olhos rutilantes ou para sorver o meigo e melífluo sorriso que surgia de seus lábios de rubi, sorriso capaz de despetalar botões de rosa desabrochando ... Atento, eu ouvia meu amigo espargir suas jóias poéticas, como se estivesse com o coração pulsando no passado. E ele continuou : – Logo descíamos. Ao nosso lado passavam casais de jovens alegres, mãos ou ombros dados, rindo ou cochichando coisas. Logo iriam dar voltas na praça ou se encorujar 17
  • 18. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil nalgum cantinho estratégico, até a hora de ir terminar a noite no salão do Hilário. E nós dois ? Mal chegávamos à ponte, Belinha já se despedia, dizendo: – Adeus, meu bem ! Até o próximo sábado ... Às vezes era noite de lua, delícia dos amantes. Pois nós nunca fruímos juntos, uma vez sequer, uma daquelas românticas noites que, como até hoje, banhavam de prata nossa cidade, no fantástico luzir da lua cheia, quando surge, esplendorosa e bela, por trás do morro do Cruzeiro!... E assim envelhecemos cinco anos naquele romance, que pareceu fora de série, mas que foi simplesmente idiota ! Dessa forma, quando ou como eu iria saber afinal quem era a Belinha, o que sentia, do que gostava, por que chorava, ou gritava, ou brigava, ou plantava bananeira, sei lá o quê ! Fiquei com pena do Luizinho, mas o critiquei : – Puxa vida, seu ! Você então ainda não era homem?! Por que não pediu mais um pouco de condescendência ao pai da moça, por sinal um dos homens dignos da cidade ?! Ou por que não forçou a Belinha a ser mais determinada?!” – Chi !... Aí é que a vaca iria pro brejo ! Quando eu reclamava, a pobrezinha respondia : ‘Case logo comigo e pronto !’ Papai disse que, se você ficar noivo, ele nos deixa ir aonde quisermos. Até sugeriu que eu podia lhe preparar um jantar com um prato de minha especialidade, o ‘bife de peito de pato’, que é uma gostosura ! ‘Mas se você me desobedecer ou der muita confiança para aquele pilantra (foi assim que ele falou), não a deixarei mais sair de casa !’ Veja você ! Era aquilo : queriam me amarrar logo num casório, que eu desejava muito, mas para o qual ainda não estava em condições. – É ! Você estava atrapalhado ! Mas o que aconteceu depois daquele pulo no brejo? Enfrentou o velho ? No sábado seguinte, depois daquele pernilongado pulo no brejo, Belinha chegou, linda e risonha como sempre, e foi logo perguntando : – ‘Como é que você se arranjou naquela noite do pega do papai ?’ Quando lhe contei tudo o que me havia acontecido, ela quase deu uma gargalhada, mas logo tapou a boca com a mão, deixando transparecer um muxoxo e dizendo : ‘Coitadinho do meu bem ! Tudo por minha causa ! 18
  • 19. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Sinto muito, desculpe o papai.’ E me apertou a mão (só por esse aperto de mão, coisa raríssima entre nós, perdoei a família inteira ...) Mas enquanto íamos subindo a rua, eu notava em seu rosto um risinho cínico de gozação. Ela continuou naquela vozinha de ‘mel com açúcar’ : – ‘Isso tudo, meu bem, faz aumentar ainda mais meu amor por você. Um dia iremos rir juntos de todas essas coisas que nos acontecem. Você sabe que ‘o coração é um tesouro que se abre com um beijo’. E meu coração é todo seu. Um dia você o abrirá ... Mas eu vou ter uma conversa com a mamãe e depois com papai. Afinal, já tenho dezessete anos, não sou nenhuma boba e eles têm de permitir que ao menos possamos dar umas voltinhas na praça ...’ Era assim nossa prosa : ingênua, quase infantil, como aliás eram os pensamentos e sentimentos de dois jovens namorados sem malícia. Após a reza ela disse : ‘Rezei por nós para logo sermos muito felizes. Para compensar o que você passou, no próximo sábado vou lhe trazer, bem quentinhas ...’ Nesse instante o Luiz interrompeu sua narração, porque fui cumprimentar no meio da rua uma estimada conterrânea que eu não via há muitos anos, a Olivinha Batalha, e seu digno esposo, o farmacêutico Adhemar Pinto de Siqueira, que residem em Caçapava. E ainda abracei duas amiguinhas, a Marina Cunha e a Nair do saudoso Zé Ivo, esta última nossa ex-aluna aqui no antigo Grupo Escolar. Deixando a ponte e seguindo pela Rua Major Gurgel (a “rua do Colégio”), paramos na esquina do armazém do Hélio Almeida e do seu sobrinho Domingos, e o Luiz pôs-se a recordar: – Foi aqui a loja de fazendas do nosso amigo Jorge José (o Jorge Turco), sírio de fina raça que aqui residiu muitos anos. E esquecendo de continuar o caso da Belinha, ele passou a contar um caso político acontecido ali naquela rua com ele e outros companheiros e no qual o Jorge Turco também teve a sua parte, ainda que fora de qualquer política. E assim começou : – Você se lembra bem de como foi a política aqui em nossa terra nos anos de trinta e três a trinta e sete. Havia a política dos velhos partidos tradicionais daquele tempo, sustentados por elementos um tanto idosos da nossa melhor sociedade. Apareceu então 19
  • 20. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil o Integralismo, com idéias e ideais novos que empolgaram a mocidade da época por todo o Brasil. E aqui em nossa terra aconteceu o mesmo. Fundou-se um “núcleo” e a maioria de nossa rapaziada aderiu, juntamente com muitas moças. E havia companheiros cujos pais pertenciam aos diretórios tradicionais. Foi um alvoroço ! “Blusas verdes” encontrando-se com “camisas verdes” e saudando-se com o ritual, braço erguido e o brado “Anauê !”, que era um sarro ! Os “verdes” chegaram a ter até três vereadores numa Câmara de sete membros. Mas logo vieram as animosidades políticas... Luizinho continuou: – Sentindo que o Integralismo tomava conta do município, os chefes políticos da Capital vieram em auxílio dos seus correligionários daqui, remetendo, como Delegados de Polícia de nossa cidade, oficiais da Força Pública, em geral reformados por escassa distinção. E eles cumpriam sua missão de maneira muito arbitrária. Agora, ao me lembrar do Jorge Turco, ocorre-me um dos casos acontecidos com o companheiro Eugênio Corrêa Durão, pessoa digna, por sinal pai de dois sacerdotes conterrâneos, o Pe. Hygino e o Pe. José Luiz Corrêa (o primeiro foi vigário de Natividade da Serra durante quase 50 anos e o segundo, vigário de Redenção da Serra; aquele faleceu em 25 de maio de 1975 e este, em 21 de dezembro de 1953, em acidente automobilístico). O Eugênio Durão tinha um armazém lá no “Jambeirinho”, onde os fregueses tardios ou amigos do bairro costumavam ficar até nove horas da noite, batendo um papo descontraído. Pois o Delegado, um capitão nessa época, proibiu que o estabelecimento ficasse aberto depois das 18 horas. Motivo: alegação de que lá se faziam “reuniões subversivas” ... (!) Ora, a nossa turma não suportava, sem mais nem menos, arbitrariedades muito tolas. E então, o Zé Anízio Cunha (irmão da Marina, da Edith, do Tito e do Walther) e eu fomos atrevidamente pedir satisfações ao velho capitão-delegado. Nossa sorte foi que o cabo e um dos soldados do Destacamento estavam ausentes na ocasião ... – Dá licença, senhor capitão ! bradamos da porta e fomos entrando, indo ficar na frente do Delegado. 20
  • 21. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Exposto o assunto, iniciou-se uma desagradável discussão, que logo se azedou, esquentou e até pegou fogo, quando o Zé Anísio, sacudindo o indicador em riste diante do nariz do Delegado, exclamou : – O senhor é um energúmeno! O Delegado bufou. Eu, que apesar da tensão em que estávamos, mantinha a calma, achei graça na expressão um tanto exótica do companheiro e sorri. O Delegado então me encarou e, também sacudindo o dedo diante do meu nariz, bradou furioso : – O senhor é o responsável por todas essas confusões que se dão aqui na cidade ! O senhor está preso ! (!) – ‘Preso uma ova !’, respondi. E sem mais aquela, saí correndo da cadeia. Vendo que eu já havia sumido, o capitão gritou : – Prenda esse outro mesmo !’ Era o Zé Anísio, que já estava na rua e murmurou: – ‘Prender-me ?! A isso, quique !’ E desabalou rua afora, indo se abrigar na casa de sua avó, d. Ditinha, que morava perto da ponte onde está hoje o templo da “Assembléia de Deus”. (Soubemos depois que o soldado, aliás nosso amigo, não pôde cumprir logo a ordem ... porque estava lá nos fundos, sem botas e cortando as unhas dos pés ...) Quanto a mim, quando chegamos à esquina da loja do Jorge Turco, ele estava na porta e vendo-me correndo daquele jeito, perguntou : – Professor Luizinho, o que aconteceu ? – Depois lhe explico, seu Jorge. Agora, faça o favor de ir esperar-me lá nas gabirobeiras, para irmos a Caçapava. E continuei correndo, ganhei a Rua Nova, passei pela chácara do Alencar, varei todo o “bairrinho” e entrei por uma trilha que ia dar no ponto combinado, na fazenda do Sinhô Bernardo. 21
  • 22. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Quando cheguei nas gabirobeiras, o seu Jorge já me esperava, em companhia do saudoso companheiro Adgemir Telles de Siqueira, o Sinhô Coletor. Em Caçapava, fomos falar com o doutor juiz de Direito que, graças ao conhecimento do Adgemir, nos recebeu complacentemente. Ciente do caso, o íntegro magistrado naquela ocasião nos fez compreender que o país se achava sob uma violenta ditadura que não respeitava nenhuma lei, recomendando-nos, por isso, muita prudência. E escreveu uma carta para levarmos ao Delegado. Voltamos logo a Jambeiro. Ali, na chegada ao bambual, um decidido grupo de companheiros me esperava para irmos enfrentar a polícia que, segundo disseram, estava de prontidão para me prender. Acalmei-os e segui direto para a Delegacia, na qual fui logo entrando na sala do Delegado (os soldados até se espantaram). – Senhor Delegado, disse eu. O senhor doutor juiz de Direito me mandou trazer-lhe esta carta, dizendo que muito confia no seu reconhecimento para solucionar nosso caso. O capitão colocou os óculos, pigarreou e leu a carta, devagar. Depois, soltando outro pigarro, falou : – Está bem ! Fica encerrado o caso. O armazém está desobrigado de fechar as portas. Mas o senhor ... tome cuidado ! disse-me com o dedo em riste apontando meu nariz ... Coitado do velho capitão ! Tinha de fazer papel de boneco para atender os políticos da situação, os quais, depois que se encheram dele, o enxotaram daqui. Tempos depois, um amigo me revelou que, quando o capitão se foi (eu já não estava mais aqui), ele me deixou um abraço, dizendo que, apesar de tudo, eu tinha sido a única pessoa que o considerava aqui ... Certamente ele esqueceu aquela rapariga, pobre e bonita, que com ele se amasiou e com a qual saía de braço dado a dar voltas pelas ruas da cidade ... Gostei muito da narração resumida que o Luizinho fez daquele episódio acontecido na época em que fazíamos política. Ele me fez lembrar, comovido e saudoso, aqueles passados e agitados tempos da nossa romântica e amalucada mocidade. E foi por isso mesmo que logo lhe pedi que continuasse a história da Belinha, que ele havia 22
  • 23. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil interrompido justamente quando ela dizia que “no próximo sábado vou lhe trazer, bem quentinhas ...”. Luizinho sorriu abando a cabeça e disse: – Você está curioso pela história ou está com o apetite aguçado pelos quitutes que ela me trouxe ? – Por ambas as coisas, respondi. Então ele continuou : – Como você viu, nosso amor, puro e sincero, estava esquentando mesmo. Eu já estava querendo estourar, pois fazia mais de quatro anos que vivíamos aquela agonia de só nos encontrarmos durante meia hora por semana. Ela também já estava ficando nervosinha, prometendo enfrentar o pai, em busca da liberdade. Quando o Luizinho acabou de narrar suas peripécias com o capitão-delegado, logo lhe perguntei : – Mas o que foi de tão gostoso que a Belinha lhe prometeu trazer ? Trouxe? – Se trouxe! Você se recorda das festas da Padroeira ou do Divino, quando o maestro Júlio de Moraes, com sua bandinha afinada, acordava toda a cidade com a alvorada ? Nós, garotos, pulávamos cedo da cama para seguir a banda pelas ruas. Depois a alvorada terminava, com seus músicos e acompanhantes chegando à casa do festeiro. Ali então era servido para todos o gostoso café com “bolos de arroz” quentinhos, que a gente lambuzava com manteiga !... Pois foi isso que a Belinha trouxe, embrulhadinho num guardanapo cor de rosa : meia dúzia daquelas rodelas cheirosas e ainda quentinhas de “bolos de arroz” ! Comi todos os bolos ali mesmo na ponte, pois estavam saborosíssimos e eu, em verdade, nem havia jantado ainda. Disse que nem sabia como agradecer aquela delícia e a sua gentileza. Ela respondeu : – Um dia você vai saborear muito disso e de outras coisas gostosas que ainda lhe farei quando estivermos em nossa casinha. Case logo comigo e você verá, meu bem ! Eu já estou achando a vida insípida, não sei, ando até perdendo o gosto de muita coisa. Quando começamos a namorar eu tinha apenas treze anos e agora já vou fazer dezoito... 23
  • 24. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Fingi que não havia entendido a indireta, consolei-a e prometi que no próximo sábado iríamos fazer nossos planos. Devia mesmo ser verdadeiro aquele seu sofrimento, pois eu curtia as mesmas angústias que ela. Seria a falta de um amor mais próximo e constante, com esperança certa de uma vida linda e feliz ? Ânsia de ser uma esposa amada ou um marido querido? Certamente que sim! Pois não foi o próprio Criador que, vendo Adão num paraíso maravilhoso, mas sozinho, refletiu : ‘Não é bom que o homem esteja só’ e fez Eva para sua companheira ? Era isso mesmo ! Eu e a Belinha estávamos sentindo o mesmo suplício da solidão amorosa. Sem dúvida que nós precisávamos nos encontrar no amor, para formar um só corpo na vida ... Naquela tarde conversamos apenas na ponte. Belinha alegou que nem ia à reza, porque seu irmão (o nosso amigo Donato) havia chegado de São Paulo com um colega e ela precisava ajudar a mãe a hospedá-los. Conversamos mais um pouco e, depois de se desvencilhar do meu agarrado aperto de mão, sempre com aquele melífluo sorriso de despetalar flores, disse : – Até sábado, meu amor ! Sonhe comigo! E se foi. Lá adiante, já na Praça, virou-se para me ver e, passando a mão nos cabemos, tremeu os dedos como último sinal de adeus ... Subi a rua sozinho e fui rezar por nós dois. À noite, em casa ... Luizinho continuou : – Em casa, já deitado, comecei a maturar : ‘Papai vai vender a fazenda e distribuir parte da herança aos filhos. Com minha parte, compro e construo uma casa naquele terreno que fica bem em frente da “nossa esquina”, lá na ruía de cima (esse terreno atualmente está ocupado com a residência do conterrâneo e amigo Tarcisio, filho do Alberto Ramos e de d. Florinha). E como estou substituindo uma professora por um ano no Grupo Escolar, já vou economizando dinheiro e ainda conto pontos para o ingresso no Magistério. Depois escolherei uma escolinha aqui mesmo no município e ... pronto ! Daqui a seis meses descerei a escadaria da igreja, de braço dado com minha amada Belinha ! E assim, unidos para sempre, começaremos nossa vida, que haverá de ser muito longa e feliz !... Adormeci sonhando com o lindo vestido branco que ela vestiria 24
  • 25. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil ... Entretanto, no outro dia, vi que o meu sonho de felicidade não era assim tão fácil de se realizar. Pois, ao chegar ao Grupo Escolar, soube que iríamos ter a visita do inspetor escolar. Tivemos. Mas, para mim, quem esteve ali na figura antipática do tal inspetor, foi o diabo ! Sim ! Simplesmente o diabo, ainda que sem chifres, sem rabo, sem pêlos e sem vomitar fogo pelas ventas. Porque, dias depois, o “Diário Oficial” publicava minha substituição por outra professora. Ora, isso, naquela ocasião, considerando minhas intenções para com a Belinha, era uma coisa infernalmente diabólica ! Havia acontecido uma reunião entre os maiorais da situação política, nossos adversários, em que, após muitos ‘comes e bebes’, o chifrudo sem chifres se comprometeu a fazer a substituição do ‘substituto efetivo’, que era eu ... Então fiquei sem receber o dinheiro que iria me ajudar no casamento e sem contar os pontos para meu ingresso no magistério. Quando contei isso à Belinha, a pobrezinha até chorou. Consolei-a, prometendo que, de qualquer jeito, nos casaríamos antes de ela fazer dezenove anos ... A propósito do malfadado acontecimento que tanto me prejudicou, não me esqueço da solidariedade que tive de todos os meus colegas e, principalmente, da querida Diretora, minha sempre estimada Maria Olímpia Vieira, que tudo fez, mas inutilmente, para me defender. Nesse momento, eu e o Luizinho havíamos chegado ao Ginásio. Então ele criticou acerbamente a demolição do antigo prédio onde funcionou nosso antigo Grupo Escolar. Aquela casa fora a antiga sede da fazenda do Capivari, núcleo em cujos arredores se formou o povoado que hoje é Jambeiro. Enquanto em outros lugares se preservam com carinho suas antigas construções, como relíquias do passado, aqui a inépcia administrativa destruiu uma das poucas que tínhamos. E para que ?! Só para usar seu terreno. Entretanto, bem em frente, no outro lado da rua, existia uma ampla área desocupada, que o fundador da cidade, o coronel Almeida Gil, havia separado de sua fazenda e reservado para futuras construções de edifícios públicos, como ali hoje estão a Cadeia e o Centro de Saúde. Debatendo ainda o caso da destruição da velha sede da fazenda do Capivari, Luizinho se admirou de que, na ocasião. Não houvesse ninguém mais esclarecido capaz de evitar 25
  • 26. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil tal descalabro. Contei-lhe então que houve uma pessoa, a saudosa Adélia Moraes, a única que protestou contra a demolição (v. N. da R.). – Aquela casa, continuou o Luizinho, tinha história: fora construída no começo do século passado, para substituir outra bem menor que existia no lugar. Amigos de Taubaté, que costumavam pernoitar no lugar em suas viagens ao Litoral, ajudaram na construção. Antes de ser modificada, possuía oito quartos – incluindo as alcovas –, sala de visita, salão de refeições, grande copa-cozinha e outras dependências. Existia, ainda, uma sala-oratório, onde de vez em quando se celebravam missas, batizados e casamentos. Quando sua proprietária, Ana Luíza Gomes Vieira de Almeida Gil, faleceu, a casa coube por herança à sua filha Maria Caetana, primeira esposa do Major João do Amaral Gurgel. Este a reformou e a vendeu ao Governo do Estado por vinte contos de réis. No velho casarão, além do nosso saudoso Grupo Escolar, chegou a funcionar um hospital e até um colégio, que ainda hoje dá o apelido à rua (“Rua do Colégio”). Esse colégio foi fundado e dirigido pela conceituada educadora Amélia Franco, que hoje tem sua memória homenageada com seu nome dado a um orfanato situado na Rua Ana Dias, em Santos. E o Luizinho concluiu : – Foi mesmo uma barbaridade a destruição do velho edifício ! Já entardecia e eu estava ansioso e curioso para que o meu amigo terminasse a sua íntima novela com a Belinha. E também me parecia que ele estava como que gostando de narrá-la. Seria, por acaso, o desabafo de uma mágoa profunda e antiga que o estava atormentando ? Ou seria o sofrimento de certos amores irrealizados, que costumam deixar “uma ferida viva dentro do peito” por toda a vida ? Quem sabe ? Ele então continuou : – Como de costume, num sábado à tarde, vim à cidade e logo recebi um recado da Belinha, de que naquela tarde ela não poderia vir falar comigo. Viria no dia seguinte, pois o irmão havia chegado com aquele amigo estudante, e ela tinha de ajudar a mãe a hospedá-los. Enfim, a mesma xaropada de outras vezes, pensei. No domingo nos encontramos. Logo de chegada, ela começou a falar do tal estudante. ‘O rapaz é muito fino’, disse. ‘Educado e atencioso. E muito divertido. Gosta de contar piadas que até o 26
  • 27. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil papai acha gozadas.’ Ela recebera de presente finos bombons, dos quais me trouxe dois. Eram finos, mesmo, mas, não sei por que, achei-os um tanto amargos ... Seria meu primeiro ciúme ? Mas não dei nenhuma demonstração. Então ela me contou um sonho que tivera : íamos os dois, de mãos dadas, caminhando alegres por uma longa estrada margeada de flores. De repente, sua mão se desprendeu da minha. E, enquanto eu ia caminhando mais depressa para a frente, ela foi ficando para trás. Disse que queria me chamar, gritar, mas sua voz não saía. E enquanto eu ia desaparecendo na estrada, ela ficou só e desesperada. Acordou chorando, com sua mãe a sacudi-la para despertar do pesadelo ... E o Luizinho continuou : – Sonhos! Eu não acredito em sonhos. Mas às vezes acontece que algum se transforma em verdadeiro prenúncio de acontecimento que depois se dá. O sonho da Belinha foi um deles : realizou-se bem dolorosamente como ela havia sonhado. Mas deixe isso pra lá. Nos outros encontros semanais que tivemos, ela se mostrava cada vez mais gentil e doce. Contou, sorrindo, que já começara a fazer algumas pecinhas do seu futuro enxoval. Mas escondido até da mãe. Com jeitinho encantador, me perguntava dos meus gostos, das cores que eu apreciava e de outras coisinhas assim. Os casados costumam dizer que o noivado é o melhor tempo do namoro. Muito certo ! Pois como foi maravilhosa aquela época em que nós dois, como que usufruindo da familiaridade pura do nosso amor, parecíamos um casal de pombinhos que iniciava a construção do seu futuro ninho ... Certa noite, lá na solitária esquina, caí das nuvens quando ela, repentinamente, me disse : ‘Beije minhas mãos !’ E me apresentou suas mãos, que eu cobri de beijos e ainda fiz acariciar meu rosto. Depois disso, ficou ruborizada e toda trêmula por aquela tão simples intimidade. Como já lhe expliquei e você certamente sabia ou sabe, o puro, difícil e já longo namoro com a Belinha constituía o primeiro amor de cada um de nós. E pelo meu gênio um tanto acanhado e as suas maneiras recatadas, nunca houve nada demais entre nós dois. Daí, a reação que ela tivera com aquela prova de carinho. Depois continuamos nosso doce papinho. Ela já havia contado à mãe nossos planos futuros. Mas quando novamente pediu licença para dar uma 27
  • 28. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil voltinha na praça comigo, a mãe negou e outra vez aconselhou: ‘Não faça isso ! Seu pai é capaz de castigar você e nem a deixar sair de casa.’ ‘Paciência’, pensei comigo. Esse sogro feroz deve ter lá suas razões, mas um dia ele me pagará ! (Ah! Matutei comigo muitos anos depois: ‘Por que a Belinha não enfrentou o pai, a mãe, a família inteira e não fez o meu gosto, como eu tanto desejava ? Certamente isso iria evitar que um fato semelhante, acontecido depois, viesse mudar nosso destino ...’) Na verdade, o “perigo” em dar um passeio na praça com a Belinha, para fazer meus amigos babarem de inveja, afinal havia só para mim. Pois quando o futuro sogro feroz me visse passeando ali com sua prendada filhinha, certamente viria conversar comigo, para marcarmos o casamento o mais rápido possível, Coisa que infelizmente ainda não estava dentro de minhas possibilidades ... No domingo seguinte (era uma das nossas grandes festas), a Belinha apareceu ainda mais bonita : usava um vestido novo, penteara melhor ainda seus belos cabelos cor de jabuticaba madura e passara na face uma leve camada de ruge. E seus olhos inolvidáveis brilhavam ainda mais ! Estava linda mesmo ! Lindíssima ! E para mais expandir todo aquele encantamento, surgiu de trás do morro do Cruzeiro, radiosa e fulgurante como sempre, nossa velha amiga, a lua, a banhar de prata aquela adorável figura por mim tão amada ! – O momento era de um verdadeiro encantamento. Olhos nos olhos, nós dois como que nos magnetizávamos mutuamente. O Largo da Igreja estava deserto e lá embaixo a banda no coreto tocava uma daquelas lindas valsas antigas. Estávamos frente a frente e eu peguei em suas mãos. Ela gracejou dizendo: ‘Está querendo acostumar, hem ? Aquilo que aconteceu naquela noite foi uma loucurinha que eu fiz sem pensar ...’ Mas não retirou as suas mãos. E eu disse : ‘Mas você, afinal, não é toda minha ?’ E ela respondeu : ‘Em sonho, em pensamento e de coração, sou ! Mas agora nem aliança nós temos ainda.’ Engoli quieto a indireta. Aproximamo-nos mais um pouco. Ambos tremíamos. Eu, mais do que ela. E notei que seu peito começou a arfar lentamente. Ela ainda falou : ‘Você vai ser meu, mesmo ?’ Respondi-lhe : ‘Sim, meu bem, todo seu !’ Eu estava como que estático, o coração pulsando forte e o sangue subindo ao rosto. 28
  • 29. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil Não sei como é que não tive uma vertigem ... Seu peito tornou-se ofegante. Olhos nos olhos, olhos nos lábios, de repente aconteceu uma coisa que eu nunca esperava que acontecesse e que me deixou meio aturdido. Belinha espalmou suas mãos sobre minhas orelhas e me puxou para si. Senti então seus lábios macios e quentes sugarem os meus violentamente. Correspondi rápido. Deve ter durado uns quatro segundos o nosso primeiro beijo. Que maravilha ! Belinha afastou-se logo, com as mãos no peito, exclamando : ‘Nossa! O que é que eu fiz ?! Que loucura ! Mas também você ficou aí parado sem resolver nada e eu não agüentei ...’ Eu só disse : ‘Não fique assim ! Esta foi a coisa mais maravilhosa que, graças a você, aconteceu na minha vida ! E nem houve malícia, pois nós nem nos abraçamos ...’ E ficamos nos olhando sem nem ter o que dizer. Mas logo, ela, ainda com um sorrisinho nervoso, convidou-me para irmos embora. E, de mãos dadas se balançando os braços, descemos a rua que também estava deserta. Na ponte paramos um pouco, pois ela logo se despediu e disse: ‘Bobo ! Para mim também foi a coisa mais gostosa que já me aconteceu na vida !’ E se foi, sorridente e apressada ... Ah! Pensei muitos anos depois : ‘Por que a Belinha naquela hora não me convidou para dar uma voltinha na praça ?’ Voltei alegre para casa, relembrando tudo o que havia acontecido naquela noite. A lua ainda clareava a estrada. E, às vezes, uma estrela cadente riscava o céu estrelado. Lá longe cantavam alguns galos e cães alegres latiam nas residências. Vagalumes brilhavam por toda parte. E ao passar pela lagoa que margeava a estrada, até parei para ouvir a orquestra encantadora da saparia. Como eu estava feliz ! Depois de ouvir o caso do beijo da Belinha, que, pelo seu romantismo, até me deixou com inveja, perguntei ao Luizinho : – Mas como é que com todo esse encantamento amoroso no qual vocês viviam, estando já em ponto de casamento, por que, afinal, vocês não se casaram, mas acabaram indo cada qual para o seu lado ?! Como é que você deixou aquela prendada moça, que nós todos cobiçávamos, inutilmente, pois ela não dava bola pra ninguém e só gostava de 29
  • 30. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil você ?! Como pôde desprezar o seu amor ?! Eu acho que você ficou louco ! Desprezar uma lindeza daquela, que, como você mesmo disse, ‘tinha sorriso que o magnetizava a cada instante e cujo mágico olhar até despetalava recém abertas e cuja formosura de todo o corpo causava arrepios aos que a contemplavam ?! E cuja voz, límpida e doce, evolando daqueles lábios de rubi e dentes de luz, era como uma melodia acariciante embalando um sonho maravilhoso ?! Como é que você rejeitou tudo isso, se aquela flor rara estava ali, ansiosa ao seu dispor ?! Era só colhê-la ! Você ficou doido mesmo ! O que aconteceu, homem? Luizinho, num suspiro, respondeu : – Pois é ! ‘Quando o diabo torce o rabo, o homem apanha’ ... Eu levei uma tunda por me deixar vencer pelo demônio do ciúme ... – Mas você possuía amigos. Lamentamos o rompimento entre vocês dois, mas você nunca nos procurou. Talvez tivéssemos podido ajuda ... – Qual ! O que tem de acontecer, acontece ... ão há remédio para um coração envenenado ... Nessa hora, o Luizinho e eu havíamos dado a volta pela Rua do Colégio e chegado a um bairro de Jambeiro, formado próximo ao antigo campo de futebol. Luizinho admirou as novas ruas que ali foram abertas, no bairro novo do Jardim Centenário, situado na antiga “horta” do Luiz Bernardo, que depois foi do Joaquim Ivo e, mais tarde, do Hilário Fermino. E nos lembramos das antigas jabuticabeiras que ali existiram e que encheram de alegria a nossa meninice. Com o povo que tinha vindo à Festa, todas as ruas estavam tomadas por centenas de ônibus e outros carros dos romeiros. Já estava quase na hora da procissão. Paramos perto da igreja de São Benedito, construída no inicio dos anos 60. Depois de observar tudo por ali, o Luizinho continuou a narrar sua história do namoro com a Belinha. – Hoje eu nem acredito que tive um namoro assim, que durou cinco anos e terminou de uma maneira tão pueril ... Eu já me havia esquecido de muita coisa, mas esta vida à querida terra natal me fez recordar muitas passagens da minha vida naquele tempo. O 30
  • 31. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil antigo Jambeiro era bem menor e muito mais sossegado. Havia poucos moços e moças. E, quando cada um formava seu par ainda bem jovem, o namoro geralmente ia até o casamento. Só comigo e a Belinha não aconteceu assim ... Luizinho continuou: – Dizem que ‘a paixão é como uma medalha : de um lado é o amor e do outro é o ódio’. E que, às vezes, por um acontecimento infausto, a medalha vira e a face do amor é substituída pela face do ódio. Pois foi o que aconteceu comigo. Por um motivo até ridículo, um forte rancor tomou conta de mim contra a Belinha. Depois eu pensei como fui covarde em me deixar vencer assim pelo lado maldito da paixão : destino inesperado e cruel, ao qual sucumbi sem lutar, como um moço imaturo dominado pelo ciúme. Eu havia passado uma semana felicíssima na roça. Vim à cidade ansioso por me encontrar com minha amada. Mas a primeira notícia que tive dela foi um aviso de que ela não poderia vir encontrar-se comigo, porque havia chegado visita ... Isso foi como uma baciada de gelo sobre meu entusiasmo amoroso ... À noitinha, eu estava conversando com uns amigos no canto da praça que dá para a rua de baixo. Em frente era o salão do Hilário, que existia onde hoje está a bomba de gasolina. O salão era a sede do nosso clube. E, a propósito, naquela hora, nossas queridas Déa Lopes e Rosinha Almeida (onde e como estarão elas hoje ?) estavam tocando a vitrola, em preparação do nosso domingueiro bailinho “arrasta-pé”. De repente aconteceu a desgraça, que virou a face do amor na medalha da nossa paixão. Vindo da rua de baixo, surgem quatro jovens passeando: de um lado estava o Cláudio, irmão da Belinha, conversando com sua prima Araci. Ao lado da Araci estava a Belinha que bonita e risonha, proseava com o amigo do Cláudio, ao seu lado. A vista daquela cena foi para mim pior do que um terremoto ! Caí das nuvens : arregalei os olhos, abri a boca e derrubei o queixo ... Quase gritei. Senti o sangue ferver e o coração pular. 31
  • 32. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil E, por cargas d’água, bem naquele instante, a vitrola do Clube começou a tocar aquela marchinha antiga que dizia assim : ‘Por causa dela, oi, por causa dela, / meu coração bateu tanto, / quase quebrou minha costela ...’ E como que para me torturar ainda mais, um dos companheiros exclamou: ‘Ih ! Luizinho ! Olha lá a Belinha, rindo e feliz com aquele cara amigo do Cláudio!’ (Quase esmurrei o imbecil companheiro). Belinha, quando me viu, virou o rosto, dissimulando. Eu também virei a cara, zunindo de raiva ! O grupo subiu e desceu a rua de cima. Foi em seguida à Rua do Colégio. Deu três voltas na Praça e foi embora. Eu, que nunca tinha sentido tanto ciúme, fiquei arrasado ! Nem esperei o “arrasta-pé”. Fui logo para minha casa. Na estrada até senti tonturas. Enxuguei os olhos várias vezes. E fui pensando. E fui xingando. E fui sofrendo como nunca sofrera antes por causa de uma mulher ... Que diferença daquela outra noite que me foi tão feliz ! Esta, ao contrário, estava tenebrosa e feia. Ao longe uivavam os cães esfaimados. E uma coruja suindara, em vôos rasantes, rasgava mortalha sobre minha cabeça ... Como eu estava infeliz ! Passei um mês sem vir à cidade. Distraí-me na roça, curtindo a minha amargura amorosa. Quando vim, recebi um recado da Belinha para ir falar com ela. Não atendi. Respondi, enviando-lhe uma carta por intermédio da Araci, que era o nosso “correio”. Eu continuava terrivelmente frustrado e detestando a Belinha. Na carta, disse que não a queria mais, pois, além de me trair, ainda me ofendera ao passear com aquele moço, coisa que comigo sempre recusara fazer. /e para que soubesse quais eram meus novos sentimentos para com ela, junto à carta enviei-lhe uns versos que decorara de um jornal da época. Diziam assim : ‘Eu te odeio, / sabes ? / Muito ! / Com prazer e com rancor. / Desejo-te / tudo o que te leve ao desespero : / que não tenhas fé / nem esperança / e que a vida te atormente, / a cada passo. / Quero que sofras, / muito, sempre ... / Em dias longos, / em noites sem fim. / Que desejes a morte, / mas que tu vivas muito ! / Que não tenhas lágrimas, / para que teus olhos não chorem / e a dor te sufoque ! / Quero que me ames 32
  • 33. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil / a mim que te odeio ! / Que me queiras / como eu te quis, / para que sintas tudo / e sofras tudo / o que senti / e sofri, / quando me traíste ...’ Ao ler minha declaração de ódio, Belinha, primeiro deve ter ficado magoada e furiosa. Mas depois, conhecendo meu caráter, pelo qual eu não seria capaz de odiar a ninguém, e muito menos a ela, julgou que eu estava bancando o “machão” ... para me vingar ... Acertou ! E, por isso, continuou fazendo o que pôde para reatarmos nosso namoro. Eu fugia sempre, mas depois que a Araci me contou certas coisas, resolvi falar com a Belinha. Luizinho continuou : – Em atenção aos seus veementes pedidos, resolvi encontrar-me com a Belinha. Esperei-a na ‘nossa’ esquina, logo que terminou a reza. Trocamos secos cumprimentos. Achei-a com as feições abatidas. Ela começou a falar : ‘Por que você fez isso comigo ?! Eu já lhe mandei pedir desculpas. Até perdão eu implorei pelo que fiz ! Por que continua me evitando e desprezando desse modo ?!’ E disse outras coisas comoventes, que me arderam dentro do peito. Mas eu a ouvia como que distante, indiferente, maldoso. Apenas respondi que ela havia me traído e ofendido muito. Tempos depois foi que eu percebi o quanto fui bruto e perverso ao humilhar a pobrezinha daquele jeito !... Mas o ciúme violento e a afronta sofrida haviam empedernido de tal modo meus sentimentos, que eu não sentia nenhuma piedade. E o que até hoje me faz lembrar minha vileza foi o que em seguida aconteceu. Pois de repente, Belinha chegou bem perto de mim, com lágrimas nos olhos, encarou- me e disse : ‘Meu bem, meu amor ! Abrace-me, beije-me ! Faça o que quiser comigo ! Pois sou toda sua !’ Assustei-me, até ! Senti um tremor e o coração bateu forte. E já ia abrindo os braços para estreitá-la em meu peito, quando me contive. E falei : ‘Não, moça ! Você não é disso ! Eu sei o que isso significa para você e eu a respeito muito ! Para mim a situação também está horrível ! Vamos esperar um pouco, quem sabe ...’ Irritada pela 33
  • 34. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil humilhação recebida, Belinha interrompeu-me e respondeu, exaltada : ‘Você é mau ! Malvado ! Pois eu também não quero mais saber de você !’ E, enxugando as lágrimas no dorso da mão, saiu rápida, deixando-me sozinho ... E foi descendo a rua, só e apressada ... Acompanhei-a com o olhar, até que desapareceu lá em baixo, na Praça ... E assim, naquela hora, pelo meu orgulho, nascido de um ciúme diabólico, terminava, como num sonho maravilhoso que acabasse em pesadelo, nosso lindo “amor fora de série” ... E eu perdia a Belinha para sempre ... Luizinho deu um suspiro e ficou quieto por uns instantes. Depois, continuou : – O resto você sabe. Fui logo embora daqui e comecei a lecionar no Grupo Escolar de uma cidade do Oeste. E seis meses depois me casava com uma linda e amável colega, com a qual fui muito feliz. Tempos depois eu soube que a Belinha também havia se casado. E justamente com aquele moço, amigo de seu irmão, que aqui vinha passear e lhe trazia bombons ... E que, por sinal, deu um ótimo marido, pelo que certamente foram muito felizes também ... Os sinos da igreja começaram a repicar, chamando os romeiros para a procissão ... Os sinos da igreja repicaram festivos, chamando os romeiros para o inicio da procissão. O Luizinho e eu, que acabávamos de dar a volta pelo Jardim Centenário – o bairro novo da cidade – chegando à ponte da rua de baixo, também atendemos ao chamado dos sinos e subimos até a igreja. Acompanhamos com o povo o tradicional desfile da Imagem da Padroeira pelas ruas da cidade. De volta à igreja, Luizinho rezou um pouco e logo saímos. Seu carro havia ficado lá para cima, à sombra da velha e solitária paineira próxima à Vila Vicentina. Tomamos o carro e viemos descendo a rua congestionada de ônibus e de carros das famílias que já se iam retirando da cidade. Ao passar pela “sua” esquina, fez um sinal com o braço e murmurou : – ‘Adeus, esquina saudosa !’ E assim foi dizendo adeus a todos os pontos que lhe recordavam alguma coisa da meninice ou da juventude em sua terra natal : a “Casa Grande”, a ponte dos pernilongos, o mercado, a cadeia e outros. A Praça continuava apinhada de veículos 34
  • 35. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil que partiam e do povo que vagava por entre as barraquinhas ou descansava nos bancos do jardim. Seguimos pela Rua do Colégio (Major Gurgel) até o final e paramos lá na chácara do Marciano. Despedimo-nos com um longo abraço e palavras cordiais de uma separação que poderá ser para sempre. O Luizinho ainda fez um gesto de saudação para o Santo Cruzeiro lá no alto, e embarcou. Antes de desaparecer na curva do bambual, pôs o braço para fora e fez um último sinal de adeus. Para quem seria ? Para mim, seu velho amigo ? Para a cidade natal que ficava talvez para sempre ? Ou como lembrança do antigo amor que teve com sua amada Belinha ? Voltei para a Praça comovido, pensando no Luizinho e em outras coisas, como se estivesse vivendo há sessenta anos ... Como estava tudo tão diferente ! A mocidade do nosso tempo, entusiasta e descontraída, há muito já não existia ... Como única exceção, apenas via o Dito Dias, tranqüilamente acomodado lá à porta de sua casa ... A visita do Luizinho à terra natal e nossas recordações foram mesmo comoventes ! E agora estava eu ali sozinho, no meio daquele povaréu ... E então me veio à mente a lembrança daquele antigo e romântico poeta, que, versejando uma visita à velha casa paterna, assim termina seu dolorido soneto : ‘... resistir, quem há de ? Uma ilusão gemia em cada canto, chorava em cada canto uma saudade !...’ 35
  • 36. AMOR FORA DE SÉRIE – Prof. Paulino Gil N. da R. : Exatamente na edição de 19/09/1993 “O Jambeirense” noticiou o falecimento, no Rio de Janeiro, da “Belinha”, que foi protagonista, ao lado do “Luizinho”, desta série “Amor fora de série”... N. da R.: “sr. Durão” – trata-se de Innocencio Corrêa Durão, “natural de Miranda do Corvo, província da Beira Baixa ou Coimbra, no reino de Portugal, residente nesta Villa, capitalista”, que faleceu em Jambeiro, às 5 horas da madrugada, na “rua do Comércio”, aos 70 anos. Deixou os filhos : Maria da Conceição Durão (casada com o Cel. Antonio Baptista de Oliveira Costa (Cel. Batista); Benedicto, José, João e Eugênio (este se casou com D. Maria Antonia da Conceição, com quem teve os seguintes filhos : Pe. Hygino Corrêa da Conceição Apparecida, Francisco, Philomena, Pedro, Elvira, Pe. José Luiz Corrêa, Olívia, Vicente, Eugênia, João e Geraldo). N. da R.: Na ocasião da demolição da velha sede da fazenda do Capivari – onde funcionaram as Escolas Reunidas e, depois, o antigo Grupo Escolar – uma sobrinha do prof. Júlio de Paula Moraes, Adélia de Souza Moraes (a querida “tia Adélia”), ao ouvir o estocar de foguetes em regozijo pelo início do destelhamento do velho prédio, assim manifestou seu repúdio pela demolição : – Burros ! A gente solta foguete quando se cobre uma nova casa, e não quando ela é demolida ! 36