2. Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política ou pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava nos a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.
3. Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores. E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza que viria, a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar e as bolas de Berlim !!
4. Aos 4 anos aprendi a ler; aos 6 fazia versos, aos 9 ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos 13 fui, interna ,para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Chamava-se a isto Adolescên- cia , as formas cresciam-nos como as necessidades de espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te, menina,que vais ser escritora
5. Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma coisa frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois tendo passado o dia a esfregar o chão com palha de aço, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca…
6. Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só 6 anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda- vestidos. Isto não, isto não se usa , isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar A revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons valores pessoais
7. Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates generosidades ,ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo para aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é a metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.
8. Pois é. Eu achava, pobre de mim que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras Também escrevia crónicas e contos, recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vai de escrever 10 romances em 12 anos mais um livro de contos (Os linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis
9. Isto da idade tem a sua graça. Por fora, realmente ,nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme. Perto dos 30 anos comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries,etc.
10. Já escrevi 1500 cantigas e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante. Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro porque não quero. Segundo porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos não é excessivo. Encontramo-nos no meu próximo romance.