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OS TEXTOS MEMORIALISTAS 
Consistem no relato ulterior de vivências/experiências pessoais passadas que se articulam com o contexto histórico-cultural 
das mesmas. 
Estes textos têm um valor documental, porque neles o autor não se limita a relatar o seu percurso autobiográfico e 
apresenta um testemunho do tempo e do espaço em que ocorreram as suas vivências. 
TEXTO I 
Enquanto andei na primeira classe, entrava às oito da manhã e saía à uma da ta rde. Ficava com a ta rde l ivre para brincar, 
e i s so era bom, mas nunca me habituei a acordar cedo. A minha mãe acordava-me todos os dias com uma tigela de papa. Comia 
ainda na cama. Sentado, mas ainda a dormir. Depois, fazia o caminho para a escola, que demorava cerca de meia hora. Chegava 
atrasado todos os dias. A professora tinha afixado um cartaz feito em papel quadriculado com o nome de todos os alunos da sala e 
um mapa com todos os dias de aulas. À chegada, tínhamos de pinta r o quadradinho correspondente com uma caneta verde, 
amarela ou vermelha, consoante chegássemos a horas, atrasados ou muito atrasados. Ter uma linha de quadrados vermelhos ou 
a ma relos à fre nte do nome era considerado mau. Eu chegava atrasado todos os dias. Quando che ga va , di zi a “dá l i ce nça , mi nha 
s e nhora?”. Essa e ra uma pergunta a que não esperava que a professora respondesse. Dirigia-me à minha carteira e, depois, dirigia - 
me ao cartaz. A professora perguntava sempre qual era a cor que nós achávamos que devíamos uti l i zar. Eu di zia sempre: 
“a ma re l o”, na e s pe ra nça de que a profe s s ora de i xas se pas sar. 
Tive sempre a mesma professora da primeira à quarta classe. Cada vez que nos dirigíamos a ela, tratávamo-la por “minha 
s e nhora”. Todas as frases a cabava m em “mi nha senhora”: “posso ir a fiar o lápis , mi nha s e nhora ?”, “pos s o i r à casa de banho, 
mi nha senhora?”, “posso ir a o quadro, minha s enhora?”. De fa cto, a professora e ra di fe re nte de toda s a s mul he re s que ti nha 
conhecido até aí e que eram as mulheres da minha rua. Tinha anéis com pedras em quase todos os dedos. Tinha o ca belo sempre 
arranjado. Tinha os olhos pintados. Falava de maneira diferente. Falava como as pessoas da televi são. Falava corretamente. A 
profe s s ora , “mi nha s e nhora ”, e ra uma s e nhora . […] 
José Luís Peixoto, in JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 29 setembro – 12 outubro, 2004 
TEXTO II 
"Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apel ido do lado paterno, mas s im a 
alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civi l da Golegã o nas cimento do seu 
segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai ), 
e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomás tica fraude, decidiu, por sua conta e ri s co, 
acres centar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a 
uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, 
nã o pre cisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, a s s i na r os me us l i vros . […]. Entre i na vi da ma rca do com e s te 
apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi 
necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai , a 
quem, desde que s e tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente 
José de Sousa, como ver s e podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um fil ho cujo 
nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não 
teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. 
Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu 
de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratas sem unicamente 
de Sousa." 
José Saramago, As pequenas memórias 
TEXTO III 
Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos , 
que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas tra seiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer 
que namoro, o que então s e chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina 
quer namorar comigo?», «Pois sim, s e são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo -nos muito, fazíamos s inai s , 
conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas da roupa, mas nada de mai s avançado em 
matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com 
uns avós), mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito boni ta , de 
ros tinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, deveria pensar que eu era demas iado 
jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado 
ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido 
de Bacalhau, e eu, pêlos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras , não queria que mulher minha fos se pela vida 
ca rre ga ndo com o nome de De ol i nda Ba ca l ha u Sa ra ma go.” 
José Saramago, As pequenas memórias
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  • 1. OS TEXTOS MEMORIALISTAS Consistem no relato ulterior de vivências/experiências pessoais passadas que se articulam com o contexto histórico-cultural das mesmas. Estes textos têm um valor documental, porque neles o autor não se limita a relatar o seu percurso autobiográfico e apresenta um testemunho do tempo e do espaço em que ocorreram as suas vivências. TEXTO I Enquanto andei na primeira classe, entrava às oito da manhã e saía à uma da ta rde. Ficava com a ta rde l ivre para brincar, e i s so era bom, mas nunca me habituei a acordar cedo. A minha mãe acordava-me todos os dias com uma tigela de papa. Comia ainda na cama. Sentado, mas ainda a dormir. Depois, fazia o caminho para a escola, que demorava cerca de meia hora. Chegava atrasado todos os dias. A professora tinha afixado um cartaz feito em papel quadriculado com o nome de todos os alunos da sala e um mapa com todos os dias de aulas. À chegada, tínhamos de pinta r o quadradinho correspondente com uma caneta verde, amarela ou vermelha, consoante chegássemos a horas, atrasados ou muito atrasados. Ter uma linha de quadrados vermelhos ou a ma relos à fre nte do nome era considerado mau. Eu chegava atrasado todos os dias. Quando che ga va , di zi a “dá l i ce nça , mi nha s e nhora?”. Essa e ra uma pergunta a que não esperava que a professora respondesse. Dirigia-me à minha carteira e, depois, dirigia - me ao cartaz. A professora perguntava sempre qual era a cor que nós achávamos que devíamos uti l i zar. Eu di zia sempre: “a ma re l o”, na e s pe ra nça de que a profe s s ora de i xas se pas sar. Tive sempre a mesma professora da primeira à quarta classe. Cada vez que nos dirigíamos a ela, tratávamo-la por “minha s e nhora”. Todas as frases a cabava m em “mi nha senhora”: “posso ir a fiar o lápis , mi nha s e nhora ?”, “pos s o i r à casa de banho, mi nha senhora?”, “posso ir a o quadro, minha s enhora?”. De fa cto, a professora e ra di fe re nte de toda s a s mul he re s que ti nha conhecido até aí e que eram as mulheres da minha rua. Tinha anéis com pedras em quase todos os dedos. Tinha o ca belo sempre arranjado. Tinha os olhos pintados. Falava de maneira diferente. Falava como as pessoas da televi são. Falava corretamente. A profe s s ora , “mi nha s e nhora ”, e ra uma s e nhora . […] José Luís Peixoto, in JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 29 setembro – 12 outubro, 2004 TEXTO II "Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apel ido do lado paterno, mas s im a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civi l da Golegã o nas cimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai ), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomás tica fraude, decidiu, por sua conta e ri s co, acres centar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, nã o pre cisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, a s s i na r os me us l i vros . […]. Entre i na vi da ma rca do com e s te apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai , a quem, desde que s e tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver s e podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um fil ho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratas sem unicamente de Sousa." José Saramago, As pequenas memórias TEXTO III Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos , que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas tra seiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então s e chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina quer namorar comigo?», «Pois sim, s e são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo -nos muito, fazíamos s inai s , conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas da roupa, mas nada de mai s avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós), mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito boni ta , de ros tinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, deveria pensar que eu era demas iado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pêlos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras , não queria que mulher minha fos se pela vida ca rre ga ndo com o nome de De ol i nda Ba ca l ha u Sa ra ma go.” José Saramago, As pequenas memórias