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Primeiraaula
(T1)
Texto adaptado de:
MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing -
Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986.
Além da racionalidade, uma segunda
característica do conhecimento científico é a
objetividade. Assim, em ciência deve-se fazer
grande esforço no sentido de excluir ao máximo
a rigidez de pensamento, a emoção, a aceitação
prévia de afirmações, as opiniões pessoais não
baseadas em informações científicas e as expli-
cações sobrenaturais. O ideal seria acreditar só
no que a natureza nos mostra e não no que gosta-
ríamos que fosse verdade por razões pessoais,
religiosas, políticas etc.
O poder da ciência como caminho para o
conhecimento reside no fato de que toda resposta,
independentemente de como ela foi obtida, neces-
sita ser confirmada por outros cientistas com igual
sabedoria, perícia e receptividade. Assim, os
procedimentos da ciência são autocorrigíveis.
Nesse sentido, o caminho da ciência contrasta
com o da filosofia, da religião e de muitas disci-
plinas humanísticas em que a opinião freqüente-
mente toma o lugar das conclusões verificáveis.
O contraste entre esses dois modos de pensar é
importante tendo-se em vista o objetivo da
resposta que se procura.
SENSO COMUM E CIÊNCIA
Umacaracterísticahumanaéanecessidade que
as pessoas têm de interpretar a natureza, desde o
universo mais amplo até a si mesmas. A maneira
mais comum de se fazer essa interpretação é por
meio do chamado senso comum.
Senso comum é uma forma não-programada
de conhecimento que se dá pela simples observa-
ção dos fatos, em geral, sem um aprofundamento
racional. Isto é, não há uma preocupação com as
explicações para os fatos, ou, quando estas são
propostas, não há uma preocupação em testá-
las. Muitas vezes, as explicações propostas são
de natureza mística ou sobrenatural. No entanto,
a importância do senso comum não deve ser sub-
estimada; foi essa forma de conhecimento que
produziu as bases sobre as quais se sustenta a
civilização moderna. Foi esse tipo de conheci-
mento que levou à descoberta e ao melhoramento
das plantas comestíveis e medicinais, ao melhora-
mento dos animais para uso humano, à invenção
da roda e da maioria das máquinas, apenas para
citar alguns exemplos.
Aciênciadiferedosensocomumporqueprocura
explicaçõessistemáticasparafatos(provenientesda
observação e de experimentos), as quais possam
ser submetidas a testes e a críticas por meio de
provas empíricas1
. O objetivo do conhecimento
científico é desvendar a ordem oculta que atrás das
aparências das coisas ou fenômenos.
1
Empírico é relativo ao mundo natural observável. Na
verdade, a ciência moderna lida com diversos fenômenos
que não são diretamente observáveis, tais como as
partículas fundamentais, genes, estados da mente, etc.
Nesse contexto amplo, empírico refere-se ao uso de
informações obtidas da observação direta ou indireta.
1
HEREDITARIEDADE E A NATUREZA
DA CIÊNCIA
Objetivos
1. Distinguir senso comum e ciência.
2. Explicar a hipótese da pangênese de Hipócrates.
3. Comparar o método baconiano, a maneira clássica
(teológico-medieval) e a modo atual de analisar a na-
tureza.
4. Conceituar os termos: indução, dedução, fato, hipóte-
se, leie teoria.
5. Comparar as idéias de Popper e de Thomas Kuhn so-
breo conhecimento científico.
A ciência tem se mostrado um poderoso instru-
mento para solucionar muitos dos problemas que
surgem da interação entre seres humanos e o
mundo não-humano ao nosso redor, e também
alguns dos problemas das interrelações entre os
próprios seres humanos. Contudo, não se pode
desejar que a ciência nos diga o que é bom, justo,
belo, ou mesmo prazeroso. Em muitos casos, no
entanto, as informações científicas podem nos
ajudar a prever o resultado de decisões humanas
e, uma vez tomadas essas decisões, procedi-
mentos científicos podem nos ajudar a atingir os
objetivos desejados.
Mais do que qualquer outro aspecto da civi-
lização, a ciência está moldando nossas vidas e
as perspectivas futuras. Essa é uma das razões
pelas quais não se pode permitir que seu controle
esteja unicamente nas mãos de uma elite. Cursos
de ciências devem fornecer uma compreensão
efetiva do alcance e das limitações dos
procedimentos científicos. Os atuais estudantes,
futuros líderes da sociedade, precisam entender
que o conhecimento científico é uma condição
necessária para o desenvolvimento de novas
relações com o mundo natural. Se a humanidade
deseja evitar um desastre terminal sem paralelo é
fundamental o desenvolvimento de novos tipos
de relações com a natureza. Precisamos entender
que ciência é uma arma poderosa para atingir
objetivos humanos, mas que é impossível para a
ciência definir esses objetivos.
AS ORIGENS DA TEORIA GENÉTICA
A importância da teoria genética
Em 1973, o famoso biólogo Theodosius
Dobzhansky lançou um desafio aos criacionistas,
“Nada em Biologia faz sentido a não ser sob a luz
da evolução”. Isso é uma verdade, embora exista
algo mais fundamental de onde derivam todos
os principais conceitos em Biologia, a Genética.
A característica fundamental de um ser vivo é
sua capacidade de se replicar com grande exati-
dão, transformando matéria e energia do mundo
não-vivo em mais matéria viva. A replicação e
todos os demais aspectos da vida são reflexos da
estrutura e funcionamento do material genético
– o ácido nucléico. A Genética é o campo de
investigação que procura entender esse fenômeno
de replicação e, portanto, deve ser considerada
básica para toda a Biologia.
Veja como da replicação genética está na base
de todas as áreas da Biologia. A Biologia Evolu-
tiva é o campo que investiga os aspectos da repli-
cação ao longo do tempo. A Biologia do Desen-
volvimento é o campo de investigação que lida
com a replicação ao longo do ciclo de vida de
umorganismo. A Sistemática estuda a diversidade
da vida que é uma conseqüência da replicação,
modulada pelo ambiente ao longo do tempo. A
Ecologia lida com as interações entre o ambiente
e o indivíduo ou grupos de indivíduos, os quais
são geneticamente programados. As conseqüên-
cias estruturais e funcionais da atividade do ma-
terial genético em todos os níveis de organização,
desde a célula até o organismo, são estudadas
pela Morfologia e Fisiologia. Assim, Genética,
incluindo sua manifestação a longo prazo – a
Biologia Evolutiva – é a disciplina integradora
de todos os conceitos e informações biológicas.
Hoje existem problemas especiais no ensino
da Genética para principiantes. Esse ramo da ciên-
cia está se desenvolvendo de modo tão espeta-
cular e rápido que é grande a tentação de apresen-
tar principalmente as descobertas mais recentes
– quando existe tanta coisa interessante para ser
dita é difícil não dizê-las. No entanto, quando isso
é feito dessa maneira, sem fornecer inicialmente
uma estrutura conceitual da área, as novidades
podem ser memorizadas, mas é impossível
compreendê-las e apreciá-las em toda sua profun-
didade. O que é “antigo” para cientistas e profes-
sores pode ser “novo” para os alunos. Assim,
aprender sobre cromossomos sexuais ou como
se descobriu que o DNA é o material hereditário
podem ser histórias heróicas, importantes e esti-
mulantes para aqueles que desconhecem como
esses “quebra-cabeças” foram desvendados. Ou,
como disse J. R. Baker: “Em muitos campos da
ciência é necessário conhecer a embriologia das
idéias: nossa visão moderna só pode ser comple-
tamente compreendida e julgada se nós enten-
dermos as razões que nos fizeram pensar como
nós pensamos.”
Esse conselho emitido há duas gerações é
ainda mais importante hoje. A velocidade com
que o progresso alimenta a estrutura conceitual
da Biologia é tão grande que existe o perigo de a
saturação de informação nos levar a esquecer a
própria estrutura conceitual. Os estudantes não
devem ser empanturrados com informações e
privados de entendimento.
2
O que a ciência genética pretende responder?
Ciência é uma instrumento poderoso para se
entender a natureza. Ela cria uma imagem de
mundo na qual acreditam tanto os cientistas como
boa parte das pessoas. Mas, ao contrário do que
se poderia pensar, o enorme sucesso da ciência
moderna deve-se ao fato de ela procurar respostas
para questões específicas, as quais, com freqüên-
cia, parecem triviais e não relacionadas com os
“grandes temas”.
Por mais surpreendente que possa parecer, um
dos grandes obstáculos para se compreender
a natureza é a incapacidade de se formular a
pergunta apropriada.Por exemplo, a Genética,
hoje um dos campos mais rigorosos e conceitual-
mente completos da Biologia, só alcançou esse
estágio de desenvolvimento nos últimos cinqüenta
anos. Durante milênios a humanidade não conse-
guiu respostas para a hereditariedade porque foi
incapaz de formular questões adequadas. Em
ciência, questões adequadas são aquelas passíveis
de observação e experimentação e, portanto, de
serem respondidas.
Assim, durante a maior parte da história da
humanidade, hereditariedade não foi mais do que
um princípio vago, desprovido de leis precisas e
de resultados previsíveis. Reflita, por exemplo,
sobre os tipos de informação que se podia reunir
a respeito de hereditariedade. Os filhos de um
casal, com freqüência, diferem entre si em uma
série de características; alguns são mulheres,
outros são homens – uma diferença profunda. A
não ser no caso de gêmeos idênticos, os irmãos
diferem bastante na aparência e na personalidade.
Algumasvezes,ascriançastêmpoucasemelhança
com seus pais, outras vezes a semelhança fami-
liar é grande. Como pode a mesma causa – a
reprodução pelos mesmos pais – produzir
resultados tão diferentes? No entanto, existe
alguma regularidade; por exemplo, os filhos de
índios, de negros, de orientais e de caucasianos
têm os traços típicos de suas raças.
Até o século XX, observações em uma grande
diversidade de organismos não foram além da
conclusão de que, apenas nos aspectos mais
gerais, os descendentes se assemelham a seus pais.
Nenhuma regra que relacionasse as características
da prole com as de seus pais foi descoberta. Isso
não surpreende, pois, respostas vagas era tudo o
que se podia esperar de uma questão vaga - “Qual
é a natureza da hereditariedade?” Não existia
nenhuma hipótese aceitável que explicasse o fato
de que a hereditariedade parecia consistir da
transmissão de semelhanças, de diferenças e
mesmo de novidades.
Uma vez que o valor educacional em ciência
reside não apenas na informação que ela fornece,
mas também na maneira de se obter essa informa-
ção, é importante conhecermos algumas tenta-
tivas antigas para entender a hereditariedade.
Como acontece com muitos outros tópicos da
Biologia, é conveniente começar pelos antigos
filósofos gregos. As raízes de como nós pensamos
a respeito de fenômenos científicos remonta aos
antigos gregos, da mesma forma que nosso modo
não-científico de pensar tem sua origem nos
antigos hebreus (via bíblias hebraica e cristã). Os
antigos filósofos gregos muitas vezes definiram
o problema e sugeriram hipóteses que perduraram
até os tempos modernos. Consideraremos apenas
dois desses filósofos: Hipócrates e Aristóteles.
Idéias de Hipócrates sobre hereditariedade
Hipócrates, considerado o Pai da Medicina,
poderia também ser aceito como um dos Pais da
Genética. Por volta do ano 410 a.C., ele propôs
a pangênese como uma hipótese para explicar a
hereditariedade. A pangênese admitia que a here-
ditariedade baseava-se na produção de partículas
por todas as partes do corpo e na transmissão
dessas partículas para a descendência no momen-
to da concepção. Darwin iria adotar essa mesma
hipótese muitos séculos depois, tendo a pangê-
nese permanecido como a única teoria geral de
hereditariedade até o final do século XIX.
Hipócrates elaborou essa hipótese a partir do
conhecimento da existência de uma população
humana, os macrocéfalos, cuja característica era
ter cabeça muito alongada. Nesta população, ter
cabeça longa era sinal de nobreza; assim, os pais
procuravam moldar os crânios ainda flácidos dos
recém-nascidos de acordo com a forma desejada.
Veja o que Hipócrates escreveu sobre esse fato:
“A característica [cabeça alongada] era, assim,
adquirida inicialmente de modo artificial, mas,
com o passar do tempo, ela se tornou uma carac-
terística hereditária e a prática [moldagem do
crânio dos recém-nascidos] não foi mais neces-
sária. A semente vem de todas as partes do corpo,
as saudáveis das partes saudáveis, as doentes
das partes doentes. Se pais com pouco cabelo
3
têm, em geral, filhos com pouco cabelo, se pais
com olhos cinzentos têm filhos com olhos cinzen-
tos, se pais estrábicos têm filhos estrábicos, por
que pais com cabeças alongadas não teriam
filhos com cabeças alongadas?”
Hipócrates propôs também o conceito de
hereditariedade de caracteres adquiridos – um
ponto de vista que viria a ser adotado por
Lamarck como o mecanismo das mudanças
evolutivas – uma explicação, ainda hoje, aceita
por muitas pessoas.
Embora não pareça, a hipótese de Hipócrates
para a hereditariedade foi um grande começo.
Ele identificou um problema científico (possivel-
mente o passo mais difícil de todos), propôs uma
explicação (hipótese) e a escreveu de uma maneira
compreensível.Aelaboraçãodeumaanáliseassim,
há dois mil e quinhentos anos, é algo excepcional.
Idéias de Aristóteles sobre hereditariedade
Aristóteles (384-322 a.C.) em seu livro Gera-
ção dos animais trata de problemas genéticos e
de desenvolvimento. Essa ligação entre dois cam-
pos aparentemente tão distintos tem uma conota-
ção bastante atual.
Aristóteles admitia a existência de uma base
física da hereditariedade no sêmen produzido
pelos pais. Esse ponto, tão óbvio nos dias de hoje,
foi fundamental para todo trabalho posterior na
área. Essa idéia permitiu que se deixasse de
atribuir à hereditariedade uma base sobrenatural
ou emocional e se passasse a pensá-la como resul-
tado da transmissão de algum tipo de substância
pelos pais. Naquela época, cerca de quatro
séculos antes de nossa era, sabia-se muito pouco
a respeito da natureza do sêmen. Aristóteles usou
o termo “sêmen” como nós usamos gametas
atualmente e não para designar a secreção dos
machos que contém os espermatozóides. O papel
dos gametas na reprodução só foi estabelecido
em meados do século XIX.
A maneira como Aristóteles discutiu a hipótese
da pangênese sugere que ela era bastante conhe-
cida e, provavelmente, bem aceita na época; ele,
no entanto, a rejeitou. Aristóteles lista quatro
informações e argumentos mais importantes que
apoiavam a pangênese como uma hipótese
plausível. Em primeiro lugar, a observação de que
a cópula (nos humanos) dava prazer a todo o corpo
permitia sugerir que todo o corpo contribuía
para o sêmen. Segundo, existiam informações
que sugeriam a hereditariedade de mutilações.
Um relato nesse sentido vinha da região do
estreito de Bósforo, na atual Turquia, onde um
homem havia sido marcado a ferro quente em
um dos braços e seu filho, nascido pouco tempo
depois, tinha um defeito no braço. Terceiro, era
comum observar que os filhos se parecem com
os pais não no geral, mas em características
particulares. Assim, estas deviam produzir
substâncias específicas que se tornariam parte do
sêmen. E quarto, se era produzido sêmen para o
geral, por que não também para partes específicas
do corpo?
Apesar desses argumentos favoráveis, Aristó-
teles rejeitou a pangênese. A partir da observação
de que as semelhanças entre pais e filhos não se
restringia à estrutura corporal mas podia abranger
outras características como voz e jeito de andar,
Aristóteles se perguntou como características
não-estruturais poderiam produzir material para
o sêmen. Além disso, filhos de pais com cabelos
e barbas grisalhos não são grisalhos ao nascer.
Foi observado também que certas crianças pare-
ciam herdar características de ancestrais remotos,
que dificilmente poderiam ter contribuído para o
sêmen dos pais. Era conhecido o caso de uma
mulher de Elis (na região noroeste da Grécia Pelo-
ponésia) que teve, com um homem negro, uma
filha branca, mas seu neto tinha pele escura.
As mais importantes evidências que refutavam
a pangênese de Hipócrates eram do mesmo tipo
das que foram usadas para refutar a hipótese da
pangênese de Darwin, cerca de dois mil anos mais
tarde. O fato de as plantas mutiladas poderem
produzir descendência perfeita era bem conhe-
cido. Além disso, havia ainda o poderoso argu-
mento de que se o pai e a mãe produzem sêmen
com partículas precursoras de todas as partes do
corpo, não deveria se esperar que os descendentes
tivessem duas cabeças, quatro braços etc?
Estes e muitos outros argumentos levaram
Aristóteles a rejeitar a pangênese e a perguntar:
“Por que não admitir diretamente que o sêmen
... origina o sangue e a carne, ao invés de
afirmar que o sêmen é ele próprio tanto sangue
quanto carne?”
Na verdade, isto era o máximo que Aristóteles
poderia concluir com os informações e a metodo-
logia de seu tempo. Ele propôs uma hipótese,
que embora vaga, é ainda hoje considerada
verdadeira acima de qualquer suspeita. Essa
4
hipótese seria o limite conceitual para os dois
milênios seguintes. Durante todo esse tempo, a
falta de progresso na compreensão da heredita-
riedade foi conseqüência principalmente da inca-
pacidadedeformularperguntasprecisasquepudes-
sem ser estudadas com a metodologia disponível.
A questão da hereditariedade após Aristóteles
O interesse pelas questões científicas pratica-
mente cessou no mundo ocidental durante o longo
período em que a Igreja exerceu hegemonia sobre
o pensamento humano. Foi apenas bem depois
do Renascimento que a observação e a experi-
mentação passaram a ser aplicadas de maneira
sistemática na tentativa de se compreender a here-
ditariedade. Mesmo assim o progresso foi muito
lento, novamente porque não se conseguia formu-
lar uma pergunta adequada.
Durante os séculos XVIII e XIX, o procedi-
mento padrão de se procurar informações a
respeito de hereditariedade era por meio de cruza-
mentos. Eram feitos cruzamentos entre indivíduos
com estados contrastantes das características e a
descendência era analisada. Até hoje esse é um
dos procedimentos mais poderosos para se obter
informações a respeito de hereditariedade.
Contudo, pouco progresso foi feito no campo da
hereditariedade até o final do século XIX. Assim,
poucas coisas relevantes no campo do estudo da
hereditariedade aconteceram no período entre
Aristóteles (384-322 a.C.) e Gregor Mendel
(1822-1884), mas nesse período foram estabele-
cidas as bases da investigação científica.
AS ORIGENS DA CIÊNCIA
A incapacidade dos antigos obterem avanços
significativos no campo da hereditariedade causa
surpresa, considerando a idéia generalizada de
que existem procedimentos padrões em ciência
– o método científico – que, se devidamente
seguidos, levam inexoravelmente a novas desco-
bertas e entendimentos profundos. Esses proce-
dimentos são aquisições recentes que foram
sendo formulados lentamente pelos filósofos
durante séculos, mas como quase sempre
acontece, as contribuições de alguns indivíduos
se destacam.
Admite-se que a ciência moderna teve início
com Galileu em 1632 e que a filosofia da ciência
foi iniciada por Francis Bacon (1561 - 1626),
Lorde Chanceler da Inglaterra. Bacon é consi-
derado por de Solla Price (1975), como sendo
quem estabeleceu a revolução científica e orga-
nizou o método científico.
Francis Bacon e a Nova Era
Em uma série de livros publicados entre 1606
e 1626, Bacon defende a ciência empírica e
critica severamente o hábito clássico e teológico-
medieval de começar uma investigação com um
ponto de vista aceito como verdade, deduzindo
a partir daí as conseqüências. Sua contribuição
para o desenvolvimento da ciência está no fato
que ele considerava tanto a observação empírica
quanto a obtida por meio dos experimentos
formais como o único caminho adequado para se
testar hipóteses. Seus argumentos tiveram enorme
influência e levaram ao rápido crescimento do
número de cientistas profissionais nos dois
séculos subseqüentes.
A sugestão de Bacon era começar com as
observações, não com a fé. Isto é, devia-se partir
dos fatos conhecidos relacionados com algum
fenômeno natural e tentar formular princípios
gerais que explicassem esses fatos. Esse método
lógico de raciocínio do particular para o geral é
conhecido comoindução – um procedimento que
está na base da ciência moderna.
As idéias de Bacon de como fazer ciência fo-
ram descritas em seu livro Instauratio Magna de
1620. Ele começa apontando a ineficiência das
tentativas anteriores de compreender a natureza
e ressalta que, a menos que se tome muito
cuidado, as coisas que a mente humana absorve,
tendem a ser “falsas, confusas e abstraídas dos
fatos”. Em boa medida, isso é conseqüência de
observarmos o que já assumimos como sendo
verdade. A conseqüência disso é que “a filosofia
e outras ciências intelectuais ... mantêm-se como
estátuas, são adoradas e celebradas, mas não se
movem ou avançam”.
Segundo essa visão, um conhecimento do
mundo natural digno de confiança vem da
observação da própria natureza e não de testes
da mente humana. A natureza seria o juiz no plano
de Bacon de “começar a reconstrução total das
ciências, das Artes e de todo conhecimento
humano”– sua “Grande Renovação”.
Ele sugere que uma investigação comece pela
reunião de todas as informações obtidas por
5
observações e experimentos relacionados com o
tópico investigado. Deve-se tomar muito cuidado
para evitar a inclusão de informações erradas, o
que, é claro, levaria a conclusões falsas.
Armadilhas da mente: ídolos a serem
abominados
Segundo Bacon, a mente precisa se proteger
de idéias preconcebidas para que as informações
sejam interpretadas com exatidão. Essa é uma
tarefa quase impossível de ser cumprida uma vez
que o que somos, pensamos e fazemos depende
enormemente de nossa aceitação das crenças da
sociedade onde vivemos e da ciência que profes-
samos. Essas crenças tornam-se os ídolos aos
quais nos submetemos, e a extensão dessa sub-
missão pode levar a conclusões erradas.
Bacon lista quatro grupos: ídolos da Tribo,
da Caverna, do Mercado e do Teatro. (Bertrand
Russell reconhece mais um grupo, que denominou
ídolos da Escola).
Os ídolos da Tribo são idéias erradas precon-
cebidas e pensamento confuso, comuns a todo
ser humano.
Os ídolos da Caverna são as crenças erradas
de cada mente individual – a mente da pessoa
comportando-se como uma caverna isolada.
Bacon aponta especialmente como cada pessoa
tende a favorecer suas próprias opiniões e des-
cobertas – um sério problema em nossos dias.
OutrosídolosdaCavernadecorremdeumavalori-
zação indevida do que é antigo ou das novidades.
Os ídolos do Mercado são os problemas
semânticos que surgem quando as pessoas tentam
se comunicar e utilizam palavras diferentes. As
palavras de nossos idiomas foram criadas devido
às necessidades do dia-a-dia e, com freqüência,
são impróprias, ou não são específicas o sufici-
ente, para serem usadas em ciência.
Os ídolos do Teatro, isto é, dos sistemas
filosóficos, consistem na utilização de modos
de pensar religiosos ou filosóficos em que a
“verdade” é deduzida de premissas pré-
estabelecidas. Bacon aponta, por exemplo, o fato
de algumas pessoas tentarem encontrar um
sistema filosófico natural (isto é, Ciências
Naturais) no primeiro livro da Gênese.
Existem problemas mais gerais difíceis de
serem combatidos, como a superstição, a cegueira
aos fatos e o imoderado fervor religioso.
O método hipotético – dedutivo
O procedimento preconizado por Bacon
evoluiu para o chamado método hipotético-
dedutivo. Nessa concepção, um estudo científico
começa pela observação e/ou experimentação de
algum fenômeno natural, utilizando as informa-
ções obtidas para se chegar a algum entendimento
das causas fundamentais ou de associações entre
eventos aparentemente não relacionados. Hipó-
teses provisórias são formuladas com base nas
informações selecionadas e, a partir dessas hipó-
teses, são feitas deduções que permitem testá-las.
Assim, a dedução continua a ser um poderoso
componente da análise científica, mas a dedução
dos cientistas modernos não é a mesma do pensa-
mento dedutivo que Bacon considerava tão
repugnante. Na ciência contemporânea, as dedu-
ções a partir de uma hipótese são conclusões plau-
síveis tiradas a partir da explicação provisória para
o fato. Seu valor é sugerir que observações ou
experimentos podem ser feitos para se validar ou
refutar a hipótese, e nada mais além disso. As
deduções dos antigos filósofos e teólogos eram
com freqüência tomadas como conclusões defini-
tivas tiradas de verdades eternas, mas na realidade
elas se baseavam em crenças ou imaginação fértil
e não em evidências.
Os cientistas de hoje se esforçam no sentido
de partir apenas das informações mais fidedignas
e confirmáveis, fazendo a seguir uma constante
interação entre procedimentos indutivos e dedu-
tivos para chegar ao nível mais fundamental de
compreensão do mundo natural. Essa compre-
ensão não pode ser mais do que “essa é a
afirmação mais precisa que pode ser feita com
base nas evidências disponíveis.” Isso não sig-
nifica que a ciência de hoje esteja “errada”; signi-
fica que ela será substituída amanhã por uma ciên-
cia melhor. Nossa análise do desenvolvimento dos
conceitos de Genética fornecerão um excelente
exemplo disso; a Genética de Mendel redesco-
berta em 1900 não estava errada, ela apenas foi
ampliada em uma Genética melhor de Sutton
(1903), de Morgan (1912) e, finalmente, na vasta
e abrangente Genética atual.
Em resumo, a diferença fundamental entre o
procedimento de Bacon e o procedimento por
ele criticado é que as afirmações científicas preci-
sam estar baseadas em informações tiradas de
observações e/ou experimentos sobre fenômenos
6
naturais e não de idéias e princípios preconce-
bidos, ou crenças de autores clássicos, ou da
imaginação, ou da superstição.
Não é correto dizer que Bacon acreditava que
a indução fosse o único procedimento adequado
para se chegar a afirmações científicas. Sua ênfase
na indução foi mais no sentido de se opor à
aparente total confiança que filósofos e teólogos
tinham na dedução a partir de verdades pré-esta-
belecidas. Sua insistência na indução e na defesa
da ciência experimental fizeram com que nos
séculos seguintes o método experimental se tor-
nasse sinônimo de método científico. Infelizmente
isso é uma confusão entre o geral e o particular.
Experimentos não constituem o único caminho
para se testar hipóteses; elas também podem ser
testadas pela simples observação ou por sua
consistência lógica interna, como faziam os
grandes geômetras gregos). A vantagem da expe-
rimentação é que por meio dela pode-se controlar
a maioria da variáveis com exceção da que se
está sendo testada. No entanto, o desenvolvi-
mento da matemática estatística a partir do século
passado forneceu técnicas poderosas que nos
permitem realizar testes equivalentes aos experi-
mentais com base apenas em dados da obser-
vação. Nesse processo lançamos mão de técnicas
matemáticas para separar a influência de dife-
rentes fatores. Foi isso que provocou um aumento
dramático no número de estudos empíricos não-
experimentais, especialmente na segunda metade
desse século.
A CIÊNCIA NO SÉCULO XX
Os séculos que se seguiram a Bacon foram
dominados pela idéia de que as explicações cien-
tíficas eram simples generalizações derivadas de
uma série de observações. Isto é, a partir de uma
série de observações de um fenômeno particular
faz-se uma generalização - como todos os cisnes
que já observei eram brancos concluo que “todos
os cisnes são brancos”, ou, “toda vez que ocorre
um relâmpago, segue-se um trovão”. O ponto
central dessa idéia é que uma teoria científica
desenvolve-se linearmente, em três estágios
separados:
observações —> hipótese —> teste da hipótese.
Essa visão equivocada de ciência, denominada
positivismo pelo filósofo-cientista francês
AugustoComte, perdurou em áreas das Ciências
Sociais e da Biologia até o século XX. Muitas
pessoas ainda hoje vêem a ciência dessa forma e
consideram erroneamente que ela consiste na
descoberta de novos fatos acerca do mundo.
Desde o século XVII, no entanto, a visão posi-
tivista da ciência já era questionada. Em meados
do século XVIII o filósofo escocês David Hume
apontou um sério problema na indução de gene-
ralizações. Segundo ele, a única garantia que se
tem para o sucesso do método indutivo é seu
sucesso passado - o que nos faz supor que um
próximo cisne que venhamos a encontrar seja
branco é o fato de todos os anteriores terem sido
brancos. Mas isso por si só é uma generalização
e uma próxima observação - encontrarmos um
cisne preto - pode derrubar essa generalização
particular. Cria-se, assim, um círculo vicioso em
que tentamos justificar uma generalização por
uma outra igualmente incerta.
A contribuição de Karl Popper
A tentativa mais conhecida para resolver esse
paradoxo foi a do filósofo austríaco Karl Popper
(1902-1994). Reconhecendo que as tentativas de
defender a ciência em termos lógicos por referên-
cia à indução eram inevitavelmente inviáveis,
Popper enfatizou que a idéia, até então vigente,
de que os cientistas simplesmente acumulam
exemplos de um fenômeno e, então, derivam
generalizações a partir deles, estava errada. Na
visão de Popper, os cientistas realmente fazem
hipóteses sobre a natureza do mundo (às vezes,
mas nem sempre, por meio de generalizações
indutivas) e, então, submetem as hipóteses a tes-
tes rigorosos. Esses testes, no entanto, não são
tentativas paraprovar uma teoria particular (uma
forma de indução) mas sim tentativas de negá-
las. Provas, ele argumenta, é algo logicamente
impossível de se obter. Nós podemos apenas
negar algo com alguma certeza, pois pelas
diversas razões que Hume apontou, um único
exemplo contra é suficiente para negar uma gene-
ralização; enquanto prová-la requereria a tarefa
impossível de documentar todo exemplo de um
fenômeno em questão (inclusive, presumivelmen-
te, aqueles que ainda não aconteceram!).
Na visão popperiana, a pesquisa científica tem
início com problemas, quando há algo errado com
os fatos, isto é, quando a natureza não se compor-
ta de acordo com o previsto por nossa visão de
mundo. Como diz Popper: “cada problema surge
7
da descoberta de que algo não está de acordo
com nosso suposto conhecimento; ou, examinado
em termos lógicos, da descoberta de uma
contradição interna entre nosso suposto conheci-
mento e os fatos.” Assim, os fatos em si nada
significam, eles se tornam importantes quando
conflitam com o saber vigente; observar simples-
mente um fenômeno não tem sentido em ciência.
Uma vez identificado o problema, o pesqui-
sador usa toda sua capacidade criativa para
propor uma explicação provisória para o proble-
ma. Essa explicação nada mais é do que um
palpite sobre o porquê da contradição entre o
conhecimento vigente e o fato. Esse palpite é a
hipótese. Uma hipótese científica, no entanto, não
é uma criação a partir do nada, em sua elaboração
o pesquisador lança mão das teorias vigentes rela-
cionadas ao problema em questão, reunindo, ana-
lisando e interpretando toda informação dispo-
nível sobre o assunto. Pode-se dizer, portanto,
que na elaboração de uma hipótese ocorre, em
geral, um processo de indução.
As hipóteses provisórias são, então, subme-
tidas a testes que ofereçam as mais severas condi-
ções para a crítica. Mas os únicos testes possíveis
são aqueles que, eventualmente podem mostrar
que a hipótese é falsa. Não existe maneira em
ciência de se mostrar que uma hipótese é
correta ou verdadeira. Assim, as hipóteses cien-
tíficas se credenciam por meio de testes de falsea-
bilidade. Neste tipo de teste, são feitas deduções
a partir da hipótese, ou seja, imaginadas situações
em que, se a hipótese for verdadeira (embora não
se possa provar que ela o seja), haverá uma ou
mais conseqüências específicas. As situações ima-
ginadas devem oferecer todas as condições para
que, se a hipótese não for correta, a previsão não
se confirme e, assim a hipótese seja refutada.
E se a hipótese não for refutada? Rigorosa-
mente devemos dizer que a hipótese não foi rejei-
tada ou refutada, e nunca que ela foi confirmada,
pois, como vimos acima, não é possível validar
uma hipótese positivamente, por mais rigor e
controle que tenham sido usados em seu teste.
Isso quer dizer que em ciência, podemos ter
certeza quando estamos errados, mas nunca
poderemos ter a certeza de estarmos certos.
Assim, o conhecimento científico e os resultados
emciêncianãodevemseraceitoscomodefinitivos
e inquestionáveis; uma explicação em ciência é
aceita enquanto não tivermos motivos para duvi-
darmos dela, ou seja, enquanto ela for “verda-
deira” acima de qualquer suspeita.
Como diz Bombassaro: “Especialmente em
ciência, aquele que julga ter encontrado uma
resposta conclusiva dá mostras não somente de
seu fracasso mas também do fracasso da própria
ciência. Aquele que for incapaz de transpor os
limites do pensamento dogmático, impostos pela
educação científica formal, e não aceitar o jogo
do pensamento crítico está longe de fazer ciência,
pois não poderá resistir à constante transforma-
ção das teorias, à mudança conceitual e ao cada
vez mais célere avanço do conhecimento.”
Sobre essa nova visão de ciência, que substi-
tuiu o dogmatismo vigente até o final do século
passado, François Jacob diz: “No final desse
século XX, é preciso que fique claro para todos
que nenhum sistema explicará o mundo em todos
os seus aspectos e detalhes. Ter ajudado na des-
truição da idéia de uma verdade intangível e
eterna talvez seja uma das mais valiosas contri-
buições da metodologia científica.”
Fatos, hipóteses, leis e teorias
O termo hipótese é muitas vezes usado como
sinônimo de “teoria”, mas há uma diferença en-
tre eles. Uma hipótese, como vimos, é uma tenta-
tiva de explicação para um fenômeno isolado, en-
quanto teoria é um conjunto de conhecimentos
mais amplos, que procura explicar fenômenos
abrangentes da natureza. A teoria celular, por
exemplo, procura explicar a vida a partir da estru-
tura e do funcionamento das células. A teoria da
gravitação universal procura explicar os movi-
mentosdoscorpospormeiodaforçadagravidade.
Uma lei, por sua vez, é uma descrição das
regularidades com que ocorrem as manifestações
de uma classe de fenômenos. As teorias estru-
turam as uniformidades e regularidades descritas
pelas leis em sistemas amplos e coerentes, relacio-
nando, concatenando e sistematizando classes de
fenômenos. Assim, embora seja universal, a lei
tem um universo limitado, enquanto que a teoria
abarca a totalidade do universo.
Os termos “hipótese” e “teoria”, usados na
linguagem do dia-a-dia, podem ter conotação
pejorativa: muitas vezes se usa a expressão “Isso
não passa de uma teoria” como se uma teoria
fosse inferior a um fato. Em ciência, porém, fatos,
8
hipóteses, teorias e leis são coisas diferentes, cada
uma ocupando seu lugar no conhecimento. A res-
peito disso escreveu recentemente o biólogo
norte-americano Stephen J. Gould: “[...] Fatos e
teorias são coisas diferentes e não degraus de
uma hierarquia de certeza crescente. Os fatos
são os dados do mundo. As teorias são estruturas
que explicam e interpretam os fatos. Os fatos
não se afastam enquanto os cientistas debatem
teorias rivais. A teoria da gravitação universal
de Einstein tomou o lugar da de Newton, mas as
maçãs não ficaram suspensas no ar, aguardando
o resultado. [...]”
A contribuição de Thomas Kuhn
Uma dificuldade na aplicação das idéias de
Popper é que grande parte dos cientistas, senão
todos, trabalham, não para provar o erro das
teorias, mas sim na tentativa de definir seus limites
de aplicação pela identificação de pontos em que
a teoria não funciona (i.e. as áreas nas quais ela
faz predições incorretas).
O início de uma solução para esse dilema
ocorreu na década de 1950, quando o físico e
historiador de ciência Thomas Kuhn (1923 -
1996) se interessou em saber porque os físicos
relutaram em abandonar a teoria newtoniana du-
rante o século XIX, apesar do acúmulo de evi-
dências contra ela. A partir do estudo da história
da Física, Kuhn concluiu que a ciência progride
de modo irregular. No livro The Structure of
Scientific Revolutions, publicado em 1962,
Thomas Kuhn defende a idéia de que o
progresso em ciência se dá em duas etapas que
poderíamos caracterizar como ajustes e mudan-
ças drásticas, ou, para ser mais atual, por um
equilíbrio pontuado. Kuhn salienta que, de tem-
pos em tempos, ocorre uma revolução na
maneira como os cientistas vêem seus proble-
mas de pesquisa e os tipos das observações e
experimentos que devem realizar. Alguma
grande idéia, audaz e insólita, os leva a ver os
dados existentes sob uma nova perspectiva,
sugerindo um novo programa de pesquisa. Estas
grandes idéias são, na terminologia de Kuhn,
paradigmas – “as realizações científicas
reconhecidas universalmente que durante um
certo tempo fornecem modelos de problemas e
soluções para uma comunidade de cientistas.”
Para Kuhn, um paradigma é uma maneira de
ver a natureza; o mundo continua o mesmo, mas
um novo paradigma mostra o que antes os cien-
tistas não conseguiam ver, pois vinham interpre-
tando os fatos a partir das teorias fornecidas pelo
paradigma em vigor. Como a ciência interpreta a
natureza sempre a partir de um ponto de vista
teórico, os problemas a serem resolvidos e as
soluções encontradas dependem do ponto de vista
teórico adotado pelos investigadores. Assim, um
novo paradigma seria uma mudança do ponto de
vista teórico adotado na interpretação de pro-
blemas e de soluções encontradas.
Uma vez ocorrida a “mudança de paradigma”,
o campo de pesquisa passa por um período que
Kuhn chamou de “ciência normal” durante o
qual os cientistas exploram e testam as implica-
ções do novo paradigma. O objetivo durante esse
período é determinar as condições limites do novo
paradigma-oslimitesdesuaaplicabilidade.Even-
tualmente as predições feitas pela nova teoria
começamasersubmetidasatestesdefalseabilidade.
A refutação de hipóteses previstas pela teoria,
no entanto, não leva os cientistas a abandonar de
imediato a teoria. Ao invés disso eles procuram
defendê-la invocando hipóteses auxiliares que
expliquem porque a teoria falhou naquelas
circunstâncias. Mas, eventualmente, o peso das
predições refutadas torna-se tão grande que a
teoria tem de ser abandonada. Nesse ponto,
alguém sugere um novo paradigma, uma nova
revolução científica irá ocorrer e um ciclo com-
pleto irá se iniciar novamente.
A seguir discutiremos dois grandes paradigmas
na história da Citologia. O primeiro foi a teoria
celular, que forneceu uma nova maneira de ver a
estrutura dos organismos. Este paradigma teve
um desenvolvimento lento mas, nos primeiros
dois terços do século XIX, ocupou a atenção de
muitos citologistas. A ciência normal que foi
estimulada por este paradigma resultou na
investigação de inúmeros tipos de organismos e,
quase sempre, suas estruturas microscópicas
“faziam sentido” nos termos da teoria celular.
Estes estudos também ampliaram os limites do
que poderia ser chamado de “célula”. A estrutura
dos tecidos dos seres humanos foi investigada em
grande detalhe e logo este conhecimento se
tornou de considerável importância na Medicina
como base da Patologia. A estrutura de células e
tecidos doentes tornou-se um dos critérios mais
eficientes para a identificação de doenças. Basta
dizer que durante o século XIX, o diagnóstico e
9
10
não a cura, foi o auge da realização na Medicina.
Os médicos eram muito mais capazes de identifi-
car as doenças do que curá-las.
Kuhn acredita que na maioria das vezes um
paradigma não evolui para um novo. Em vez
disso, a área toma uma nova abordagem inteira-
mente diferente com um novo paradigma. Gra-
dualmente os profissionais perdem interesse no
velho paradigma e começam a trabalhar nos
detalhes do novo, ou a maioria dos cientistas mais
velhos sai de cena com seu velho paradigma e os
jovens passam a fazer a ciência normal dentro
dos parâmetros do novo paradigma.
Isto aconteceu na Citologia. No último terço
do século XIX uma nova abordagem estava em
voga. O novo paradigma pode ser chamado de
teoria da continuidade cromossômica. Buscava-
se seguir o comportamento dos cromossomos na
mitose, na meiose e na fertilização. Muitos citolo-
gistas perderam o interesse em estabelecer se uma
outra criatura tinha o corpo composto por células
e, em vez disso, passaram a tentar descobrir qual
era o papel dos cromossomos no ciclo celular.
Mais uma vez, o novo paradigma fornecia uma
base conceitual para um importante fenômeno
biológico e guiava a pesquisa, a ciência normal,
que analisava os detalhes.
Aparente antagonismo entre as idéias de
Popper e Kuhn
A princípio as visões de Kuhn e de Popper
parecem ser diametralmente opostas. Elas, no
entanto, não podem ser comparadas nesses
termos, pois se referem a coisas distintas. A con-
cepção de Popper é uma declaração prescriptiva
do que os cientistas devem fazer se eles desejam
obter as coisas certas; a concepção de Kuhn é
normativa sobre o que eles realmente fazem. Esse
é o motivo, segundo o filósofo húngaro Imre
Lakatos, de os cientistas parecem se comportar
de acordo com a visão de Popper em certas
ocasiões, mas de acordo com Kuhn em outras.
Lakatos argumenta que essa aparente contradição
decorre do fato de os filósofos de ciência não
reconhecerem que esses dois casos envolvem
tipos de teorias radicalmente diferentes.
Cientistas, segundo ele, trabalham em um mundo
com diversos níveis no qual algumas teorias fun-
cionam de um modo programático enquanto
outras estão mais relacionadas com os detalhes
de como o programa funciona.
Uma teoria programática fornece aos cientistas
as razões para fazer um experimento particular
ou um modo particular de ver o mundo: ela
funciona como um paradigma kuhniano. Dentro
desse programa, os cientistas geram hipóteses
subsidiárias que especificam como a rede teórica
funciona na prática: é isso que os cientistas testam
em detalhe e aceitam ou rejeitam de um modo
popperiano. A teoria de evolução de Darwin por
meio da seleção natural, por exemplo, fornece
uma rede teórica aos biólogos de como interpretar
o mundo vivo. Isso estimula-os a interpretar suas
observações em um certo tipo de caminho e
sugere hipóteses particulares para serem testadas.
A hipótese subsidiária pode ou não ser correta,
mas sua rejeição não é por si só evidência de que
a rede conceitual é errada. Ela meramente nos
diz que a rede não produziu os efeitos na maneira
como nós supúnhamos.
Lakatos levanta outro ponto prático impor-
tante quando ele diz que não há razão para rejei-
tarmos uma teoria apenas porque existe evidência
contra ela. Sem uma rede conceitual, nós não
podemos fazer perguntas ou planejarmos experi-
mentos. Assim não devemos abandonar uma rede
teórica na ausência de uma melhor para substituí-
la. Na verdade, o melhor caminho para se
encontrar uma teoria alternativa é continuar
fazendo testes de hipóteses geradas pelo velho
paradigma. Fazendo isso, nós temos a chance de
descobrir algum fato crucial que nos levará a um
novo paradigma.
Teorias são idéias ou modelos de como o
mundo funciona. Nós trabalhamos dentro de um
mundo estritamente teórico deduzindo que conse-
qüências devem acontecer a partir das suposições
e premissas do modelo; nós então testamos a vali-
dade do modelo comparando as previsões con-
tra o mundo real. Uma vez que o modelo fornece
previsões que coincidem com o que realmente
observamos, nós continuamos a desenvolver o
modelo. Mas quando o modelo falha ao prever
corretamente a realidade, nós alteramos o modelo
ou procuramos elaborar um melhor. Ciência, em
outras palavras, é um processo de retro-alimenta-
ção: ela aprende a partir de seus próprios erros.
Seu comportamento é darwiniano, no sentido de
que apenas as teorias bem sucedidas sobrevivem.
Essas mudanças na perspectiva de como os
cientistas realmente trabalham levam-nos a uma
importante reinterpretação das relações entre
11
Nota (texto extraído do livro Sementes da descoberta
científica, de W. I. B. Beveridge, tradução de S. R.
Barreto. T. A. Queiroz, Editor, Ltda e EDUSP, São
Paulo, 1981):
“Na serendipidade [ou, serendipismo], o cientista
depara com um acontecimento incomum, ou uma
coincidência curiosa de dois acontecimentos não
incomuns, ou um resultado experimental inesperado.
Não é o caso, aqui, de juntar idéias já meio formadas,
ou procurar analogias sugeridas, porque o próprio
observado é a descoberta, ou pelo menos um forte
indício da descoberta; ela aparece de surpresa e
pode ser recebida com dúvidas ou mesmo incredu-
lidade. Enquanto uma intuição do tipo eureka
provoca a exclamação “achei!”, isto é, uma solução
intensamente procurada, na serendipidade se
experimenta uma reação completamente diferente
- alguma coisa foi encontrada, mas alguma coisa
que não estava sendo procurada. Não é uma intui-
teoria e dados. Somos obrigados a fazer uma
separação bem definida entre o mundo teórico e
o mundo dos dados empíricos. Isso cria uma
concepção de ciência circular ao invés de linear.
Ela envolve dois mundos distintos mas paralelos
(o mundo teórico no qual residem as teorias, e o
mundo empírico das observações), ligados por
um processo de retro-alimentação de testes de
hipóteses:
MUNDO TEÓRICO
rede teórica teoria subsidiária hipótese
MUNDO EMPÍRICO
fatos previsões
. .
/
#
#
EXERCÍCIOS
PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS
Preencha os espaços em branco nas frases de
1 a 13 usando o termo abaixo mais apropriado.
(a) ciência normal (g) lei
(b) conhecimento científico (h) paradigma
(c) dedução (i) prova empírica
(d) fato (j) senso comum
(e) indução (k) teoria
(f) hipótese
1. Um conjunto de idéias inter-relacionadas que
procura explicar fatos abrangentes constitui
um(a) ( ).
2. Um “palpite” sobre o porquê da ocorrência
de um fenômeno é um(a) ( ).
3. ( ) é qualquer dado da natureza.
4. Uma previsão do que irá ocorrer em
determinada situação, tendo por base uma
explicação provisória para um fato, é um(a) ( ).
5. A reunião de diversas informações sobre um
fato, na tentativa de encontrar uma explicação
para sua ocorrência, é um(a) ( ).
6. Uma realização científica universalmente
reconhecida que, durante algum tempo, fornece
problemas e soluções modelares para uma
comunidade de praticantes de uma ciência é,
na visão de Kuhn, um(a) ( ).
7. Uma evidência baseada na observação de um
fenômeno natural ou experimental é um(a) ( ).
ção. Dois exemplos clássicos são os de Colombo,
descobrindo o Novo Mundo enquanto procurava um
caminho para o Oriente, e o da descoberta do raio-
X por Röentgen, no qual poucos acreditaram no
começo. A serendipidade é definida, em três dicio-
nários que eu consultei, como “o dom de encontrar
coisas valiosas em lugares inesperados por pura sorte”,
“a faculdade de fazer felizes e inesperadas des-
cobertas por acidente” e “um suposto dom de encontrar
coisas valiosas e agradáveis que não se buscava.” A
palavra serendipidade (serendipity) foi cunhada por
Horace Walpole, em 1754, depois de ler um antigo
conto de fadas oriental sobre três príncipes de
Serendip [antigo nome do Ceilão]. Walpole
escreveu: “eles estavam sempre fazendo desco-
bertas, por acidente e sagacidade, de coisas que
não estavam procurando [...] deve-se observar que
nenhuma descoberta de algo que se está procu-
rando surge como nesta descrição.”
8. A descrição das regularidades das manifes-
tações de uma classe de fenômenos é um(a) ( ).
9. Uma definição de ( ) pode ser: “um corpo de
conhecimento obtido através de inferências
lógicas baseadas em observações empíricas.”
10. ( ) é uma forma de conhecimento que não
se preocupa com as explicações para os fenô-
menos naturais e quando as propõem não se
preocupa em apresentar provas.
11. ( ), na visão de Kuhn, é o tipo de inves-
tigação que procura consolidar realizações
científicas passadas.
PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS
Utilize as alternativas abaixo para completar as
frases das questões 12 e 13.
a. (1) dedução e (2) hipótese.
b. (1) hipótese e (2) dedução.
c. ambas hipóteses.
d. ambas deduções.
12. (1) Se os bichos-da-goiaba surgem de ovos
depositados por moscas na fruta, (2) goiabas
ensacadas não devem ficar bichadas. As partes
(1) e (2) dessa frase são ( ).
13. Há mais de 100 anos, Charles Darwin e seu
filho Francis (1) imaginaram que as plantas
percebiam a luz através da ponta do caule e,
assim, se curvavam em direção à fonte lumi-
nosa. (2) Se fosse esse o caso, plantas deca-
pitadas, ou com a ponta do caule coberta, não
se curvariam em direção a uma fonte luminosa.
As partes (1) e (2) desse texto são ( ).
Utilize as alternativas abaixo para completar as
frases de 14 a 18.
(a) dedução (c) hipótese (e) teoria
(b) fato (d) lei
14. A idéia de que o universo surgiu entre 12 e
20 bilhões de anos atrás, a partir de uma grande
explosão, explica e relaciona diversos fenôme-
nos naturais. Por isso é considerada um(a) ( ).
15. Galileu, após realizar inúmeras observa-
ções,firmou que a velocidade de um corpo que
cai livremente, a partir do repouso, é propor-
cional ao tempo e que o espaço percorrido é
proporcional ao quadrado do tempo empregado
para percorrê-lo. Isso é um(a) ( ).
16. A idéia de que a célula é a unidade morfo-
fisiológica dos seres vivos é um(a) ( ).
17. Os aristotélicos diziam que as maçãs caem
para baixo e não para cima por ser próprio da
natureza das coisas terranas cair para baixo.
Essa idéia pode ser considerada um(a) ( ).
18. Segundo dizem, Newton observou uma
maçã se desprender da macieira e cair ao chão.
Isso é um(a) ( ).
Utilize as alternativas abaixo para completar as
frases de 19 a 23.
(a) Bacon (d) Kuhn
(b) Dobzhansky (e) Popper
(c) Hipócrates
19. A hipótese da pangênese foi proposta origi-
nalmente por ( ).
20. A frase “Nada em Biologia faz sentido a não
ser sob a luz da evolução.” é de autoria de ( ).
21. A idéia de que uma hipótese só pode ser
credenciada por meio de testes de falseabi-
lidade, pois é impossível demonstrar sua vera-
cidade, está ligada a ( ).
22. ( ) é considerado um dos introdutores de
uma nova forma de investigar a natureza, a qual
está na origem da ciência.
23. As expressões paradigma e ciência normal
estão ligadas ao pensamento de ( ) sobre como
ocorre o progresso em ciência.
Utilize as alternativas abaixo para completar as
frases de 24 e 25.
(a) conhecimento científico (e) teoria
(b) senso comum (d) fato
(c) dedução
24. A prática de salgar alimentos, como carne
e peixe, para conservá-los pode ser conside-
rada como ( ).
25. A idéia de que a presença de sal em alimen-
tos, como carne e peixe, ajuda na sua conserva-
ção porque destrói os microorganismos por cho-
que osmótico, pode ser considerada como ( ).
PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR
26. No que o caminho da ciência se diferencia
dos da filosofia e da religião?
27. O que deve levar um pesquisador a iniciar
uma investigação científica?
28. Qual é a essência do método científico, ou
seja, no que ele difere do método clássico
(teológico-medieval) de se pensar a natureza?
29. O que é a dedução no método científico?
Qual é seu valor? No que ela difere da dedução
dos antigos filósofos e teólogos?
12
Bibliografia complementar
ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao
jogo e suas regras. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1993
BOMBASSARO, L. C. Ciência e mudança
conceitual. notas sobre epistemologia e história
da ciência. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
BRONOWSKI, J. O senso comum da ciência.
Belo Horizonte: Itatiaia/ EDUSP, 1977.
BRONOWSKI, J. O homem e a ciência. Belo
Horizonte: Itatiaia/ EDUSP, 1979.
30. Qual é a principal característica do método
dedutível - falseável?
31. Segundo Hanson, ver é um ato complexo
que traz consigo uma ‘carga teórica’. Para
ilustrar isso ele propõe a seguinte situação:
“Pensemos em Johannes Kepler. Vamos imagi-
ná-lo no alto de uma colina olhando o
amanhecer. Com ele está Tycho Brahe. Kepler
considera que o Sol está fixo, e a Terra se move.
Mas Tycho, seguidor de Aristóteles e Ptolomeu,
ao menos neste particular, sustenta que a Terra
está fixa e que os demais corpos celestes se
movem ao redor dela. Vêem Kepler e Tycho a
mesma coisa no leste ao amanhecer?”
32. Analise as imagens da ciência e dos cien-
tistas veiculadas em propagandas na televisão.
Elas correspondem à realidade? Que tipo de men-
sagem elas procuram passar ao consumidor?
33. Você está assistindo a um filme na televisão
e, de repente, a imagem some. O que você faria
com as mãos e com a mente? Descreva seu
raciocínio em uma folha de papel. O que pode
ser considerado
(a) atitudes baseadas no senso comum;
(b) atitudes baseadas no conhecimento científico?
(c) Tente identificar nas suas atitudes: hipóte-
ses, teorias, fatos, leis e deduções.
13
34. “Ignac Semmelweis, numa época em que
nada se sabia sobre microorganismos, fez uma
pesquisa sobre as causas da febre puerperal
no Hospital Geral de Viena e propôs um modelo
para a compreensão do processo pelo qual ela
era transmitida. Médicos e estudantes de
medicina dissecavam cadáveres e examinavam
mulheres doentes para, logo em seguida, ir
cuidar de parturientes sadias. Uma percen-
tagem muito alta destas últimas contraía a
doença e morria. Semmelweis sugeriu que a
doença era transmitida pela matéria putrefata,
que andava nas mãos de médicos e estu-
dantes.” (Alves, 1993)
Identifique no texto acima: hipóteses, teorias,
fatos e deduções. Existe alguma hipótese que
possa ser testada por falseabilidade? Se existir,
comente o tipo de teste a ser realizado e as
interpretações dos possíveis resultados.
35. Albert Einstein disse uma vez que
consideraria seu trabalho um fracasso se no-
vas e melhores teorias não viessem substituir
as suas. Comente essa frase no contexto da
visão moderna de conhecimento científico.
DUNBAR, ROBIN I. M. The trouble with sci-
ence. Cambridge Massachusetts: The Harvard
University Press,1995
FREIRE-MAIA, N. A ciência por dentro. 2ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1992.
KÖCHE, J. C. Fundamentos da metodologia
científica. 13ª ed. Porto Alegre: EDUCS/EST/
Vozes, 1992.
POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. Belo
Horizonte: Itatiaia / EDUSP, 1975.
ZIMAN, J. Conhecimento público. Belo
Horizonte: Itatiaia / EDUSP, 1979.
Segunda aula
(T2)
Texto adaptado de:
MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing -
Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986.
A DESCOBERTA DA CÉLULA
O nascimento da Citologia pode ser fixado com
considerável precisão. No dia 15 de abril de 1663,
Robert Hooke (1635-1703) colocou um pedaço
de cortiça sob seu microscópio e mostrou sua es-
trutura a seus colegas daRoyal Societyde Londres.
A Royal Society havia sido fundada no ano
anterior com o intuito de melhorar o conheci-
mento sobre a natureza. Ela reunia uns poucos
homens cultos de Londres que se encontravam
regularmente, em geral semanalmente, para
discutir assuntos científicos e como o conheci-
mento poderia ser usado para melhorar as
atividades práticas. A inspiração para a formação
da Royal Society veio de uma sugestão anterior
de Francis Bacon.
Hooke, um matemático de excepcional habili-
dade, era um membro muito ativo da Royal So-
ciety. Era costume entre os membros não apenas
discutir mas também realizar experimentos e fazer
demonstrações. Havia um grande interesse no
novo microscópio que Hooke havia construído e
ele deixou que os membros da sociedade olhas-
sem partes de um musgo em seu microscópio no
dia 8 de abril de 1663. No dia 15 daquele mês o
“Sr. Hooke apresentou dois esquemas
microscópicos, uma representação dos poros da
cortiça, cortados transversal e perpendicular-
mente ...”. Esse era o começo de dois séculos de
observações e experimentações que estabeleceram
a Teoria Celular.
As várias observações de Hooke foram reunidas
epublicadasem1665comotítulodeMicrographia,
sob os auspícios da Royal Society. Essa foi a pri-
meira visão geral de uma parte da natureza até então
desconhecida. Hooke descreveu e ilustrou muitos
objetos em sua publicação: a cabeça de um alfinete,
muitos insetos pequenos e suas partes, penas,
“enguias”[nematódeos]dovinagre,partesdemuitas
plantas, cabelo, bolores, papel, madeira petrificada,
escamas de peixe, seda, areia, flocos de neve, urina,
e, é claro, aquele pedaço de cortiça. (Fig. 1)
Hooke imaginou que a cortiça consistia de inú-
meros tubos paralelos com divisões transversais:
“Estes poros, ou células, não eram muito fundos,
mas consistiam de um grande número de peque-
nas caixas, separadas ao longo do comprimento
14
AS ORIGENS DA BASE CITOLÓGICA
DA HEREDITARIEDADE
Objetivos
1. Descrever como e quando foi descoberta a célula.
2. Explicar a idéia central e a importância da teoria celular.
3. Discutir as dificuldades para se identificar os gametas
como células.
4. Descrever os passos que levaram à compreensão da im-
portância do núcleo celular.
5. Identificar as dificuldades paraa compreensãodo proces-
so de divisão celular.
6. Descrever o raciocínio dedutivo que levou à conclusão de
quea mitosenão seria o único tipo de divisão celular.
7. Descrever as meioses masculina e feminina em Ascaris.
8. Explicar o papel da meiose e da fertilização no ciclo de
vida dos organismos.
9. Listar os principais argumentos que levaram alguns cito-
logistas no final do século XIX a defender a idéia que os
cromossomos seriam a base física da herança.
dos tubos por uma tipo de diafragma.” Ele obser-
vou estruturas semelhantes em muitos outros
tipos de plantas. Muitos pensam que Hooke des-
creveu aquelas caixas como vazias e parou por
aí. Isso não é verdade, ele observou cortes de
plantas vivas e verificou que as caixas microscó-
picas eram preenchidas por um suco.
A presença de células na cortiça e em outras
plantas poderia ser uma característica geral ou
poderia ser restrita a uns poucos tipos de organis-
mo. A continuação das pesquisas iria mostrar que
as plantas consistiam inteiramente ou quase intei-
ramente de estruturas parecidas, semelhantes a
caixas. Um outro membro da Royal Society,
Nehemiah Grew (1641 - 1712), publicou uma
monografia em 1682 que contém muitas pranchas
belíssimas mostrando a estrutura microscópica
das plantas. Com o tempo, a idéia de que os seres
vivos são formados por células foi estendida para
os animais. Hooke havia feito uma observação
interessante que não foi importante na sua época
– ela se tornou uma descoberta importante muito
mais tarde, em função de pesquisas posteriores.
Mais de dois séculos foram necessários para
se chegar à conclusão que o conhecimento das
células era essencial para a compreensão da here-
ditariedade. Podemos ter certeza que, quando
Robert Hooke sentou-se à frente de seu micros-
cópio, ele não estava interessado em descobrir
os mistérios da herança. Não havia maior razão
para acreditar que as células tivessem algo a ver
com a hereditariedade do que, por exemplo, as
cerdas que ele descreveu em detalhe sobre o
corpo de uma pulga.
O ESTABELECIMENTO DA TEORIA CELULAR
As células se tornaram verdadeiramente impor-
tantes somente quando foi proposta a hipótese de
que os corpos de todos os organismos eram consti-
tuídos apenas de células ou de produtos de células.
Essa hipótese foi formulada e testada no começo
do século XIX e está associada principalmente a
três cientistas: R. J. H. Dutrochet, Matthias Jacob
Schleiden e Theodor Schwann.
Mas como alguém poderia provar que “os
corpos de todos os organismos são constituídos
apenas de células ou de produtos de células?”
Ao tentar responder essa questão pode-se
aprender algo muito importante sobre ciência. A
resposta é, obviamente, que não há nenhuma pos-
sibilidade dessa afirmação ser comprovada. Como
alguém poderia estudar todos os organismos? A
maioria já se extinguiu há muito tempo e não seria
nem mesmo possível estudar um indivíduo de
cada uma das espécies viventes. Qual seria sua
resposta se alguém lhe perguntasse se os corpos
dos dinossauros eram constituídos de células?
Mas lembre-se, tudo o que se pode desejar em
ciência é que uma afirmação seja “verdadeira
acima de qualquer suspeita.”
Após as observações iniciais de Hooke, foi
verificado que as células eram uma caracte-
rística comum das plantas. Mais e mais plantas
de uma quantidade crescente de espécies fo-
ram estudadas e todas apresentavam estruturas
semelhantes a células. Foi observado que essas
estruturas microscópicas não tinham todas a
forma de caixa como as células da cortiça.
Descobriu-se que as células podiam ter diversas
formas e tamanhos. Não podemos esquecer que
esses microscopistas pioneiros não estavam
observando células como as entendemos hoje,
eles observavam paredes celulares.
Schwann e as células nos animais
Com poucas exceções, o corpo dos animais
não continha estrutura alguma que se parecesse
com “células”, isto é, com as paredes celulares
das plantas. Assim, foi necessário muito trabalho
e imaginação arrojada até tornar óbvio que o con-
ceito de célula podia ser aplicado com sucesso
aos animais. Isso foi conseguido principalmente
por Theodor Schwann (1810-1882) em sua
monografia de 1839, publicada quando ele tinha
29 anos de idade. Algumas de suas ilustrações
estão reproduzidas na figura 2.
15
Figura 1. Desenhos de cortes de cortiça ao micros-
cópio publicados por Hooke em 1665.
Figura 2. Algumas das ilustrações apresentadas por Schwann em sua mono-
grafia de 1839: A.) células de cebola; B.) de notocorda de um peixe; C.)
de cartilagem de rã; D.) de cartilagem de girino; E.) de músculo de feto de
porco; F.) de embrião de porco; G.) de gânglio de rã; H.) de um vaso
capilar da cauda de girino;I.) de embrião de porco. Note que o núcleo e os
nucléolos estão mostrados em quase todas as células.
Schwann enfatizou a gran-
de diferença entre as células
das plantas e o que ele acredi-
tava serem as células dos
animais, mas sugeriu que elas
representavam fundamental-
mente a mesma coisa.
Por que chamar todas essas
estruturas tão diversas de
células?
Procure examinar fotomi-
crografias de diversos tipos de
células de plantas e especial-
mente de animais, ou melhor,
caso tenha oportunidade, ob-
serve preparações citológicas
desses tipos no microscópio.
Como é possível dizer que
cérebro, músculos, rins, pul-
mões, sangue, cartilagens,
ossos, parede intestinal etc.
são feitos de um mesmo tipo
de elemento? Já que essas
estruturas são obviamente tão
diferentes, por que afirmar
que elas são constituídas pelos
mesmos tipos de elementos?
Qual seria a vantagem em se afirmar que as
“células” animais correspondiam àquelas
estruturas com aspecto tão diferente presentes
nas plantas?
Schwann nos fornece a resposta, “Se, no
entanto, analisarmos o desenvolvimento desses
tecidos, então parece que todas essas diversas
formas de tecidos são constituídas apenas por
células e são análogas às células das plantas ...
O objetivo do presente tratado é provar essa idéia
por meio da observação.”
Isto é, apesar da grande diversidade, todas as
estruturas que Schwann propunha chamar de
células tinham em comum a característica de se
desenvolverem a partir de estruturas muito mais
simples que podiam ser melhor comparadas com
as células das plantas. Mas, como se poderia
definir “célula”?
Se um neurônio e um leucócito são células, eles
devem ter algo em comum para serem reunidos
em uma mesma categoria. Schwann encontrou
um critério: a presença de núcleo, que ele achava
mais importante do que a origem de células alta-
mente diferenciadas a partir de células simples.
Apenas seis anos antes, em 1833, Robert Brown
(1773 - 1858), o mesmo que descreveu o poste-
riormente denominado “movimento Browniano”,
havia descrito a presença de uma auréola circular,
ou núcleo, em células de orquídeas e de muitos
outros tipos de plantas. Antes dele, outros observa-
dores já haviam visto e desenhado essas estruturas
em suas publicações, mas não atribuíram nenhuma
importânciaaelas.Brownverificouquemuitostipos
decélulacontinhamnúcleomasnãoespeculousobre
seu significado.
Schwann então mudou as regras para definir
célula. Ao invés de se basear na forma, que nas
plantas correspondia à estrutura da parede, ele
escolheu como base para a definição, a presença
de um núcleo.
Embora Schwann fosse um observador cuida-
doso, sua principal contribuição não foi o que
ele viu mas como ele interpretou as observações.
Seus antecessores haviam enfatizado as “caixas”;
16
A B C
D
H
E
F
I
G
Schwann deu ênfase ao que estava dentro das
“caixas”. Para ele a célula animal era uma porção
de matéria viva envolta por uma membrana e
contendo um núcleo, enquanto que as células
vegetais eram ainda envoltas por uma parede.
O que essa nova visão de célula tem a ver com
hereditariedade? Muito pouco, tem que se admitir.
Seriam necessárias outras duas informações antes
que as células pudessem ser consideradas impor-
tantes para a hereditariedade: a descoberta de que
os gametas são células e o reconhecimento de que
células só se originam de células pré-existentes.
O reconhecimento dos gametas como células
Schwann reconheceu os óvulos como células,
uma vez que eles apresentavam a estrutura reque-
rida por sua definição de célula – o núcleo. A
natureza do espermatozóide era menos clara. Seu
nome, que significa “animais do esperma”, indica-
va essa incerteza. Em 1667, Antonie van Leeu-
wenhoek havia descoberto e comunicado àRoyal
Society de Londres que o fluido seminal continha
criaturas microscópicas que ele imaginou que
entrassem no óvulo causando sua fertilização.
Essa hipótese foi muito contestada e alguns cien-
tistas imaginaram que os espermatozóides fossem
parasitas. Na décima segunda edição do livro
Systema Naturae (1766 - 1768), Linnaeus tentou
classificar os “animais” encontrados no esperma
por Leeuwenhoek, mas concluiu que a determi-
nação de seu lugar correto no sistema de clas-
sificação deveria ser deixado para quando eles
tivessem sido mais pesquisados.
Cerca de um século mais tarde, em 1784, Spal-
lanzani realizou importantes experimentos com o
objetivo de determinar a função do sêmen na
reprodução de rãs. Durante o acasalamento, os
machosabraçamasfêmease,comosabemosatual-
mente,depositamespermasobreosóvulosàmedida
que estes saem pela abertura cloacal. De início,
Spallanzaninãosabiadisso,foielequemdescobriu.
Um outro pesquisador com quem ele se corres-
pondiahaviatentado,semmuitosucesso,descobrir
opapeldasrãsmachosvestindo-ascomcalças.Spal-
lanzani repetiu esse experimento e verificou que,
quando o sêmen ficava retido nas calças, os ovos
nãosedesenvolviam.Noentanto,seosovosfossem
colocados em contato com o sêmen retirado das
calças,emumprocessodefecundaçãoartificial,eles
passavam a se desenvolver. Em um outro experi-
mento,Spallanzanifiltrouosêmeneverificouque,
comisso,eleperdiaseupoderfecundante.Eleobser-
vouoquehojechamamosdeespermatozóides,mas
não os considerou essenciais para a reprodução.
Foi somente em 1854 que George Newport,
usando rãs, forneceu boas evidências de que os
espermatozóides entram no óvulo durante a fecun-
dação(Nessecaso,comoemmuitosoutros,édifícil
darcréditoaocientistaquedescobriuumimportante
fenômenobiológico.Afinal,odescobridordoesper-
matozóide, Leeuwenhoek, havia pensado que o
espermatozóideeraoagentedafertilização.Outros
antecessores de Newport eram da mesma opinião,
masfoiNewportquemfezasprimeirasobservações
convincentes. Em 1841, Kölliker estudou a
histologia dos testículos verificando que algumas
das células testiculares eram convertidas em esper-
matozóides. Os espermatozóides tinham uma
aparência tão estranha que não eram considerados
células. No entanto, quando se pôde demonstrar
que eles se originavam de células típicas, sua
verdadeira natureza tornou-se evidente. Os esper-
matozóidespassaramentãoaserconsideradoscomo
célulasaltamentemodificadas.
Vejamos o que se pode concluir dessa análise:
1. Os gametas são a única ligação física entre as
gerações, pelo menos em muitos organismos
e possivelmente em todos.
2. Portanto, os gametas devem conter toda a
informação hereditária.
3. Uma vez que óvulos e espermatozóides são
células, toda informação hereditária precisa
estar contida nestas células sexuais. Portanto,
a base física da herança são as células sexuais.
Isto não permite concluir que todas as células
contenham informação hereditária. Poderíamos
ainda pensar que os gametas são células
especializadas onde os fatores responsáveis pela
herança, talvez as gêmulas, entram. Nós ainda
necessitamos de uma segunda informação: “Qual
é a origem das células?”
Omnis cellula e cellula
A divisão celular foi observada em 1835, mas,
nessaépoca,nãoseconcluiuquefosseumfenômeno
geral. Schwann, por exemplo, acreditava que as
células podiam surgir espontaneamente por agluti-
naçãodesubstânciasamorfas.Essahipóteseassumia
que a origem das células é um evento episódico no
17
ciclo de vida dos organismos. Se isso fosse verdade,
a unidade da hereditariedade seria o organismo todo
e não a célula.
A hipótese de Schwann sobre a origem das
células foi logo rejeitada, uma vez que a divisão
celular estava sendo observada com freqüência
em uma variedade de organismos e em diferentes
épocas do desenvolvimento. Mais e mais investi-
gadores começavam a suspeitar que a divisão
celular era o único mecanismo para a produção
de novas células.
Essa foi uma hipótese muitíssimo difícil de se
provar acima de qualquer suspeita. Os micros-
cópios e as técnicas para se estudar as células, no
começo do século XIX, eram muito inadequados
e foi preciso muita observação em diferentes tipos
de organismos e de tecidos antes que Rudolph
Virchow pudesse, em 1855, cunhar sua famosa
frase omnis cellula e cellula (“toda célula vem
de célula”) e que ela fosse amplamente aceita.
Em uma conferência proferida em 1858 ele apre-
sentou a idéia de que uma célula só surge de outra
célula pré-existente.
É claro que nem todos concordaram com a
idéia de Virchow de que todas as células e todos
os organismos originavam-se de células e de orga-
nismos pré-existentes. Muitos pesquisadores
continuavam a acreditar que células podiam se
originar de novo e apresentavam o que pareciam
ser observações acuradas para provar isso. Alguns
acreditavam até mesmo que organismos comple-
tos podiam se originar de novo. Pasteur e a acei-
tação geral de que geração espontânea não pode
ocorrer ainda estavam no futuro. Mesmo assim,
as duas hipóteses apoiadas por Virchow foram
testadas em um número crescente de pesquisas
e, gradualmente, elas se estabeleceram comouma
verdade acima de qualquer suspeita.
Não restando, portanto, dúvida alguma de que
a hereditariedade está baseada na continuidade
celular, podemos trabalhar agora com a hipótese
de que toda informação hereditária está contida
não apenas nas células germinativas mas também,
muito provavelmente, nas células a partir das
quais elas se formam – e em todas elas até o
zigoto. Igualmente possível é a hipótese de que
todas as células contenham a informação heredi-
tária necessária para o desenvolvimento do indiví-
duo e à sua transmissão, via células sexuais, para
a geração seguinte.
O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
E A CITOLOGIA
Durante a maior parte da história da humani-
dade as pessoas se basearam quase que inteira-
mente em seus órgãos dos sentidos para obter
informações sobre o ambiente. Cada um de nossos
órgãos sensoriais detecta apenas uma pequena
porção da ampla gama de estímulos possíveis.
Nossos olhos, por exemplo, só conseguem res-
ponder à porção do espectro eletromagnético
entre o violeta e o vermelho de modo que só
conseguimos ver os comprimentos de onda en-
tre essas duas cores. Para detectar comprimentos
de onda menores, como luz ultra-violeta, raios-
X e raios cósmicos, ou comprimentos de onda
maiores, como luz infra-vermelha e ondas de
rádio, precisamos utilizar instrumentos especiais.
A olho nu não conseguimos visualizar em
detalhe nem mesmo objetos em movimentação
rápida. As lâminas de um ventilador em movi-
mento rápido são vistas como um círculo contínuo
e uma bala que sai de um rifle é totalmente invisí-
vel para nós. Também não conseguimos ver
objetos muito pequenos. A aparente uniformi-
dade de uma ilustração com meios-tons resulta
do fato de os pontos individuais estarem tão jun-
tos que o olho humano não consegue distingui-
los. Os faróis de um automóvel aparecem como
um único ponto de luz até uma certa distância; à
medida que o automóvel se aproxima, somos
capazes de resolver o ponto único de luz em dois.
O poder de resolução do olho humano, ou seja,
sua capacidade de distinguir dois pontos muito
próximos, é da ordem de 100 micrômetros a uma
distância normal de leitura; a maioria das pessoas
com visão normal distingue dois objetos
separados por um espaço de um milímetro a uma
distância de 10 metros. Uma afirmação mais geral
é que o olho humano pode distinguir dois objetos
separados por um arco de 1 minuto. Esse valor
foi determinado por Robert Hooke que estava
preocupado em saber qual seria a menor distância
entre duas estrelas para que elas fossem vistas
como dois objetos separados. Quando elas
estavam a uma distância menor do que um arco
de 1 minuto, a maioria das pessoas as via como
um único ponto de luz. Algumas pessoas podem
ver melhor do que isso, mas o poder máximo de
resolução de nosso olho é de 26 segundos de arco.
18
Quase todas as células são muito pequenas
para serem vistas a olho nu, de modo que a Cito-
logia não foi possível, nem mesmo teoricamente,
antes da invenção do microscópio – o que ocorreu
provavelmente na última década do século XVI.
Um tempo relativamente longo se passou entre
essa invenção e 1663, quando Hooke fez a
demonstração daqueles pedaços de cortiça para
os membros da Royal Society. Na verdade, fo-
ram poucos os trabalhos sérios e contínuos com
microscópios antes do século XIX. Durante a
maior parte de sua história, os microscópios não
passaram de brinquedos de adultos.
O pequeno tamanho das células não é o único
problema que dificulta seu estudo. A maioria dos
animais e de seus tecidos é opaca e, uma vez que
a observação através do microscópio composto
é mais efetiva quando os objetos são iluminados
com luz transmitida, o objeto a ser estudado
precisa ser muito fino ou cortado em fatias bem
finas de modo que a luz possa atravessá-lo. Ima-
gine tentar cortar fígado, por exemplo, em fatias
com cerca de 10 micrômetros de espessura, para
que fosse possível estudá-lo no microscópio.
Além da quase impossibilidade de se fazer isso,
as células hepáticas, constituídas principalmente
de água, iriam secar rapidamente, tornando-se
uma massa enrugada. Esse é um problema espe-
cial com as células animais que não possuem uma
parede de suporte como as células das plantas.
Métodos muito especiais tiveram que ser
desenvolvidos pelos microscopistas do início do
século XIX quando eles quiseram aprender sobre
a natureza celular dos organismos e, mais tarde,
sobre a estrutura interna das próprias células.
Tornou-se uma prática comum tentar preservar
os tecidos de tal maneira que a estrutura de suas
células permanecesse intacta e que eles pudessem
ser cortados em fatias finíssimas.
O primeiro passo foi a fixação. Ela consistia
em tratar o material com álcool, com formaldeído,
ou com soluções de ácido pícrico, de bicromato
de potássio, de cloreto de mercúrio ou de tetró-
xido de ósmio. Essas substâncias matam e
endurecem as células, em geral, por coagular suas
proteínas. Esperava-se, é claro, que isso aconte-
cesse de tal forma que as partes das células conti-
nuassem a guardar uma certa semelhança com as
da célula viva.
O tecido fixado podia então ser embebido em
parafina para ganhar sustentação e ser fatiado com
lâminas cortantes ou em um instrumento
construído para essa finalidade – o micrótomo.
Mesmo essas fatias finíssimas podiam revelar
muito pouco; as células e seus conteúdos internos
eram indistinguíveis. Mas aqueles microscopistas
inventivos tentavam de tudo e logo descobriram
que alguns corantes tingiam certas partes das
células mas não outras.
Em 1858, Gerlach descobriu que uma solução
diluída de carmim corava mais intensamente o
núcleo do que o citoplasma das células. Essa
substância era obtida dos corpos secos da fêmea
de um inseto (Coccus cacti), conhecido popular-
mente como cochonilha-do-carmim, que vive em
cactos na América Central e sudoeste dos Estados
Unidos. Em 1865, Böhmer descobriu que a
hematoxilina, extraída do tronco de uma árvore
(Haematoxylon campechianum) da América Cen-
tral, também tinha maior afinidade pelo núcleo
do que pelo citoplasma.
Mais tarde foi sintetizada uma grande
variedade de anilinas para a indústria téxtil e, entre
1875 e 1880, muitas delas mostraram-se úteis
para corar células. Uma dessas anilinas era a
eosina, que mostrou ter uma grande afinidade por
proteínas citoplasmáticas. Um procedimento de
coloração citológica corriqueiro até hoje usa
hematoxilina e eosina (HE) e cora o núcleo em
azul e o citoplasma em laranja.
Da mesma forma, houve melhoria dos micros-
cópiosdisponíveisparapesquisascitológicas,princi-
palmente no final do século XIX. Muitas delas fo-
ramintroduzidasporErnstAbbe(1840-1905)epela
indústriaópticaZeissemJena,naAlemanha.Abbe
foi, durante a maior parte de sua vida, professor de
Física na Universidade em Jena e o principal
projetista de lentes da companhia Zeiss, da qual se
tornou dono. Em 1878, ele desenvolveu a objetiva
de imersão em óleo e, em 1886, a objetiva apocro-
mática.Essasmelhoriasnasmãosdeummicrosco-
pista habilidoso tornava possível a obtenção de
ampliações de até 2500 vezes. O microscópio
fotônico estava chegando ao limite de seu poder de
resoluçãoteórico.Esselimiteéimpostopelaprópria
natureza da luz; isto é, dois objetos só podem ser
resolvidos se a distância entre eles for, pelo menos,
igual à metade do comprimento da onda utilizado.
Oportunidades adicionais para se estudar a
estrutura fina das células estavam ainda para vir
com a invenção do microscópio de contraste-de-
fase e do microscópio eletrônico, no século XX.
19
Veremosaseguircomoosmicroscopistasdoúltimo
terço do século XIX foram capazes de usar a
tecnologiadisponívelnaépocaeestabelecer,como
uma hipótese altamente provável, que a base física
dahereditariedadeestánonúcleodacélula,oumais
especificamente nos cromossomos.
Não devemos ficar imaginando que esses
investigadores não faziam outra coisa senão
examinar células vivas e fixadas com o melhor
equipamento óptico disponível, descrevendo do
modo mais preciso o que viam. Um problema
constante era se uma dada estrutura observada
em uma preparação citológica refletia ou não algo
presente na célula viva, ou se era um simples arte-
fato resultante do drástico tratamento a que as
células eram submetidas para poderem ser
observadas no microscópio.
Uma preparação citológica realmente reflete
a estrutura de uma célula viva? A resposta é “Não
muito”; mas se o tratamento produz sempre o
mesmo resultado é possível imaginar como eram
as preparações quando vivas. Apesar disso,
nenhuma descoberta importante em Citologia no
século XIX foi aceita de imediato. As observações
eram repetidas e as conclusões originais confir-
madas por uns e contestadas com veemência por
outros. Uma interpretação errada podia fazer com
que muitos citologistas perdessem meses na
tentativa de repetir as observações. Aconteciam
debates intermináveis sobre a estrutura fina do
protoplasma uma vez que, como era admitido,
estava-se olhando para a base fundamental da
vida. Muitos citologistas acreditavam que o
protoplasma fosse granular, ou um retículo
fibroso, ou alveolar (composto de gotas) ou
alguma combinação disso.
A Citologia como um caminho para o conheci-
mento, especialmente no século XIX, nos mostra
que a ciência não progride de maneira ordenada
mas por meio de testes e retestes constantes das
observações, dos experimentos e das hipóteses.
Longe de ser uma linha direta em direção à
verdade, esse caminho assemelha-se mais àquele
retículo que alguns viam como a estrutura básica
do protoplasma. (Devemos ressaltar que o termo
protoplasma é raramente utilizado nos dias de
hoje. Uma vez que ele significa nada mais do que
“substância viva”, Hardin [1956] sugeriu que
poderíamos passar sem ele.)
O QUE EXISTE NAS CÉLULAS?
Durante a última metade do século XIX, a
hipótese de que os animais e plantas são
compostos somente de células e produtos
celulares estava estabelecida como uma verdade
acima de qualquer suspeita nas mentes da
maioria dos microscopistas competentes. Nós
podemos falar, então, da teoria celular, usando o
termo “teoria” como um corpo completo de
dados, hipóteses e conceitos relativos a um impor-
tante fenômeno natural. Até hoje a teoria celular
é o mais importante conceito relacionado com a
estrutura de animais e plantas e no século XX ele
foi sendo gradualmente aceito também como o
mais importante conceito relativo ao funciona-
mento dos organismos.
Essa enorme importância da teoria celular
decorre do fato de ela estabelecer que as células
são as unidades básicas de estrutura e função,
que elas são as menores unidades capazes de ter
vida independente, isto é, são capazes de usar
substâncias obtidas do meio para manter e
produzir o estado vivo. A célula é o denominador
comum da vida.
Existia uma outra razão importante para se
estudar as células: a análise dos níveis mais sim-
ples de organização contribuem para o enten-
dimento dos níveis mais complexos. As interações
das substâncias químicas são melhor entendidas
quando se conhece sua estrutura molecular. Os
movimentos do corpo humano podem ser
estudados em muitos níveis. Pode-se observar e
descrever os complexos movimentos de um
bailarino ou de um arremessador de beisebol. A
compreensão aumenta quando se obtém
informações sobre os diversos músculos e seus
locais de ligação, que tornam os movimentos
possíveis. Outros tipos de entendimento surgem
quando se estuda os músculos no nível molecu-
lar. E, finalmente, mais informações ainda são
obtidas quando se aprende sobre a atividade da
miosina, da actina e de outras moléculas que parti-
cipam da movimentação dos músculos.
O conhecimento obtido em cada nível de
organização contribui para um entendimento do
fenômeno como um todo, enquanto cada nível
mantém seu próprio valor. Entender a arte de um
bailarino ou de um esportista meramente com o
20
conhecimento sobre actina e miosina seria tão
impossívelquantopredizeraspropriedadesdaágua
a partir do conhecimento sobre os elementos
hidrogênioeoxigênio.Noentanto,pode-seconhecer
melhor os níveis mais complexos se conhecermos
os mais simples. Assim, os biólogos do século XX
já pensavam que poderiam saber mais sobre a vida
se conhecessem melhor as células.
Quandoexaminavamascélulas,aquelescitolo-
gistas pioneiros encontravam todo tipo de esferas,
de grânulos e de fibras. Como seria possível
determinar qual dessas estruturas teria um papel
na hereditariedade? Ou melhor, como seria
possível determinar a função de qualquer estru-
tura presente nas células?
Essa é uma questão difícil e os citologistas
daquela época não conseguiam respondê-la. Eles
não podiam fazer outra coisa senão investigar as
células de modo aleatório. Este foi um estágio
necessário no desenvolvimento da Citologia – a
identificação de estruturas nas células e, quando
possível, descobrir alguma coisa sobre seu
comportamento. Aparentemente se pesquisavam
células de todo animal e planta disponível à
procura de exemplos de estruturas celulares e,
um a um, todos os reagentes disponíveis nas
estantes dos químicos foram colocados sobre as
células e suas conseqüências observadas – em
geral matavam as células. Esse período da Cito-
logia foi de “procura e destruição.”
O núcleo efêmero
Como mencionado anteriormente, as dificul-
dades em se analisar células vivas fizeram das
preparações fixadas e coradas o material ideal de
estudo. Nesse tipo de preparação, a estrutura mais
proeminente é o núcleo descrito por Brown.
Muitos corantes, especialmente os corantes
básicos como o carmim e a hematoxilina, coravam
o núcleo profundamente; isto, juntamente com a
aparente presença universal do núcleo, sugeria
que ele tivesse um papel importante.
Mas qual seria a origem do núcleo da célula?
Levou mais de meio século de observações e
experimentações por parte de numerosos pesqui-
sadores para que essa questão fosse respondida.
Em 1835, Valentin sugeriu que o núcleo seria
formado pela precipitação de substâncias no in-
terior da célula. Três anos mais tarde, Schleiden
e, em seguida, Schwann também sugeriram que
o núcleo podia se originar de novo. Até por volta
de 1870, alguns pesquisadores famosos acre-
ditavam que pelo menos alguns núcleos podiam
ter uma origem não-nuclear.
Nessa mesma época, outros pesquisadores
igualmente competentes estavam clamando que
todos os núcleos surgiam de núcleos pré-
existentes. Diversos processos foram sugeridos
– em geral alguma forma de partição em dois ou
fragmentação, um mecanismo que mais tarde foi
denominado amitose.
Não havia nenhuma razão, é claro, porque os
núcleos teriam de surgir por apenas um tipo de
mecanismo. Considerando a enorme variedade de
fenômenos naturais, não seria surpresa se
houvesse diversas maneiras de surgimento de
núcleos. No entanto, os cientistas procuram regu-
laridades na natureza e seria mais satisfatório
intelectualmente se houvesse um mecanismo
constante para a origem do núcleo.
A DESCOBERTA DA DIVISÃO CELULAR
Em 1873, A. Schneider publicou o que agora
pode ser tomado como a primeira descrição
razoável das complexas alterações nucleares, hoje
chamadas de mitose, que ocorrem durante a
divisão da célula. Neste ano, Otto Bütschi e Her-
mann Fol fizeram descrições semelhantes.
A descrição de Schneider foi a mais completa;
seu objetivo era descrever a morfologia de
Mesostoma sp., um platelminto. Quase todo seu
trabalho é dedicado à estrutura desse verme mas,
sendo um observador cuidadoso, ele descreveu
tudo o que viu. A fertilização em Mesostoma sp.
é interna e o início do desenvolvimento ocorre
em um útero. As ilustrações do que ele viu estão
mostradas na figura 3.
Os primeiros desenhos mostram o ovo
rodeado por células foliculares. Na região bem
central está o pequeno núcleo com seu pequeno
nucléolo. As estruturas espirais são espermato-
zóides. O ovo é a área clara central da ilustração
e os glóbulos menores ao seu redor são as células
foliculares, que não foram representadas nos
desenhos seguintes. Pouco antes da célula se divi-
dir o limite do núcleo se torna indistinto. Schnei-
der, no entanto, verificou que com a adição de
um pouco de ácido acético ele se tornava visível,
apesar de dobrado e enrugado. Mais tarde o
nucléolo desaparecia e tudo o que restava do nú-
cleo era uma área clara na região central da célula.
21
No entanto, o tratamento com ácido acético mos-
trava uma massa de filamentos delicados e curvos.
O segundo desenho mostra esses filamentos, os
cromossomos (um termo que só seria proposto
em 1888, por Waldeyer) alinhados em uma placa
equatorial. A quantidade de filamentos parecia
aumentar e quando a célula se dividia eles iam
para as células-filhas.
O que alguém faria com essas observações?
A resposta está longe de ser clara. Se não era
possível ver os filamentos nas células vivas e, se
eles apareciam repentinamente quando as células
22
Figura 3. Ilustrações de Schneider (1873) das alterações nucleares durante a clivagem do ovo
de Mesostoma. À esquerda, desenho de um ovo (zona clara central, onde se vê o núcleo com
um nucléolo) rodeado por células foliculares. As outras figuras mostram os filamentos, hoje
chamados de cromossomos, e seus movimentos durante a divisão da célula.
Figura 4. Ilustrações de
Flemming de mitoses em
células fixadas e coradas de
embriãodesalamandra. A.)
Duas células em intérfase:
não existem cromossomos
visíveis.B.) Célulaempró-
fase:osnucléolosjádesapa-
receram, mas a membrana
nuclear continua intacta; o
citoplasmanãoestámostra-
do.C.) Célula em início de
metáfase: a membrana nu-
clear desapareceu e os cen-
trossomossesepararam.D.)
Uma preparação de
excelentequalidade,ondese
vê os cromossomos meta-
fásicos duplos, isto é, com-
postosporduascromátides.
E.) As cromátides se sepa-
ram e se movem para os
pólosdofuso.F.) Célulaem
final de divisão com os
cromossomos dos núcleos-
filhossendoenvolvidospela
membrana nuclear. (Flem-
ming, 1882)
A B
C D
E F
eram tratadas com ácido acético, não seria
razoável pensar que eles fossem um artefato? No
entanto, o fato de os filamentos serem obser-
vados repetidamente, e de eles parecerem sofrer
estranhos movimentos, sugeria que já estivessem
presentes na célula viva, numa forma invisível.
Flemming teve sucesso em determinar que os
eventosnuclearesobservadosnacélulaemdivisão
em materiais fixados e corados tinham sua
contrapartida na célula viva. Apesar de não ter
descoberto a mitose, devemos a ele mais do que
a qualquer outro o conceito de mitose que temos
hoje; apenas detalhes do processo foram adicio-
nados à sua descrição. (Fig. 4 e 5)
O sucesso de Flemming foi conseguido graças
a alguns fatores: material que ele selecionou para
seu estudo; ter sido cuidadoso em procurar nas
células vivas as estruturas observadas nas células
fixadas e coradas; ter à sua disposição microscó-
pios muito melhores do que os existentes ante-
riormente. O uso de células vivas, além de dar a
confiança de que o observado era real e não
artefato, permitiu também determinar a seqüência
dos eventos.
As fases da mitose
Costuma-se dizer que um núcleo que não está
sofrendo divisão encontra-se em repouso. Esse
é um termo infeliz pois sugere inatividade e hoje
nós sabemos que a maior atividade fisiológica do
núcleo acontece durante esse período. Flemming
não viu cromossomos nos núcleos em “repouso”
de células vivas. Esses núcleos pareciam não ter
nenhuma estrutura interna. Quando essas células
eram fixadas e coradas via-se que seus núcleos
continham uma rede densa com grande afinidade
por certos corantes, além de um ou dois grânulos
esféricos, os nucléolos.
Figura 5. Ilustrações de Flemming de mitose em células vivas de larva de salamandra. Os desenhos estão
organizados em seqüência, começando com a prófase, no canto superior à esquerda, e terminando com duas
células, na fileira inferior. Os dois últimos desenhos mostram os cromossomos vistos do pólo da célula e uma
telófase em vista lateral, respectivamente. O desenho mais à direita na segunda fileira mostra que os
cromossomos estão duplos. (Flemming, 1882)
23
Mudanças no núcleo são as primeiras evidên-
cias que a mitose está a caminho. No núcleo vivo,
aparentemente desprovido de estruturas, apare-
cem longos e delicados fios. Quando eles podem
ser vistos, é o começo da prófase. (A mitose é
um processo contínuo; ela é dividida em fases
pelos citologistas apenas com o intuito de facilitar
sua descrição.) Esses fios se condensam em
cromossomos que se posicionam no meio da
célula na metáfase, época em que a membrana
nuclear já desapareceu. Em células coradas pode-
se ver que os cromossomos estão presos a um
elaborada estrutura fibrosa – o fuso. Células
coradas podem mostrar também a presença de
minúsculos grânulos nas extremidades do fuso –
os centríolos. Elas podem mostrar também um
outro conjunto de fibras, os raios astrais, que
irradiam dos centríolos. Durante a anáfase das
células vivas, os cromossomos se separam em
dois grupos que se movem através do fuso para
pólos opostos da célula. Quando os cromossomos
atingem as extremidades do fuso, é a telófase.
Os cromossomos nas células vivas se tornam cada
vez menos distintos e a membrana nuclear se
refaz. O núcleo está de novo em “repouso”. O
que se pode concluir desse processo?
É óbvio que todas as estruturas celulares
precisam ser reproduzidas para que as células-
filhas sejam idênticas à célula-mãe. Flemming foi
capaz de explicar como isso acontece para os
cromossomos. Se os cromossomos de uma célula
vão ser divididos igualmente entre as células-
filhas, eles precisam dobrar em número em algum
estágio do ciclo celular. Flemming observou que,
quando os cromossomos aparecem pela primeira
vez no início da prófase eles já estão duplos;
assim, em algum momento entre seu desapareci-
mento na telófase e seu reaparecimento na pró-
fase, cada cromossomo deve ter se duplicado.
Hoje, é claro, nós consideramos os cromos-
somos como estruturas permanentes nas células
mesmo sendo eles visíveis apenas na mitose. Nós
também reconhecemos a individualidade dos
cromossomos, isto é, que eles existem em geral
em pares homólogos, cada par contendo um
conjunto específico de genes. Essas conclusões
poderiam ter sido tiradas a partir das observações
de Flemming? Na verdade não. E as hipóteses a
seguir, poderiam ser refutadas?
Você poderia argumentar o seguinte: como o
processo mitótico assegura que cada célula-filha
receba seu lote de cromossomos isto deve indicar,
sem muita dúvida, que um mecanismo tão elabo-
rado e preciso para duplicação e distribuição é
de importância fundamental. E o que pode ser
mais importante do que assegurar que os ele-
mentos controladores da hereditariedade e da vida
de cada célula cheguem até elas?
Mas alguém pode responder que, sendo as
células-filhas idênticas à célula-mãe, todos os
produtos celulares são reproduzidos. Pode-se
argumentar que é mero acidente que o processo
de reprodução e distribuição seja mais facilmente
observado nos cromossomos. Não existe razão,
portanto, para não assumirmos que cromosso-
mos, membranas celulares e todos aqueles
grânulos e glóbulos observados no citoplasma
possam ter igual chance de estarem envolvidos
na hereditariedade.
A DESCOBERTA DA MEIOSE
Flemming e muitos outros citologistas seus
contemporâneos estavam considerando que as
divisões mitóticas do núcleo aconteciam em toda
divisão celular. A reunião de inúmeras obser-
vações em células de um grande número de
espécies de plantas e animais permitia que se
fizesse esta afirmação geral. Note que isso é um
bom exemplo de indução.
Nós podemos agora usar essa afirmação
geral como uma hipótese a ser testada. Isto é,
nós podemos partir para um raciocínio dedu-
tivo. Por exemplo: se a hipótese de que o
núcleo sempre divide por mitose for verdadeira,
então o número de cromossomos deve dobrar
a cada geração. Isso seria inevitável. Como os
núcleos do óvulo e do espermatozóide se unem
na fertilização, caso eles se formassem por
mitose, o zigoto deveria ter duas vezes o
número de cromossomos de seus genitores.
Mas isso não acontece: Flemming e outros
citologistas estavam cientes de que o número de
cromossomos parecia ser o mesmo em todos os
indivíduos e em todas as gerações de uma espécie.
Obviamente existe um problema com essa
hipótese. Deveria haver algum mecanismo que
reduziria o número de cromossomos antes ou
durante a fertilização. Seria possível supor que,
quando os núcleos do óvulo e do espermatozóide
se fundiam na fertilização, os cromossomos tam-
bém se fundiriam uns com os outros, sendo que
metade de cada um deles seria destruída. Uma
24
hipótese alternativa é que ocorresse redução do
número de cromossomos durante a formação dos
óvulos e dos espermatozóides nas gônadas.
O significado dos corpúsculos polares.
Vários pesquisadores tinham descrito, em
diversas espécies animais, a eliminação de minús-
culas esferas na região do pólo animal do óvulo,
por ocasião da fertilização. Essas esferas logo
desapareciam e, como pareciam não ter função
alguma, foram denominadas corpúsculos polares.
Observou-se também que na partenogênese for-
mava-se um único corpúsculo polar, mas que nos
óvulos fertilizados eles sempre pareciam ser dois.
Em algumas espécies, um corpúsculo era formado
antes da fertilização e um segundo, depois da
entrada do espermatozóide. Em outras espécies,
os dois corpúsculos polares eram formados após
a fertilização. (Fig. 6)
Em 1887, August Weismann propôs uma
hipótese para explicar a constância da quanti-
dade de material hereditário de uma geração
para outra. Com base na observação de muitos
citologistas, ele diz: “pelo menos um certo
resultado sugere que exista uma substância
hereditária, um material portador de
tendências hereditárias, e que esta substância
está contida no núcleo das células germinativas,
no filamento enovelado no interior do núcleo
[alguns citologistas pensavam que os
cromossomos formavam um fio contínuo ou
espirema durante a interfase], que em certos
períodos aparece na forma de alças ou barras
[estes eram os cromossomos nos estágios
mitóticos]. Nós podemos, além disso, considerar
que a fertilização consiste no fato de um número
igual de alças [cromossomos] de cada genitor
ser colocado lado a lado, e que o núcleo do zigoto
é composto desta maneira. No que diz respeito a
esta questão, não tem importância se as alças
[cromossomos] dos dois pais se misturam mais
cedo ou mais tarde ou se permanecem separadas.
A única conclusão essencial necessária à nossa
hipótese é que a quantidade de substância
hereditária fornecida por cada um dos genitores
seja igual ou aproximadamente igual entre si.
Se for assim, as células germinativas dos
descendentes conterão os germoplasmas de am-
bos os pais unidos, isso implica que tais células
só podem conter metade do germoplasma
paterno, como estava contido nas células ger-
minativas do pai, e metade do germoplasma
materno, como estava contido nas células
germinativas da mãe.”
25
Figura 6. Ilustrações da meiose em fêmea de Ascaris. Anteriormente às etapas mostradas nos desenhos, os
cromossomoshaviamseduplicadoeseemparelhado,formandoduastétrades.Estassesepararamnaprimeiradivisão
meiótica e duas díades foram para o primeiro corpúsculo polar, enquanto que as outras duas permaneceram nos
óvulos. Isto é mostrado no desenho 33 de Boveri. No desenho 36, as díades estão em rotação antes da sua separação
na segunda divisão meiótica. O segundo corpúsculo polar pode ser visto na posição correspondente à das duas horas.
Os desenhos 42 e 43 mostram as díades se separando. No desenho 45, a segunda divisão já terminou e o segundo
corpúsculo polar com seus dois cromossomos aparece na superfície do óvulo; o primeiro corpúsculo polar está acima
dele. Os dois cromossomos no óvulo estão para formar o pró-núcleo feminino. O desenho 46 mostra o primeiro
corpúsculo polar na posição correspondente à das 3 horas, o segundo corpúsculo polar na superfície do óvulo, na
posição correspondente à das 12 horas, o pró- núcleo.
Fig. 33 Fig. 36 Fig. 42
Fig. 43 Fig. 45
Fig. 46
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Senso comum e ciência
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Senso comum e ciência
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Senso comum e ciência

  • 1. Primeiraaula (T1) Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. Além da racionalidade, uma segunda característica do conhecimento científico é a objetividade. Assim, em ciência deve-se fazer grande esforço no sentido de excluir ao máximo a rigidez de pensamento, a emoção, a aceitação prévia de afirmações, as opiniões pessoais não baseadas em informações científicas e as expli- cações sobrenaturais. O ideal seria acreditar só no que a natureza nos mostra e não no que gosta- ríamos que fosse verdade por razões pessoais, religiosas, políticas etc. O poder da ciência como caminho para o conhecimento reside no fato de que toda resposta, independentemente de como ela foi obtida, neces- sita ser confirmada por outros cientistas com igual sabedoria, perícia e receptividade. Assim, os procedimentos da ciência são autocorrigíveis. Nesse sentido, o caminho da ciência contrasta com o da filosofia, da religião e de muitas disci- plinas humanísticas em que a opinião freqüente- mente toma o lugar das conclusões verificáveis. O contraste entre esses dois modos de pensar é importante tendo-se em vista o objetivo da resposta que se procura. SENSO COMUM E CIÊNCIA Umacaracterísticahumanaéanecessidade que as pessoas têm de interpretar a natureza, desde o universo mais amplo até a si mesmas. A maneira mais comum de se fazer essa interpretação é por meio do chamado senso comum. Senso comum é uma forma não-programada de conhecimento que se dá pela simples observa- ção dos fatos, em geral, sem um aprofundamento racional. Isto é, não há uma preocupação com as explicações para os fatos, ou, quando estas são propostas, não há uma preocupação em testá- las. Muitas vezes, as explicações propostas são de natureza mística ou sobrenatural. No entanto, a importância do senso comum não deve ser sub- estimada; foi essa forma de conhecimento que produziu as bases sobre as quais se sustenta a civilização moderna. Foi esse tipo de conheci- mento que levou à descoberta e ao melhoramento das plantas comestíveis e medicinais, ao melhora- mento dos animais para uso humano, à invenção da roda e da maioria das máquinas, apenas para citar alguns exemplos. Aciênciadiferedosensocomumporqueprocura explicaçõessistemáticasparafatos(provenientesda observação e de experimentos), as quais possam ser submetidas a testes e a críticas por meio de provas empíricas1 . O objetivo do conhecimento científico é desvendar a ordem oculta que atrás das aparências das coisas ou fenômenos. 1 Empírico é relativo ao mundo natural observável. Na verdade, a ciência moderna lida com diversos fenômenos que não são diretamente observáveis, tais como as partículas fundamentais, genes, estados da mente, etc. Nesse contexto amplo, empírico refere-se ao uso de informações obtidas da observação direta ou indireta. 1 HEREDITARIEDADE E A NATUREZA DA CIÊNCIA Objetivos 1. Distinguir senso comum e ciência. 2. Explicar a hipótese da pangênese de Hipócrates. 3. Comparar o método baconiano, a maneira clássica (teológico-medieval) e a modo atual de analisar a na- tureza. 4. Conceituar os termos: indução, dedução, fato, hipóte- se, leie teoria. 5. Comparar as idéias de Popper e de Thomas Kuhn so- breo conhecimento científico.
  • 2. A ciência tem se mostrado um poderoso instru- mento para solucionar muitos dos problemas que surgem da interação entre seres humanos e o mundo não-humano ao nosso redor, e também alguns dos problemas das interrelações entre os próprios seres humanos. Contudo, não se pode desejar que a ciência nos diga o que é bom, justo, belo, ou mesmo prazeroso. Em muitos casos, no entanto, as informações científicas podem nos ajudar a prever o resultado de decisões humanas e, uma vez tomadas essas decisões, procedi- mentos científicos podem nos ajudar a atingir os objetivos desejados. Mais do que qualquer outro aspecto da civi- lização, a ciência está moldando nossas vidas e as perspectivas futuras. Essa é uma das razões pelas quais não se pode permitir que seu controle esteja unicamente nas mãos de uma elite. Cursos de ciências devem fornecer uma compreensão efetiva do alcance e das limitações dos procedimentos científicos. Os atuais estudantes, futuros líderes da sociedade, precisam entender que o conhecimento científico é uma condição necessária para o desenvolvimento de novas relações com o mundo natural. Se a humanidade deseja evitar um desastre terminal sem paralelo é fundamental o desenvolvimento de novos tipos de relações com a natureza. Precisamos entender que ciência é uma arma poderosa para atingir objetivos humanos, mas que é impossível para a ciência definir esses objetivos. AS ORIGENS DA TEORIA GENÉTICA A importância da teoria genética Em 1973, o famoso biólogo Theodosius Dobzhansky lançou um desafio aos criacionistas, “Nada em Biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução”. Isso é uma verdade, embora exista algo mais fundamental de onde derivam todos os principais conceitos em Biologia, a Genética. A característica fundamental de um ser vivo é sua capacidade de se replicar com grande exati- dão, transformando matéria e energia do mundo não-vivo em mais matéria viva. A replicação e todos os demais aspectos da vida são reflexos da estrutura e funcionamento do material genético – o ácido nucléico. A Genética é o campo de investigação que procura entender esse fenômeno de replicação e, portanto, deve ser considerada básica para toda a Biologia. Veja como da replicação genética está na base de todas as áreas da Biologia. A Biologia Evolu- tiva é o campo que investiga os aspectos da repli- cação ao longo do tempo. A Biologia do Desen- volvimento é o campo de investigação que lida com a replicação ao longo do ciclo de vida de umorganismo. A Sistemática estuda a diversidade da vida que é uma conseqüência da replicação, modulada pelo ambiente ao longo do tempo. A Ecologia lida com as interações entre o ambiente e o indivíduo ou grupos de indivíduos, os quais são geneticamente programados. As conseqüên- cias estruturais e funcionais da atividade do ma- terial genético em todos os níveis de organização, desde a célula até o organismo, são estudadas pela Morfologia e Fisiologia. Assim, Genética, incluindo sua manifestação a longo prazo – a Biologia Evolutiva – é a disciplina integradora de todos os conceitos e informações biológicas. Hoje existem problemas especiais no ensino da Genética para principiantes. Esse ramo da ciên- cia está se desenvolvendo de modo tão espeta- cular e rápido que é grande a tentação de apresen- tar principalmente as descobertas mais recentes – quando existe tanta coisa interessante para ser dita é difícil não dizê-las. No entanto, quando isso é feito dessa maneira, sem fornecer inicialmente uma estrutura conceitual da área, as novidades podem ser memorizadas, mas é impossível compreendê-las e apreciá-las em toda sua profun- didade. O que é “antigo” para cientistas e profes- sores pode ser “novo” para os alunos. Assim, aprender sobre cromossomos sexuais ou como se descobriu que o DNA é o material hereditário podem ser histórias heróicas, importantes e esti- mulantes para aqueles que desconhecem como esses “quebra-cabeças” foram desvendados. Ou, como disse J. R. Baker: “Em muitos campos da ciência é necessário conhecer a embriologia das idéias: nossa visão moderna só pode ser comple- tamente compreendida e julgada se nós enten- dermos as razões que nos fizeram pensar como nós pensamos.” Esse conselho emitido há duas gerações é ainda mais importante hoje. A velocidade com que o progresso alimenta a estrutura conceitual da Biologia é tão grande que existe o perigo de a saturação de informação nos levar a esquecer a própria estrutura conceitual. Os estudantes não devem ser empanturrados com informações e privados de entendimento. 2
  • 3. O que a ciência genética pretende responder? Ciência é uma instrumento poderoso para se entender a natureza. Ela cria uma imagem de mundo na qual acreditam tanto os cientistas como boa parte das pessoas. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, o enorme sucesso da ciência moderna deve-se ao fato de ela procurar respostas para questões específicas, as quais, com freqüên- cia, parecem triviais e não relacionadas com os “grandes temas”. Por mais surpreendente que possa parecer, um dos grandes obstáculos para se compreender a natureza é a incapacidade de se formular a pergunta apropriada.Por exemplo, a Genética, hoje um dos campos mais rigorosos e conceitual- mente completos da Biologia, só alcançou esse estágio de desenvolvimento nos últimos cinqüenta anos. Durante milênios a humanidade não conse- guiu respostas para a hereditariedade porque foi incapaz de formular questões adequadas. Em ciência, questões adequadas são aquelas passíveis de observação e experimentação e, portanto, de serem respondidas. Assim, durante a maior parte da história da humanidade, hereditariedade não foi mais do que um princípio vago, desprovido de leis precisas e de resultados previsíveis. Reflita, por exemplo, sobre os tipos de informação que se podia reunir a respeito de hereditariedade. Os filhos de um casal, com freqüência, diferem entre si em uma série de características; alguns são mulheres, outros são homens – uma diferença profunda. A não ser no caso de gêmeos idênticos, os irmãos diferem bastante na aparência e na personalidade. Algumasvezes,ascriançastêmpoucasemelhança com seus pais, outras vezes a semelhança fami- liar é grande. Como pode a mesma causa – a reprodução pelos mesmos pais – produzir resultados tão diferentes? No entanto, existe alguma regularidade; por exemplo, os filhos de índios, de negros, de orientais e de caucasianos têm os traços típicos de suas raças. Até o século XX, observações em uma grande diversidade de organismos não foram além da conclusão de que, apenas nos aspectos mais gerais, os descendentes se assemelham a seus pais. Nenhuma regra que relacionasse as características da prole com as de seus pais foi descoberta. Isso não surpreende, pois, respostas vagas era tudo o que se podia esperar de uma questão vaga - “Qual é a natureza da hereditariedade?” Não existia nenhuma hipótese aceitável que explicasse o fato de que a hereditariedade parecia consistir da transmissão de semelhanças, de diferenças e mesmo de novidades. Uma vez que o valor educacional em ciência reside não apenas na informação que ela fornece, mas também na maneira de se obter essa informa- ção, é importante conhecermos algumas tenta- tivas antigas para entender a hereditariedade. Como acontece com muitos outros tópicos da Biologia, é conveniente começar pelos antigos filósofos gregos. As raízes de como nós pensamos a respeito de fenômenos científicos remonta aos antigos gregos, da mesma forma que nosso modo não-científico de pensar tem sua origem nos antigos hebreus (via bíblias hebraica e cristã). Os antigos filósofos gregos muitas vezes definiram o problema e sugeriram hipóteses que perduraram até os tempos modernos. Consideraremos apenas dois desses filósofos: Hipócrates e Aristóteles. Idéias de Hipócrates sobre hereditariedade Hipócrates, considerado o Pai da Medicina, poderia também ser aceito como um dos Pais da Genética. Por volta do ano 410 a.C., ele propôs a pangênese como uma hipótese para explicar a hereditariedade. A pangênese admitia que a here- ditariedade baseava-se na produção de partículas por todas as partes do corpo e na transmissão dessas partículas para a descendência no momen- to da concepção. Darwin iria adotar essa mesma hipótese muitos séculos depois, tendo a pangê- nese permanecido como a única teoria geral de hereditariedade até o final do século XIX. Hipócrates elaborou essa hipótese a partir do conhecimento da existência de uma população humana, os macrocéfalos, cuja característica era ter cabeça muito alongada. Nesta população, ter cabeça longa era sinal de nobreza; assim, os pais procuravam moldar os crânios ainda flácidos dos recém-nascidos de acordo com a forma desejada. Veja o que Hipócrates escreveu sobre esse fato: “A característica [cabeça alongada] era, assim, adquirida inicialmente de modo artificial, mas, com o passar do tempo, ela se tornou uma carac- terística hereditária e a prática [moldagem do crânio dos recém-nascidos] não foi mais neces- sária. A semente vem de todas as partes do corpo, as saudáveis das partes saudáveis, as doentes das partes doentes. Se pais com pouco cabelo 3
  • 4. têm, em geral, filhos com pouco cabelo, se pais com olhos cinzentos têm filhos com olhos cinzen- tos, se pais estrábicos têm filhos estrábicos, por que pais com cabeças alongadas não teriam filhos com cabeças alongadas?” Hipócrates propôs também o conceito de hereditariedade de caracteres adquiridos – um ponto de vista que viria a ser adotado por Lamarck como o mecanismo das mudanças evolutivas – uma explicação, ainda hoje, aceita por muitas pessoas. Embora não pareça, a hipótese de Hipócrates para a hereditariedade foi um grande começo. Ele identificou um problema científico (possivel- mente o passo mais difícil de todos), propôs uma explicação (hipótese) e a escreveu de uma maneira compreensível.Aelaboraçãodeumaanáliseassim, há dois mil e quinhentos anos, é algo excepcional. Idéias de Aristóteles sobre hereditariedade Aristóteles (384-322 a.C.) em seu livro Gera- ção dos animais trata de problemas genéticos e de desenvolvimento. Essa ligação entre dois cam- pos aparentemente tão distintos tem uma conota- ção bastante atual. Aristóteles admitia a existência de uma base física da hereditariedade no sêmen produzido pelos pais. Esse ponto, tão óbvio nos dias de hoje, foi fundamental para todo trabalho posterior na área. Essa idéia permitiu que se deixasse de atribuir à hereditariedade uma base sobrenatural ou emocional e se passasse a pensá-la como resul- tado da transmissão de algum tipo de substância pelos pais. Naquela época, cerca de quatro séculos antes de nossa era, sabia-se muito pouco a respeito da natureza do sêmen. Aristóteles usou o termo “sêmen” como nós usamos gametas atualmente e não para designar a secreção dos machos que contém os espermatozóides. O papel dos gametas na reprodução só foi estabelecido em meados do século XIX. A maneira como Aristóteles discutiu a hipótese da pangênese sugere que ela era bastante conhe- cida e, provavelmente, bem aceita na época; ele, no entanto, a rejeitou. Aristóteles lista quatro informações e argumentos mais importantes que apoiavam a pangênese como uma hipótese plausível. Em primeiro lugar, a observação de que a cópula (nos humanos) dava prazer a todo o corpo permitia sugerir que todo o corpo contribuía para o sêmen. Segundo, existiam informações que sugeriam a hereditariedade de mutilações. Um relato nesse sentido vinha da região do estreito de Bósforo, na atual Turquia, onde um homem havia sido marcado a ferro quente em um dos braços e seu filho, nascido pouco tempo depois, tinha um defeito no braço. Terceiro, era comum observar que os filhos se parecem com os pais não no geral, mas em características particulares. Assim, estas deviam produzir substâncias específicas que se tornariam parte do sêmen. E quarto, se era produzido sêmen para o geral, por que não também para partes específicas do corpo? Apesar desses argumentos favoráveis, Aristó- teles rejeitou a pangênese. A partir da observação de que as semelhanças entre pais e filhos não se restringia à estrutura corporal mas podia abranger outras características como voz e jeito de andar, Aristóteles se perguntou como características não-estruturais poderiam produzir material para o sêmen. Além disso, filhos de pais com cabelos e barbas grisalhos não são grisalhos ao nascer. Foi observado também que certas crianças pare- ciam herdar características de ancestrais remotos, que dificilmente poderiam ter contribuído para o sêmen dos pais. Era conhecido o caso de uma mulher de Elis (na região noroeste da Grécia Pelo- ponésia) que teve, com um homem negro, uma filha branca, mas seu neto tinha pele escura. As mais importantes evidências que refutavam a pangênese de Hipócrates eram do mesmo tipo das que foram usadas para refutar a hipótese da pangênese de Darwin, cerca de dois mil anos mais tarde. O fato de as plantas mutiladas poderem produzir descendência perfeita era bem conhe- cido. Além disso, havia ainda o poderoso argu- mento de que se o pai e a mãe produzem sêmen com partículas precursoras de todas as partes do corpo, não deveria se esperar que os descendentes tivessem duas cabeças, quatro braços etc? Estes e muitos outros argumentos levaram Aristóteles a rejeitar a pangênese e a perguntar: “Por que não admitir diretamente que o sêmen ... origina o sangue e a carne, ao invés de afirmar que o sêmen é ele próprio tanto sangue quanto carne?” Na verdade, isto era o máximo que Aristóteles poderia concluir com os informações e a metodo- logia de seu tempo. Ele propôs uma hipótese, que embora vaga, é ainda hoje considerada verdadeira acima de qualquer suspeita. Essa 4
  • 5. hipótese seria o limite conceitual para os dois milênios seguintes. Durante todo esse tempo, a falta de progresso na compreensão da heredita- riedade foi conseqüência principalmente da inca- pacidadedeformularperguntasprecisasquepudes- sem ser estudadas com a metodologia disponível. A questão da hereditariedade após Aristóteles O interesse pelas questões científicas pratica- mente cessou no mundo ocidental durante o longo período em que a Igreja exerceu hegemonia sobre o pensamento humano. Foi apenas bem depois do Renascimento que a observação e a experi- mentação passaram a ser aplicadas de maneira sistemática na tentativa de se compreender a here- ditariedade. Mesmo assim o progresso foi muito lento, novamente porque não se conseguia formu- lar uma pergunta adequada. Durante os séculos XVIII e XIX, o procedi- mento padrão de se procurar informações a respeito de hereditariedade era por meio de cruza- mentos. Eram feitos cruzamentos entre indivíduos com estados contrastantes das características e a descendência era analisada. Até hoje esse é um dos procedimentos mais poderosos para se obter informações a respeito de hereditariedade. Contudo, pouco progresso foi feito no campo da hereditariedade até o final do século XIX. Assim, poucas coisas relevantes no campo do estudo da hereditariedade aconteceram no período entre Aristóteles (384-322 a.C.) e Gregor Mendel (1822-1884), mas nesse período foram estabele- cidas as bases da investigação científica. AS ORIGENS DA CIÊNCIA A incapacidade dos antigos obterem avanços significativos no campo da hereditariedade causa surpresa, considerando a idéia generalizada de que existem procedimentos padrões em ciência – o método científico – que, se devidamente seguidos, levam inexoravelmente a novas desco- bertas e entendimentos profundos. Esses proce- dimentos são aquisições recentes que foram sendo formulados lentamente pelos filósofos durante séculos, mas como quase sempre acontece, as contribuições de alguns indivíduos se destacam. Admite-se que a ciência moderna teve início com Galileu em 1632 e que a filosofia da ciência foi iniciada por Francis Bacon (1561 - 1626), Lorde Chanceler da Inglaterra. Bacon é consi- derado por de Solla Price (1975), como sendo quem estabeleceu a revolução científica e orga- nizou o método científico. Francis Bacon e a Nova Era Em uma série de livros publicados entre 1606 e 1626, Bacon defende a ciência empírica e critica severamente o hábito clássico e teológico- medieval de começar uma investigação com um ponto de vista aceito como verdade, deduzindo a partir daí as conseqüências. Sua contribuição para o desenvolvimento da ciência está no fato que ele considerava tanto a observação empírica quanto a obtida por meio dos experimentos formais como o único caminho adequado para se testar hipóteses. Seus argumentos tiveram enorme influência e levaram ao rápido crescimento do número de cientistas profissionais nos dois séculos subseqüentes. A sugestão de Bacon era começar com as observações, não com a fé. Isto é, devia-se partir dos fatos conhecidos relacionados com algum fenômeno natural e tentar formular princípios gerais que explicassem esses fatos. Esse método lógico de raciocínio do particular para o geral é conhecido comoindução – um procedimento que está na base da ciência moderna. As idéias de Bacon de como fazer ciência fo- ram descritas em seu livro Instauratio Magna de 1620. Ele começa apontando a ineficiência das tentativas anteriores de compreender a natureza e ressalta que, a menos que se tome muito cuidado, as coisas que a mente humana absorve, tendem a ser “falsas, confusas e abstraídas dos fatos”. Em boa medida, isso é conseqüência de observarmos o que já assumimos como sendo verdade. A conseqüência disso é que “a filosofia e outras ciências intelectuais ... mantêm-se como estátuas, são adoradas e celebradas, mas não se movem ou avançam”. Segundo essa visão, um conhecimento do mundo natural digno de confiança vem da observação da própria natureza e não de testes da mente humana. A natureza seria o juiz no plano de Bacon de “começar a reconstrução total das ciências, das Artes e de todo conhecimento humano”– sua “Grande Renovação”. Ele sugere que uma investigação comece pela reunião de todas as informações obtidas por 5
  • 6. observações e experimentos relacionados com o tópico investigado. Deve-se tomar muito cuidado para evitar a inclusão de informações erradas, o que, é claro, levaria a conclusões falsas. Armadilhas da mente: ídolos a serem abominados Segundo Bacon, a mente precisa se proteger de idéias preconcebidas para que as informações sejam interpretadas com exatidão. Essa é uma tarefa quase impossível de ser cumprida uma vez que o que somos, pensamos e fazemos depende enormemente de nossa aceitação das crenças da sociedade onde vivemos e da ciência que profes- samos. Essas crenças tornam-se os ídolos aos quais nos submetemos, e a extensão dessa sub- missão pode levar a conclusões erradas. Bacon lista quatro grupos: ídolos da Tribo, da Caverna, do Mercado e do Teatro. (Bertrand Russell reconhece mais um grupo, que denominou ídolos da Escola). Os ídolos da Tribo são idéias erradas precon- cebidas e pensamento confuso, comuns a todo ser humano. Os ídolos da Caverna são as crenças erradas de cada mente individual – a mente da pessoa comportando-se como uma caverna isolada. Bacon aponta especialmente como cada pessoa tende a favorecer suas próprias opiniões e des- cobertas – um sério problema em nossos dias. OutrosídolosdaCavernadecorremdeumavalori- zação indevida do que é antigo ou das novidades. Os ídolos do Mercado são os problemas semânticos que surgem quando as pessoas tentam se comunicar e utilizam palavras diferentes. As palavras de nossos idiomas foram criadas devido às necessidades do dia-a-dia e, com freqüência, são impróprias, ou não são específicas o sufici- ente, para serem usadas em ciência. Os ídolos do Teatro, isto é, dos sistemas filosóficos, consistem na utilização de modos de pensar religiosos ou filosóficos em que a “verdade” é deduzida de premissas pré- estabelecidas. Bacon aponta, por exemplo, o fato de algumas pessoas tentarem encontrar um sistema filosófico natural (isto é, Ciências Naturais) no primeiro livro da Gênese. Existem problemas mais gerais difíceis de serem combatidos, como a superstição, a cegueira aos fatos e o imoderado fervor religioso. O método hipotético – dedutivo O procedimento preconizado por Bacon evoluiu para o chamado método hipotético- dedutivo. Nessa concepção, um estudo científico começa pela observação e/ou experimentação de algum fenômeno natural, utilizando as informa- ções obtidas para se chegar a algum entendimento das causas fundamentais ou de associações entre eventos aparentemente não relacionados. Hipó- teses provisórias são formuladas com base nas informações selecionadas e, a partir dessas hipó- teses, são feitas deduções que permitem testá-las. Assim, a dedução continua a ser um poderoso componente da análise científica, mas a dedução dos cientistas modernos não é a mesma do pensa- mento dedutivo que Bacon considerava tão repugnante. Na ciência contemporânea, as dedu- ções a partir de uma hipótese são conclusões plau- síveis tiradas a partir da explicação provisória para o fato. Seu valor é sugerir que observações ou experimentos podem ser feitos para se validar ou refutar a hipótese, e nada mais além disso. As deduções dos antigos filósofos e teólogos eram com freqüência tomadas como conclusões defini- tivas tiradas de verdades eternas, mas na realidade elas se baseavam em crenças ou imaginação fértil e não em evidências. Os cientistas de hoje se esforçam no sentido de partir apenas das informações mais fidedignas e confirmáveis, fazendo a seguir uma constante interação entre procedimentos indutivos e dedu- tivos para chegar ao nível mais fundamental de compreensão do mundo natural. Essa compre- ensão não pode ser mais do que “essa é a afirmação mais precisa que pode ser feita com base nas evidências disponíveis.” Isso não sig- nifica que a ciência de hoje esteja “errada”; signi- fica que ela será substituída amanhã por uma ciên- cia melhor. Nossa análise do desenvolvimento dos conceitos de Genética fornecerão um excelente exemplo disso; a Genética de Mendel redesco- berta em 1900 não estava errada, ela apenas foi ampliada em uma Genética melhor de Sutton (1903), de Morgan (1912) e, finalmente, na vasta e abrangente Genética atual. Em resumo, a diferença fundamental entre o procedimento de Bacon e o procedimento por ele criticado é que as afirmações científicas preci- sam estar baseadas em informações tiradas de observações e/ou experimentos sobre fenômenos 6
  • 7. naturais e não de idéias e princípios preconce- bidos, ou crenças de autores clássicos, ou da imaginação, ou da superstição. Não é correto dizer que Bacon acreditava que a indução fosse o único procedimento adequado para se chegar a afirmações científicas. Sua ênfase na indução foi mais no sentido de se opor à aparente total confiança que filósofos e teólogos tinham na dedução a partir de verdades pré-esta- belecidas. Sua insistência na indução e na defesa da ciência experimental fizeram com que nos séculos seguintes o método experimental se tor- nasse sinônimo de método científico. Infelizmente isso é uma confusão entre o geral e o particular. Experimentos não constituem o único caminho para se testar hipóteses; elas também podem ser testadas pela simples observação ou por sua consistência lógica interna, como faziam os grandes geômetras gregos). A vantagem da expe- rimentação é que por meio dela pode-se controlar a maioria da variáveis com exceção da que se está sendo testada. No entanto, o desenvolvi- mento da matemática estatística a partir do século passado forneceu técnicas poderosas que nos permitem realizar testes equivalentes aos experi- mentais com base apenas em dados da obser- vação. Nesse processo lançamos mão de técnicas matemáticas para separar a influência de dife- rentes fatores. Foi isso que provocou um aumento dramático no número de estudos empíricos não- experimentais, especialmente na segunda metade desse século. A CIÊNCIA NO SÉCULO XX Os séculos que se seguiram a Bacon foram dominados pela idéia de que as explicações cien- tíficas eram simples generalizações derivadas de uma série de observações. Isto é, a partir de uma série de observações de um fenômeno particular faz-se uma generalização - como todos os cisnes que já observei eram brancos concluo que “todos os cisnes são brancos”, ou, “toda vez que ocorre um relâmpago, segue-se um trovão”. O ponto central dessa idéia é que uma teoria científica desenvolve-se linearmente, em três estágios separados: observações —> hipótese —> teste da hipótese. Essa visão equivocada de ciência, denominada positivismo pelo filósofo-cientista francês AugustoComte, perdurou em áreas das Ciências Sociais e da Biologia até o século XX. Muitas pessoas ainda hoje vêem a ciência dessa forma e consideram erroneamente que ela consiste na descoberta de novos fatos acerca do mundo. Desde o século XVII, no entanto, a visão posi- tivista da ciência já era questionada. Em meados do século XVIII o filósofo escocês David Hume apontou um sério problema na indução de gene- ralizações. Segundo ele, a única garantia que se tem para o sucesso do método indutivo é seu sucesso passado - o que nos faz supor que um próximo cisne que venhamos a encontrar seja branco é o fato de todos os anteriores terem sido brancos. Mas isso por si só é uma generalização e uma próxima observação - encontrarmos um cisne preto - pode derrubar essa generalização particular. Cria-se, assim, um círculo vicioso em que tentamos justificar uma generalização por uma outra igualmente incerta. A contribuição de Karl Popper A tentativa mais conhecida para resolver esse paradoxo foi a do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994). Reconhecendo que as tentativas de defender a ciência em termos lógicos por referên- cia à indução eram inevitavelmente inviáveis, Popper enfatizou que a idéia, até então vigente, de que os cientistas simplesmente acumulam exemplos de um fenômeno e, então, derivam generalizações a partir deles, estava errada. Na visão de Popper, os cientistas realmente fazem hipóteses sobre a natureza do mundo (às vezes, mas nem sempre, por meio de generalizações indutivas) e, então, submetem as hipóteses a tes- tes rigorosos. Esses testes, no entanto, não são tentativas paraprovar uma teoria particular (uma forma de indução) mas sim tentativas de negá- las. Provas, ele argumenta, é algo logicamente impossível de se obter. Nós podemos apenas negar algo com alguma certeza, pois pelas diversas razões que Hume apontou, um único exemplo contra é suficiente para negar uma gene- ralização; enquanto prová-la requereria a tarefa impossível de documentar todo exemplo de um fenômeno em questão (inclusive, presumivelmen- te, aqueles que ainda não aconteceram!). Na visão popperiana, a pesquisa científica tem início com problemas, quando há algo errado com os fatos, isto é, quando a natureza não se compor- ta de acordo com o previsto por nossa visão de mundo. Como diz Popper: “cada problema surge 7
  • 8. da descoberta de que algo não está de acordo com nosso suposto conhecimento; ou, examinado em termos lógicos, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conheci- mento e os fatos.” Assim, os fatos em si nada significam, eles se tornam importantes quando conflitam com o saber vigente; observar simples- mente um fenômeno não tem sentido em ciência. Uma vez identificado o problema, o pesqui- sador usa toda sua capacidade criativa para propor uma explicação provisória para o proble- ma. Essa explicação nada mais é do que um palpite sobre o porquê da contradição entre o conhecimento vigente e o fato. Esse palpite é a hipótese. Uma hipótese científica, no entanto, não é uma criação a partir do nada, em sua elaboração o pesquisador lança mão das teorias vigentes rela- cionadas ao problema em questão, reunindo, ana- lisando e interpretando toda informação dispo- nível sobre o assunto. Pode-se dizer, portanto, que na elaboração de uma hipótese ocorre, em geral, um processo de indução. As hipóteses provisórias são, então, subme- tidas a testes que ofereçam as mais severas condi- ções para a crítica. Mas os únicos testes possíveis são aqueles que, eventualmente podem mostrar que a hipótese é falsa. Não existe maneira em ciência de se mostrar que uma hipótese é correta ou verdadeira. Assim, as hipóteses cien- tíficas se credenciam por meio de testes de falsea- bilidade. Neste tipo de teste, são feitas deduções a partir da hipótese, ou seja, imaginadas situações em que, se a hipótese for verdadeira (embora não se possa provar que ela o seja), haverá uma ou mais conseqüências específicas. As situações ima- ginadas devem oferecer todas as condições para que, se a hipótese não for correta, a previsão não se confirme e, assim a hipótese seja refutada. E se a hipótese não for refutada? Rigorosa- mente devemos dizer que a hipótese não foi rejei- tada ou refutada, e nunca que ela foi confirmada, pois, como vimos acima, não é possível validar uma hipótese positivamente, por mais rigor e controle que tenham sido usados em seu teste. Isso quer dizer que em ciência, podemos ter certeza quando estamos errados, mas nunca poderemos ter a certeza de estarmos certos. Assim, o conhecimento científico e os resultados emciêncianãodevemseraceitoscomodefinitivos e inquestionáveis; uma explicação em ciência é aceita enquanto não tivermos motivos para duvi- darmos dela, ou seja, enquanto ela for “verda- deira” acima de qualquer suspeita. Como diz Bombassaro: “Especialmente em ciência, aquele que julga ter encontrado uma resposta conclusiva dá mostras não somente de seu fracasso mas também do fracasso da própria ciência. Aquele que for incapaz de transpor os limites do pensamento dogmático, impostos pela educação científica formal, e não aceitar o jogo do pensamento crítico está longe de fazer ciência, pois não poderá resistir à constante transforma- ção das teorias, à mudança conceitual e ao cada vez mais célere avanço do conhecimento.” Sobre essa nova visão de ciência, que substi- tuiu o dogmatismo vigente até o final do século passado, François Jacob diz: “No final desse século XX, é preciso que fique claro para todos que nenhum sistema explicará o mundo em todos os seus aspectos e detalhes. Ter ajudado na des- truição da idéia de uma verdade intangível e eterna talvez seja uma das mais valiosas contri- buições da metodologia científica.” Fatos, hipóteses, leis e teorias O termo hipótese é muitas vezes usado como sinônimo de “teoria”, mas há uma diferença en- tre eles. Uma hipótese, como vimos, é uma tenta- tiva de explicação para um fenômeno isolado, en- quanto teoria é um conjunto de conhecimentos mais amplos, que procura explicar fenômenos abrangentes da natureza. A teoria celular, por exemplo, procura explicar a vida a partir da estru- tura e do funcionamento das células. A teoria da gravitação universal procura explicar os movi- mentosdoscorpospormeiodaforçadagravidade. Uma lei, por sua vez, é uma descrição das regularidades com que ocorrem as manifestações de uma classe de fenômenos. As teorias estru- turam as uniformidades e regularidades descritas pelas leis em sistemas amplos e coerentes, relacio- nando, concatenando e sistematizando classes de fenômenos. Assim, embora seja universal, a lei tem um universo limitado, enquanto que a teoria abarca a totalidade do universo. Os termos “hipótese” e “teoria”, usados na linguagem do dia-a-dia, podem ter conotação pejorativa: muitas vezes se usa a expressão “Isso não passa de uma teoria” como se uma teoria fosse inferior a um fato. Em ciência, porém, fatos, 8
  • 9. hipóteses, teorias e leis são coisas diferentes, cada uma ocupando seu lugar no conhecimento. A res- peito disso escreveu recentemente o biólogo norte-americano Stephen J. Gould: “[...] Fatos e teorias são coisas diferentes e não degraus de uma hierarquia de certeza crescente. Os fatos são os dados do mundo. As teorias são estruturas que explicam e interpretam os fatos. Os fatos não se afastam enquanto os cientistas debatem teorias rivais. A teoria da gravitação universal de Einstein tomou o lugar da de Newton, mas as maçãs não ficaram suspensas no ar, aguardando o resultado. [...]” A contribuição de Thomas Kuhn Uma dificuldade na aplicação das idéias de Popper é que grande parte dos cientistas, senão todos, trabalham, não para provar o erro das teorias, mas sim na tentativa de definir seus limites de aplicação pela identificação de pontos em que a teoria não funciona (i.e. as áreas nas quais ela faz predições incorretas). O início de uma solução para esse dilema ocorreu na década de 1950, quando o físico e historiador de ciência Thomas Kuhn (1923 - 1996) se interessou em saber porque os físicos relutaram em abandonar a teoria newtoniana du- rante o século XIX, apesar do acúmulo de evi- dências contra ela. A partir do estudo da história da Física, Kuhn concluiu que a ciência progride de modo irregular. No livro The Structure of Scientific Revolutions, publicado em 1962, Thomas Kuhn defende a idéia de que o progresso em ciência se dá em duas etapas que poderíamos caracterizar como ajustes e mudan- ças drásticas, ou, para ser mais atual, por um equilíbrio pontuado. Kuhn salienta que, de tem- pos em tempos, ocorre uma revolução na maneira como os cientistas vêem seus proble- mas de pesquisa e os tipos das observações e experimentos que devem realizar. Alguma grande idéia, audaz e insólita, os leva a ver os dados existentes sob uma nova perspectiva, sugerindo um novo programa de pesquisa. Estas grandes idéias são, na terminologia de Kuhn, paradigmas – “as realizações científicas reconhecidas universalmente que durante um certo tempo fornecem modelos de problemas e soluções para uma comunidade de cientistas.” Para Kuhn, um paradigma é uma maneira de ver a natureza; o mundo continua o mesmo, mas um novo paradigma mostra o que antes os cien- tistas não conseguiam ver, pois vinham interpre- tando os fatos a partir das teorias fornecidas pelo paradigma em vigor. Como a ciência interpreta a natureza sempre a partir de um ponto de vista teórico, os problemas a serem resolvidos e as soluções encontradas dependem do ponto de vista teórico adotado pelos investigadores. Assim, um novo paradigma seria uma mudança do ponto de vista teórico adotado na interpretação de pro- blemas e de soluções encontradas. Uma vez ocorrida a “mudança de paradigma”, o campo de pesquisa passa por um período que Kuhn chamou de “ciência normal” durante o qual os cientistas exploram e testam as implica- ções do novo paradigma. O objetivo durante esse período é determinar as condições limites do novo paradigma-oslimitesdesuaaplicabilidade.Even- tualmente as predições feitas pela nova teoria começamasersubmetidasatestesdefalseabilidade. A refutação de hipóteses previstas pela teoria, no entanto, não leva os cientistas a abandonar de imediato a teoria. Ao invés disso eles procuram defendê-la invocando hipóteses auxiliares que expliquem porque a teoria falhou naquelas circunstâncias. Mas, eventualmente, o peso das predições refutadas torna-se tão grande que a teoria tem de ser abandonada. Nesse ponto, alguém sugere um novo paradigma, uma nova revolução científica irá ocorrer e um ciclo com- pleto irá se iniciar novamente. A seguir discutiremos dois grandes paradigmas na história da Citologia. O primeiro foi a teoria celular, que forneceu uma nova maneira de ver a estrutura dos organismos. Este paradigma teve um desenvolvimento lento mas, nos primeiros dois terços do século XIX, ocupou a atenção de muitos citologistas. A ciência normal que foi estimulada por este paradigma resultou na investigação de inúmeros tipos de organismos e, quase sempre, suas estruturas microscópicas “faziam sentido” nos termos da teoria celular. Estes estudos também ampliaram os limites do que poderia ser chamado de “célula”. A estrutura dos tecidos dos seres humanos foi investigada em grande detalhe e logo este conhecimento se tornou de considerável importância na Medicina como base da Patologia. A estrutura de células e tecidos doentes tornou-se um dos critérios mais eficientes para a identificação de doenças. Basta dizer que durante o século XIX, o diagnóstico e 9
  • 10. 10 não a cura, foi o auge da realização na Medicina. Os médicos eram muito mais capazes de identifi- car as doenças do que curá-las. Kuhn acredita que na maioria das vezes um paradigma não evolui para um novo. Em vez disso, a área toma uma nova abordagem inteira- mente diferente com um novo paradigma. Gra- dualmente os profissionais perdem interesse no velho paradigma e começam a trabalhar nos detalhes do novo, ou a maioria dos cientistas mais velhos sai de cena com seu velho paradigma e os jovens passam a fazer a ciência normal dentro dos parâmetros do novo paradigma. Isto aconteceu na Citologia. No último terço do século XIX uma nova abordagem estava em voga. O novo paradigma pode ser chamado de teoria da continuidade cromossômica. Buscava- se seguir o comportamento dos cromossomos na mitose, na meiose e na fertilização. Muitos citolo- gistas perderam o interesse em estabelecer se uma outra criatura tinha o corpo composto por células e, em vez disso, passaram a tentar descobrir qual era o papel dos cromossomos no ciclo celular. Mais uma vez, o novo paradigma fornecia uma base conceitual para um importante fenômeno biológico e guiava a pesquisa, a ciência normal, que analisava os detalhes. Aparente antagonismo entre as idéias de Popper e Kuhn A princípio as visões de Kuhn e de Popper parecem ser diametralmente opostas. Elas, no entanto, não podem ser comparadas nesses termos, pois se referem a coisas distintas. A con- cepção de Popper é uma declaração prescriptiva do que os cientistas devem fazer se eles desejam obter as coisas certas; a concepção de Kuhn é normativa sobre o que eles realmente fazem. Esse é o motivo, segundo o filósofo húngaro Imre Lakatos, de os cientistas parecem se comportar de acordo com a visão de Popper em certas ocasiões, mas de acordo com Kuhn em outras. Lakatos argumenta que essa aparente contradição decorre do fato de os filósofos de ciência não reconhecerem que esses dois casos envolvem tipos de teorias radicalmente diferentes. Cientistas, segundo ele, trabalham em um mundo com diversos níveis no qual algumas teorias fun- cionam de um modo programático enquanto outras estão mais relacionadas com os detalhes de como o programa funciona. Uma teoria programática fornece aos cientistas as razões para fazer um experimento particular ou um modo particular de ver o mundo: ela funciona como um paradigma kuhniano. Dentro desse programa, os cientistas geram hipóteses subsidiárias que especificam como a rede teórica funciona na prática: é isso que os cientistas testam em detalhe e aceitam ou rejeitam de um modo popperiano. A teoria de evolução de Darwin por meio da seleção natural, por exemplo, fornece uma rede teórica aos biólogos de como interpretar o mundo vivo. Isso estimula-os a interpretar suas observações em um certo tipo de caminho e sugere hipóteses particulares para serem testadas. A hipótese subsidiária pode ou não ser correta, mas sua rejeição não é por si só evidência de que a rede conceitual é errada. Ela meramente nos diz que a rede não produziu os efeitos na maneira como nós supúnhamos. Lakatos levanta outro ponto prático impor- tante quando ele diz que não há razão para rejei- tarmos uma teoria apenas porque existe evidência contra ela. Sem uma rede conceitual, nós não podemos fazer perguntas ou planejarmos experi- mentos. Assim não devemos abandonar uma rede teórica na ausência de uma melhor para substituí- la. Na verdade, o melhor caminho para se encontrar uma teoria alternativa é continuar fazendo testes de hipóteses geradas pelo velho paradigma. Fazendo isso, nós temos a chance de descobrir algum fato crucial que nos levará a um novo paradigma. Teorias são idéias ou modelos de como o mundo funciona. Nós trabalhamos dentro de um mundo estritamente teórico deduzindo que conse- qüências devem acontecer a partir das suposições e premissas do modelo; nós então testamos a vali- dade do modelo comparando as previsões con- tra o mundo real. Uma vez que o modelo fornece previsões que coincidem com o que realmente observamos, nós continuamos a desenvolver o modelo. Mas quando o modelo falha ao prever corretamente a realidade, nós alteramos o modelo ou procuramos elaborar um melhor. Ciência, em outras palavras, é um processo de retro-alimenta- ção: ela aprende a partir de seus próprios erros. Seu comportamento é darwiniano, no sentido de que apenas as teorias bem sucedidas sobrevivem. Essas mudanças na perspectiva de como os cientistas realmente trabalham levam-nos a uma importante reinterpretação das relações entre
  • 11. 11 Nota (texto extraído do livro Sementes da descoberta científica, de W. I. B. Beveridge, tradução de S. R. Barreto. T. A. Queiroz, Editor, Ltda e EDUSP, São Paulo, 1981): “Na serendipidade [ou, serendipismo], o cientista depara com um acontecimento incomum, ou uma coincidência curiosa de dois acontecimentos não incomuns, ou um resultado experimental inesperado. Não é o caso, aqui, de juntar idéias já meio formadas, ou procurar analogias sugeridas, porque o próprio observado é a descoberta, ou pelo menos um forte indício da descoberta; ela aparece de surpresa e pode ser recebida com dúvidas ou mesmo incredu- lidade. Enquanto uma intuição do tipo eureka provoca a exclamação “achei!”, isto é, uma solução intensamente procurada, na serendipidade se experimenta uma reação completamente diferente - alguma coisa foi encontrada, mas alguma coisa que não estava sendo procurada. Não é uma intui- teoria e dados. Somos obrigados a fazer uma separação bem definida entre o mundo teórico e o mundo dos dados empíricos. Isso cria uma concepção de ciência circular ao invés de linear. Ela envolve dois mundos distintos mas paralelos (o mundo teórico no qual residem as teorias, e o mundo empírico das observações), ligados por um processo de retro-alimentação de testes de hipóteses: MUNDO TEÓRICO rede teórica teoria subsidiária hipótese MUNDO EMPÍRICO fatos previsões . . / # # EXERCÍCIOS PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 13 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) ciência normal (g) lei (b) conhecimento científico (h) paradigma (c) dedução (i) prova empírica (d) fato (j) senso comum (e) indução (k) teoria (f) hipótese 1. Um conjunto de idéias inter-relacionadas que procura explicar fatos abrangentes constitui um(a) ( ). 2. Um “palpite” sobre o porquê da ocorrência de um fenômeno é um(a) ( ). 3. ( ) é qualquer dado da natureza. 4. Uma previsão do que irá ocorrer em determinada situação, tendo por base uma explicação provisória para um fato, é um(a) ( ). 5. A reunião de diversas informações sobre um fato, na tentativa de encontrar uma explicação para sua ocorrência, é um(a) ( ). 6. Uma realização científica universalmente reconhecida que, durante algum tempo, fornece problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência é, na visão de Kuhn, um(a) ( ). 7. Uma evidência baseada na observação de um fenômeno natural ou experimental é um(a) ( ). ção. Dois exemplos clássicos são os de Colombo, descobrindo o Novo Mundo enquanto procurava um caminho para o Oriente, e o da descoberta do raio- X por Röentgen, no qual poucos acreditaram no começo. A serendipidade é definida, em três dicio- nários que eu consultei, como “o dom de encontrar coisas valiosas em lugares inesperados por pura sorte”, “a faculdade de fazer felizes e inesperadas des- cobertas por acidente” e “um suposto dom de encontrar coisas valiosas e agradáveis que não se buscava.” A palavra serendipidade (serendipity) foi cunhada por Horace Walpole, em 1754, depois de ler um antigo conto de fadas oriental sobre três príncipes de Serendip [antigo nome do Ceilão]. Walpole escreveu: “eles estavam sempre fazendo desco- bertas, por acidente e sagacidade, de coisas que não estavam procurando [...] deve-se observar que nenhuma descoberta de algo que se está procu- rando surge como nesta descrição.”
  • 12. 8. A descrição das regularidades das manifes- tações de uma classe de fenômenos é um(a) ( ). 9. Uma definição de ( ) pode ser: “um corpo de conhecimento obtido através de inferências lógicas baseadas em observações empíricas.” 10. ( ) é uma forma de conhecimento que não se preocupa com as explicações para os fenô- menos naturais e quando as propõem não se preocupa em apresentar provas. 11. ( ), na visão de Kuhn, é o tipo de inves- tigação que procura consolidar realizações científicas passadas. PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS Utilize as alternativas abaixo para completar as frases das questões 12 e 13. a. (1) dedução e (2) hipótese. b. (1) hipótese e (2) dedução. c. ambas hipóteses. d. ambas deduções. 12. (1) Se os bichos-da-goiaba surgem de ovos depositados por moscas na fruta, (2) goiabas ensacadas não devem ficar bichadas. As partes (1) e (2) dessa frase são ( ). 13. Há mais de 100 anos, Charles Darwin e seu filho Francis (1) imaginaram que as plantas percebiam a luz através da ponta do caule e, assim, se curvavam em direção à fonte lumi- nosa. (2) Se fosse esse o caso, plantas deca- pitadas, ou com a ponta do caule coberta, não se curvariam em direção a uma fonte luminosa. As partes (1) e (2) desse texto são ( ). Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 14 a 18. (a) dedução (c) hipótese (e) teoria (b) fato (d) lei 14. A idéia de que o universo surgiu entre 12 e 20 bilhões de anos atrás, a partir de uma grande explosão, explica e relaciona diversos fenôme- nos naturais. Por isso é considerada um(a) ( ). 15. Galileu, após realizar inúmeras observa- ções,firmou que a velocidade de um corpo que cai livremente, a partir do repouso, é propor- cional ao tempo e que o espaço percorrido é proporcional ao quadrado do tempo empregado para percorrê-lo. Isso é um(a) ( ). 16. A idéia de que a célula é a unidade morfo- fisiológica dos seres vivos é um(a) ( ). 17. Os aristotélicos diziam que as maçãs caem para baixo e não para cima por ser próprio da natureza das coisas terranas cair para baixo. Essa idéia pode ser considerada um(a) ( ). 18. Segundo dizem, Newton observou uma maçã se desprender da macieira e cair ao chão. Isso é um(a) ( ). Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 19 a 23. (a) Bacon (d) Kuhn (b) Dobzhansky (e) Popper (c) Hipócrates 19. A hipótese da pangênese foi proposta origi- nalmente por ( ). 20. A frase “Nada em Biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução.” é de autoria de ( ). 21. A idéia de que uma hipótese só pode ser credenciada por meio de testes de falseabi- lidade, pois é impossível demonstrar sua vera- cidade, está ligada a ( ). 22. ( ) é considerado um dos introdutores de uma nova forma de investigar a natureza, a qual está na origem da ciência. 23. As expressões paradigma e ciência normal estão ligadas ao pensamento de ( ) sobre como ocorre o progresso em ciência. Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 24 e 25. (a) conhecimento científico (e) teoria (b) senso comum (d) fato (c) dedução 24. A prática de salgar alimentos, como carne e peixe, para conservá-los pode ser conside- rada como ( ). 25. A idéia de que a presença de sal em alimen- tos, como carne e peixe, ajuda na sua conserva- ção porque destrói os microorganismos por cho- que osmótico, pode ser considerada como ( ). PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 26. No que o caminho da ciência se diferencia dos da filosofia e da religião? 27. O que deve levar um pesquisador a iniciar uma investigação científica? 28. Qual é a essência do método científico, ou seja, no que ele difere do método clássico (teológico-medieval) de se pensar a natureza? 29. O que é a dedução no método científico? Qual é seu valor? No que ela difere da dedução dos antigos filósofos e teólogos? 12
  • 13. Bibliografia complementar ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993 BOMBASSARO, L. C. Ciência e mudança conceitual. notas sobre epistemologia e história da ciência. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. BRONOWSKI, J. O senso comum da ciência. Belo Horizonte: Itatiaia/ EDUSP, 1977. BRONOWSKI, J. O homem e a ciência. Belo Horizonte: Itatiaia/ EDUSP, 1979. 30. Qual é a principal característica do método dedutível - falseável? 31. Segundo Hanson, ver é um ato complexo que traz consigo uma ‘carga teórica’. Para ilustrar isso ele propõe a seguinte situação: “Pensemos em Johannes Kepler. Vamos imagi- ná-lo no alto de uma colina olhando o amanhecer. Com ele está Tycho Brahe. Kepler considera que o Sol está fixo, e a Terra se move. Mas Tycho, seguidor de Aristóteles e Ptolomeu, ao menos neste particular, sustenta que a Terra está fixa e que os demais corpos celestes se movem ao redor dela. Vêem Kepler e Tycho a mesma coisa no leste ao amanhecer?” 32. Analise as imagens da ciência e dos cien- tistas veiculadas em propagandas na televisão. Elas correspondem à realidade? Que tipo de men- sagem elas procuram passar ao consumidor? 33. Você está assistindo a um filme na televisão e, de repente, a imagem some. O que você faria com as mãos e com a mente? Descreva seu raciocínio em uma folha de papel. O que pode ser considerado (a) atitudes baseadas no senso comum; (b) atitudes baseadas no conhecimento científico? (c) Tente identificar nas suas atitudes: hipóte- ses, teorias, fatos, leis e deduções. 13 34. “Ignac Semmelweis, numa época em que nada se sabia sobre microorganismos, fez uma pesquisa sobre as causas da febre puerperal no Hospital Geral de Viena e propôs um modelo para a compreensão do processo pelo qual ela era transmitida. Médicos e estudantes de medicina dissecavam cadáveres e examinavam mulheres doentes para, logo em seguida, ir cuidar de parturientes sadias. Uma percen- tagem muito alta destas últimas contraía a doença e morria. Semmelweis sugeriu que a doença era transmitida pela matéria putrefata, que andava nas mãos de médicos e estu- dantes.” (Alves, 1993) Identifique no texto acima: hipóteses, teorias, fatos e deduções. Existe alguma hipótese que possa ser testada por falseabilidade? Se existir, comente o tipo de teste a ser realizado e as interpretações dos possíveis resultados. 35. Albert Einstein disse uma vez que consideraria seu trabalho um fracasso se no- vas e melhores teorias não viessem substituir as suas. Comente essa frase no contexto da visão moderna de conhecimento científico. DUNBAR, ROBIN I. M. The trouble with sci- ence. Cambridge Massachusetts: The Harvard University Press,1995 FREIRE-MAIA, N. A ciência por dentro. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992. KÖCHE, J. C. Fundamentos da metodologia científica. 13ª ed. Porto Alegre: EDUCS/EST/ Vozes, 1992. POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia / EDUSP, 1975. ZIMAN, J. Conhecimento público. Belo Horizonte: Itatiaia / EDUSP, 1979.
  • 14. Segunda aula (T2) Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. A DESCOBERTA DA CÉLULA O nascimento da Citologia pode ser fixado com considerável precisão. No dia 15 de abril de 1663, Robert Hooke (1635-1703) colocou um pedaço de cortiça sob seu microscópio e mostrou sua es- trutura a seus colegas daRoyal Societyde Londres. A Royal Society havia sido fundada no ano anterior com o intuito de melhorar o conheci- mento sobre a natureza. Ela reunia uns poucos homens cultos de Londres que se encontravam regularmente, em geral semanalmente, para discutir assuntos científicos e como o conheci- mento poderia ser usado para melhorar as atividades práticas. A inspiração para a formação da Royal Society veio de uma sugestão anterior de Francis Bacon. Hooke, um matemático de excepcional habili- dade, era um membro muito ativo da Royal So- ciety. Era costume entre os membros não apenas discutir mas também realizar experimentos e fazer demonstrações. Havia um grande interesse no novo microscópio que Hooke havia construído e ele deixou que os membros da sociedade olhas- sem partes de um musgo em seu microscópio no dia 8 de abril de 1663. No dia 15 daquele mês o “Sr. Hooke apresentou dois esquemas microscópicos, uma representação dos poros da cortiça, cortados transversal e perpendicular- mente ...”. Esse era o começo de dois séculos de observações e experimentações que estabeleceram a Teoria Celular. As várias observações de Hooke foram reunidas epublicadasem1665comotítulodeMicrographia, sob os auspícios da Royal Society. Essa foi a pri- meira visão geral de uma parte da natureza até então desconhecida. Hooke descreveu e ilustrou muitos objetos em sua publicação: a cabeça de um alfinete, muitos insetos pequenos e suas partes, penas, “enguias”[nematódeos]dovinagre,partesdemuitas plantas, cabelo, bolores, papel, madeira petrificada, escamas de peixe, seda, areia, flocos de neve, urina, e, é claro, aquele pedaço de cortiça. (Fig. 1) Hooke imaginou que a cortiça consistia de inú- meros tubos paralelos com divisões transversais: “Estes poros, ou células, não eram muito fundos, mas consistiam de um grande número de peque- nas caixas, separadas ao longo do comprimento 14 AS ORIGENS DA BASE CITOLÓGICA DA HEREDITARIEDADE Objetivos 1. Descrever como e quando foi descoberta a célula. 2. Explicar a idéia central e a importância da teoria celular. 3. Discutir as dificuldades para se identificar os gametas como células. 4. Descrever os passos que levaram à compreensão da im- portância do núcleo celular. 5. Identificar as dificuldades paraa compreensãodo proces- so de divisão celular. 6. Descrever o raciocínio dedutivo que levou à conclusão de quea mitosenão seria o único tipo de divisão celular. 7. Descrever as meioses masculina e feminina em Ascaris. 8. Explicar o papel da meiose e da fertilização no ciclo de vida dos organismos. 9. Listar os principais argumentos que levaram alguns cito- logistas no final do século XIX a defender a idéia que os cromossomos seriam a base física da herança.
  • 15. dos tubos por uma tipo de diafragma.” Ele obser- vou estruturas semelhantes em muitos outros tipos de plantas. Muitos pensam que Hooke des- creveu aquelas caixas como vazias e parou por aí. Isso não é verdade, ele observou cortes de plantas vivas e verificou que as caixas microscó- picas eram preenchidas por um suco. A presença de células na cortiça e em outras plantas poderia ser uma característica geral ou poderia ser restrita a uns poucos tipos de organis- mo. A continuação das pesquisas iria mostrar que as plantas consistiam inteiramente ou quase intei- ramente de estruturas parecidas, semelhantes a caixas. Um outro membro da Royal Society, Nehemiah Grew (1641 - 1712), publicou uma monografia em 1682 que contém muitas pranchas belíssimas mostrando a estrutura microscópica das plantas. Com o tempo, a idéia de que os seres vivos são formados por células foi estendida para os animais. Hooke havia feito uma observação interessante que não foi importante na sua época – ela se tornou uma descoberta importante muito mais tarde, em função de pesquisas posteriores. Mais de dois séculos foram necessários para se chegar à conclusão que o conhecimento das células era essencial para a compreensão da here- ditariedade. Podemos ter certeza que, quando Robert Hooke sentou-se à frente de seu micros- cópio, ele não estava interessado em descobrir os mistérios da herança. Não havia maior razão para acreditar que as células tivessem algo a ver com a hereditariedade do que, por exemplo, as cerdas que ele descreveu em detalhe sobre o corpo de uma pulga. O ESTABELECIMENTO DA TEORIA CELULAR As células se tornaram verdadeiramente impor- tantes somente quando foi proposta a hipótese de que os corpos de todos os organismos eram consti- tuídos apenas de células ou de produtos de células. Essa hipótese foi formulada e testada no começo do século XIX e está associada principalmente a três cientistas: R. J. H. Dutrochet, Matthias Jacob Schleiden e Theodor Schwann. Mas como alguém poderia provar que “os corpos de todos os organismos são constituídos apenas de células ou de produtos de células?” Ao tentar responder essa questão pode-se aprender algo muito importante sobre ciência. A resposta é, obviamente, que não há nenhuma pos- sibilidade dessa afirmação ser comprovada. Como alguém poderia estudar todos os organismos? A maioria já se extinguiu há muito tempo e não seria nem mesmo possível estudar um indivíduo de cada uma das espécies viventes. Qual seria sua resposta se alguém lhe perguntasse se os corpos dos dinossauros eram constituídos de células? Mas lembre-se, tudo o que se pode desejar em ciência é que uma afirmação seja “verdadeira acima de qualquer suspeita.” Após as observações iniciais de Hooke, foi verificado que as células eram uma caracte- rística comum das plantas. Mais e mais plantas de uma quantidade crescente de espécies fo- ram estudadas e todas apresentavam estruturas semelhantes a células. Foi observado que essas estruturas microscópicas não tinham todas a forma de caixa como as células da cortiça. Descobriu-se que as células podiam ter diversas formas e tamanhos. Não podemos esquecer que esses microscopistas pioneiros não estavam observando células como as entendemos hoje, eles observavam paredes celulares. Schwann e as células nos animais Com poucas exceções, o corpo dos animais não continha estrutura alguma que se parecesse com “células”, isto é, com as paredes celulares das plantas. Assim, foi necessário muito trabalho e imaginação arrojada até tornar óbvio que o con- ceito de célula podia ser aplicado com sucesso aos animais. Isso foi conseguido principalmente por Theodor Schwann (1810-1882) em sua monografia de 1839, publicada quando ele tinha 29 anos de idade. Algumas de suas ilustrações estão reproduzidas na figura 2. 15 Figura 1. Desenhos de cortes de cortiça ao micros- cópio publicados por Hooke em 1665.
  • 16. Figura 2. Algumas das ilustrações apresentadas por Schwann em sua mono- grafia de 1839: A.) células de cebola; B.) de notocorda de um peixe; C.) de cartilagem de rã; D.) de cartilagem de girino; E.) de músculo de feto de porco; F.) de embrião de porco; G.) de gânglio de rã; H.) de um vaso capilar da cauda de girino;I.) de embrião de porco. Note que o núcleo e os nucléolos estão mostrados em quase todas as células. Schwann enfatizou a gran- de diferença entre as células das plantas e o que ele acredi- tava serem as células dos animais, mas sugeriu que elas representavam fundamental- mente a mesma coisa. Por que chamar todas essas estruturas tão diversas de células? Procure examinar fotomi- crografias de diversos tipos de células de plantas e especial- mente de animais, ou melhor, caso tenha oportunidade, ob- serve preparações citológicas desses tipos no microscópio. Como é possível dizer que cérebro, músculos, rins, pul- mões, sangue, cartilagens, ossos, parede intestinal etc. são feitos de um mesmo tipo de elemento? Já que essas estruturas são obviamente tão diferentes, por que afirmar que elas são constituídas pelos mesmos tipos de elementos? Qual seria a vantagem em se afirmar que as “células” animais correspondiam àquelas estruturas com aspecto tão diferente presentes nas plantas? Schwann nos fornece a resposta, “Se, no entanto, analisarmos o desenvolvimento desses tecidos, então parece que todas essas diversas formas de tecidos são constituídas apenas por células e são análogas às células das plantas ... O objetivo do presente tratado é provar essa idéia por meio da observação.” Isto é, apesar da grande diversidade, todas as estruturas que Schwann propunha chamar de células tinham em comum a característica de se desenvolverem a partir de estruturas muito mais simples que podiam ser melhor comparadas com as células das plantas. Mas, como se poderia definir “célula”? Se um neurônio e um leucócito são células, eles devem ter algo em comum para serem reunidos em uma mesma categoria. Schwann encontrou um critério: a presença de núcleo, que ele achava mais importante do que a origem de células alta- mente diferenciadas a partir de células simples. Apenas seis anos antes, em 1833, Robert Brown (1773 - 1858), o mesmo que descreveu o poste- riormente denominado “movimento Browniano”, havia descrito a presença de uma auréola circular, ou núcleo, em células de orquídeas e de muitos outros tipos de plantas. Antes dele, outros observa- dores já haviam visto e desenhado essas estruturas em suas publicações, mas não atribuíram nenhuma importânciaaelas.Brownverificouquemuitostipos decélulacontinhamnúcleomasnãoespeculousobre seu significado. Schwann então mudou as regras para definir célula. Ao invés de se basear na forma, que nas plantas correspondia à estrutura da parede, ele escolheu como base para a definição, a presença de um núcleo. Embora Schwann fosse um observador cuida- doso, sua principal contribuição não foi o que ele viu mas como ele interpretou as observações. Seus antecessores haviam enfatizado as “caixas”; 16 A B C D H E F I G
  • 17. Schwann deu ênfase ao que estava dentro das “caixas”. Para ele a célula animal era uma porção de matéria viva envolta por uma membrana e contendo um núcleo, enquanto que as células vegetais eram ainda envoltas por uma parede. O que essa nova visão de célula tem a ver com hereditariedade? Muito pouco, tem que se admitir. Seriam necessárias outras duas informações antes que as células pudessem ser consideradas impor- tantes para a hereditariedade: a descoberta de que os gametas são células e o reconhecimento de que células só se originam de células pré-existentes. O reconhecimento dos gametas como células Schwann reconheceu os óvulos como células, uma vez que eles apresentavam a estrutura reque- rida por sua definição de célula – o núcleo. A natureza do espermatozóide era menos clara. Seu nome, que significa “animais do esperma”, indica- va essa incerteza. Em 1667, Antonie van Leeu- wenhoek havia descoberto e comunicado àRoyal Society de Londres que o fluido seminal continha criaturas microscópicas que ele imaginou que entrassem no óvulo causando sua fertilização. Essa hipótese foi muito contestada e alguns cien- tistas imaginaram que os espermatozóides fossem parasitas. Na décima segunda edição do livro Systema Naturae (1766 - 1768), Linnaeus tentou classificar os “animais” encontrados no esperma por Leeuwenhoek, mas concluiu que a determi- nação de seu lugar correto no sistema de clas- sificação deveria ser deixado para quando eles tivessem sido mais pesquisados. Cerca de um século mais tarde, em 1784, Spal- lanzani realizou importantes experimentos com o objetivo de determinar a função do sêmen na reprodução de rãs. Durante o acasalamento, os machosabraçamasfêmease,comosabemosatual- mente,depositamespermasobreosóvulosàmedida que estes saem pela abertura cloacal. De início, Spallanzaninãosabiadisso,foielequemdescobriu. Um outro pesquisador com quem ele se corres- pondiahaviatentado,semmuitosucesso,descobrir opapeldasrãsmachosvestindo-ascomcalças.Spal- lanzani repetiu esse experimento e verificou que, quando o sêmen ficava retido nas calças, os ovos nãosedesenvolviam.Noentanto,seosovosfossem colocados em contato com o sêmen retirado das calças,emumprocessodefecundaçãoartificial,eles passavam a se desenvolver. Em um outro experi- mento,Spallanzanifiltrouosêmeneverificouque, comisso,eleperdiaseupoderfecundante.Eleobser- vouoquehojechamamosdeespermatozóides,mas não os considerou essenciais para a reprodução. Foi somente em 1854 que George Newport, usando rãs, forneceu boas evidências de que os espermatozóides entram no óvulo durante a fecun- dação(Nessecaso,comoemmuitosoutros,édifícil darcréditoaocientistaquedescobriuumimportante fenômenobiológico.Afinal,odescobridordoesper- matozóide, Leeuwenhoek, havia pensado que o espermatozóideeraoagentedafertilização.Outros antecessores de Newport eram da mesma opinião, masfoiNewportquemfezasprimeirasobservações convincentes. Em 1841, Kölliker estudou a histologia dos testículos verificando que algumas das células testiculares eram convertidas em esper- matozóides. Os espermatozóides tinham uma aparência tão estranha que não eram considerados células. No entanto, quando se pôde demonstrar que eles se originavam de células típicas, sua verdadeira natureza tornou-se evidente. Os esper- matozóidespassaramentãoaserconsideradoscomo célulasaltamentemodificadas. Vejamos o que se pode concluir dessa análise: 1. Os gametas são a única ligação física entre as gerações, pelo menos em muitos organismos e possivelmente em todos. 2. Portanto, os gametas devem conter toda a informação hereditária. 3. Uma vez que óvulos e espermatozóides são células, toda informação hereditária precisa estar contida nestas células sexuais. Portanto, a base física da herança são as células sexuais. Isto não permite concluir que todas as células contenham informação hereditária. Poderíamos ainda pensar que os gametas são células especializadas onde os fatores responsáveis pela herança, talvez as gêmulas, entram. Nós ainda necessitamos de uma segunda informação: “Qual é a origem das células?” Omnis cellula e cellula A divisão celular foi observada em 1835, mas, nessaépoca,nãoseconcluiuquefosseumfenômeno geral. Schwann, por exemplo, acreditava que as células podiam surgir espontaneamente por agluti- naçãodesubstânciasamorfas.Essahipóteseassumia que a origem das células é um evento episódico no 17
  • 18. ciclo de vida dos organismos. Se isso fosse verdade, a unidade da hereditariedade seria o organismo todo e não a célula. A hipótese de Schwann sobre a origem das células foi logo rejeitada, uma vez que a divisão celular estava sendo observada com freqüência em uma variedade de organismos e em diferentes épocas do desenvolvimento. Mais e mais investi- gadores começavam a suspeitar que a divisão celular era o único mecanismo para a produção de novas células. Essa foi uma hipótese muitíssimo difícil de se provar acima de qualquer suspeita. Os micros- cópios e as técnicas para se estudar as células, no começo do século XIX, eram muito inadequados e foi preciso muita observação em diferentes tipos de organismos e de tecidos antes que Rudolph Virchow pudesse, em 1855, cunhar sua famosa frase omnis cellula e cellula (“toda célula vem de célula”) e que ela fosse amplamente aceita. Em uma conferência proferida em 1858 ele apre- sentou a idéia de que uma célula só surge de outra célula pré-existente. É claro que nem todos concordaram com a idéia de Virchow de que todas as células e todos os organismos originavam-se de células e de orga- nismos pré-existentes. Muitos pesquisadores continuavam a acreditar que células podiam se originar de novo e apresentavam o que pareciam ser observações acuradas para provar isso. Alguns acreditavam até mesmo que organismos comple- tos podiam se originar de novo. Pasteur e a acei- tação geral de que geração espontânea não pode ocorrer ainda estavam no futuro. Mesmo assim, as duas hipóteses apoiadas por Virchow foram testadas em um número crescente de pesquisas e, gradualmente, elas se estabeleceram comouma verdade acima de qualquer suspeita. Não restando, portanto, dúvida alguma de que a hereditariedade está baseada na continuidade celular, podemos trabalhar agora com a hipótese de que toda informação hereditária está contida não apenas nas células germinativas mas também, muito provavelmente, nas células a partir das quais elas se formam – e em todas elas até o zigoto. Igualmente possível é a hipótese de que todas as células contenham a informação heredi- tária necessária para o desenvolvimento do indiví- duo e à sua transmissão, via células sexuais, para a geração seguinte. O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E A CITOLOGIA Durante a maior parte da história da humani- dade as pessoas se basearam quase que inteira- mente em seus órgãos dos sentidos para obter informações sobre o ambiente. Cada um de nossos órgãos sensoriais detecta apenas uma pequena porção da ampla gama de estímulos possíveis. Nossos olhos, por exemplo, só conseguem res- ponder à porção do espectro eletromagnético entre o violeta e o vermelho de modo que só conseguimos ver os comprimentos de onda en- tre essas duas cores. Para detectar comprimentos de onda menores, como luz ultra-violeta, raios- X e raios cósmicos, ou comprimentos de onda maiores, como luz infra-vermelha e ondas de rádio, precisamos utilizar instrumentos especiais. A olho nu não conseguimos visualizar em detalhe nem mesmo objetos em movimentação rápida. As lâminas de um ventilador em movi- mento rápido são vistas como um círculo contínuo e uma bala que sai de um rifle é totalmente invisí- vel para nós. Também não conseguimos ver objetos muito pequenos. A aparente uniformi- dade de uma ilustração com meios-tons resulta do fato de os pontos individuais estarem tão jun- tos que o olho humano não consegue distingui- los. Os faróis de um automóvel aparecem como um único ponto de luz até uma certa distância; à medida que o automóvel se aproxima, somos capazes de resolver o ponto único de luz em dois. O poder de resolução do olho humano, ou seja, sua capacidade de distinguir dois pontos muito próximos, é da ordem de 100 micrômetros a uma distância normal de leitura; a maioria das pessoas com visão normal distingue dois objetos separados por um espaço de um milímetro a uma distância de 10 metros. Uma afirmação mais geral é que o olho humano pode distinguir dois objetos separados por um arco de 1 minuto. Esse valor foi determinado por Robert Hooke que estava preocupado em saber qual seria a menor distância entre duas estrelas para que elas fossem vistas como dois objetos separados. Quando elas estavam a uma distância menor do que um arco de 1 minuto, a maioria das pessoas as via como um único ponto de luz. Algumas pessoas podem ver melhor do que isso, mas o poder máximo de resolução de nosso olho é de 26 segundos de arco. 18
  • 19. Quase todas as células são muito pequenas para serem vistas a olho nu, de modo que a Cito- logia não foi possível, nem mesmo teoricamente, antes da invenção do microscópio – o que ocorreu provavelmente na última década do século XVI. Um tempo relativamente longo se passou entre essa invenção e 1663, quando Hooke fez a demonstração daqueles pedaços de cortiça para os membros da Royal Society. Na verdade, fo- ram poucos os trabalhos sérios e contínuos com microscópios antes do século XIX. Durante a maior parte de sua história, os microscópios não passaram de brinquedos de adultos. O pequeno tamanho das células não é o único problema que dificulta seu estudo. A maioria dos animais e de seus tecidos é opaca e, uma vez que a observação através do microscópio composto é mais efetiva quando os objetos são iluminados com luz transmitida, o objeto a ser estudado precisa ser muito fino ou cortado em fatias bem finas de modo que a luz possa atravessá-lo. Ima- gine tentar cortar fígado, por exemplo, em fatias com cerca de 10 micrômetros de espessura, para que fosse possível estudá-lo no microscópio. Além da quase impossibilidade de se fazer isso, as células hepáticas, constituídas principalmente de água, iriam secar rapidamente, tornando-se uma massa enrugada. Esse é um problema espe- cial com as células animais que não possuem uma parede de suporte como as células das plantas. Métodos muito especiais tiveram que ser desenvolvidos pelos microscopistas do início do século XIX quando eles quiseram aprender sobre a natureza celular dos organismos e, mais tarde, sobre a estrutura interna das próprias células. Tornou-se uma prática comum tentar preservar os tecidos de tal maneira que a estrutura de suas células permanecesse intacta e que eles pudessem ser cortados em fatias finíssimas. O primeiro passo foi a fixação. Ela consistia em tratar o material com álcool, com formaldeído, ou com soluções de ácido pícrico, de bicromato de potássio, de cloreto de mercúrio ou de tetró- xido de ósmio. Essas substâncias matam e endurecem as células, em geral, por coagular suas proteínas. Esperava-se, é claro, que isso aconte- cesse de tal forma que as partes das células conti- nuassem a guardar uma certa semelhança com as da célula viva. O tecido fixado podia então ser embebido em parafina para ganhar sustentação e ser fatiado com lâminas cortantes ou em um instrumento construído para essa finalidade – o micrótomo. Mesmo essas fatias finíssimas podiam revelar muito pouco; as células e seus conteúdos internos eram indistinguíveis. Mas aqueles microscopistas inventivos tentavam de tudo e logo descobriram que alguns corantes tingiam certas partes das células mas não outras. Em 1858, Gerlach descobriu que uma solução diluída de carmim corava mais intensamente o núcleo do que o citoplasma das células. Essa substância era obtida dos corpos secos da fêmea de um inseto (Coccus cacti), conhecido popular- mente como cochonilha-do-carmim, que vive em cactos na América Central e sudoeste dos Estados Unidos. Em 1865, Böhmer descobriu que a hematoxilina, extraída do tronco de uma árvore (Haematoxylon campechianum) da América Cen- tral, também tinha maior afinidade pelo núcleo do que pelo citoplasma. Mais tarde foi sintetizada uma grande variedade de anilinas para a indústria téxtil e, entre 1875 e 1880, muitas delas mostraram-se úteis para corar células. Uma dessas anilinas era a eosina, que mostrou ter uma grande afinidade por proteínas citoplasmáticas. Um procedimento de coloração citológica corriqueiro até hoje usa hematoxilina e eosina (HE) e cora o núcleo em azul e o citoplasma em laranja. Da mesma forma, houve melhoria dos micros- cópiosdisponíveisparapesquisascitológicas,princi- palmente no final do século XIX. Muitas delas fo- ramintroduzidasporErnstAbbe(1840-1905)epela indústriaópticaZeissemJena,naAlemanha.Abbe foi, durante a maior parte de sua vida, professor de Física na Universidade em Jena e o principal projetista de lentes da companhia Zeiss, da qual se tornou dono. Em 1878, ele desenvolveu a objetiva de imersão em óleo e, em 1886, a objetiva apocro- mática.Essasmelhoriasnasmãosdeummicrosco- pista habilidoso tornava possível a obtenção de ampliações de até 2500 vezes. O microscópio fotônico estava chegando ao limite de seu poder de resoluçãoteórico.Esselimiteéimpostopelaprópria natureza da luz; isto é, dois objetos só podem ser resolvidos se a distância entre eles for, pelo menos, igual à metade do comprimento da onda utilizado. Oportunidades adicionais para se estudar a estrutura fina das células estavam ainda para vir com a invenção do microscópio de contraste-de- fase e do microscópio eletrônico, no século XX. 19
  • 20. Veremosaseguircomoosmicroscopistasdoúltimo terço do século XIX foram capazes de usar a tecnologiadisponívelnaépocaeestabelecer,como uma hipótese altamente provável, que a base física dahereditariedadeestánonúcleodacélula,oumais especificamente nos cromossomos. Não devemos ficar imaginando que esses investigadores não faziam outra coisa senão examinar células vivas e fixadas com o melhor equipamento óptico disponível, descrevendo do modo mais preciso o que viam. Um problema constante era se uma dada estrutura observada em uma preparação citológica refletia ou não algo presente na célula viva, ou se era um simples arte- fato resultante do drástico tratamento a que as células eram submetidas para poderem ser observadas no microscópio. Uma preparação citológica realmente reflete a estrutura de uma célula viva? A resposta é “Não muito”; mas se o tratamento produz sempre o mesmo resultado é possível imaginar como eram as preparações quando vivas. Apesar disso, nenhuma descoberta importante em Citologia no século XIX foi aceita de imediato. As observações eram repetidas e as conclusões originais confir- madas por uns e contestadas com veemência por outros. Uma interpretação errada podia fazer com que muitos citologistas perdessem meses na tentativa de repetir as observações. Aconteciam debates intermináveis sobre a estrutura fina do protoplasma uma vez que, como era admitido, estava-se olhando para a base fundamental da vida. Muitos citologistas acreditavam que o protoplasma fosse granular, ou um retículo fibroso, ou alveolar (composto de gotas) ou alguma combinação disso. A Citologia como um caminho para o conheci- mento, especialmente no século XIX, nos mostra que a ciência não progride de maneira ordenada mas por meio de testes e retestes constantes das observações, dos experimentos e das hipóteses. Longe de ser uma linha direta em direção à verdade, esse caminho assemelha-se mais àquele retículo que alguns viam como a estrutura básica do protoplasma. (Devemos ressaltar que o termo protoplasma é raramente utilizado nos dias de hoje. Uma vez que ele significa nada mais do que “substância viva”, Hardin [1956] sugeriu que poderíamos passar sem ele.) O QUE EXISTE NAS CÉLULAS? Durante a última metade do século XIX, a hipótese de que os animais e plantas são compostos somente de células e produtos celulares estava estabelecida como uma verdade acima de qualquer suspeita nas mentes da maioria dos microscopistas competentes. Nós podemos falar, então, da teoria celular, usando o termo “teoria” como um corpo completo de dados, hipóteses e conceitos relativos a um impor- tante fenômeno natural. Até hoje a teoria celular é o mais importante conceito relacionado com a estrutura de animais e plantas e no século XX ele foi sendo gradualmente aceito também como o mais importante conceito relativo ao funciona- mento dos organismos. Essa enorme importância da teoria celular decorre do fato de ela estabelecer que as células são as unidades básicas de estrutura e função, que elas são as menores unidades capazes de ter vida independente, isto é, são capazes de usar substâncias obtidas do meio para manter e produzir o estado vivo. A célula é o denominador comum da vida. Existia uma outra razão importante para se estudar as células: a análise dos níveis mais sim- ples de organização contribuem para o enten- dimento dos níveis mais complexos. As interações das substâncias químicas são melhor entendidas quando se conhece sua estrutura molecular. Os movimentos do corpo humano podem ser estudados em muitos níveis. Pode-se observar e descrever os complexos movimentos de um bailarino ou de um arremessador de beisebol. A compreensão aumenta quando se obtém informações sobre os diversos músculos e seus locais de ligação, que tornam os movimentos possíveis. Outros tipos de entendimento surgem quando se estuda os músculos no nível molecu- lar. E, finalmente, mais informações ainda são obtidas quando se aprende sobre a atividade da miosina, da actina e de outras moléculas que parti- cipam da movimentação dos músculos. O conhecimento obtido em cada nível de organização contribui para um entendimento do fenômeno como um todo, enquanto cada nível mantém seu próprio valor. Entender a arte de um bailarino ou de um esportista meramente com o 20
  • 21. conhecimento sobre actina e miosina seria tão impossívelquantopredizeraspropriedadesdaágua a partir do conhecimento sobre os elementos hidrogênioeoxigênio.Noentanto,pode-seconhecer melhor os níveis mais complexos se conhecermos os mais simples. Assim, os biólogos do século XX já pensavam que poderiam saber mais sobre a vida se conhecessem melhor as células. Quandoexaminavamascélulas,aquelescitolo- gistas pioneiros encontravam todo tipo de esferas, de grânulos e de fibras. Como seria possível determinar qual dessas estruturas teria um papel na hereditariedade? Ou melhor, como seria possível determinar a função de qualquer estru- tura presente nas células? Essa é uma questão difícil e os citologistas daquela época não conseguiam respondê-la. Eles não podiam fazer outra coisa senão investigar as células de modo aleatório. Este foi um estágio necessário no desenvolvimento da Citologia – a identificação de estruturas nas células e, quando possível, descobrir alguma coisa sobre seu comportamento. Aparentemente se pesquisavam células de todo animal e planta disponível à procura de exemplos de estruturas celulares e, um a um, todos os reagentes disponíveis nas estantes dos químicos foram colocados sobre as células e suas conseqüências observadas – em geral matavam as células. Esse período da Cito- logia foi de “procura e destruição.” O núcleo efêmero Como mencionado anteriormente, as dificul- dades em se analisar células vivas fizeram das preparações fixadas e coradas o material ideal de estudo. Nesse tipo de preparação, a estrutura mais proeminente é o núcleo descrito por Brown. Muitos corantes, especialmente os corantes básicos como o carmim e a hematoxilina, coravam o núcleo profundamente; isto, juntamente com a aparente presença universal do núcleo, sugeria que ele tivesse um papel importante. Mas qual seria a origem do núcleo da célula? Levou mais de meio século de observações e experimentações por parte de numerosos pesqui- sadores para que essa questão fosse respondida. Em 1835, Valentin sugeriu que o núcleo seria formado pela precipitação de substâncias no in- terior da célula. Três anos mais tarde, Schleiden e, em seguida, Schwann também sugeriram que o núcleo podia se originar de novo. Até por volta de 1870, alguns pesquisadores famosos acre- ditavam que pelo menos alguns núcleos podiam ter uma origem não-nuclear. Nessa mesma época, outros pesquisadores igualmente competentes estavam clamando que todos os núcleos surgiam de núcleos pré- existentes. Diversos processos foram sugeridos – em geral alguma forma de partição em dois ou fragmentação, um mecanismo que mais tarde foi denominado amitose. Não havia nenhuma razão, é claro, porque os núcleos teriam de surgir por apenas um tipo de mecanismo. Considerando a enorme variedade de fenômenos naturais, não seria surpresa se houvesse diversas maneiras de surgimento de núcleos. No entanto, os cientistas procuram regu- laridades na natureza e seria mais satisfatório intelectualmente se houvesse um mecanismo constante para a origem do núcleo. A DESCOBERTA DA DIVISÃO CELULAR Em 1873, A. Schneider publicou o que agora pode ser tomado como a primeira descrição razoável das complexas alterações nucleares, hoje chamadas de mitose, que ocorrem durante a divisão da célula. Neste ano, Otto Bütschi e Her- mann Fol fizeram descrições semelhantes. A descrição de Schneider foi a mais completa; seu objetivo era descrever a morfologia de Mesostoma sp., um platelminto. Quase todo seu trabalho é dedicado à estrutura desse verme mas, sendo um observador cuidadoso, ele descreveu tudo o que viu. A fertilização em Mesostoma sp. é interna e o início do desenvolvimento ocorre em um útero. As ilustrações do que ele viu estão mostradas na figura 3. Os primeiros desenhos mostram o ovo rodeado por células foliculares. Na região bem central está o pequeno núcleo com seu pequeno nucléolo. As estruturas espirais são espermato- zóides. O ovo é a área clara central da ilustração e os glóbulos menores ao seu redor são as células foliculares, que não foram representadas nos desenhos seguintes. Pouco antes da célula se divi- dir o limite do núcleo se torna indistinto. Schnei- der, no entanto, verificou que com a adição de um pouco de ácido acético ele se tornava visível, apesar de dobrado e enrugado. Mais tarde o nucléolo desaparecia e tudo o que restava do nú- cleo era uma área clara na região central da célula. 21
  • 22. No entanto, o tratamento com ácido acético mos- trava uma massa de filamentos delicados e curvos. O segundo desenho mostra esses filamentos, os cromossomos (um termo que só seria proposto em 1888, por Waldeyer) alinhados em uma placa equatorial. A quantidade de filamentos parecia aumentar e quando a célula se dividia eles iam para as células-filhas. O que alguém faria com essas observações? A resposta está longe de ser clara. Se não era possível ver os filamentos nas células vivas e, se eles apareciam repentinamente quando as células 22 Figura 3. Ilustrações de Schneider (1873) das alterações nucleares durante a clivagem do ovo de Mesostoma. À esquerda, desenho de um ovo (zona clara central, onde se vê o núcleo com um nucléolo) rodeado por células foliculares. As outras figuras mostram os filamentos, hoje chamados de cromossomos, e seus movimentos durante a divisão da célula. Figura 4. Ilustrações de Flemming de mitoses em células fixadas e coradas de embriãodesalamandra. A.) Duas células em intérfase: não existem cromossomos visíveis.B.) Célulaempró- fase:osnucléolosjádesapa- receram, mas a membrana nuclear continua intacta; o citoplasmanãoestámostra- do.C.) Célula em início de metáfase: a membrana nu- clear desapareceu e os cen- trossomossesepararam.D.) Uma preparação de excelentequalidade,ondese vê os cromossomos meta- fásicos duplos, isto é, com- postosporduascromátides. E.) As cromátides se sepa- ram e se movem para os pólosdofuso.F.) Célulaem final de divisão com os cromossomos dos núcleos- filhossendoenvolvidospela membrana nuclear. (Flem- ming, 1882) A B C D E F
  • 23. eram tratadas com ácido acético, não seria razoável pensar que eles fossem um artefato? No entanto, o fato de os filamentos serem obser- vados repetidamente, e de eles parecerem sofrer estranhos movimentos, sugeria que já estivessem presentes na célula viva, numa forma invisível. Flemming teve sucesso em determinar que os eventosnuclearesobservadosnacélulaemdivisão em materiais fixados e corados tinham sua contrapartida na célula viva. Apesar de não ter descoberto a mitose, devemos a ele mais do que a qualquer outro o conceito de mitose que temos hoje; apenas detalhes do processo foram adicio- nados à sua descrição. (Fig. 4 e 5) O sucesso de Flemming foi conseguido graças a alguns fatores: material que ele selecionou para seu estudo; ter sido cuidadoso em procurar nas células vivas as estruturas observadas nas células fixadas e coradas; ter à sua disposição microscó- pios muito melhores do que os existentes ante- riormente. O uso de células vivas, além de dar a confiança de que o observado era real e não artefato, permitiu também determinar a seqüência dos eventos. As fases da mitose Costuma-se dizer que um núcleo que não está sofrendo divisão encontra-se em repouso. Esse é um termo infeliz pois sugere inatividade e hoje nós sabemos que a maior atividade fisiológica do núcleo acontece durante esse período. Flemming não viu cromossomos nos núcleos em “repouso” de células vivas. Esses núcleos pareciam não ter nenhuma estrutura interna. Quando essas células eram fixadas e coradas via-se que seus núcleos continham uma rede densa com grande afinidade por certos corantes, além de um ou dois grânulos esféricos, os nucléolos. Figura 5. Ilustrações de Flemming de mitose em células vivas de larva de salamandra. Os desenhos estão organizados em seqüência, começando com a prófase, no canto superior à esquerda, e terminando com duas células, na fileira inferior. Os dois últimos desenhos mostram os cromossomos vistos do pólo da célula e uma telófase em vista lateral, respectivamente. O desenho mais à direita na segunda fileira mostra que os cromossomos estão duplos. (Flemming, 1882) 23
  • 24. Mudanças no núcleo são as primeiras evidên- cias que a mitose está a caminho. No núcleo vivo, aparentemente desprovido de estruturas, apare- cem longos e delicados fios. Quando eles podem ser vistos, é o começo da prófase. (A mitose é um processo contínuo; ela é dividida em fases pelos citologistas apenas com o intuito de facilitar sua descrição.) Esses fios se condensam em cromossomos que se posicionam no meio da célula na metáfase, época em que a membrana nuclear já desapareceu. Em células coradas pode- se ver que os cromossomos estão presos a um elaborada estrutura fibrosa – o fuso. Células coradas podem mostrar também a presença de minúsculos grânulos nas extremidades do fuso – os centríolos. Elas podem mostrar também um outro conjunto de fibras, os raios astrais, que irradiam dos centríolos. Durante a anáfase das células vivas, os cromossomos se separam em dois grupos que se movem através do fuso para pólos opostos da célula. Quando os cromossomos atingem as extremidades do fuso, é a telófase. Os cromossomos nas células vivas se tornam cada vez menos distintos e a membrana nuclear se refaz. O núcleo está de novo em “repouso”. O que se pode concluir desse processo? É óbvio que todas as estruturas celulares precisam ser reproduzidas para que as células- filhas sejam idênticas à célula-mãe. Flemming foi capaz de explicar como isso acontece para os cromossomos. Se os cromossomos de uma célula vão ser divididos igualmente entre as células- filhas, eles precisam dobrar em número em algum estágio do ciclo celular. Flemming observou que, quando os cromossomos aparecem pela primeira vez no início da prófase eles já estão duplos; assim, em algum momento entre seu desapareci- mento na telófase e seu reaparecimento na pró- fase, cada cromossomo deve ter se duplicado. Hoje, é claro, nós consideramos os cromos- somos como estruturas permanentes nas células mesmo sendo eles visíveis apenas na mitose. Nós também reconhecemos a individualidade dos cromossomos, isto é, que eles existem em geral em pares homólogos, cada par contendo um conjunto específico de genes. Essas conclusões poderiam ter sido tiradas a partir das observações de Flemming? Na verdade não. E as hipóteses a seguir, poderiam ser refutadas? Você poderia argumentar o seguinte: como o processo mitótico assegura que cada célula-filha receba seu lote de cromossomos isto deve indicar, sem muita dúvida, que um mecanismo tão elabo- rado e preciso para duplicação e distribuição é de importância fundamental. E o que pode ser mais importante do que assegurar que os ele- mentos controladores da hereditariedade e da vida de cada célula cheguem até elas? Mas alguém pode responder que, sendo as células-filhas idênticas à célula-mãe, todos os produtos celulares são reproduzidos. Pode-se argumentar que é mero acidente que o processo de reprodução e distribuição seja mais facilmente observado nos cromossomos. Não existe razão, portanto, para não assumirmos que cromosso- mos, membranas celulares e todos aqueles grânulos e glóbulos observados no citoplasma possam ter igual chance de estarem envolvidos na hereditariedade. A DESCOBERTA DA MEIOSE Flemming e muitos outros citologistas seus contemporâneos estavam considerando que as divisões mitóticas do núcleo aconteciam em toda divisão celular. A reunião de inúmeras obser- vações em células de um grande número de espécies de plantas e animais permitia que se fizesse esta afirmação geral. Note que isso é um bom exemplo de indução. Nós podemos agora usar essa afirmação geral como uma hipótese a ser testada. Isto é, nós podemos partir para um raciocínio dedu- tivo. Por exemplo: se a hipótese de que o núcleo sempre divide por mitose for verdadeira, então o número de cromossomos deve dobrar a cada geração. Isso seria inevitável. Como os núcleos do óvulo e do espermatozóide se unem na fertilização, caso eles se formassem por mitose, o zigoto deveria ter duas vezes o número de cromossomos de seus genitores. Mas isso não acontece: Flemming e outros citologistas estavam cientes de que o número de cromossomos parecia ser o mesmo em todos os indivíduos e em todas as gerações de uma espécie. Obviamente existe um problema com essa hipótese. Deveria haver algum mecanismo que reduziria o número de cromossomos antes ou durante a fertilização. Seria possível supor que, quando os núcleos do óvulo e do espermatozóide se fundiam na fertilização, os cromossomos tam- bém se fundiriam uns com os outros, sendo que metade de cada um deles seria destruída. Uma 24
  • 25. hipótese alternativa é que ocorresse redução do número de cromossomos durante a formação dos óvulos e dos espermatozóides nas gônadas. O significado dos corpúsculos polares. Vários pesquisadores tinham descrito, em diversas espécies animais, a eliminação de minús- culas esferas na região do pólo animal do óvulo, por ocasião da fertilização. Essas esferas logo desapareciam e, como pareciam não ter função alguma, foram denominadas corpúsculos polares. Observou-se também que na partenogênese for- mava-se um único corpúsculo polar, mas que nos óvulos fertilizados eles sempre pareciam ser dois. Em algumas espécies, um corpúsculo era formado antes da fertilização e um segundo, depois da entrada do espermatozóide. Em outras espécies, os dois corpúsculos polares eram formados após a fertilização. (Fig. 6) Em 1887, August Weismann propôs uma hipótese para explicar a constância da quanti- dade de material hereditário de uma geração para outra. Com base na observação de muitos citologistas, ele diz: “pelo menos um certo resultado sugere que exista uma substância hereditária, um material portador de tendências hereditárias, e que esta substância está contida no núcleo das células germinativas, no filamento enovelado no interior do núcleo [alguns citologistas pensavam que os cromossomos formavam um fio contínuo ou espirema durante a interfase], que em certos períodos aparece na forma de alças ou barras [estes eram os cromossomos nos estágios mitóticos]. Nós podemos, além disso, considerar que a fertilização consiste no fato de um número igual de alças [cromossomos] de cada genitor ser colocado lado a lado, e que o núcleo do zigoto é composto desta maneira. No que diz respeito a esta questão, não tem importância se as alças [cromossomos] dos dois pais se misturam mais cedo ou mais tarde ou se permanecem separadas. A única conclusão essencial necessária à nossa hipótese é que a quantidade de substância hereditária fornecida por cada um dos genitores seja igual ou aproximadamente igual entre si. Se for assim, as células germinativas dos descendentes conterão os germoplasmas de am- bos os pais unidos, isso implica que tais células só podem conter metade do germoplasma paterno, como estava contido nas células ger- minativas do pai, e metade do germoplasma materno, como estava contido nas células germinativas da mãe.” 25 Figura 6. Ilustrações da meiose em fêmea de Ascaris. Anteriormente às etapas mostradas nos desenhos, os cromossomoshaviamseduplicadoeseemparelhado,formandoduastétrades.Estassesepararamnaprimeiradivisão meiótica e duas díades foram para o primeiro corpúsculo polar, enquanto que as outras duas permaneceram nos óvulos. Isto é mostrado no desenho 33 de Boveri. No desenho 36, as díades estão em rotação antes da sua separação na segunda divisão meiótica. O segundo corpúsculo polar pode ser visto na posição correspondente à das duas horas. Os desenhos 42 e 43 mostram as díades se separando. No desenho 45, a segunda divisão já terminou e o segundo corpúsculo polar com seus dois cromossomos aparece na superfície do óvulo; o primeiro corpúsculo polar está acima dele. Os dois cromossomos no óvulo estão para formar o pró-núcleo feminino. O desenho 46 mostra o primeiro corpúsculo polar na posição correspondente à das 3 horas, o segundo corpúsculo polar na superfície do óvulo, na posição correspondente à das 12 horas, o pró- núcleo. Fig. 33 Fig. 36 Fig. 42 Fig. 43 Fig. 45 Fig. 46