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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
                 CENTRO DE EDUCAÇÃO
       PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO




            PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO




            NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:
POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA




                        NITERÓI
                          2009
2



            PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO




            NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:
POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA




                     Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
                     em Educação da Universidade Federal Fluminense
                     como requisito parcial para obtenção do título de
                     Doutora em Educação.




                      UFF/ NITERÓI
                           2009
3

                                     PORTO,       Patrícia de C. P.. Narrativas
                                    Memorialísticas: Por uma arte docente na
                                    escolarização      da literatura. 285p. Tese
                                    (Doutorado)    –     Faculdade de Educação,
                                    Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro,
                                    2009.




Banca Examinadora:



        _________________________________________________________
               Professora Dra. Iduina Mont’Alverne Braun Chaves
                        Universidade Federal Fluminense



        _________________________________________________________
         Professora Dra. Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi
                    Universidade Federal do Rio Grande do Norte



        _________________________________________________________
                    Professora Dra. Eliana Braga Aloia Atihé
                           Universidade de São Paulo


        _________________________________________________________
                   Professora Dra. Valdelúcia Alves da Costa
                       Universidade Federal Fluminense


        _________________________________________________________
                 Professora Dra. Márcia Maria de Jesus Pessanha
                        Universidade Federal Fluminense




Data:
4

                                                             O SUMÁRIO:

                NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:
    POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA

O Prólogo.
Pelo bosque....................................................................................................................................13
Entre “odos” e “mythos”................................................................................................................23

“Odos”
1 - Memória Singular e a escolarização da literatura:
    Narrar para não esquecer.......................................................................................................37

2 – Memória Plural e a cultura popular em sala de aula:
     Narrar para aprender..............................................................................................................61
2.1- No bosque da literatura: A cultura pelos tecidos da
linguagem..............................................75
2.2 – A cultura popular como metáfora de uma memória plural: Pelas encantaria do Tambor de
Crioula............................................................................................................................................8
1

3 – Cultura oral, Literatura e Folclore.......................................................................................104
3.1- Cultura da infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes............... 116
3.2 – A cultura oral como processo de significação e a relação entre folclore e literatura na escola:
      Cala boca já morreu... ......................................................................................................
124

“Mythos”
Narrativas Memorialísticas de
Professores..................................................................................134

Água
4
Memórias de um Porto: De véspera
- Do mirante ao horizonte: Sebastianistas e Quixostecos na espiral da reinvenção....................137
A memorialista.............................................................................................................................147
A Divina
Pastora.........................................................................................................................150
Ar
5
Memórias de Rya-ne:
– O fluxo memorialístico da Infância ou Memória Proustiana...................................................165
– O fluxo da memória coletiva ou Memória Polifônica. ............................................................173
Terra
5

6
Memórias de Elzi Paixão
- Poética da Linguagem:
Um trançado de bilro entre oralidade e
literatura........................................................................187


Fogo
7
Memórias de Magalhães
– A crônica memorialista e a cidade:A possibilidade de diálogo entre literatura e história........210

Upaon-Açu e o Círculo
8
Memórias de Emanuel
- Emanuel, o peixe, o rio, a lenda e o fantástico: por uma poética da imaginação.......................231
Cazumbá e a Cidade dos Azulejos...............................................................................................
242

9–O
Epílogo...............................................................................................................................249
Bibliografia..................................................................................................................................25
5
Anexos..........................................................................................................................................26
0
6




                                                              ADVERTÊNCIA

  Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro,
 da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em
 as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não
   raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia
                                                  delas que mereçam sair cá fora.

          Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e
  impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o
livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia
  de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão,
                    leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.


                                                             Machado de Assis
7



                                            Dedicado aos artistas populares,
                                      aos professores que “amam” a literatura
                     e a todos os alunos e mestres que me trouxeram até aqui.




                                    Agradecimentos

       Agradeço primeiramente à Universidade Federal Fluminense, minha segunda casa
por dezoito anos de formação. Muitos foram os encontros que transformaram a minha
trajetória nesse percurso. Agradeço ao professor Jorge de Sá, amigo e mestre que me
ensinou através de Todorov que “literatura não se ensina, se vive”. À professora Sônia
Monnerat tanto pela teoria literária quanto pela alegria literária. À professora Edwiges
Zaccur, inspiração e espelho de afinidades. Ao professor Osmar Fávero, uma fonte
abundante de narrativas e memórias da educação, um grande memorialista, um jequitibá e
um ser humano ímpar. A todos outros professores, aos funcionários, à Maura por tantos
anos de boa prosa e café. A UFF já me deu “régua e compasso”. E um ciclo se fecha.
       Agradeço aos professores que com toda gentileza aceitaram e participam como co-
autores nessa viagem de múltiplas paisagens, de múltiplos acessos à arte literária numa
ponte aérea entre Rio de Janeiro e Maranhão, entre santos e cidades, entre São Luís e São
Gonçalo. Agradeço à      Elzi Paixão, a terra,    Ryane Pinto, o ar, ao professor Jorge
Magalhães, o fogo, a Emanuel Reis, o círculo, a Paulo Carré, as imagens. Agradeço a eles
a alquimia dos elementos que compuseram esse todo, esse tecido humano feito de
memórias, vozes, tambores, ladainhas, cantigas, acalantos... Oxalá!
       Á minha orientadora e sempre amiga Iduina Chaves. Agradeço todo respeito, afeto
e apoio nas horas mais necessárias. Foi um caminho difícil e longa foi a batalha contra os
“moinhos de vento”. Iduina foi companheira e orientando - não para prender, mas para
libertar, fez renascer em mim o sentimento de coragem, de saber agir com o coração, o
sentimento que habita os Sertões e diz dele que “todo nordestino é antes de tudo um forte”.
8

       Agradeço às companheiras e ao companheiro do grupo de pesquisa do
“Imaginário”: Jacyana, Adrianne, Bruna, Tatiana, Rosane e Eduardo. Agradeço a
amizade, as dicas, os livros emprestados, os textos, as mensagens de carinho e conforto, os
olhares de compreensão, o bom humor e toda boa energia trocada.                        Agradeço
especialmente à amiga Tânia Nhary por suas palavras sempre tão preci(o)sas. Agradeço ao
amigo e companheiro de jornada Carlos Henrique por ter dividido comigo os altos e baixos
do percurso.
       Agradeço à minha família por todo suporte recebido e pela necessária rede de
acolhimento. Aos queridos Raida, Ovídio, Isadora, Karen, Matheus, meus irmãos que se
perderam e se acharam na vida em busca de aventuras: Rojane, Cláudio, Mauro, Carmem
e Suely, meus cunhados e cunhadas, Rosana, Adalto, meus sobrinhos, minhas primas
Andréa Márcia, Márcia Andréa e a querida Yasmin, minhas tias Zica e Inácia, meu querido
Marcus André e a todos os outros afetos.
       Agradeço à minha filha Alice, filha do meu coração e da minha alma. Agradeço ao
meu filho Pedro, minha rocha, minha força, meu pensamento.


                              Pedro pedreiro penseiro esperando o trem (...)
          Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo.
                                             Chico Buarque


       Agradeço ao querido Francisco Meirelles todas as prendas, a “capa” da tese e
todo o amor e toda paciência nos nossos momentos tão bem compartilhados.
       Agradeço aos artistas, aos brincantes, às coreiras, aos ogãs, aos griots, aos poetas
populares, aos livreiros, ao povo todo, povo lindo que me recebeu com cheiros, estórias e
histórias pra contar.
       E ao Milton Nascimento que com sua voz e suas lindas canções ajudou a embalar
minhas noites insones:

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
9

Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão



                                                                         E um novo ciclo se abre...




PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização
da literatura. 285p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

                                             RESUMO


    As histórias do tempo de escola e do tempo da infância fazem parte da memória da nossa
passagem pelo mundo e essas memórias, espontâneas ou evocadas, se manifestam de forma
simbólica e imaginária. E as reminiscências que afloram desse tempo memorialístico nos aparecem,
no campo do visível e do dizível, como um redemoinho de imagens, um labirinto discursivo e
imagético. Nesta tese, para refletir sobre as “experiências memorialísticas” que se desvelam no
espaço poético entre ficção e realidade, entre memórias reais e memórias ficcionais – nos
aproximamos de abordagens teóricas que tratassem dessa temática plural entre a literatura e a
memória como continuum religare. Ao realizar o presente estudo, um dos objetivos iniciais foi
refletir sobre uma “arte docente” na escolarização da literatura a partir das experiências narrativas
literárias que possibilitassem o encontro e o diálogo entre a identidade cultural e o direito à palavra
encarnada da memória, palavra que, quando mesclada ao mundo imagético, desfaz as fronteiras entre
o que se vive e o que se inventa para viver, lembrar e narrar do tempo da experiência.
   A metodologia desta pesquisa foi centrada na própria poiesis da narrativa que provinha da
materialidade de cada discurso memorialístico, discurso visto aqui como um dos acessos à busca do
homem pela significação da sua existência no mundo e com o mundo. Nós existimos com e para
além. E é assim que nos lançamos ao passado, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem, no
nosso universo mítico. O discurso memorialístico do contar, do narrar sua história, do refletir-se na
história do outro, reascendo o fogo primitivo que sobrevive num sujeito muitas vezes atrelado à
massificação das experiências e ao esvaziamento do significar.
        Concluímos e defendemos assim que, ao compreender a persistência das reminiscências
diante de um esquecimento contemporâneo dilacerante e de uma crescente ausência da arte da
10

narrativa, como há muito nos advertiu Walter Benjamin, somos convocados a refletir sobre quem
fomos e sobre quem queremos nos tornar nas nossas próprias trajetórias docentes.


        Palavras-chave: Literatura; Cultura; Memória.




PORTO, Patrícia. Memorialistic Narratives: For a teacher’s art in the learning process of
literature. 285p. (Doctorate Thesis) – College of Education, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

                                            ABSTRACT


    The stories of school and childhood time take part in the memories of our path through the world
– and these spontaneous or conjured memories come about in a symbolic and imaginary fashion. The
reminiscences that crop up from this memorialistic time appears to us, in the visible and sayable
fields, as in an eddy of images, a discursive and imagetic labyrinth. In respect to this work, in order
to think about the “memorialistic experiences” that are uncovered in the poetic area between fiction
and reality, real and fictional memories – we came close to theoretical approaches that addressed this
plural issue between literature and memories as a continuum religare. When performing this study,
one of the main objectives was to think about a “teacher’s art” within literature learning from literary
narrative experiences that allowed the meeting point, as well as the dialogue between cultural
identity and the right to the incarnate word of the memories. This word, when intertwined with the
imagetic world dissolves the boundaries between what is lived and what is created to live, remember
and narrate the time of experience.
   The methodology of this research focused on the narrative poiesis itself, which came from the
materiality of each memorialistic discourse, whereas this discourse is considered here as one of the
ways to reach the quest for life meaning and existence in and with the world. We exist with and
beyond. And that is how we dive into the past, trying to recover our lineage in our mythic universe,
many times. The memorialistic discourse of narrating our own lifetime, of projecting ourselves in
someone else’s lifetime, reactivating the primitive fire that lives on in an individual many times
attached to the massification of experiences and to deflation of meaning.
        We reach the conclusion and stand that, when understanding the persistence of the
reminiscences regards to a dilacerating contemporary oblivion and an increasing absence of
narrative art, as Walter Benjamin warned us long ago, we are impelled to think about who we were
and who we want to become in our teacher career.
11



        Key words: Literature; Culture; Memories.




PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por un arte docente en la escolarización
de la literatura. 285p. (Tesis de Doctorado) – Facultad de Educación, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

                                             RESUMEN


    Los cuentos del tiempo de escuela y del tiempo de la infancia hacen parte de la memoria de
nuestro pasaje por el mundo y esas memorias, espontáneas o evocadas, se manifiestan de forma
simbólica e imaginaria. Y las reminiscencias que afloran de ese tiempo memorialístico nos parece,
en el campo de lo visible y de lo decible, como un remolino de imágenes, un laberinto discursivo e
imagético. En esta tesis doctoral, a fin de reflexionar sobre las “experiencias memorialísticas” que se
desvelan en el espacio poético entre ficción y realidad, entre memorias reales y memorias ficcionales
– nos acercamos de abordajes teóricos que trataran de esa temática plural entre la literatura y la
memoria como un continuo religare. Al realizar el presente estudio, uno de los objetivos iniciales
fue reflexionar sobre un “arte docente” en la escolarización de la literatura a partir de las
experiencias narrativas literarias que possibilitaran el encuentro y el diálogo entre la identidad
cultural y el derecho a la palabra encarnada de la memoria, palabra ésta en que, cuando mezclada al
mundo imagético, deshace las fronteras entre lo que se vive y lo que se inventa para vivir, acordarse
y narrar a partir del tiempo de la experiencia.
    La metodología de esta investigación se centró en la poiesis misma de la narrativa que era
proveniente de la materialidad de cada discurso memorialístico, discurso visto aquí como uno de los
accesos a la búsqueda del hombre por la significación de su existencia en el mundo y con el mundo.
Existimos con y para más allá. Y es así que nos lanzamos al pasado, al intentar por muchas veces
recomponer nuestro linaje, en nuestro universo mítico. El discurso memorialístico de lo contar, de lo
narrar su cuento, de lo reflejarse en el cuento del otro, reavivando el fuego primitivo que sobrevive
en un sujeto muchas veces atraillado a la masificación de las experiencias y al vaciamiento de lo
significar.
        Concluímos y defendimos así que, al comprender la persistencia de las reminiscencias
delante de un olvido contemporáneo dilacerador además de una creciente ausencia del arte de la
narrativa, como hace mucho nos advertió Walter Benjamin, somos convocados a reflexionar sobre
quien fuimos y sobre quien queremos volvernos en nuestras trayectorias docentes mismas.
12



       Palabras clave: Literatura; Cultura; Memoria.




                                         O PRÓLOGO


 Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser
                             feliz por isso.
                   Meu quintal é maior que o mundo.

                                      Manoel de Barros




Tijolos e telhas feitas pelos quilombolas de Alcântara, Maranhão. Imagem: herdeiro legítimo das terras
                                               quilombolas.
13




                                              Pelo bosque


             Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num
  bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda
ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela
                                                                                            direção.

                                                                                      Umberto Eco


       Um bosque pode ter um jardim de caminhos que se separam e que depois podem
voltar a ser no mesmo todo um jardim, não o mesmo do passado, aquele de trilhas já
marcadas e conhecidas, mas um outro, por sinal ainda mais bonito, que do passado faz no
presente o caminho reinventado. E de reinvenção em reinvenção se pode atravessar o bosque
criando e deixando novas trilhas, escolhendo árvores e direções, aumentando com muitos
pontos a narrativa que nos leva a um lugar de escolha e destino. De onde poderemos então
ouvir a voz do Eco:
                               (...) havia procurado no bosque uma coisa que estava em sua
                       memória particular. Ao caminhar pelo bosque, posso muito bem utilizar cada
                       experiência e cada descoberta para aprender mais sobre a vida, sobre o
                       passado e o futuro. Sem embargo, considerando que um bosque é criado para
                       todos, não posso procurar nele fatos e sentimentos que só a mim dizem
                       respeito. (...) porém o devaneio não é uma coisa pública; leva-nos a caminhar
                       pelo bosque da narrativa como se estivéssemos em nosso jardim particular.
                       (Eco, Umberto. p.16, 2004)

       Em muitos contos de fadas espalhados pelo mundo teremos a opção de escolha de
um ou mais caminhos pelo bosque. Sem dúvida, isso pode sugerir uma série de aventuras e
desventuras, trajetos com inúmeras trilhas, atalhos, desvios, clareiras acesas... Pensemos
então a fábula numa analogia com a nossa formação docente, ou melhor, com a nossa
formação humana. No caso dos contos fabulosos, desde tempos remotos até hoje, as crianças
que moram no centro das histórias e que partem sempre do centro de si mesmas para
cumprirem seus destinos, vivem trasnsgrediências e expelidas para as periferias vão habitar
14

por uma estação - ou mais - os nebulosos, os obscuros com sibilos e grilos, habitar os
silêncios do tempo e os mistérios sem fim. Elas precisam chegar do outro lado, precisam
vencer o medo do escuro e da morte, o julgo do veto e a armadilha de castração. Elas
precisam cumprir o que há de missão mítica assim como um herói épico, um herói de
Virgílio, que já não busca somente a glória para os seus feitos, mas que imprime à sua
trajetória o valor da vida e da morte, da aprendizagem do caminho com a sabedoria do
coração e a alegria hospedada no desejo de chegar, desejo legítimo de uma alma buscante.
        Por isso que pensado com o coração e sentido com a alma, o presente instrumento de
viagem ou viagens traz as narrativas de muitas vozes, vozes de muitos narradores, esperando
que, aos leitores amigos, se abra aqui mais uma possibilidade de olhar que una no mesmo
percurso - a arte popular como metáfora do imaginário coletivo e as memórias da infância
como o simbólico do imaginário de quem conta sua história com memórias reais e
ficcionais, verossímeis e inverossímeis; trazendo para o centro dessa bifurcação temática as
narrativas das memórias de educadores que, ao trabalharem com a literatura e suas
linguagens, vivem a literatura como amor.
         Para viver uma literatura encarnada, que partisse do “individual” para o “coletivo”
sem fragmentar o individual, foi lançada uma primeira hipótese: a de que “só se vive a
literatura na escola por um primeiro engajamento: “o gosto” e que o professor, a professora
“que escrevesse literatura” ou que “gostasse de escrever” ou que “gostasse de ler” ou que
“gostasse de contar e ouvir estórias” era a princípio um professor, uma professora que
trabalhava em prol de uma “literatura” pelo gosto. Ora, essa hipótese criava um absoluto ao
descartar no reverso do gosto o seu des-gosto, pois “gostar” e “não gostar” são como duas
fases da mesma lua. Afinal, há tantos gostos que se tornam desgostos e vice-versa. Foi
preciso então lembrar Fernando Pessoa ou o poeta camponês Alberto Caeiro que nos deixa
simpaticamente uma deixa de herança: a de que há um “sol que doira sem literatura” e
ainda, para o desconforto de alguns, completa dizendo que não constava que Jesus Cristo
tivesse biblioteca.1 Ora, não é possível absolutizar o gosto ou até mesmo definir o que é
gosto, porque o gosto assim como a beleza está no campo do que é relativo. Diz um adágio
popular que “gosto não se discute, se lamenta”. David Hume2 foi um dos teóricos que ousou

1
 Poema: “LIBERDADE”. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
2
 HUME, David. Do Padrão do Gosto. In: Ensaios Morais, Políticos e Literários. São Paulo, Abril Cultural,
1973. Coleção "Os Pensadores", 1ª ed.
15

discutir o conceito de gosto e o de estética. E sobre a beleza, disse o teórico que não se
tratava “a beleza” de uma qualidade das próprias coisas, pois ela existia apenas no espírito
de quem as contemplava, e cada espírito percebia uma beleza diferente. (1973, p. 316).
Assim como a beleza, o gosto existe de maneiras diferentes em cada espírito. E faz parte do
nosso sentimento. “O sentimento está sempre certo – porque o sentimento não tem outro
referente senão ele mesmo, e sempre real, quando alguém tem consciência dele" (Ibidem,
ibid.).
          E é claro que se aprende, até ao mesmo tempo, pelo gosto e pelo desgosto, se
aprende quando há alegria e liberdade e se aprende por obrigação e com punição. Peço
licença apenas para defender que não há aprendizagem alguma pela tortura. Há medo,
sofrimento e trauma. Numa de minhas entrevistas ouvi de uma professora que quando
criança ela obrigada por uma de suas tias a comer jiló, o que ela disse detestar hoje. A tia
sentava ao lado dela com uma colher de pau e a cada recusa da menina, a colher era batida
firme nas juntas dos seus pequenos dedos. Disse ela que até hoje não consegue olhar para
um jiló sem que lhe venha à mente a imagem da colher de pau, não consegue olhar para uma
colher de pau desvencilhada da imagem da tia - que em sua lembrança aparece amarga
como jiló.
          Por pertencer a ideia de gosto a uma subjetividade relativa, não havia como definir
uma postura teórico-metodológica que não trouxesse em sua gestação o difuso e o movediço
dos paradoxos. E cabe aqui ressaltar que “paradoxo” não é necessariamente sinônimo de
“dicotomia”3. Talvez por isso essa escolha tenha trazido consigo uma responsabilidade
fundamental: fazer pesquisa com professores que diziam “amar” a literatura e que viviam a
literatura com seus alunos, no cotidiano das escolas e em suas trajetórias de vida e mundo -
como amor e morte – como salto e queda. Porque o amor também flecha o próprio amor e
também finge morrer de amor e morre também de amor no seu verso e avesso. Joel Rufino
dos Santos (2008) já na capa de seus “Ensaios indisciplinados” nos avisa: Mas o que seria,
enfim, amar literatura? Amar a literatura é um vício: o do gozo fingido, ou do fingimento
gozoso.

3
 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “paradoxo”: Conceito que é ou parece contrário
ao comum; contra-senso, absurdo, disparate; e “dicotomia”: Método de classificação em que cada uma das
divisões e subdivisões não contém mais de dois termos. Sendo assim, quando nos referimos às contradições
humanas, o que se aproxima da estética barroca com seus universos de trevas e luzes, corpo e alma, anjos e
demônios, não o fazemos de forma dicotômica ou maniqueísta, mas sim de forma paradoxal.
16

          Nesse contexto tornou-se necessário pensar a literatura para além dos textos
literários que eram destinados “aos pacotes” para os professores, textos que nos livros
didáticos de português e literatura muitas vezes apareciam com a finalidade única de servir a
um método a ser reproduzido sistematicamente e mecanicamente através das cabeças e
conteúdos fechados. Sobretudo tornou-se necessário pensar a literatura a partir das
possibilidades de acesso criadas pelos professores e pelas experiências que se davam pela
subversão do pré-estabelecido e ainda pela subversão silenciosa que se dava e dá na aparente
conformação do pré-estabelecido, práticas que não negavam uma metodologia, mas que,
quando criadas e centradas nas experiências com a literatura, apareciam plenas nas
narrativas livres desses educadores. Entendemos que a imaginação é livre, permissiva e
transgressora, o que não impede que ela se torne ativa e constante em ambientes regrados. O
regrado pode ser regado com a imaginação.
       Os professores com os quais convivi durante esses anos de pesquisa os conheci em
momentos distintos ao longo das nossas diferentes e convergentes trajetórias - que ora se
cruzavam nos congressos da vida, ora nas esquinas da vida, ora nos corredores das escolas,
ora na universidade, ora no retorno de uma filha pródiga à terra natal. Foram vários os
encontros e os desencontros também. Fazer pesquisa foi “ação” e “espera atenta”, escuta
atenta, olhar atento. O que exigiu da pesquisadora uma disponibilidade para os avessos, os
reversos, os esquecimentos até. Não foram raras as vezes em que a casa construída urgiu ser
desabitada, colocada a baixo, para que assim pudesse ser novamente projetada. E a cada
projeção uma atenção, o desafio de aprender a ouvir com os ouvidos de dentro, a enxergar
com os olhos de dentro, a sentir com o coração de dentro e pensar com o coração exposto.
       O desafio de pensar a literatura na escola veio balizado pelo desafio de compreender
como os professores na relação com o seu metapoeisis vivenciavam a literatura e as tantas
linguagens que dela provinham, linguagens que diziam de perto aos fluxos memorialísticos
das palavras e imagens que compunham o que eles chamavam real juntamente com o que
reinventavam ou re-significavam feito lembrança do vivido.
       Entre tantos estilos de escrita, estéticas e gêneros literários que iam surgindo nas
conversas, nas entrevistas, nos e-mails e nos ricos encontros entre a pesquisadora e os
professores, todos escritores e poetas, a emergência e a permanência de um modelo ou
forma narrativa foi se colocando com maior ênfase. Tratava-se de um “memorial”, que ora
17

apresentava-se como conto baseado no real ora como prosa poética do real. Isso se deu de
maneira imbricada e foi tomando espaço e criando sua contextualização no próprio percurso,
ainda que os primeiros ensaios de narrativas escritas pelos professores tenham sido feitos
como poemas memorialísticos ou fragmentos poéticos. O interessante é que os poemas
foram ganhando a voz e o corpo do prosador, fluindo narrativamente. Do verso veio a
“prosa”, “o conto”, a necessidade do contar a sua história, do contar-se. A escrita foi
cedendo ao oral e da narrativa oral se retomava a escrita numa ambivalência. Foi criado
então um segundo impasse, entre muitos que se seguiram. Como chamar esses “memoriais”?
Contos memorialísticos ou narrativas memorialísticas?


       Para ajudar na definição, recorro então a Barthes:


                                        Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro
                     lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias
                     diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse
                     suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada,
                     oral e escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura
                     ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na
                     fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na
                     comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de
                     Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers,
                     na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está
                     presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a
                     narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em
                     parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos
                     humanos têm suas narrativas, (...) a narrativa ridiculariza a boa e a má
                     literatura (...) está aí, como a vida. (p.19)

           Seguindo uma perspectiva metodológica que valoriza a narrativa de mundo que
“está aí, como a vida”, foi acordado que, para cada sujeito da pesquisa, haveria a criação de
uma narrativa escrita, um registro memorialístico de infância – um registro que fosse
autobiográfico e/ou ficcional, propondo desde o primeiro momento que, na carpintaria
desses escritos, fosse possível perfazer, juntamente ao texto dissertativo, um painel
narrativo-metodológico que criasse e/ou desvelasse “espaços potenciais” no intercruzamento
entre as imagens que sempre suscitam das narrativas e a teia por onde transpassam o mítico,
o simbólico e o fantástico – campos expressivos da literatura e da imaginação. Por isso
mesmo todos esses conceitos aqui trabalhos estarão entrelaçados a uma visão que não
18

condena ou despreza a escolarização da literatura, mas sim busca compreendê-la a partir de
um compromisso epistemológico e poético com outra arte – a de educar.
       E tentando elucidar a dimensão desse tema-teia que se dá numa forma espiralada, em
camadas que não se fecham nem tampouco se sobrepõe uma à outra, mas, ao contrário, se
alimentam e aprendem de si mutuamente nas tantas idas e voltas, é que me deparei com duas
citações e duas memórias. A primeira foi retirada de um conto infantil de José Saramago: A
Maior flor do Mundo (2001). Diz o narrador:

                                Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de
                       árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo,
                       naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância
                       a todos nós permitiu... (...)
                               Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventura
                       sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte, efeito literário de que
                       ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder
                       hoje aconchegar a frase. Dali para diante, para o nosso menino, será só uma
                       pergunta sem literatura: “Vou ou não vou?” E foi.


        As palavras de Saramago expressam um tempo subjetivo e cirandeiro, o tempo largo
pertencido à infância. O narrador nos conta a história de um menino que por meio de uma
janela pôde vislumbrar o mundo com seus “olhinhos” de desejo e vendo este mundo e toda
sua riqueza de cores e acontecimentos, tornou-se um ‘buscador’ de algo mais, algo mais a
bulir na alma, a mover o desejo de conhecer, de superar, de transgredir ultrapassando
limites internos e externos. Assim, ao se permitiu ir pela amplidão dos lugares da infância,
ele encontrou a sua flor, a maior flor do mundo, a flor que o libertava do ritual da jornada:
precisava crescer para poder voltar para casa. E o menino “foi” e “vai” ao sabor da estória,
aventurando-se às descobertas do encantamento de ser um todo existente, assim como o fez
Thamires, de quem trago a fala numa imagem de memória:

                                T (6 anos): Eu sou a chapeuzinho vermelho (com um fantoche na
                       mão). Eu moro na floresta com a minha mamãezinha. Todos os dias eu saio
                       de casa pra levar docinhos para a minha querida vovozinha. Ela mora na
                       floresta numa casa branquinha. Branquinha não, rosinha. Um dia eu estava
                       passeando na floresta quando o lobo, aquele malvado apareceu. Aí... aí...
                       Essa parte eu esqueci... Como é mesmo? Ah, já lembrei! O lobo me
                       perguntou...4


4
  Aluna do pré-escolar da Escola Municipal Célia Pereira da Rosa (município de São Gonçalo, Rio de
Janeiro).
19

            Thamires, a menina que viveu aquela realidade da escola e hoje passeia - para os
que vão ler essa passagem – no bosque de uma ficção, trata as palavras com o afeto dos
diminutivos e assim de braços dados com o menino da ficção de Saramago estão indo,
viajando num mundo maravilhoso cheio de imagens, de fantasias. Estão lá e aqui, no mundo
do imaginado e da ação, para conquistar algo, algo muito maior que o tamanho deles.
        Como o menino do conto de Saramago, quantas vezes saímos da casa de nossos pais,
avós, saímos do nosso vilarejo, da nossa província, do nosso território, da nossa cidade e até
mesmo da terra que consideramos nossa pátria - para compreender algo maior que o nosso
próprio tamanho? Saímos para nos deparar e tentar compreender nossos desejos, nossas
atrações, nossas punções, volições, nossas vontades mais profundas, nossa mesma
profundidade.
        E quantas são as vezes que nos tornamos a Chapeuzinho Vermelho da nossa própria
história para viver a imensidão do rito que é a floresta para abandonar a criança da qual
precisamos nos despedir. E ao adentrar nos imensos da floresta e nos perder em seus
labirintos é dela que vamos conseguir retirar as experiências, o bálsamo, as seivas, as ervas,
os unguentos que nos fortalecerão para enfrentar as realidades do cotidiano e o medo do
(des)conhecido que habita em nós, como o medo do lobo sedutor. Entrar na floresta tem o
seu “que” de assustador, porque é sempre um transgredir, é ir ao encontro do des-
conhecimento do conhecido. É a floresta que alimenta o nosso imaginário de esperança e de
novas morfoses, de novas culturas. É uma transição, uma passagem, uma busca, um
encontro, uma transformação e um trocar de pele para poder renascer. Nos contos de fada ou
“estórias para crianças”, Chapeuzinho Vermelho encontrou o seu lobo, os irmãos João e
Maria encontraram a bruxa, Branca de Neve encontrou o caçador que lhe queria arrancar o
coração.5
            Sabe-se que a floresta, por conta de todo esse simbolismo, é uma imagem
freqüentemente usada nas narrativas de infância, nos contos orais arcaicos e também nos
contos de fada para crianças. Sobre isso disse Campbell (1990):



        5
            O cinema fortaleceu essa simbologia com imagens que vieram com as adaptações dos clássicos
infantis, como os desenhos de Walt Disney e “O mágico de Oz”.
20

                             (...) embora a maioria dos contos de fadas tenham um final feliz, no
                     meio do percurso ocorrem motivos mitológicos típicos; por exemplo, o
                     motivo de nos encontrarmos, de repente, em grande dificuldade e ouvirmos
                     uma voz ou vermos alguém que chega para nos salvar.
                             Histórias de fadas são para crianças. Elas freqüentemente falam de
                     uma menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Ela hesita
                     diante da crise desse limiar de passagem. Então adormece, enquanto o
                     príncipe ultrapassa todas as barreiras e vem fornecer a ela uma boa razão
                     para aceitar que crescer, afinal de contas, tem o seu lado agradável. Muitas
                     das histórias dos irmãos Grimm representam a menininha paralisada. Todas
                     aquelas matanças de dragões e travessias de limiares têm a ver com a
                     ultrapassagem da paralisação. (p.151)


        Por entender o sofrimento diante da crise que há em todo limiar e reconhecendo que
em todo percurso humano, em toda travessia também há a ultra-passagem da paralisação, o
imaginário será aqui pensado como a expressão de uma ambiguidade complexa,
ambiguidade provinda do campo das contradições que existem nas trajetórias de vida – seja
por entre as imagens que lembramos e inventamos da infância, seja por entre os bosques
repletos de imagens daquela criança remanescente que existe dentre de nós, seja por entre as
imagens que produzimos da experiência, diante do amadurecimento inevitável da vida. E a
noção escolhida para começar a definir o imaginário foi centrada em duas vertentes: uma
que se debruça sobre a relação do sujeito com o mundo real sensível e a outra que se espraia
no que o imaginário transcende do mundo sensível, criando assim o mundo da imaginação,
das coisas não tangíveis. Entendemos que nas nossas narrativas de vida há uma ambiguidade
entre o imaginário singular e o imaginário coletivo e entre eles não há fronteira que os
defina ou separe sem que um já esteja com as marcas e as pistas do outro.
        No livro: Educação e imaginário – Introdução a uma filosofia do imaginário
educacional, a partir das contribuições de Gaston Bachelard, de Gilbert Duran e Henry
Gorbin, pode-se estabelecer, segundo Wunemberg e Araújo, os fundamentos de uma nova
teoria da imaginação e do imaginário, que podem ser considerados conhecimentos sólidos.
Entre as linhas mestras, cito uma que esclarece a escolha de “duas vertentes”, evidenciando
dessa maneira a complexidade epistemológica do trabalho de pesquisa com o imaginário.
Segundo Wunemberg e Araújo:


                             O imaginário é inseparável de obras, psíquicas ou materializadas,
                     que servem para que cada consciência construa o sentido da sua vida, das
                     suas acções e das experiências de pensamento. A este respeito, as imagens
21

                           visuais e lingüísticas contribuem para enriquecer a representação do mundo
                           (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do Eu (Ricouer). Assim, a
                           imaginação surge de facto, e é algo que Sartre tinha previsto, como um
                           modo de expressão da liberdade humana confrontada com o horizonte
                           da morte (Durand). (grifo meu)


           A literatura – criatura da imaginação é criadora de imaginação. E essa imaginação é
viva, por isso inconclusa. Nosso imaginário se enche de representações que fazem da
floresta uma travessia com inúmeros ritos. A literatura com as suas imagens e todo seu
simbolismo, pode nos desvelar algumas dessas passagens.
           Numa tentativa de arché ou palimpsesto, podemos encontrar na infância esse sair ou
fugir ou ser levado a enfrentar as nossas florestas como um “João sem medo” 6, o menino
que também transgrediu limites para poder entrar na floresta. João sem medo morava numa
aldeia que se chamava Chora-que-logo-bebes. Diziam que por lá vivia uma gente muito
infeliz e que esta aldeia tinha um imenso muro que a separava da Floresta Branca, lugar
onde moravam os sonhos e os mitos. No muro que separava a aldeia da floresta estava
escrita a seguinte recomendação: É proibida a entrada a quem não andar espantado de
existir. João sem medo pulou este muro, viveu a floresta e ficou espantado de existir.
            E de uma aldeia que constituí a própria matéria do “ser criança” com suas outras
tantas lógicas, muitas vezes saímos ou fugimos, através da imaginação, a fim de ver quanto
da terra se pode ver o Universo... Diz o menino de Saramago: Por isso a minha aldeia é tão
grande como outra qualquer. Porque eu sou do tamanho do que vejo. As crianças são quase
sempre do tamanho do mundo que vêem. E elas veem mágica e alegria onde alguns adultos
já não enxergam nada além de vazios.
           E para as crianças é possível enxergar a escola como lugar de “ler mundos”, saber do
mundo e de nós, é possível fazer da escola um dos espaços mais convidativos para a criação,
a que nasce da curiosidade e que, pela experiência democrática vai se tornando compreensão
do conhecimento. Assim também podemos ver/ler a literatura – essa arte revolucionária da
linguagem, pelos olhos da infância, para que, embora adultos, re-tornemos ao tamanho das
nossas buscas imaginárias. Afinal, como diz Bachelard, em sua Poética do Devaneio:


                           Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos
                           nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas
6
    Ver Aventuras de João sem Medo (1963) de José Gomes Ferreira, poeta e escritor português.
22

                     possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no
                     limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma
                     simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as
                     crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. (p. 85)


       Memória, leitura, cultura oral e escrita sempre fizeram parte das narrativas literárias
que trabalham com os temas (auto)biográficos, com as trajetórias humanas e com as
projeções do ser no mundo. A literatura muitas vezes nos chega assim: através das vozes,
dos ouvidos, dos olhos, dos sentidos da infância. A infância: essa usina de memórias
inventadas, para usar a expressão do poeta Manoel de Barros.
       Através do tempo da experiência e do que ele tece de memória, experimentamos
criativamente e coletivamente os nossos saberes, os nossos conhecimentos - escolarizados
ou não. E para não entrarmos numa relação antidialógica com o que há de sonho num
projeto que tem como lemas a esperança e a experiência, precisamos nos desarmar da
permanência única no já gasto e caduco discurso monológico do saber, o discurso que
uniformiza e não leva em conta a nossa diversidade, a nossa multiplicidade de temas e de
diálogos possíveis, os nossos diferentes olhares sobre o mundo e para o mundo.
       Ora, mas se até com as pedras do caminho dialogamos é imprescindível que haja
diálogo numa educação que ser quer pelo gosto. Mas “educar pelo acesso ao gosto” não é
uma tarefa fácil, pois está na esfera da complexidade, a que exige de nós, educadores, um
“deixar-se ir com o outro” também ao gosto da permuta, numa alteridade que ultrapassa as
fronteiras de qualquer mecanismo de falsa segurança que tente rimar poder com saber.
       Sendo nossa imaginação livre somos livres também, somos livros também, livros
vivos, livros abertos, entreabertos ou até mesmo livros fechados, sisudos. Livros com muitas
páginas vividas e escritas e reviradas, livros ceifados ao meio ou ainda no começo do
caminho - mas nunca livros em branco. Somos sempre livros de histórias a serem lidas,
narradas e rememoradas. Cada qual com uma narrativa ímpar, ordinária e extraordinária,
cada qual com uma história de mundo pra contar. A de uma menina “contadora de histórias”
e seu inseparável livro de poesia foi desde sempre a minha.
       Em Um sopro de vida nos diz Clarice Lispector: Não posso ficar olhando demais um
objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática
que o pensamento, é a “coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta. (1988,
101) A “coisa literária” foi defendida por Clarice na materialidade de suas palavras, no
23

trabalho de artífice da linguagem - objeto que se esmerila com o próprio corpo no corpo da
linguagem. A “coisa literária” se faz pelo artesanato de pensamentos e palavras, pela poética
de experiências com a arte que nos permite os estranhamentos, os despertares, os enigmas
do conhecimento. Sendo assim a poética da narrativa memorialística nasce de uma
ambigüidade de origem: é fonte e sede de rede-moinhos, pois repleta está de situações que
ao unir a arte à vida cria um caleidoscópio humano, um caleidoscópio onde são
constantemente recriados os sentidos da memória, essa memória dinâmica, irrequieta e
fluída que diz respeito à constituição da subjetividade num tempo volumoso. Por isso sendo
literatura não pode ser vista como um lugar distante, inacessível, destinado a poucos, mas
sim como possibilidade de inter-relação com a linguagem, oportunidade de viver a memória
pela voz da palavra, de expressar uma visão da existência pela composição da nossa história
no mundo.
       Lembro que um dos objetivos iniciais foi justamente possibilitar uma abordagem
interdisciplinar entre literatura e educação, tratando a narrativa, a cultura e a memória como
tramas híbridas e indissociáveis, capazes de gerar uma reflexão substantiva sobre a
formação identitária dos professores que lidam com a arte literária, entendendo essa arte
docente como um direito à palavra encarnada, palavra que, mesclada ao mundo imagético,
ultrapassa os limites deterministas que separam o que se vive e o que se reinventa como
“tempo da experiência”, como se isso não fizesse parte relevante da nossa trajetória, do
nosso memorial de vida.
       Este trabalho de tese e pesquisa tornou-se ao mesmo tempo um aceite e um convite
para a compreensão da vivência com a literatura em sala de aula ou ainda da escolarização
da literatura, isso pensado pelos vieses da poética que reside num fazer que é ao mesmo
tempo arte docente e que tem sua potencialidade num “fazer sensível”, num “fazer com
alma e coração”, num fazer que sempre leva em conta o quanto e “como” é possível pensar,
sonhar e intuir no “fazer com” a literatura em sala de aula a partir dos mais diversos recursos
lúdicos e simbólicos de uma rede de saberes e sabores, transformados estes em experiências
significativas, em “experiências plenas” (Benjamin, 1994).
       Muitas foram os questionamentos e os anunciados aqui fizeram parte – direta ou
indiretamente – das entrevistas, conversas com os professores. Interessava saber de que
maneira inter-relacionadas estariam as narrativas de infância dos professores às vivências
24

com a literatura, isso de acordo com a presença de uma determinada identidade cultura
como também de uma certa estética literária memorialística. Diferente do aspecto puramente
biográfico, o foco não estava nos fatos vividos, mas na interpretação do vivido. Saber o
quanto havia de reinvenção de si e da prática no que entendemos por “escolarização da
literatura” a partir das interpretações das experiências vividas e narradas. Saber como havia
surgido nos professores o desejo de trabalhar com a arte literária, quando e como se
formaram leitores de mundo e leitores dos livros, que memória eles traziam da infância, dos
livros ou das histórias orais que ouviram, que escolhas faziam ao trabalhar com a literatura
no cotidiano.
           Os professores aparecem como autores das suas narrativas memorialísticas, reais e
ficcionais, apresentadas e entremeadas pelos símbolos que compõem a natureza narrativa
enquanto processo subjetivo, imagético e interpretativo de significação da subjetividade,
polifonia esta margeada por um universo de certezas e incertezas de um tempo “presente”. A
partir dos pressupostos apresentados foi possível refletir sobre um poiesis, esse que faz da
reinvenção da prática a reinvenção de si. E os desdobramentos deram à metodologia uma
vertente compreensiva da subjetividade, dando maior ênfase ainda às narrativas de vida de
professores que, quando entrecruzadas à teia memorialística de obras literárias tantas vezes
suscitadas, enfocavam pela experiência a poética da memória como elemento constitutivo
da narrativa via con-fabulações do imaginário. Assim dialogamos com Gilbert Duran7 e sua
teoria do imaginário, “imaginário entendido como o conjunto das imagens e das relações de
imagens que constituem o capital pensado do ser humano.”




7
    DURAN. Gilbert. 2001, p.18.
25




                                          Entre Odos e Mythos


                                 MOYERS: Mas todos esses mitos são sonhos de outras pessoas.
         CAMPBELL: Oh, não, não são. São os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam
           com os magnos problemas humanos. Eu hoje sei quando chego a um desses limiares. O
                   mito me fala a esse respeito, como reagir diante de certas crises de decepção,
                           maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou.
                                                                                    (O Poder do Mito)


        A problemática de um trabalho que se apóia na biografia, na trajetória de vida, no
contar a história de um homem, de uma mulher, de um povo, é, para quem o faz, um
trabalho “arriscoso”. E para assumir esse lugar de tanto risco, segundo o professor de
História Contemporânea da Universidade de Paris X, Didier Musiedlak 8, um dos principais
obstáculos metodológicos do pesquisador que pretende trabalhar com a biografia,
principalmente a dos ilustres, é que na sua relação com a História, é preciso reconhecer a
necessidade de se desconstruir         “os personagens” para que se evite cair no “canto da
mistificação”, da valorização ou super valorização dos personagens. Lembrando que toda
biografia, toda narrativa de história de vida pertence a um contexto de escritura, contexto
histórico, social e ideológico. Quantas biografias foram escritas e reescritas sobre os grandes
ícones, “mitos” da História?
         Para o Professor Didier Musiedlak, a construção da memória nacional seria como
reescrever o mito, e o mito, para ele, é mais forte que o registro. E o perigo que há na
valorização na escrita biográfica de um mito é, sobretudo a possibilidade, humana, de se
“banalizar” os crimes desse mito, banalizando os atos ocorridos de violência, obscurecendo
o lado negativo dessa trajetória. E para Musiedlak, essa é uma forma de recompor a
memória nacional apagando o negativo da história, apagando os seus paradoxos, as suas
fraturas. Musiedlak nos relatou que para escrever uma biografia era preciso ir aos porões
dos dados e de lá olhar o bem e o mal.
8
 O professor Didier Musiedlak proferiu a palestra “Fascismo, Fascismos; História, Memória e Biografia” na
Universidade Federal Fluminense, no departamento de História. (Maio/ 2006)
26

       Um segundo problema ou obstáculo metodológico descrito por Musiedlak seriam as
fontes utilizadas, porque, segundo ele, freqüentemente as fontes estão contaminadas, por
isso seria quase impossível não desconfiar da narrativa perfeita, das biografias que parecem
autênticas. Para Musiedlak seria preciso separar o objeto analisado de seu conteúdo místico,
concentrando-se na desmistificação, desconstruindo o objeto para olhar para ele quando ele
estiver nu, reconhecendo o que vem do imaginário. E completa: “(...) um homem nu não é
bonito de ser visto”.
       Por isso se fala em biografias imaginárias, quando o mito é maior que o homem.
Quantas biografias foram reescritas ao longo da História? Quantas infâncias pode ter um
único homem? No Brasil, podemos também perguntar, quantas biografias dos mitos
históricos foram feitas e refeitas e o quanto há de ficção nelas? Quantas biografias pode ter
um homem?
       Ainda segundo o professor Musiedlak, para quem ousa usar como método a
biografia, a história de vida, é necessário que saiba que há de ser feito um trabalho analítico
e crítico que permita reconstruir a dimensão ocupada pelo imaginário juntamente à
realidade de ação, a realidade do imaginário e a realidade do fato. Pois o imaginário faz
parte da construção do real. E sobre esse lugar de tensão na escrita da biografia, explica
Musiedlak (2006):


                                Como o lembra François Dosse, a biografia continua a ser um
                        gênero híbrido, impuro, premido entre a necessidade de restituir um vivido
                        real e passado, que seria ordenado, segundo as regras da Mimesis e a
                        preocupação do biógrafo de dar livre curso ao seu imaginário. Dessa divisão
                        decorre uma tensão constante entre as exigências da dimensão histórica e o
                        domínio da ficção, o que expões aquele que aceita fazê-lo a um
                        desequilíbrio. (p.103)

       Embora o tema em questão: a biografia, as narrativas de vida, através do real e do
imaginário da ficção, seja já bastante difundido e analisado, inclusive na Universidade de
Paris, não foram poucas as vezes que ouvi dizer que essas especulações entre o real e o
ficcional não passavam de burburinhos dos poetas ou coisas de excêntricos.                E como
descreve Didier Musiedlak entre “as exigências da dimensão histórica e o domínio da
ficção” ao pesquisador que se embrenha nesse tensionamento não há como se esquivar do
desequilíbrio e da exposição desse desequilíbrio.
27

       Entre a realidade e a imaginação, seja na narrativa dos mitos históricos ou nas
narrativas anônimas não há como retirar das reminiscências os sinais intrínsecos do
simbólico, limpando os vestígios deste lugar de linhas imaginárias que é a memória. Um dia
alguém me apresentou: - Veja, você está com os pés na linha do Equador. Então percebi
que os meus pés eram um limite imaginário e aquele limite que tinha vindo comigo partiria
comigo.
      Por isso a escolha de um caminho (ou odos) hermenêutico se deu primeiro por uma
constatação: a impossibilidade de uma meta única, ou seja, de se chegar a um construído
acabado e definitivo. Portanto a metodologia não se fecha nem tampouco se concluí numa
única leitura do problema ou ainda no detalhamento deste ou daquele aspecto analisado da
narrativa (auto)biográfica ou ficcional, mas, sobretudo, este caminho metodológico se abre
às possibilidades interpretativas que surgirão pelo simbolismo, pelo mythos, pelo que
criamos e reinventamos de significação do real pela experiência. Aproximamos-nos de um
ponto de vista sobre o real que, segundo Marilena Chauí, não é constituído por coisas.
Para Chauí (2001):
                             Nossa experiência direta e imediata da realidade nos
                     leva a imaginar que o real é feito de coisas (sejam elas naturais
                     ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais
                     oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências. Assim, por
                     exemplo, costumamos dizer que uma montanha é real porque
                     é uma coisa. No entanto, o simples fato de que essa “coisa”
                     possua um nome, que a chamemos “montanha”, indica que ela
                     é, pelo menos, uma “coisa-para-nós”, isto é, algo que possui
                     um sentido em nossa experiência. ( p.7)


       Do real compreendemos aquilo que faz sentido para nós, o que, de maneira
imbricada, existe como “coisa em si” e “coisa-para-nós”. Não há, de um lado, a coisa
em-si, e, de outro lado, a coisa para-nós, mas entrelaçamento do físico-
material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido, fazendo
com que aquilo que chamamos “coisa” seja sempre um campo significativo.
(ibidem) O que constituímos como significância, “como o sentido de algo” se dá pela
experiência. A narrativa das nossas reminiscências, das nossas coisas lembradas é seletiva
nesse sentido, de buscar o que fez sentido ou o que está fazendo sentido no momento da
lembrança. E isso pode ser refeito a cada experiência de memória do sujeito que lembra de
28

si mesmo e conta sua história. E a memória da experiência com o real ao se tornar narrativa
se reveste de mythos.
        E se pensarmos na cultura, na tradição das narrativas arcaicas e no legado que esses
lugares nos deixaram, nos embrenharemos numa questão inevitável: o que é o mito? O que é
a narrativa de um mito? O que faz o homem simples tornar-se um mito? Um mito nas artes?
Um mito no esporte? Um mito na política? Um mito na ciência? Se voltarmos num tempo
longínquo, bem nos primórdios, numa era anterior à escrita e ao pensamento guiado pela
razão, poderemos inquirir: de onde, afinal, os primeiros homens tiravam suas perguntas¿
Quais eram as suas principais inquietações? O que poderia gerar curiosidades no tempo do
homem primitivo? A natureza? A sobrevivência? O instinto? E essa reflexão pode nos levar
ao seguinte pensamento: ao conhecemos os mitos, começamos a compreender o que é
cultura e o que é tradição; e por conseguinte, começamos também a compreender o que vem
a ser a narrativa e a narrativa do mito ou o seu conjunto de ilhas, a mitologia, um
arquipélago de histórias do mundo.
       É claro que poderia parecer um reducionismo dizer que os mitos e as mitologias são
como o fogo da criação das histórias humanas, mas não me posso furtar de pensar que essa
gênese é de fundamental importância como significação de mundo se quisermos entender a
narrativa humana, a trajetória e a biografia de um homem, de uma mulher e de seu processo
único e singular de existência. E a memória entra nessa trama como o instrumento de
acesso, reconstituição e reinvenção da história desse existir. Por isso ao pensar na literatura e
nas pessoas que escolheram a literatura como viagem pela vida, não pude seguir um
caminho monolítico, já que a literatura não é sectária, não tem uma só lente e nem foco que
seja único. E já que todos essas noções fazem parte de uma mesma trama e essa trama
complexa é feita de múltiplas perspectivas, de múltiplos olhares e retornos
       Vários teóricos em diversos campos de pesquisa e interesses se debruçaram sobre os
temas que envolvem os mitos e as mitologias, buscando conceituá-los ou empregá-los com
fundamento para novas teorias e novos conceitos. No campo da teoria psicanalítica,
Sigmund Freud foi um desses pesquisadores de inegável reconhecimento e grande destaque
na abordagem de temas como os mitos e a cultura. Mas foi Jung, discípulo de Freud e
pesquisador de grande intuição, que deu maior visibilidade, a partir da psicologia analítica,
ao tema da mitologia e dos mitos, criando um campo de pesquisa e analises consistentes e
29

profundas para os “arquétipos”, que do antigo verbete foi sendo redimensionado para ganhar
novo sentido e nova significação, uma nova concepção que tornou difícil não associar a
palavra “arquétipo” à teoria de jungiana e ao conceito de Inconsciente coletivo. Disse Jung
em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2000, p.16):


                           “Archetypus” é uma pe-rífrase explicativa do είδος platônico. Para aquilo
                       que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no
                       concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos
                       arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram
                       desde os tempos mais remotos. (grifo meu)

       Na tentativa de compreender as narrativas míticas do homem simples que eram, ao
meu ver, ao mesmo tempo narrativas míticas do mundo, narrativas mundanas, coletivas e
diante de muitas concepções teóricas, interessou-me a aproximação aos vários campos de
reflexão: o psicológico, o antropológico, o sociológico e o filosófico. Porque eles davam
coesão àquilo que à primeira vista parecia disperso e que na sua aparência já acusava um
mar de profundidade. E porque na literatura todos esses campos podem comungar do mesmo
corpo através da linguagem enquanto cultura, da memória enquanto poiesis, da língua
enquanto poder, do imaginário enquanto dinâmica e desvelamento da própria experiência
enquanto “mito”. Em O poder do Mito, Joseph Campbell nos diz que aquilo que os seres
humanos têm em comum se revela nos mitos, porque os mitos são as histórias de nossa vida, de
nossa busca pela verdade, da nossa busca pelo sentido de estarmos vivos. Mitos são pistas para as
potencialidades espirituais da vida humana. (Campbell, 1990, p.19)
       E segundo o escritor e estudioso da linguagem simbólica, Mircea Eliade:


                       (...) o mito é considerado como uma história sagrada, e, portanto uma
                       história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito
                       cosmogónico é verdadeiro porque a existência do mundo está aí para o
                       provar, o mito da origem da morte é também verdadeiro porque a
                       mortalidade do homem prova-o...e pelo facto de o mito relatar as
                       gestas dos seres sobrenaturais e manifestações dos seus poderes
                       sagrados, ele torna-se o modelo exemplar de todas as actividades
                       humanas significativas. (p.13)

       A palavra mythos, nos orienta Chauí, vem do grego e deriva de dois verbos: do verbo
mytheyo: contar, narrar, falar alguma coisa para outros; e do verbo mytheo: conversar,
30

contar, anunciar, nomear, designar. Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou
proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele
que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e
confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou
testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou
os acontecimentos narrados. (CHAUÍ, 200, p.28)
       Nesse sentido, não se trata de fazer uma profunda análise arquetípica dos contos ou
detalhar a simbologia encontrada nas narrativas memorialísticas, tratando das analogias
entre os contos ou entre as imagens por elas suscitadas, mas sim se busca relacionar, por
uma heurística proximal, a simbologia de determinados arquétipos às reinvenções
memorialistas e míticas que se dão nos novos contextos culturais do existir, o que cria uma
substantiva aproximação ao que Jung definiu como “arquétipo”. Segundo o professor Junito
de Souza Brandão (2007):


                             Através do conceito de arquétipo, C. G. Jung abriu para a Psicologia
                     a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a
                     formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos
                     existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande
                     caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o
                     consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras-de-
                     arte, o conhecimento cientifico, os esportes, as festas, todas as atividades,
                     enfim, que formam a identidade cultural. (p.9)


       É pela cultura e do que dela sobrevive como tradição que voltamos aos afetos
primários, aos sonhos, às reminiscências da infância, à metaphorá da imaginação, todo esse
“transporte” que faz renascer em nós os heróis épicos, coletivos, os mitos de fundação. Mas
a questão é: há limite para a recriação dos mitos quando pensamos em literatura? Por
acreditar que não existe esse limite e, portanto, que não há também limite para as
reinterpretações dos mitos, ousamos trabalhar, talvez assumindo o lugar da contradição, para
além da origem datada construir pela reinvenção da memória novas formas de existir. Seria
então dizer que o adulto ao lembrar e narrar, sobretudo quando se trata das reminiscências
da infância, não apenas as tipifica, convocando certo número de arquétipos, mas também,
re-elabora o dito através desses elementos simbólicos, míticos reinventando a sua própria
memória.
31

        A memória narrada e evocada no presente seria assim uma memória que transita,
reinventada num tempo-espaço potencial, que ora se apresenta sob uma atmosfera
nostálgica, saudosista, acolhedora, e ora pode nos provocar a náusea, o horror de ter vivido,
de ter que emborcar o corpo para ver de dentro a dor, a dor de crescer diante da inexorável
passagem do tempo. É paradoxalmente humano. E se um dia, com o avanço da ciência, nos
for permitido decidir o que desejamos lembrar, com quais lembranças ficaríamos? Apenas
com as “boas” lembranças? “Deitaríamos fora” todas aquelas que foram difíceis ou
inconvenientes? Apagaríamos as nossas perdas? O que nos faria definir o bom de lembrar
se a idéia do que é bom muda constantemente? E se “o bom de lembrar” se molda e é
moldado por nossos valores e crenças que também mudam, também circulam,
transformando nosso modo de ser e lembrar, com quais instrumentos poderíamos julgar “o
bom de lembrar”? Como escolheríamos as nossas melhores lembranças?
        Por enquanto nossas reminiscências estão repletas de luzes e trevas, de encantos e
desencantos, de sonhos e desventuras, de ganhos e perdas... E são todas essas experiências
que compõem a nossa narrativa de vida, a nossa biografia. E é também com elas que
compomos nossas memórias.
        E para falar das memórias que diziam respeito às experiências da prática docente era
preciso também levar em conta o contexto sócio-histórico onde eram e são criadas “as
formas de fazer”, as formas de dizer, de sonhar e de acreditar nas coisas... Tudo isso atrelado
a um saber que contem tanto outros saberes: a literatura, essa sabedoria que a professamos
por um prisma poético-reflexivo entre Eros (o amor) e Thánatos (a morte)9 .
        E na nossa história há sempre “o eco de vozes que emudeceram.” (Benjamin, 1984,
p.223) Nas nossas histórias, nas nossas trajetórias pelo mundo há sempre o eco de outras
vozes que nos antecederam e há o eco dos mitos que antecederam às vozes das nossas
histórias. Há o “eco”, como pedra e flor, a sorrir e dizer dos mitos que não deixarão as
nossas histórias emudecerem. E há o mito de Eco10, a ninfa que, na impossibilidade de viver
seu amor que é encontrar o belo Narciso, se vê                 numa gruta repetindo, “ecoando” a
eternidade das palavras de um outro – para que ele também se lembre da própria voz. E há a


9
 BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. 1, 2 ed. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1991.
10
  O poeta latino Publius Ovídio Naso, (43 a.C – 18 d.C), escreveu as Metamorphoses, poema épico em 15
cantos que se tornou uma de suas obras mais significativas. A narrativa de amor e as metamorfoses de Eco e
Narciso são contadas no livro III.
32

estátua de cristal que, sobre a tarde a contemplava, florindo-a para sempre, com o seu
efêmero sorriso…11
        Na travessia do bosque, os caminhos ora se cruzam, se aproximam ora se bifurcam
para o afastamento necessário, proximidade e distanciamento inerentes à pesquisa
qualitativa. Na travessia da tese, os caminhos aqui traduzidos em capítulos, se revelam
interdependentes, cada um tratando de uma temática própria,                     mas todos partindo e
dialogando a partir da mesma matriz, respeitando assim o intercruzamento entre literatura e
educação, num dissertar muitas vezes recursivo. Cada capítulo traz como abertura um
arquétipo12 que simboliza e ao mesmo tempo sintetiza poeticamente as ressonâncias que
atravessam concomitantemente as narrativas memorialísticas, o tema a ser compreendido e a
abordagem teórica que os transpassa. E a cada abertura de capítulo, em sua introdução, uma
narrativa memorialística inaugural, narrativas de autores literários e/ou narrativas dos
sujeitos da pesquisa. No caso dos professores, as narrativas serão apresentadas a princípio
por seus escritos, depois pelas falas tecidas, vozes trazidas ao longo do texto dissertativo.
        O primeiro capítulo, o capítulo teórico sobre Memória Singular, está centrado numa
perspectiva pertinentemente subjetiva, pois no percurso se fez a necessidade de ouvir, ler e
sentir cada memória narrada como evento muito particular de criação e a partir daí
compreender o que ela trazia de novo (neo). Veremos neste capítulo, no que diz respeito à
escolarização da literatura e a poética memorialística, que a evocação das memórias
transmutadas em narrativas não deveriam ser reduzidas a uma repetição estática nem
tampouco linear de gêneros e épocas. A partir de trechos de obras literárias memorialísticas,
especialmente as de Pedro Nava, nosso maior referencial literário, trataremos da evocação
das memórias transmutadas em palavras, enfatizando o que do vivido construímos como
narrado.
        No capitulo dois, que trata da Memória Plural e da Cultura Popular, como metáfora
da memória social e coletiva, escolhemos dentro de um recorte necessário, dar ênfase, pelas
aproximações memorialísticas, ao ritual de uma manifestação cultural maranhense que é o

11
  Poema: Epigrama de Cecília Meirelles. (Anexos)
12
   Ao tentar traduzir os elementos simbólicos encontrados nas narrativas dos professores/ autores busquei
distingui-los por elementos/ arquétipos. Nesse intuito uso como inspiração as obras de Gaston Bachelard: “A
psicanálise do Fogo”, “O Ar e os Sonhos”, “A Terra e os Devaneios da Vontade”, “A Terra e os Devaneios do
Repouso” e “A água e os Sonhos”. Em cada abertura de capítulo inicio por uma citação de Bachelard que se
refira ao arquétipo/ elemento escolhido/ encontrado. Lembrando que a teoria de Bachelard não apenas
“ilustra” a apresentação dos capítulos, mas ela neles estará inserida de forma intrínseca.
33

Tambor de Crioula, buscando tratar assim algumas de suas distintas expressões. Neste
capítulo também foi possível dialogar com uma leitura de Mário de Andrade e o acervo da
Missão de Pesquisas Folclóricas criada por ele enquanto diretor da secretaria de cultura de
São Paulo. Tratando-se de um capítulo empírico, para a elaboração da pesquisa, além da
preocupação documental através de diferentes registros como: fotografias, documentos e
relatos, sem dúvida, nela prevaleceu a pesquisa sensorial provinda da experiência vivida e
encarnada pela pesquisadora: sentir a cidade e as ruas, viver como recorte e corte o ritual do
Tambor de Crioula com os sentidos expandidos, sentir a linguagem oculta do corpo, dançar
sobre os séculos e as pedras colocadas por mãos negras e escravas, viver o ritual como
conceito, como embrião fecundado que gradativamente cresce alimentado por forças
coletivas até chegar à maturação, à clareza, à total visibilidade do que é, até atingir a forma
plena num processo lento e laborioso de gestação. Ser o cavalo, a linguagem da dança que
faz o corpo ser a própria expansão. E como fruto dessa expansão, nascido da “concepção”
do ritual, contemplar e celebrar a complexidade da existência humana no singular e plural.
       No capítulo três, na tentativa de desvelar espaços potenciais para as experiências
plenas com a literatura em sala de aula, buscou-se compreender a criança enquanto sujeito
da sua própria cultura, trazendo para o centro da reflexão a cultura oral e a contribuição
teórica do educador e sociólogo Florestan Fernandes no que diz respeito à cultura infantil e à
arte folclórica, propondo como conclusão do capítulo a ênfase numa poética da linguagem
na escolarização da literatura.
       Para o capítulo quatro, trago como referencial e arquétipo o elemento “água”. Nele
há a introdução às narrativas memorialísticas, às narrativas dos professores, sujeitos da
pesquisa. No primeiro deles trato da minha própria vivência com a literatura atrelada à
prática da cultura oral enquanto processo de significação.     Na primeira narrativa trago as
minhas memórias num exercício delicado e frágil de investigar a mim mesma e refletir sobre
minhas próprias lembranças, emborcar sobre o meu próprio corpo de memórias. E como
alguém que se deixa olhar em suas entranças, apresento o elemento água, o mais receptivo
dos elementos. As águas do Mar, Maranhão, as águas do Rio – de janeiro. As águas que
alimentam de memória as fontes, as nascentes, as cascatas, os mananciais, as águas que
correm, que transbordam, inundam, afogam e alimentam.
34

       No capítulo cinco, para simbolizar as memórias da professora e poetisa Ryane Pinto,
escolhemos o elemento ar, porque Ryane traz em suas memórias as imagens aéreas - líricas
e lúdicas - das palavras que sopram e ventilam os versos dos poetas alados. As memórias de
Ryane lembram bem as telas de Chagal com seres voadores e cores flutuantes. Ryane se
lança às descobertas como as crianças do pré-escolar e fica suspensa apenas pelo vento,
sendo ela própria o espaço e o ar de sua inspiração. Neste capítulo também ressalto a
importância de uma educação sensível conjugada às duas concepções de memórias literárias
escolhidas para a abordagem estética e humanista dada às narrativas memorialísticas. À
memória literária da infância numa menção às obras memorialísticas do escritor francês
Marcel Proust, ícone desse estilo, sugiro a noção de “memória proustiana”. Pois, no retorno
ao “tempo perdido” da infância nos deparamos com o passado feito um Proust, provando
madeleines ao sabor das reminiscências. À memória social e coletiva, sugerimos a noção de
memória polifônica, tendo como principal referencial e fundamentação teórica o conceito
de polifonia do filólogo e crítico literário Mikhail Bakhtin. Neste capítulo ainda como
embasamento teórico e numa perspectiva compreensiva busco dialogar com os conceitos de
“narrativa” de Walter Benjamin, “memória” de Bérgson e             “memória coletiva” de
Halbwachs. Portanto foram muitos os interlocutores, autores com os quais dialoguei neste e
em todo percurso.
       A proposta do capítulo seis, para as memórias da professora Elzi Paixão, nossa
contadora de ‘hestórias’, escolhemos o elemento terra, porque Elzi nos traz em suas
memórias a imagem da poeira, do esterco que sustenta as raízes, do sujar-se com a terra, do
brincar de terra, das conversas com os seres ordinários e imaginários dos quintais, com os
bichinhos, as pedrinhas, os caquinhos, os brinquedos de pequenos nadas. Elzi que canta
como cigarra e enterra a cigarra se for preciso e que ao mesmo tempo em que levanta
paredes de cimento consegue contar “hestórias” sobre tijolos de asas. Suas memórias trazem
a concretude da rocha numa gravidade que serve para fertilizar de alma o chão. Ainda neste
capítulo buscou-se refletir sobre uma prática docente que propiciasse de fato a inclusão da
cultura oral através da contação de estórias, bem como a pluralidade de textos e saberes que
daí advém como tradição e reinvenção cultural e literária.
       No sétimo capítulo, para simbolizar as memórias do professor Jorge Magalhães,
cronista e dramaturgo, escolhemos o elemento fogo, porque das memórias de Jorge surgem
35

do fogo de sua criação, o tempo de Kronos e os olhos de um flêneur, que faz gerar e girar o
tempo das crônicas, das memórias cotidianas das ruas e dos carnavais. Neste capítulo
buscou-se uma possibilidade dialógica entre a história e a literatura, no que diz respeito à
cultura oral e à narrativa, buscando compreender a relação entre ficção e realidade, entre o
vivido e a percepção do vivido através da crônica literária e da perspectiva do cronista.
       No capítulo oito, para simbolizar as memórias do professor e arte-educador Emanuel
Reis, escolhemos a imagem do círculo, pois com essa imagem simbolizamos a junção de
todos os outros elementos - como nas mandalas, nas cirandas, nas rodas e nas giras do
Tambor. Das memórias de Emanuel surgem a poeira da terra, a invencionice do ar, a
quentura do fogo que afina o tambor, a pororoca das águas pelas mãos do maravilhoso que
surge das lendas do folclore maranhense com suas encantarias e seus contos de
assombração. No sétimo capítulo, emerge como metáfora a imagem da “árvore”, uma da
formas mais primitivas de interpretação da psique que, neste caso, pode significar os ciclos
ininterruptos da vida e de suas possibilidades e potencialidades de narrativas. Neste capítulo
é enfatizada a relação imbricada entre o mito e o fantástico na contação e na reinvenção das
estórias na história do mundo.
       No último capítulo ou epílogo que traz como imagem a mandala, além da reflexão
final sobre os temas anunciados e dissertados, trataremos das várias linguagens e memórias
que, como cordas, foram lançadas ao ar, à dispersão, para ao final serem recolhidas numa
embolada, à rede que intentou conjugar fios e peixes, conjugando culturas com o artesanal
dos homens e a sorte de seu alimento.
       E talvez caiba aqui um último esclarecimento: esta tese reside, sobretudo na defesa
de uma literatura que pode parir a qualquer momento um gigante bufo, como Gargântua ou
Pantagruel, uma literatura em carne e água vivas feita pela defesa de uma prática que é
poética e que transgride - sem castigo, as práticas da casmurrice a favor de uma arte docente
que valorize as múltiplas linguagens, enfatizando sobremaneira a cultura oral como
importante universo de significação nas experiências literárias. Trataremos nos capítulos que
virão de não nos descuidar da “lúcida” (a diurna) e nem tampouco menosprezar a “louca” (a
noturna) que geraram juntas este feito. Convido a todos então a este banquete:


                             Agora, existe um outro sentido, mais profundo, do tempo do sonho,
                      o de um tempo que é não tempo, apenas um estado de ser que se prolonga.
36

                            Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e seu
                            término. No início, de acordo com essa história, os ancestrais não se
                            distinguiam, em termos de sexo. Não havia nascimentos, não havia mortes.
                            Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos
                            participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços
                            foram enterrados. No momento daquela morte, os sexos se separaram, para
                            que a morte pudesse ser, a partir de então, equilibrada pela procriação,
                            procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado
                            nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer,
                            e de matar e comer outros seres vivos, para a preservação da vida.
                            (Campbell, 1990, p.53-54)




                                         Gargântua, pai de Pantagruel. 13




13
     Ilustração de Gustave Doré, 1873.
37




CAPÍTULO 1

                             Memória Singular e a escolarização da literatura:
                                         Narrar para não esquecer...




                                    Pedro Nava aos quatro anos de idade.14


           Eu não teria sido um escritor de memórias se não tivesse tido minha época de exteriorização
       literária num momento em que nós estávamos debaixo de uma ditadura, uma ditadura militar. E
          comecei a escrever, talvez para me livrar desse espantalho, para conversar comigo mesmo na
                                                           impossibilidade de fazer isso com os outros.15


                                                                                            Pedro Nava



14
     Acervo Pedro Nava da Casa Rui Barbosa.
15
     Em entrevista. Texto publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 15 de maio de 1984.
38

           É com essa pergunta que entro nesta fase de minhas memórias, fase tão irreal e mágica e
 adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu fosse historiador, tudo se resolveria.
      Se ficcionista, também. A questão é que o memorialista é forma anfíbia dos dois e ora tem de
         palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua
                                                                                       interpretação.

                                                                             (Pedro Nava, Chão de Ferro)
        Há uma poética no tempo da narrativa literária, uma trama poética que faz da
narrativa de vida pela via do texto memorialístico uma ou mais de uma possibilidade de
existência e de resistência ao esquecimento. Existe uma poética do tempo que é um
mergulho único na eternidade, o tempo fluído da memória que se narra é Kairós, um tempo
que guarda dentro dos ponteiros a não-linearidade e que por isso é o próprio movimento e
também é a alquimia, numa mudança contínua de um estado para o outro.
         Voltamos assim ao pensamento de Heráclito, filósofo que entendia o mundo como
fluxo contínuo de mudanças. Heráclito foi muito mais do que um filósofo que precedeu
Sócrates. Ele foi, sem dúvida, fonte para muitos pensadores que acreditaram - como ele – na
dinâmica das coisas. Para Heráclito o devir da existência não poderia ser estático já que o
mundo não era estático. Dessa cosmologia pré-socrática podemos retirar algumas pistas para
compreender o fluxo da narrativa memorialística que se localiza numa alternância sutil entre
ficção e história, entre o real e o imaginário, entre o natural e o maravilhoso, entre o
consciente e o inconsciente. E a busca pela verdade pertence a todos os tempos, a todas
épocas humanas. Nós buscamos a verdade nas divindades, na fé que remove montanhas,
buscamos a verdade como atividade intelectual e por isso refletimos sobre as coisas e
queremos saber o porquê das existências ordinárias e extraordinárias.
          Enfim, a realidade o que é? E as verdades guardadas na realidade, quantas são?
Sim, nós queremos saber é das coisas, da matéria dos sonhos, como disse Shakespeare sobre
o teatro. A literatura memorialista é como um teatro da narrativa e as máscaras com os quais
o narrador se apresenta vêm em camadas num sutil palimpsesto de rostos. Sim, “o poeta é
um fingidor”, me alertou Célia16, anagrama de Alice. O narrador memorialista é um fingidor,
chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.17



16
   Conversa com a professora Célia Linhares quando ela destacou o lugar do imaginário na poética da palavra e
o lugar da verdade, lembrando que “o poeta é um fingi-dor”.
17
   Poema: Autopsicografia. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. (Anexos)
39

           Nas memórias de Pedro Nava, nosso principal escritor memorialista, encontramos
um narrador que carrega como questão central a linguagem poética da memória e como esta
vai ser um elemento fundamental de reflexão. Reflexão naquilo que Jung conceituou como
um voltar-se a si mesmo. Com isso, percebemos claramente no romance que o narrador fará
o uso da linguagem poética como ascese, uma busca do seu mundo ontológico e dialógico,
significando e situando a memória dentro do seu próprio texto memorialístico:


                                            A memória dos que envelhecem (e que transmite aos
                            filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que
                            tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com ele estabelece
                            contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas
                            e ódios) é o elemento básico na construção da tradição familiar. Esse
                            folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho _ porque
                            só este sabe que existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo
                            conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação é uma
                            esmagadora oportunidade poética. 18

           Graças às numerosas e “esmagadoras oportunidades poéticas” e à urdidura da
narrativa memorialística, o narrador vivenciará a sua consciência dialética: “que sujeito é
esse que eu sou?”, “que sujeito diz de mim?”, “quem é esse ser que diz que eu sou e o que
vivi”... Fazendo da escrita um fluxo imanente e analítico da própria constituição mnemônica
daquilo que narra, o narrador memorialista cria uma espécie de metamemória literária,
pensada sob a estrutura do rememorar e a partir do próprio discurso memorialístico num
jogo espelhar, num jogo de linguagem onde as entrelinhas são as linhas e vice-versa, onde o
profundo e a superfície interagem para compor o ato de criação. É diferente da tentativa de
escrita (auto)biográfica, quando se pretende escrevê-la unicamente como registro e “ilusão”
histórica, como se a existência humana e a memória ou até mesmo os documentos dessa
existência fossem lineares. Por sua vez a escrita memorialista se lança às reminiscências
para também pensá-las pelos seus avessos, nas idas e vindas, e ao pensá-las repensar
ressentimentos e esquecimentos, através das falhas, das lacunas de uma história, dos
“brancos” como numa “cegueira branca”19 também da História.
            Autor e herói se unem para tecer a narrativa que se inscreve tanto no devir quanto
naquilo que permanece, lembrando o princípio pré-socrático da não-dicotomia do ser.
18
     NAVA, Pedro. 1974, p.17.
19
     Referência ao livro de Saramago: Um ensaio sobre a cegueira.
40


                                Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muita coisa mineral
                        dos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra _ mas que ele
                        pode suscitar de repente (como o mágico que abre a caixa dos mistérios) na
                        cor dos bigodes, no corte do paletó, na morrinha do fumo, no ranger das
                        botinas de elástico, no andar, no pigarro, no jeito _para o menino que está
                        escutando e vai prolongar por mais cinquenta, mais sessenta anos e
                        lembrança que lhe chega não como coisa morta, mas viva qual flor toda
                        olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como um fato presente. 20


           Nenhuma lembrança poderá ser mais presente e flagrante que aquela que nos são
oferecidas pelos mais velhos e os mais experientes. Porque a lembrança do velho é uma
lembrança trabalhada artesanalmente pela memória de quem olha para a passagem do tempo
com a sabedoria da lavoura, do trabalho de quem semeia de memória a própria existência.
Em Galo das Trevas, quinto livro de memórias, Pedro Nava nos apresenta sua casa na
Glória, a última morada de um homem de memória irrequieta, de lembranças sem paradeiro:




                                  Edifício Apiacá, Casa de Pedro. 21




20
     Ibidem.
21
     Acervo pessoal.
41

                            Há trinta e cinco anos moro no Edifício Apiacá, à Rua da
                     Glória, 190, apartamento 702. Quando para aqui mudei o número era
                     60. Nosso arranha-céu levanta-se em terreno onde existiu famoso
                     bordel do bairro nunca completamente saneado. Aqui passei quase
                     metade da minha vida. Aqui envelheci. Quer dizer: aqui tive contados
                     minutos de paz e um roldão de dias noites de tormento. Aqui caminho
                     no escuro como um cego nas noites de insônia como um cego. Ah!
                     longe de mim maldizer de minha casa. Estou impregnado de suas
                     paredes do seu ar do mesmo modo que ela o está de minha pessoa, dos
                     desgastes do meu corpo cujos fragmentos ficam pulverizados nos
                     revestimentos, no chão, no teto – cabelos caídos, esfoliações da pele,
                     excretas pelo cano, ar expirado, palavras vivas um instante, gemidos
                     murmúrios resmungos. Só que ela e outras que habitei vida afora não
                     são mais a casa que deixei e que procuro para pedir de volta minha
                     infância. 22

        Meu avô... Minha avó... A casa de minha avó. A casa de meu avô. As águas da
casa... E um dia acordar avó, acordar avô de tanto beber das águas do tempo. Os avós sabem
bem da porosidade que há no corpo da memória e do quanto pode ser perecível viver, sabem
que a existência humana é frágil, falível e incompleta. Sabem que a morte é a maior certeza
que temos em relação à vida. E saber do perecível é desfazer-se de certa onipotência que não
nos permite a alteridade, é transformar a ferida de Narciso novamente em flor. Sartre
defendia que a experiência era a capacidade de aproveitar bem o que acontece conosco. Os
velhos já sabem da experiência o bolor e a sua irreversibilidade, conhecem da sabedoria a
capacidade de partindo do imaginário – significar o real. São grandes memorialistas e
ficcionistas.
        Nas reminiscências de Nava, a reconstituição da saga e da gênese da família. A
importância do avô Pedro como marco de fundação da trajetória memorialista que o
narrador compõe para si mesmo:


                             Pedro da Silva Nava, meu avô, nasceu na freguesia de Nossa
                     Senhora da Conceição de São Luís do Maranhão, a 19 de outubro de 1843, e
                     foi batizado a 7 de setembro de 1844 na sua Matriz, pelo Reverendo
                     Raimundo Alves dos Santos, tendo como padrinho João Joaquim Lopes de
                     Souza e como madrinha D. Maria Euquéria Nava.
                              Meu avô, negociante e dono de casa comissária (...) Sua grandeza,
                     como se verá, vinha das qualidades – de que basta o homem ter uma – para

22
 Idem, 1987, p.26.
Arte da Memória Literária
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  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS: POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA NITERÓI 2009
  • 2. 2 PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS: POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação. UFF/ NITERÓI 2009
  • 3. 3 PORTO, Patrícia de C. P.. Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura. 285p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. Banca Examinadora: _________________________________________________________ Professora Dra. Iduina Mont’Alverne Braun Chaves Universidade Federal Fluminense _________________________________________________________ Professora Dra. Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi Universidade Federal do Rio Grande do Norte _________________________________________________________ Professora Dra. Eliana Braga Aloia Atihé Universidade de São Paulo _________________________________________________________ Professora Dra. Valdelúcia Alves da Costa Universidade Federal Fluminense _________________________________________________________ Professora Dra. Márcia Maria de Jesus Pessanha Universidade Federal Fluminense Data:
  • 4. 4 O SUMÁRIO: NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS: POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA O Prólogo. Pelo bosque....................................................................................................................................13 Entre “odos” e “mythos”................................................................................................................23 “Odos” 1 - Memória Singular e a escolarização da literatura: Narrar para não esquecer.......................................................................................................37 2 – Memória Plural e a cultura popular em sala de aula: Narrar para aprender..............................................................................................................61 2.1- No bosque da literatura: A cultura pelos tecidos da linguagem..............................................75 2.2 – A cultura popular como metáfora de uma memória plural: Pelas encantaria do Tambor de Crioula............................................................................................................................................8 1 3 – Cultura oral, Literatura e Folclore.......................................................................................104 3.1- Cultura da infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes............... 116 3.2 – A cultura oral como processo de significação e a relação entre folclore e literatura na escola: Cala boca já morreu... ...................................................................................................... 124 “Mythos” Narrativas Memorialísticas de Professores..................................................................................134 Água 4 Memórias de um Porto: De véspera - Do mirante ao horizonte: Sebastianistas e Quixostecos na espiral da reinvenção....................137 A memorialista.............................................................................................................................147 A Divina Pastora.........................................................................................................................150 Ar 5 Memórias de Rya-ne: – O fluxo memorialístico da Infância ou Memória Proustiana...................................................165 – O fluxo da memória coletiva ou Memória Polifônica. ............................................................173 Terra
  • 5. 5 6 Memórias de Elzi Paixão - Poética da Linguagem: Um trançado de bilro entre oralidade e literatura........................................................................187 Fogo 7 Memórias de Magalhães – A crônica memorialista e a cidade:A possibilidade de diálogo entre literatura e história........210 Upaon-Açu e o Círculo 8 Memórias de Emanuel - Emanuel, o peixe, o rio, a lenda e o fantástico: por uma poética da imaginação.......................231 Cazumbá e a Cidade dos Azulejos............................................................................................... 242 9–O Epílogo...............................................................................................................................249 Bibliografia..................................................................................................................................25 5 Anexos..........................................................................................................................................26 0
  • 6. 6 ADVERTÊNCIA Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha. Machado de Assis
  • 7. 7 Dedicado aos artistas populares, aos professores que “amam” a literatura e a todos os alunos e mestres que me trouxeram até aqui. Agradecimentos Agradeço primeiramente à Universidade Federal Fluminense, minha segunda casa por dezoito anos de formação. Muitos foram os encontros que transformaram a minha trajetória nesse percurso. Agradeço ao professor Jorge de Sá, amigo e mestre que me ensinou através de Todorov que “literatura não se ensina, se vive”. À professora Sônia Monnerat tanto pela teoria literária quanto pela alegria literária. À professora Edwiges Zaccur, inspiração e espelho de afinidades. Ao professor Osmar Fávero, uma fonte abundante de narrativas e memórias da educação, um grande memorialista, um jequitibá e um ser humano ímpar. A todos outros professores, aos funcionários, à Maura por tantos anos de boa prosa e café. A UFF já me deu “régua e compasso”. E um ciclo se fecha. Agradeço aos professores que com toda gentileza aceitaram e participam como co- autores nessa viagem de múltiplas paisagens, de múltiplos acessos à arte literária numa ponte aérea entre Rio de Janeiro e Maranhão, entre santos e cidades, entre São Luís e São Gonçalo. Agradeço à Elzi Paixão, a terra, Ryane Pinto, o ar, ao professor Jorge Magalhães, o fogo, a Emanuel Reis, o círculo, a Paulo Carré, as imagens. Agradeço a eles a alquimia dos elementos que compuseram esse todo, esse tecido humano feito de memórias, vozes, tambores, ladainhas, cantigas, acalantos... Oxalá! Á minha orientadora e sempre amiga Iduina Chaves. Agradeço todo respeito, afeto e apoio nas horas mais necessárias. Foi um caminho difícil e longa foi a batalha contra os “moinhos de vento”. Iduina foi companheira e orientando - não para prender, mas para libertar, fez renascer em mim o sentimento de coragem, de saber agir com o coração, o sentimento que habita os Sertões e diz dele que “todo nordestino é antes de tudo um forte”.
  • 8. 8 Agradeço às companheiras e ao companheiro do grupo de pesquisa do “Imaginário”: Jacyana, Adrianne, Bruna, Tatiana, Rosane e Eduardo. Agradeço a amizade, as dicas, os livros emprestados, os textos, as mensagens de carinho e conforto, os olhares de compreensão, o bom humor e toda boa energia trocada. Agradeço especialmente à amiga Tânia Nhary por suas palavras sempre tão preci(o)sas. Agradeço ao amigo e companheiro de jornada Carlos Henrique por ter dividido comigo os altos e baixos do percurso. Agradeço à minha família por todo suporte recebido e pela necessária rede de acolhimento. Aos queridos Raida, Ovídio, Isadora, Karen, Matheus, meus irmãos que se perderam e se acharam na vida em busca de aventuras: Rojane, Cláudio, Mauro, Carmem e Suely, meus cunhados e cunhadas, Rosana, Adalto, meus sobrinhos, minhas primas Andréa Márcia, Márcia Andréa e a querida Yasmin, minhas tias Zica e Inácia, meu querido Marcus André e a todos os outros afetos. Agradeço à minha filha Alice, filha do meu coração e da minha alma. Agradeço ao meu filho Pedro, minha rocha, minha força, meu pensamento. Pedro pedreiro penseiro esperando o trem (...) Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo. Chico Buarque Agradeço ao querido Francisco Meirelles todas as prendas, a “capa” da tese e todo o amor e toda paciência nos nossos momentos tão bem compartilhados. Agradeço aos artistas, aos brincantes, às coreiras, aos ogãs, aos griots, aos poetas populares, aos livreiros, ao povo todo, povo lindo que me recebeu com cheiros, estórias e histórias pra contar. E ao Milton Nascimento que com sua voz e suas lindas canções ajudou a embalar minhas noites insones: Há um menino Há um moleque Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança Ele vem pra me dar a mão Há um passado no meu presente
  • 9. 9 Um sol bem quente lá no meu quintal Toda vez que a bruxa me assombra O menino me dá a mão E um novo ciclo se abre... PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura. 285p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. RESUMO As histórias do tempo de escola e do tempo da infância fazem parte da memória da nossa passagem pelo mundo e essas memórias, espontâneas ou evocadas, se manifestam de forma simbólica e imaginária. E as reminiscências que afloram desse tempo memorialístico nos aparecem, no campo do visível e do dizível, como um redemoinho de imagens, um labirinto discursivo e imagético. Nesta tese, para refletir sobre as “experiências memorialísticas” que se desvelam no espaço poético entre ficção e realidade, entre memórias reais e memórias ficcionais – nos aproximamos de abordagens teóricas que tratassem dessa temática plural entre a literatura e a memória como continuum religare. Ao realizar o presente estudo, um dos objetivos iniciais foi refletir sobre uma “arte docente” na escolarização da literatura a partir das experiências narrativas literárias que possibilitassem o encontro e o diálogo entre a identidade cultural e o direito à palavra encarnada da memória, palavra que, quando mesclada ao mundo imagético, desfaz as fronteiras entre o que se vive e o que se inventa para viver, lembrar e narrar do tempo da experiência. A metodologia desta pesquisa foi centrada na própria poiesis da narrativa que provinha da materialidade de cada discurso memorialístico, discurso visto aqui como um dos acessos à busca do homem pela significação da sua existência no mundo e com o mundo. Nós existimos com e para além. E é assim que nos lançamos ao passado, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem, no nosso universo mítico. O discurso memorialístico do contar, do narrar sua história, do refletir-se na história do outro, reascendo o fogo primitivo que sobrevive num sujeito muitas vezes atrelado à massificação das experiências e ao esvaziamento do significar. Concluímos e defendemos assim que, ao compreender a persistência das reminiscências diante de um esquecimento contemporâneo dilacerante e de uma crescente ausência da arte da
  • 10. 10 narrativa, como há muito nos advertiu Walter Benjamin, somos convocados a refletir sobre quem fomos e sobre quem queremos nos tornar nas nossas próprias trajetórias docentes. Palavras-chave: Literatura; Cultura; Memória. PORTO, Patrícia. Memorialistic Narratives: For a teacher’s art in the learning process of literature. 285p. (Doctorate Thesis) – College of Education, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. ABSTRACT The stories of school and childhood time take part in the memories of our path through the world – and these spontaneous or conjured memories come about in a symbolic and imaginary fashion. The reminiscences that crop up from this memorialistic time appears to us, in the visible and sayable fields, as in an eddy of images, a discursive and imagetic labyrinth. In respect to this work, in order to think about the “memorialistic experiences” that are uncovered in the poetic area between fiction and reality, real and fictional memories – we came close to theoretical approaches that addressed this plural issue between literature and memories as a continuum religare. When performing this study, one of the main objectives was to think about a “teacher’s art” within literature learning from literary narrative experiences that allowed the meeting point, as well as the dialogue between cultural identity and the right to the incarnate word of the memories. This word, when intertwined with the imagetic world dissolves the boundaries between what is lived and what is created to live, remember and narrate the time of experience. The methodology of this research focused on the narrative poiesis itself, which came from the materiality of each memorialistic discourse, whereas this discourse is considered here as one of the ways to reach the quest for life meaning and existence in and with the world. We exist with and beyond. And that is how we dive into the past, trying to recover our lineage in our mythic universe, many times. The memorialistic discourse of narrating our own lifetime, of projecting ourselves in someone else’s lifetime, reactivating the primitive fire that lives on in an individual many times attached to the massification of experiences and to deflation of meaning. We reach the conclusion and stand that, when understanding the persistence of the reminiscences regards to a dilacerating contemporary oblivion and an increasing absence of narrative art, as Walter Benjamin warned us long ago, we are impelled to think about who we were and who we want to become in our teacher career.
  • 11. 11 Key words: Literature; Culture; Memories. PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por un arte docente en la escolarización de la literatura. 285p. (Tesis de Doctorado) – Facultad de Educación, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. RESUMEN Los cuentos del tiempo de escuela y del tiempo de la infancia hacen parte de la memoria de nuestro pasaje por el mundo y esas memorias, espontáneas o evocadas, se manifiestan de forma simbólica e imaginaria. Y las reminiscencias que afloran de ese tiempo memorialístico nos parece, en el campo de lo visible y de lo decible, como un remolino de imágenes, un laberinto discursivo e imagético. En esta tesis doctoral, a fin de reflexionar sobre las “experiencias memorialísticas” que se desvelan en el espacio poético entre ficción y realidad, entre memorias reales y memorias ficcionales – nos acercamos de abordajes teóricos que trataran de esa temática plural entre la literatura y la memoria como un continuo religare. Al realizar el presente estudio, uno de los objetivos iniciales fue reflexionar sobre un “arte docente” en la escolarización de la literatura a partir de las experiencias narrativas literarias que possibilitaran el encuentro y el diálogo entre la identidad cultural y el derecho a la palabra encarnada de la memoria, palabra ésta en que, cuando mezclada al mundo imagético, deshace las fronteras entre lo que se vive y lo que se inventa para vivir, acordarse y narrar a partir del tiempo de la experiencia. La metodología de esta investigación se centró en la poiesis misma de la narrativa que era proveniente de la materialidad de cada discurso memorialístico, discurso visto aquí como uno de los accesos a la búsqueda del hombre por la significación de su existencia en el mundo y con el mundo. Existimos con y para más allá. Y es así que nos lanzamos al pasado, al intentar por muchas veces recomponer nuestro linaje, en nuestro universo mítico. El discurso memorialístico de lo contar, de lo narrar su cuento, de lo reflejarse en el cuento del otro, reavivando el fuego primitivo que sobrevive en un sujeto muchas veces atraillado a la masificación de las experiencias y al vaciamiento de lo significar. Concluímos y defendimos así que, al comprender la persistencia de las reminiscencias delante de un olvido contemporáneo dilacerador además de una creciente ausencia del arte de la narrativa, como hace mucho nos advertió Walter Benjamin, somos convocados a reflexionar sobre quien fuimos y sobre quien queremos volvernos en nuestras trayectorias docentes mismas.
  • 12. 12 Palabras clave: Literatura; Cultura; Memoria. O PRÓLOGO Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior que o mundo. Manoel de Barros Tijolos e telhas feitas pelos quilombolas de Alcântara, Maranhão. Imagem: herdeiro legítimo das terras quilombolas.
  • 13. 13 Pelo bosque Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção. Umberto Eco Um bosque pode ter um jardim de caminhos que se separam e que depois podem voltar a ser no mesmo todo um jardim, não o mesmo do passado, aquele de trilhas já marcadas e conhecidas, mas um outro, por sinal ainda mais bonito, que do passado faz no presente o caminho reinventado. E de reinvenção em reinvenção se pode atravessar o bosque criando e deixando novas trilhas, escolhendo árvores e direções, aumentando com muitos pontos a narrativa que nos leva a um lugar de escolha e destino. De onde poderemos então ouvir a voz do Eco: (...) havia procurado no bosque uma coisa que estava em sua memória particular. Ao caminhar pelo bosque, posso muito bem utilizar cada experiência e cada descoberta para aprender mais sobre a vida, sobre o passado e o futuro. Sem embargo, considerando que um bosque é criado para todos, não posso procurar nele fatos e sentimentos que só a mim dizem respeito. (...) porém o devaneio não é uma coisa pública; leva-nos a caminhar pelo bosque da narrativa como se estivéssemos em nosso jardim particular. (Eco, Umberto. p.16, 2004) Em muitos contos de fadas espalhados pelo mundo teremos a opção de escolha de um ou mais caminhos pelo bosque. Sem dúvida, isso pode sugerir uma série de aventuras e desventuras, trajetos com inúmeras trilhas, atalhos, desvios, clareiras acesas... Pensemos então a fábula numa analogia com a nossa formação docente, ou melhor, com a nossa formação humana. No caso dos contos fabulosos, desde tempos remotos até hoje, as crianças que moram no centro das histórias e que partem sempre do centro de si mesmas para cumprirem seus destinos, vivem trasnsgrediências e expelidas para as periferias vão habitar
  • 14. 14 por uma estação - ou mais - os nebulosos, os obscuros com sibilos e grilos, habitar os silêncios do tempo e os mistérios sem fim. Elas precisam chegar do outro lado, precisam vencer o medo do escuro e da morte, o julgo do veto e a armadilha de castração. Elas precisam cumprir o que há de missão mítica assim como um herói épico, um herói de Virgílio, que já não busca somente a glória para os seus feitos, mas que imprime à sua trajetória o valor da vida e da morte, da aprendizagem do caminho com a sabedoria do coração e a alegria hospedada no desejo de chegar, desejo legítimo de uma alma buscante. Por isso que pensado com o coração e sentido com a alma, o presente instrumento de viagem ou viagens traz as narrativas de muitas vozes, vozes de muitos narradores, esperando que, aos leitores amigos, se abra aqui mais uma possibilidade de olhar que una no mesmo percurso - a arte popular como metáfora do imaginário coletivo e as memórias da infância como o simbólico do imaginário de quem conta sua história com memórias reais e ficcionais, verossímeis e inverossímeis; trazendo para o centro dessa bifurcação temática as narrativas das memórias de educadores que, ao trabalharem com a literatura e suas linguagens, vivem a literatura como amor. Para viver uma literatura encarnada, que partisse do “individual” para o “coletivo” sem fragmentar o individual, foi lançada uma primeira hipótese: a de que “só se vive a literatura na escola por um primeiro engajamento: “o gosto” e que o professor, a professora “que escrevesse literatura” ou que “gostasse de escrever” ou que “gostasse de ler” ou que “gostasse de contar e ouvir estórias” era a princípio um professor, uma professora que trabalhava em prol de uma “literatura” pelo gosto. Ora, essa hipótese criava um absoluto ao descartar no reverso do gosto o seu des-gosto, pois “gostar” e “não gostar” são como duas fases da mesma lua. Afinal, há tantos gostos que se tornam desgostos e vice-versa. Foi preciso então lembrar Fernando Pessoa ou o poeta camponês Alberto Caeiro que nos deixa simpaticamente uma deixa de herança: a de que há um “sol que doira sem literatura” e ainda, para o desconforto de alguns, completa dizendo que não constava que Jesus Cristo tivesse biblioteca.1 Ora, não é possível absolutizar o gosto ou até mesmo definir o que é gosto, porque o gosto assim como a beleza está no campo do que é relativo. Diz um adágio popular que “gosto não se discute, se lamenta”. David Hume2 foi um dos teóricos que ousou 1 Poema: “LIBERDADE”. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. 2 HUME, David. Do Padrão do Gosto. In: Ensaios Morais, Políticos e Literários. São Paulo, Abril Cultural, 1973. Coleção "Os Pensadores", 1ª ed.
  • 15. 15 discutir o conceito de gosto e o de estética. E sobre a beleza, disse o teórico que não se tratava “a beleza” de uma qualidade das próprias coisas, pois ela existia apenas no espírito de quem as contemplava, e cada espírito percebia uma beleza diferente. (1973, p. 316). Assim como a beleza, o gosto existe de maneiras diferentes em cada espírito. E faz parte do nosso sentimento. “O sentimento está sempre certo – porque o sentimento não tem outro referente senão ele mesmo, e sempre real, quando alguém tem consciência dele" (Ibidem, ibid.). E é claro que se aprende, até ao mesmo tempo, pelo gosto e pelo desgosto, se aprende quando há alegria e liberdade e se aprende por obrigação e com punição. Peço licença apenas para defender que não há aprendizagem alguma pela tortura. Há medo, sofrimento e trauma. Numa de minhas entrevistas ouvi de uma professora que quando criança ela obrigada por uma de suas tias a comer jiló, o que ela disse detestar hoje. A tia sentava ao lado dela com uma colher de pau e a cada recusa da menina, a colher era batida firme nas juntas dos seus pequenos dedos. Disse ela que até hoje não consegue olhar para um jiló sem que lhe venha à mente a imagem da colher de pau, não consegue olhar para uma colher de pau desvencilhada da imagem da tia - que em sua lembrança aparece amarga como jiló. Por pertencer a ideia de gosto a uma subjetividade relativa, não havia como definir uma postura teórico-metodológica que não trouxesse em sua gestação o difuso e o movediço dos paradoxos. E cabe aqui ressaltar que “paradoxo” não é necessariamente sinônimo de “dicotomia”3. Talvez por isso essa escolha tenha trazido consigo uma responsabilidade fundamental: fazer pesquisa com professores que diziam “amar” a literatura e que viviam a literatura com seus alunos, no cotidiano das escolas e em suas trajetórias de vida e mundo - como amor e morte – como salto e queda. Porque o amor também flecha o próprio amor e também finge morrer de amor e morre também de amor no seu verso e avesso. Joel Rufino dos Santos (2008) já na capa de seus “Ensaios indisciplinados” nos avisa: Mas o que seria, enfim, amar literatura? Amar a literatura é um vício: o do gozo fingido, ou do fingimento gozoso. 3 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “paradoxo”: Conceito que é ou parece contrário ao comum; contra-senso, absurdo, disparate; e “dicotomia”: Método de classificação em que cada uma das divisões e subdivisões não contém mais de dois termos. Sendo assim, quando nos referimos às contradições humanas, o que se aproxima da estética barroca com seus universos de trevas e luzes, corpo e alma, anjos e demônios, não o fazemos de forma dicotômica ou maniqueísta, mas sim de forma paradoxal.
  • 16. 16 Nesse contexto tornou-se necessário pensar a literatura para além dos textos literários que eram destinados “aos pacotes” para os professores, textos que nos livros didáticos de português e literatura muitas vezes apareciam com a finalidade única de servir a um método a ser reproduzido sistematicamente e mecanicamente através das cabeças e conteúdos fechados. Sobretudo tornou-se necessário pensar a literatura a partir das possibilidades de acesso criadas pelos professores e pelas experiências que se davam pela subversão do pré-estabelecido e ainda pela subversão silenciosa que se dava e dá na aparente conformação do pré-estabelecido, práticas que não negavam uma metodologia, mas que, quando criadas e centradas nas experiências com a literatura, apareciam plenas nas narrativas livres desses educadores. Entendemos que a imaginação é livre, permissiva e transgressora, o que não impede que ela se torne ativa e constante em ambientes regrados. O regrado pode ser regado com a imaginação. Os professores com os quais convivi durante esses anos de pesquisa os conheci em momentos distintos ao longo das nossas diferentes e convergentes trajetórias - que ora se cruzavam nos congressos da vida, ora nas esquinas da vida, ora nos corredores das escolas, ora na universidade, ora no retorno de uma filha pródiga à terra natal. Foram vários os encontros e os desencontros também. Fazer pesquisa foi “ação” e “espera atenta”, escuta atenta, olhar atento. O que exigiu da pesquisadora uma disponibilidade para os avessos, os reversos, os esquecimentos até. Não foram raras as vezes em que a casa construída urgiu ser desabitada, colocada a baixo, para que assim pudesse ser novamente projetada. E a cada projeção uma atenção, o desafio de aprender a ouvir com os ouvidos de dentro, a enxergar com os olhos de dentro, a sentir com o coração de dentro e pensar com o coração exposto. O desafio de pensar a literatura na escola veio balizado pelo desafio de compreender como os professores na relação com o seu metapoeisis vivenciavam a literatura e as tantas linguagens que dela provinham, linguagens que diziam de perto aos fluxos memorialísticos das palavras e imagens que compunham o que eles chamavam real juntamente com o que reinventavam ou re-significavam feito lembrança do vivido. Entre tantos estilos de escrita, estéticas e gêneros literários que iam surgindo nas conversas, nas entrevistas, nos e-mails e nos ricos encontros entre a pesquisadora e os professores, todos escritores e poetas, a emergência e a permanência de um modelo ou forma narrativa foi se colocando com maior ênfase. Tratava-se de um “memorial”, que ora
  • 17. 17 apresentava-se como conto baseado no real ora como prosa poética do real. Isso se deu de maneira imbricada e foi tomando espaço e criando sua contextualização no próprio percurso, ainda que os primeiros ensaios de narrativas escritas pelos professores tenham sido feitos como poemas memorialísticos ou fragmentos poéticos. O interessante é que os poemas foram ganhando a voz e o corpo do prosador, fluindo narrativamente. Do verso veio a “prosa”, “o conto”, a necessidade do contar a sua história, do contar-se. A escrita foi cedendo ao oral e da narrativa oral se retomava a escrita numa ambivalência. Foi criado então um segundo impasse, entre muitos que se seguiram. Como chamar esses “memoriais”? Contos memorialísticos ou narrativas memorialísticas? Para ajudar na definição, recorro então a Barthes: Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral e escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, (...) a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura (...) está aí, como a vida. (p.19) Seguindo uma perspectiva metodológica que valoriza a narrativa de mundo que “está aí, como a vida”, foi acordado que, para cada sujeito da pesquisa, haveria a criação de uma narrativa escrita, um registro memorialístico de infância – um registro que fosse autobiográfico e/ou ficcional, propondo desde o primeiro momento que, na carpintaria desses escritos, fosse possível perfazer, juntamente ao texto dissertativo, um painel narrativo-metodológico que criasse e/ou desvelasse “espaços potenciais” no intercruzamento entre as imagens que sempre suscitam das narrativas e a teia por onde transpassam o mítico, o simbólico e o fantástico – campos expressivos da literatura e da imaginação. Por isso mesmo todos esses conceitos aqui trabalhos estarão entrelaçados a uma visão que não
  • 18. 18 condena ou despreza a escolarização da literatura, mas sim busca compreendê-la a partir de um compromisso epistemológico e poético com outra arte – a de educar. E tentando elucidar a dimensão desse tema-teia que se dá numa forma espiralada, em camadas que não se fecham nem tampouco se sobrepõe uma à outra, mas, ao contrário, se alimentam e aprendem de si mutuamente nas tantas idas e voltas, é que me deparei com duas citações e duas memórias. A primeira foi retirada de um conto infantil de José Saramago: A Maior flor do Mundo (2001). Diz o narrador: Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu... (...) Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventura sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte, efeito literário de que ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder hoje aconchegar a frase. Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: “Vou ou não vou?” E foi. As palavras de Saramago expressam um tempo subjetivo e cirandeiro, o tempo largo pertencido à infância. O narrador nos conta a história de um menino que por meio de uma janela pôde vislumbrar o mundo com seus “olhinhos” de desejo e vendo este mundo e toda sua riqueza de cores e acontecimentos, tornou-se um ‘buscador’ de algo mais, algo mais a bulir na alma, a mover o desejo de conhecer, de superar, de transgredir ultrapassando limites internos e externos. Assim, ao se permitiu ir pela amplidão dos lugares da infância, ele encontrou a sua flor, a maior flor do mundo, a flor que o libertava do ritual da jornada: precisava crescer para poder voltar para casa. E o menino “foi” e “vai” ao sabor da estória, aventurando-se às descobertas do encantamento de ser um todo existente, assim como o fez Thamires, de quem trago a fala numa imagem de memória: T (6 anos): Eu sou a chapeuzinho vermelho (com um fantoche na mão). Eu moro na floresta com a minha mamãezinha. Todos os dias eu saio de casa pra levar docinhos para a minha querida vovozinha. Ela mora na floresta numa casa branquinha. Branquinha não, rosinha. Um dia eu estava passeando na floresta quando o lobo, aquele malvado apareceu. Aí... aí... Essa parte eu esqueci... Como é mesmo? Ah, já lembrei! O lobo me perguntou...4 4 Aluna do pré-escolar da Escola Municipal Célia Pereira da Rosa (município de São Gonçalo, Rio de Janeiro).
  • 19. 19 Thamires, a menina que viveu aquela realidade da escola e hoje passeia - para os que vão ler essa passagem – no bosque de uma ficção, trata as palavras com o afeto dos diminutivos e assim de braços dados com o menino da ficção de Saramago estão indo, viajando num mundo maravilhoso cheio de imagens, de fantasias. Estão lá e aqui, no mundo do imaginado e da ação, para conquistar algo, algo muito maior que o tamanho deles. Como o menino do conto de Saramago, quantas vezes saímos da casa de nossos pais, avós, saímos do nosso vilarejo, da nossa província, do nosso território, da nossa cidade e até mesmo da terra que consideramos nossa pátria - para compreender algo maior que o nosso próprio tamanho? Saímos para nos deparar e tentar compreender nossos desejos, nossas atrações, nossas punções, volições, nossas vontades mais profundas, nossa mesma profundidade. E quantas são as vezes que nos tornamos a Chapeuzinho Vermelho da nossa própria história para viver a imensidão do rito que é a floresta para abandonar a criança da qual precisamos nos despedir. E ao adentrar nos imensos da floresta e nos perder em seus labirintos é dela que vamos conseguir retirar as experiências, o bálsamo, as seivas, as ervas, os unguentos que nos fortalecerão para enfrentar as realidades do cotidiano e o medo do (des)conhecido que habita em nós, como o medo do lobo sedutor. Entrar na floresta tem o seu “que” de assustador, porque é sempre um transgredir, é ir ao encontro do des- conhecimento do conhecido. É a floresta que alimenta o nosso imaginário de esperança e de novas morfoses, de novas culturas. É uma transição, uma passagem, uma busca, um encontro, uma transformação e um trocar de pele para poder renascer. Nos contos de fada ou “estórias para crianças”, Chapeuzinho Vermelho encontrou o seu lobo, os irmãos João e Maria encontraram a bruxa, Branca de Neve encontrou o caçador que lhe queria arrancar o coração.5 Sabe-se que a floresta, por conta de todo esse simbolismo, é uma imagem freqüentemente usada nas narrativas de infância, nos contos orais arcaicos e também nos contos de fada para crianças. Sobre isso disse Campbell (1990): 5 O cinema fortaleceu essa simbologia com imagens que vieram com as adaptações dos clássicos infantis, como os desenhos de Walt Disney e “O mágico de Oz”.
  • 20. 20 (...) embora a maioria dos contos de fadas tenham um final feliz, no meio do percurso ocorrem motivos mitológicos típicos; por exemplo, o motivo de nos encontrarmos, de repente, em grande dificuldade e ouvirmos uma voz ou vermos alguém que chega para nos salvar. Histórias de fadas são para crianças. Elas freqüentemente falam de uma menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Ela hesita diante da crise desse limiar de passagem. Então adormece, enquanto o príncipe ultrapassa todas as barreiras e vem fornecer a ela uma boa razão para aceitar que crescer, afinal de contas, tem o seu lado agradável. Muitas das histórias dos irmãos Grimm representam a menininha paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. (p.151) Por entender o sofrimento diante da crise que há em todo limiar e reconhecendo que em todo percurso humano, em toda travessia também há a ultra-passagem da paralisação, o imaginário será aqui pensado como a expressão de uma ambiguidade complexa, ambiguidade provinda do campo das contradições que existem nas trajetórias de vida – seja por entre as imagens que lembramos e inventamos da infância, seja por entre os bosques repletos de imagens daquela criança remanescente que existe dentre de nós, seja por entre as imagens que produzimos da experiência, diante do amadurecimento inevitável da vida. E a noção escolhida para começar a definir o imaginário foi centrada em duas vertentes: uma que se debruça sobre a relação do sujeito com o mundo real sensível e a outra que se espraia no que o imaginário transcende do mundo sensível, criando assim o mundo da imaginação, das coisas não tangíveis. Entendemos que nas nossas narrativas de vida há uma ambiguidade entre o imaginário singular e o imaginário coletivo e entre eles não há fronteira que os defina ou separe sem que um já esteja com as marcas e as pistas do outro. No livro: Educação e imaginário – Introdução a uma filosofia do imaginário educacional, a partir das contribuições de Gaston Bachelard, de Gilbert Duran e Henry Gorbin, pode-se estabelecer, segundo Wunemberg e Araújo, os fundamentos de uma nova teoria da imaginação e do imaginário, que podem ser considerados conhecimentos sólidos. Entre as linhas mestras, cito uma que esclarece a escolha de “duas vertentes”, evidenciando dessa maneira a complexidade epistemológica do trabalho de pesquisa com o imaginário. Segundo Wunemberg e Araújo: O imaginário é inseparável de obras, psíquicas ou materializadas, que servem para que cada consciência construa o sentido da sua vida, das suas acções e das experiências de pensamento. A este respeito, as imagens
  • 21. 21 visuais e lingüísticas contribuem para enriquecer a representação do mundo (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do Eu (Ricouer). Assim, a imaginação surge de facto, e é algo que Sartre tinha previsto, como um modo de expressão da liberdade humana confrontada com o horizonte da morte (Durand). (grifo meu) A literatura – criatura da imaginação é criadora de imaginação. E essa imaginação é viva, por isso inconclusa. Nosso imaginário se enche de representações que fazem da floresta uma travessia com inúmeros ritos. A literatura com as suas imagens e todo seu simbolismo, pode nos desvelar algumas dessas passagens. Numa tentativa de arché ou palimpsesto, podemos encontrar na infância esse sair ou fugir ou ser levado a enfrentar as nossas florestas como um “João sem medo” 6, o menino que também transgrediu limites para poder entrar na floresta. João sem medo morava numa aldeia que se chamava Chora-que-logo-bebes. Diziam que por lá vivia uma gente muito infeliz e que esta aldeia tinha um imenso muro que a separava da Floresta Branca, lugar onde moravam os sonhos e os mitos. No muro que separava a aldeia da floresta estava escrita a seguinte recomendação: É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir. João sem medo pulou este muro, viveu a floresta e ficou espantado de existir. E de uma aldeia que constituí a própria matéria do “ser criança” com suas outras tantas lógicas, muitas vezes saímos ou fugimos, através da imaginação, a fim de ver quanto da terra se pode ver o Universo... Diz o menino de Saramago: Por isso a minha aldeia é tão grande como outra qualquer. Porque eu sou do tamanho do que vejo. As crianças são quase sempre do tamanho do mundo que vêem. E elas veem mágica e alegria onde alguns adultos já não enxergam nada além de vazios. E para as crianças é possível enxergar a escola como lugar de “ler mundos”, saber do mundo e de nós, é possível fazer da escola um dos espaços mais convidativos para a criação, a que nasce da curiosidade e que, pela experiência democrática vai se tornando compreensão do conhecimento. Assim também podemos ver/ler a literatura – essa arte revolucionária da linguagem, pelos olhos da infância, para que, embora adultos, re-tornemos ao tamanho das nossas buscas imaginárias. Afinal, como diz Bachelard, em sua Poética do Devaneio: Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas 6 Ver Aventuras de João sem Medo (1963) de José Gomes Ferreira, poeta e escritor português.
  • 22. 22 possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. (p. 85) Memória, leitura, cultura oral e escrita sempre fizeram parte das narrativas literárias que trabalham com os temas (auto)biográficos, com as trajetórias humanas e com as projeções do ser no mundo. A literatura muitas vezes nos chega assim: através das vozes, dos ouvidos, dos olhos, dos sentidos da infância. A infância: essa usina de memórias inventadas, para usar a expressão do poeta Manoel de Barros. Através do tempo da experiência e do que ele tece de memória, experimentamos criativamente e coletivamente os nossos saberes, os nossos conhecimentos - escolarizados ou não. E para não entrarmos numa relação antidialógica com o que há de sonho num projeto que tem como lemas a esperança e a experiência, precisamos nos desarmar da permanência única no já gasto e caduco discurso monológico do saber, o discurso que uniformiza e não leva em conta a nossa diversidade, a nossa multiplicidade de temas e de diálogos possíveis, os nossos diferentes olhares sobre o mundo e para o mundo. Ora, mas se até com as pedras do caminho dialogamos é imprescindível que haja diálogo numa educação que ser quer pelo gosto. Mas “educar pelo acesso ao gosto” não é uma tarefa fácil, pois está na esfera da complexidade, a que exige de nós, educadores, um “deixar-se ir com o outro” também ao gosto da permuta, numa alteridade que ultrapassa as fronteiras de qualquer mecanismo de falsa segurança que tente rimar poder com saber. Sendo nossa imaginação livre somos livres também, somos livros também, livros vivos, livros abertos, entreabertos ou até mesmo livros fechados, sisudos. Livros com muitas páginas vividas e escritas e reviradas, livros ceifados ao meio ou ainda no começo do caminho - mas nunca livros em branco. Somos sempre livros de histórias a serem lidas, narradas e rememoradas. Cada qual com uma narrativa ímpar, ordinária e extraordinária, cada qual com uma história de mundo pra contar. A de uma menina “contadora de histórias” e seu inseparável livro de poesia foi desde sempre a minha. Em Um sopro de vida nos diz Clarice Lispector: Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o pensamento, é a “coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta. (1988, 101) A “coisa literária” foi defendida por Clarice na materialidade de suas palavras, no
  • 23. 23 trabalho de artífice da linguagem - objeto que se esmerila com o próprio corpo no corpo da linguagem. A “coisa literária” se faz pelo artesanato de pensamentos e palavras, pela poética de experiências com a arte que nos permite os estranhamentos, os despertares, os enigmas do conhecimento. Sendo assim a poética da narrativa memorialística nasce de uma ambigüidade de origem: é fonte e sede de rede-moinhos, pois repleta está de situações que ao unir a arte à vida cria um caleidoscópio humano, um caleidoscópio onde são constantemente recriados os sentidos da memória, essa memória dinâmica, irrequieta e fluída que diz respeito à constituição da subjetividade num tempo volumoso. Por isso sendo literatura não pode ser vista como um lugar distante, inacessível, destinado a poucos, mas sim como possibilidade de inter-relação com a linguagem, oportunidade de viver a memória pela voz da palavra, de expressar uma visão da existência pela composição da nossa história no mundo. Lembro que um dos objetivos iniciais foi justamente possibilitar uma abordagem interdisciplinar entre literatura e educação, tratando a narrativa, a cultura e a memória como tramas híbridas e indissociáveis, capazes de gerar uma reflexão substantiva sobre a formação identitária dos professores que lidam com a arte literária, entendendo essa arte docente como um direito à palavra encarnada, palavra que, mesclada ao mundo imagético, ultrapassa os limites deterministas que separam o que se vive e o que se reinventa como “tempo da experiência”, como se isso não fizesse parte relevante da nossa trajetória, do nosso memorial de vida. Este trabalho de tese e pesquisa tornou-se ao mesmo tempo um aceite e um convite para a compreensão da vivência com a literatura em sala de aula ou ainda da escolarização da literatura, isso pensado pelos vieses da poética que reside num fazer que é ao mesmo tempo arte docente e que tem sua potencialidade num “fazer sensível”, num “fazer com alma e coração”, num fazer que sempre leva em conta o quanto e “como” é possível pensar, sonhar e intuir no “fazer com” a literatura em sala de aula a partir dos mais diversos recursos lúdicos e simbólicos de uma rede de saberes e sabores, transformados estes em experiências significativas, em “experiências plenas” (Benjamin, 1994). Muitas foram os questionamentos e os anunciados aqui fizeram parte – direta ou indiretamente – das entrevistas, conversas com os professores. Interessava saber de que maneira inter-relacionadas estariam as narrativas de infância dos professores às vivências
  • 24. 24 com a literatura, isso de acordo com a presença de uma determinada identidade cultura como também de uma certa estética literária memorialística. Diferente do aspecto puramente biográfico, o foco não estava nos fatos vividos, mas na interpretação do vivido. Saber o quanto havia de reinvenção de si e da prática no que entendemos por “escolarização da literatura” a partir das interpretações das experiências vividas e narradas. Saber como havia surgido nos professores o desejo de trabalhar com a arte literária, quando e como se formaram leitores de mundo e leitores dos livros, que memória eles traziam da infância, dos livros ou das histórias orais que ouviram, que escolhas faziam ao trabalhar com a literatura no cotidiano. Os professores aparecem como autores das suas narrativas memorialísticas, reais e ficcionais, apresentadas e entremeadas pelos símbolos que compõem a natureza narrativa enquanto processo subjetivo, imagético e interpretativo de significação da subjetividade, polifonia esta margeada por um universo de certezas e incertezas de um tempo “presente”. A partir dos pressupostos apresentados foi possível refletir sobre um poiesis, esse que faz da reinvenção da prática a reinvenção de si. E os desdobramentos deram à metodologia uma vertente compreensiva da subjetividade, dando maior ênfase ainda às narrativas de vida de professores que, quando entrecruzadas à teia memorialística de obras literárias tantas vezes suscitadas, enfocavam pela experiência a poética da memória como elemento constitutivo da narrativa via con-fabulações do imaginário. Assim dialogamos com Gilbert Duran7 e sua teoria do imaginário, “imaginário entendido como o conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital pensado do ser humano.” 7 DURAN. Gilbert. 2001, p.18.
  • 25. 25 Entre Odos e Mythos MOYERS: Mas todos esses mitos são sonhos de outras pessoas. CAMPBELL: Oh, não, não são. São os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam com os magnos problemas humanos. Eu hoje sei quando chego a um desses limiares. O mito me fala a esse respeito, como reagir diante de certas crises de decepção, maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou. (O Poder do Mito) A problemática de um trabalho que se apóia na biografia, na trajetória de vida, no contar a história de um homem, de uma mulher, de um povo, é, para quem o faz, um trabalho “arriscoso”. E para assumir esse lugar de tanto risco, segundo o professor de História Contemporânea da Universidade de Paris X, Didier Musiedlak 8, um dos principais obstáculos metodológicos do pesquisador que pretende trabalhar com a biografia, principalmente a dos ilustres, é que na sua relação com a História, é preciso reconhecer a necessidade de se desconstruir “os personagens” para que se evite cair no “canto da mistificação”, da valorização ou super valorização dos personagens. Lembrando que toda biografia, toda narrativa de história de vida pertence a um contexto de escritura, contexto histórico, social e ideológico. Quantas biografias foram escritas e reescritas sobre os grandes ícones, “mitos” da História? Para o Professor Didier Musiedlak, a construção da memória nacional seria como reescrever o mito, e o mito, para ele, é mais forte que o registro. E o perigo que há na valorização na escrita biográfica de um mito é, sobretudo a possibilidade, humana, de se “banalizar” os crimes desse mito, banalizando os atos ocorridos de violência, obscurecendo o lado negativo dessa trajetória. E para Musiedlak, essa é uma forma de recompor a memória nacional apagando o negativo da história, apagando os seus paradoxos, as suas fraturas. Musiedlak nos relatou que para escrever uma biografia era preciso ir aos porões dos dados e de lá olhar o bem e o mal. 8 O professor Didier Musiedlak proferiu a palestra “Fascismo, Fascismos; História, Memória e Biografia” na Universidade Federal Fluminense, no departamento de História. (Maio/ 2006)
  • 26. 26 Um segundo problema ou obstáculo metodológico descrito por Musiedlak seriam as fontes utilizadas, porque, segundo ele, freqüentemente as fontes estão contaminadas, por isso seria quase impossível não desconfiar da narrativa perfeita, das biografias que parecem autênticas. Para Musiedlak seria preciso separar o objeto analisado de seu conteúdo místico, concentrando-se na desmistificação, desconstruindo o objeto para olhar para ele quando ele estiver nu, reconhecendo o que vem do imaginário. E completa: “(...) um homem nu não é bonito de ser visto”. Por isso se fala em biografias imaginárias, quando o mito é maior que o homem. Quantas biografias foram reescritas ao longo da História? Quantas infâncias pode ter um único homem? No Brasil, podemos também perguntar, quantas biografias dos mitos históricos foram feitas e refeitas e o quanto há de ficção nelas? Quantas biografias pode ter um homem? Ainda segundo o professor Musiedlak, para quem ousa usar como método a biografia, a história de vida, é necessário que saiba que há de ser feito um trabalho analítico e crítico que permita reconstruir a dimensão ocupada pelo imaginário juntamente à realidade de ação, a realidade do imaginário e a realidade do fato. Pois o imaginário faz parte da construção do real. E sobre esse lugar de tensão na escrita da biografia, explica Musiedlak (2006): Como o lembra François Dosse, a biografia continua a ser um gênero híbrido, impuro, premido entre a necessidade de restituir um vivido real e passado, que seria ordenado, segundo as regras da Mimesis e a preocupação do biógrafo de dar livre curso ao seu imaginário. Dessa divisão decorre uma tensão constante entre as exigências da dimensão histórica e o domínio da ficção, o que expões aquele que aceita fazê-lo a um desequilíbrio. (p.103) Embora o tema em questão: a biografia, as narrativas de vida, através do real e do imaginário da ficção, seja já bastante difundido e analisado, inclusive na Universidade de Paris, não foram poucas as vezes que ouvi dizer que essas especulações entre o real e o ficcional não passavam de burburinhos dos poetas ou coisas de excêntricos. E como descreve Didier Musiedlak entre “as exigências da dimensão histórica e o domínio da ficção” ao pesquisador que se embrenha nesse tensionamento não há como se esquivar do desequilíbrio e da exposição desse desequilíbrio.
  • 27. 27 Entre a realidade e a imaginação, seja na narrativa dos mitos históricos ou nas narrativas anônimas não há como retirar das reminiscências os sinais intrínsecos do simbólico, limpando os vestígios deste lugar de linhas imaginárias que é a memória. Um dia alguém me apresentou: - Veja, você está com os pés na linha do Equador. Então percebi que os meus pés eram um limite imaginário e aquele limite que tinha vindo comigo partiria comigo. Por isso a escolha de um caminho (ou odos) hermenêutico se deu primeiro por uma constatação: a impossibilidade de uma meta única, ou seja, de se chegar a um construído acabado e definitivo. Portanto a metodologia não se fecha nem tampouco se concluí numa única leitura do problema ou ainda no detalhamento deste ou daquele aspecto analisado da narrativa (auto)biográfica ou ficcional, mas, sobretudo, este caminho metodológico se abre às possibilidades interpretativas que surgirão pelo simbolismo, pelo mythos, pelo que criamos e reinventamos de significação do real pela experiência. Aproximamos-nos de um ponto de vista sobre o real que, segundo Marilena Chauí, não é constituído por coisas. Para Chauí (2001): Nossa experiência direta e imediata da realidade nos leva a imaginar que o real é feito de coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências. Assim, por exemplo, costumamos dizer que uma montanha é real porque é uma coisa. No entanto, o simples fato de que essa “coisa” possua um nome, que a chamemos “montanha”, indica que ela é, pelo menos, uma “coisa-para-nós”, isto é, algo que possui um sentido em nossa experiência. ( p.7) Do real compreendemos aquilo que faz sentido para nós, o que, de maneira imbricada, existe como “coisa em si” e “coisa-para-nós”. Não há, de um lado, a coisa em-si, e, de outro lado, a coisa para-nós, mas entrelaçamento do físico- material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido, fazendo com que aquilo que chamamos “coisa” seja sempre um campo significativo. (ibidem) O que constituímos como significância, “como o sentido de algo” se dá pela experiência. A narrativa das nossas reminiscências, das nossas coisas lembradas é seletiva nesse sentido, de buscar o que fez sentido ou o que está fazendo sentido no momento da lembrança. E isso pode ser refeito a cada experiência de memória do sujeito que lembra de
  • 28. 28 si mesmo e conta sua história. E a memória da experiência com o real ao se tornar narrativa se reveste de mythos. E se pensarmos na cultura, na tradição das narrativas arcaicas e no legado que esses lugares nos deixaram, nos embrenharemos numa questão inevitável: o que é o mito? O que é a narrativa de um mito? O que faz o homem simples tornar-se um mito? Um mito nas artes? Um mito no esporte? Um mito na política? Um mito na ciência? Se voltarmos num tempo longínquo, bem nos primórdios, numa era anterior à escrita e ao pensamento guiado pela razão, poderemos inquirir: de onde, afinal, os primeiros homens tiravam suas perguntas¿ Quais eram as suas principais inquietações? O que poderia gerar curiosidades no tempo do homem primitivo? A natureza? A sobrevivência? O instinto? E essa reflexão pode nos levar ao seguinte pensamento: ao conhecemos os mitos, começamos a compreender o que é cultura e o que é tradição; e por conseguinte, começamos também a compreender o que vem a ser a narrativa e a narrativa do mito ou o seu conjunto de ilhas, a mitologia, um arquipélago de histórias do mundo. É claro que poderia parecer um reducionismo dizer que os mitos e as mitologias são como o fogo da criação das histórias humanas, mas não me posso furtar de pensar que essa gênese é de fundamental importância como significação de mundo se quisermos entender a narrativa humana, a trajetória e a biografia de um homem, de uma mulher e de seu processo único e singular de existência. E a memória entra nessa trama como o instrumento de acesso, reconstituição e reinvenção da história desse existir. Por isso ao pensar na literatura e nas pessoas que escolheram a literatura como viagem pela vida, não pude seguir um caminho monolítico, já que a literatura não é sectária, não tem uma só lente e nem foco que seja único. E já que todos essas noções fazem parte de uma mesma trama e essa trama complexa é feita de múltiplas perspectivas, de múltiplos olhares e retornos Vários teóricos em diversos campos de pesquisa e interesses se debruçaram sobre os temas que envolvem os mitos e as mitologias, buscando conceituá-los ou empregá-los com fundamento para novas teorias e novos conceitos. No campo da teoria psicanalítica, Sigmund Freud foi um desses pesquisadores de inegável reconhecimento e grande destaque na abordagem de temas como os mitos e a cultura. Mas foi Jung, discípulo de Freud e pesquisador de grande intuição, que deu maior visibilidade, a partir da psicologia analítica, ao tema da mitologia e dos mitos, criando um campo de pesquisa e analises consistentes e
  • 29. 29 profundas para os “arquétipos”, que do antigo verbete foi sendo redimensionado para ganhar novo sentido e nova significação, uma nova concepção que tornou difícil não associar a palavra “arquétipo” à teoria de jungiana e ao conceito de Inconsciente coletivo. Disse Jung em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2000, p.16): “Archetypus” é uma pe-rífrase explicativa do είδος platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. (grifo meu) Na tentativa de compreender as narrativas míticas do homem simples que eram, ao meu ver, ao mesmo tempo narrativas míticas do mundo, narrativas mundanas, coletivas e diante de muitas concepções teóricas, interessou-me a aproximação aos vários campos de reflexão: o psicológico, o antropológico, o sociológico e o filosófico. Porque eles davam coesão àquilo que à primeira vista parecia disperso e que na sua aparência já acusava um mar de profundidade. E porque na literatura todos esses campos podem comungar do mesmo corpo através da linguagem enquanto cultura, da memória enquanto poiesis, da língua enquanto poder, do imaginário enquanto dinâmica e desvelamento da própria experiência enquanto “mito”. Em O poder do Mito, Joseph Campbell nos diz que aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos, porque os mitos são as histórias de nossa vida, de nossa busca pela verdade, da nossa busca pelo sentido de estarmos vivos. Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. (Campbell, 1990, p.19) E segundo o escritor e estudioso da linguagem simbólica, Mircea Eliade: (...) o mito é considerado como uma história sagrada, e, portanto uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmogónico é verdadeiro porque a existência do mundo está aí para o provar, o mito da origem da morte é também verdadeiro porque a mortalidade do homem prova-o...e pelo facto de o mito relatar as gestas dos seres sobrenaturais e manifestações dos seus poderes sagrados, ele torna-se o modelo exemplar de todas as actividades humanas significativas. (p.13) A palavra mythos, nos orienta Chauí, vem do grego e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo: contar, narrar, falar alguma coisa para outros; e do verbo mytheo: conversar,
  • 30. 30 contar, anunciar, nomear, designar. Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados. (CHAUÍ, 200, p.28) Nesse sentido, não se trata de fazer uma profunda análise arquetípica dos contos ou detalhar a simbologia encontrada nas narrativas memorialísticas, tratando das analogias entre os contos ou entre as imagens por elas suscitadas, mas sim se busca relacionar, por uma heurística proximal, a simbologia de determinados arquétipos às reinvenções memorialistas e míticas que se dão nos novos contextos culturais do existir, o que cria uma substantiva aproximação ao que Jung definiu como “arquétipo”. Segundo o professor Junito de Souza Brandão (2007): Através do conceito de arquétipo, C. G. Jung abriu para a Psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras-de- arte, o conhecimento cientifico, os esportes, as festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural. (p.9) É pela cultura e do que dela sobrevive como tradição que voltamos aos afetos primários, aos sonhos, às reminiscências da infância, à metaphorá da imaginação, todo esse “transporte” que faz renascer em nós os heróis épicos, coletivos, os mitos de fundação. Mas a questão é: há limite para a recriação dos mitos quando pensamos em literatura? Por acreditar que não existe esse limite e, portanto, que não há também limite para as reinterpretações dos mitos, ousamos trabalhar, talvez assumindo o lugar da contradição, para além da origem datada construir pela reinvenção da memória novas formas de existir. Seria então dizer que o adulto ao lembrar e narrar, sobretudo quando se trata das reminiscências da infância, não apenas as tipifica, convocando certo número de arquétipos, mas também, re-elabora o dito através desses elementos simbólicos, míticos reinventando a sua própria memória.
  • 31. 31 A memória narrada e evocada no presente seria assim uma memória que transita, reinventada num tempo-espaço potencial, que ora se apresenta sob uma atmosfera nostálgica, saudosista, acolhedora, e ora pode nos provocar a náusea, o horror de ter vivido, de ter que emborcar o corpo para ver de dentro a dor, a dor de crescer diante da inexorável passagem do tempo. É paradoxalmente humano. E se um dia, com o avanço da ciência, nos for permitido decidir o que desejamos lembrar, com quais lembranças ficaríamos? Apenas com as “boas” lembranças? “Deitaríamos fora” todas aquelas que foram difíceis ou inconvenientes? Apagaríamos as nossas perdas? O que nos faria definir o bom de lembrar se a idéia do que é bom muda constantemente? E se “o bom de lembrar” se molda e é moldado por nossos valores e crenças que também mudam, também circulam, transformando nosso modo de ser e lembrar, com quais instrumentos poderíamos julgar “o bom de lembrar”? Como escolheríamos as nossas melhores lembranças? Por enquanto nossas reminiscências estão repletas de luzes e trevas, de encantos e desencantos, de sonhos e desventuras, de ganhos e perdas... E são todas essas experiências que compõem a nossa narrativa de vida, a nossa biografia. E é também com elas que compomos nossas memórias. E para falar das memórias que diziam respeito às experiências da prática docente era preciso também levar em conta o contexto sócio-histórico onde eram e são criadas “as formas de fazer”, as formas de dizer, de sonhar e de acreditar nas coisas... Tudo isso atrelado a um saber que contem tanto outros saberes: a literatura, essa sabedoria que a professamos por um prisma poético-reflexivo entre Eros (o amor) e Thánatos (a morte)9 . E na nossa história há sempre “o eco de vozes que emudeceram.” (Benjamin, 1984, p.223) Nas nossas histórias, nas nossas trajetórias pelo mundo há sempre o eco de outras vozes que nos antecederam e há o eco dos mitos que antecederam às vozes das nossas histórias. Há o “eco”, como pedra e flor, a sorrir e dizer dos mitos que não deixarão as nossas histórias emudecerem. E há o mito de Eco10, a ninfa que, na impossibilidade de viver seu amor que é encontrar o belo Narciso, se vê numa gruta repetindo, “ecoando” a eternidade das palavras de um outro – para que ele também se lembre da própria voz. E há a 9 BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. 1, 2 ed. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1991. 10 O poeta latino Publius Ovídio Naso, (43 a.C – 18 d.C), escreveu as Metamorphoses, poema épico em 15 cantos que se tornou uma de suas obras mais significativas. A narrativa de amor e as metamorfoses de Eco e Narciso são contadas no livro III.
  • 32. 32 estátua de cristal que, sobre a tarde a contemplava, florindo-a para sempre, com o seu efêmero sorriso…11 Na travessia do bosque, os caminhos ora se cruzam, se aproximam ora se bifurcam para o afastamento necessário, proximidade e distanciamento inerentes à pesquisa qualitativa. Na travessia da tese, os caminhos aqui traduzidos em capítulos, se revelam interdependentes, cada um tratando de uma temática própria, mas todos partindo e dialogando a partir da mesma matriz, respeitando assim o intercruzamento entre literatura e educação, num dissertar muitas vezes recursivo. Cada capítulo traz como abertura um arquétipo12 que simboliza e ao mesmo tempo sintetiza poeticamente as ressonâncias que atravessam concomitantemente as narrativas memorialísticas, o tema a ser compreendido e a abordagem teórica que os transpassa. E a cada abertura de capítulo, em sua introdução, uma narrativa memorialística inaugural, narrativas de autores literários e/ou narrativas dos sujeitos da pesquisa. No caso dos professores, as narrativas serão apresentadas a princípio por seus escritos, depois pelas falas tecidas, vozes trazidas ao longo do texto dissertativo. O primeiro capítulo, o capítulo teórico sobre Memória Singular, está centrado numa perspectiva pertinentemente subjetiva, pois no percurso se fez a necessidade de ouvir, ler e sentir cada memória narrada como evento muito particular de criação e a partir daí compreender o que ela trazia de novo (neo). Veremos neste capítulo, no que diz respeito à escolarização da literatura e a poética memorialística, que a evocação das memórias transmutadas em narrativas não deveriam ser reduzidas a uma repetição estática nem tampouco linear de gêneros e épocas. A partir de trechos de obras literárias memorialísticas, especialmente as de Pedro Nava, nosso maior referencial literário, trataremos da evocação das memórias transmutadas em palavras, enfatizando o que do vivido construímos como narrado. No capitulo dois, que trata da Memória Plural e da Cultura Popular, como metáfora da memória social e coletiva, escolhemos dentro de um recorte necessário, dar ênfase, pelas aproximações memorialísticas, ao ritual de uma manifestação cultural maranhense que é o 11 Poema: Epigrama de Cecília Meirelles. (Anexos) 12 Ao tentar traduzir os elementos simbólicos encontrados nas narrativas dos professores/ autores busquei distingui-los por elementos/ arquétipos. Nesse intuito uso como inspiração as obras de Gaston Bachelard: “A psicanálise do Fogo”, “O Ar e os Sonhos”, “A Terra e os Devaneios da Vontade”, “A Terra e os Devaneios do Repouso” e “A água e os Sonhos”. Em cada abertura de capítulo inicio por uma citação de Bachelard que se refira ao arquétipo/ elemento escolhido/ encontrado. Lembrando que a teoria de Bachelard não apenas “ilustra” a apresentação dos capítulos, mas ela neles estará inserida de forma intrínseca.
  • 33. 33 Tambor de Crioula, buscando tratar assim algumas de suas distintas expressões. Neste capítulo também foi possível dialogar com uma leitura de Mário de Andrade e o acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas criada por ele enquanto diretor da secretaria de cultura de São Paulo. Tratando-se de um capítulo empírico, para a elaboração da pesquisa, além da preocupação documental através de diferentes registros como: fotografias, documentos e relatos, sem dúvida, nela prevaleceu a pesquisa sensorial provinda da experiência vivida e encarnada pela pesquisadora: sentir a cidade e as ruas, viver como recorte e corte o ritual do Tambor de Crioula com os sentidos expandidos, sentir a linguagem oculta do corpo, dançar sobre os séculos e as pedras colocadas por mãos negras e escravas, viver o ritual como conceito, como embrião fecundado que gradativamente cresce alimentado por forças coletivas até chegar à maturação, à clareza, à total visibilidade do que é, até atingir a forma plena num processo lento e laborioso de gestação. Ser o cavalo, a linguagem da dança que faz o corpo ser a própria expansão. E como fruto dessa expansão, nascido da “concepção” do ritual, contemplar e celebrar a complexidade da existência humana no singular e plural. No capítulo três, na tentativa de desvelar espaços potenciais para as experiências plenas com a literatura em sala de aula, buscou-se compreender a criança enquanto sujeito da sua própria cultura, trazendo para o centro da reflexão a cultura oral e a contribuição teórica do educador e sociólogo Florestan Fernandes no que diz respeito à cultura infantil e à arte folclórica, propondo como conclusão do capítulo a ênfase numa poética da linguagem na escolarização da literatura. Para o capítulo quatro, trago como referencial e arquétipo o elemento “água”. Nele há a introdução às narrativas memorialísticas, às narrativas dos professores, sujeitos da pesquisa. No primeiro deles trato da minha própria vivência com a literatura atrelada à prática da cultura oral enquanto processo de significação. Na primeira narrativa trago as minhas memórias num exercício delicado e frágil de investigar a mim mesma e refletir sobre minhas próprias lembranças, emborcar sobre o meu próprio corpo de memórias. E como alguém que se deixa olhar em suas entranças, apresento o elemento água, o mais receptivo dos elementos. As águas do Mar, Maranhão, as águas do Rio – de janeiro. As águas que alimentam de memória as fontes, as nascentes, as cascatas, os mananciais, as águas que correm, que transbordam, inundam, afogam e alimentam.
  • 34. 34 No capítulo cinco, para simbolizar as memórias da professora e poetisa Ryane Pinto, escolhemos o elemento ar, porque Ryane traz em suas memórias as imagens aéreas - líricas e lúdicas - das palavras que sopram e ventilam os versos dos poetas alados. As memórias de Ryane lembram bem as telas de Chagal com seres voadores e cores flutuantes. Ryane se lança às descobertas como as crianças do pré-escolar e fica suspensa apenas pelo vento, sendo ela própria o espaço e o ar de sua inspiração. Neste capítulo também ressalto a importância de uma educação sensível conjugada às duas concepções de memórias literárias escolhidas para a abordagem estética e humanista dada às narrativas memorialísticas. À memória literária da infância numa menção às obras memorialísticas do escritor francês Marcel Proust, ícone desse estilo, sugiro a noção de “memória proustiana”. Pois, no retorno ao “tempo perdido” da infância nos deparamos com o passado feito um Proust, provando madeleines ao sabor das reminiscências. À memória social e coletiva, sugerimos a noção de memória polifônica, tendo como principal referencial e fundamentação teórica o conceito de polifonia do filólogo e crítico literário Mikhail Bakhtin. Neste capítulo ainda como embasamento teórico e numa perspectiva compreensiva busco dialogar com os conceitos de “narrativa” de Walter Benjamin, “memória” de Bérgson e “memória coletiva” de Halbwachs. Portanto foram muitos os interlocutores, autores com os quais dialoguei neste e em todo percurso. A proposta do capítulo seis, para as memórias da professora Elzi Paixão, nossa contadora de ‘hestórias’, escolhemos o elemento terra, porque Elzi nos traz em suas memórias a imagem da poeira, do esterco que sustenta as raízes, do sujar-se com a terra, do brincar de terra, das conversas com os seres ordinários e imaginários dos quintais, com os bichinhos, as pedrinhas, os caquinhos, os brinquedos de pequenos nadas. Elzi que canta como cigarra e enterra a cigarra se for preciso e que ao mesmo tempo em que levanta paredes de cimento consegue contar “hestórias” sobre tijolos de asas. Suas memórias trazem a concretude da rocha numa gravidade que serve para fertilizar de alma o chão. Ainda neste capítulo buscou-se refletir sobre uma prática docente que propiciasse de fato a inclusão da cultura oral através da contação de estórias, bem como a pluralidade de textos e saberes que daí advém como tradição e reinvenção cultural e literária. No sétimo capítulo, para simbolizar as memórias do professor Jorge Magalhães, cronista e dramaturgo, escolhemos o elemento fogo, porque das memórias de Jorge surgem
  • 35. 35 do fogo de sua criação, o tempo de Kronos e os olhos de um flêneur, que faz gerar e girar o tempo das crônicas, das memórias cotidianas das ruas e dos carnavais. Neste capítulo buscou-se uma possibilidade dialógica entre a história e a literatura, no que diz respeito à cultura oral e à narrativa, buscando compreender a relação entre ficção e realidade, entre o vivido e a percepção do vivido através da crônica literária e da perspectiva do cronista. No capítulo oito, para simbolizar as memórias do professor e arte-educador Emanuel Reis, escolhemos a imagem do círculo, pois com essa imagem simbolizamos a junção de todos os outros elementos - como nas mandalas, nas cirandas, nas rodas e nas giras do Tambor. Das memórias de Emanuel surgem a poeira da terra, a invencionice do ar, a quentura do fogo que afina o tambor, a pororoca das águas pelas mãos do maravilhoso que surge das lendas do folclore maranhense com suas encantarias e seus contos de assombração. No sétimo capítulo, emerge como metáfora a imagem da “árvore”, uma da formas mais primitivas de interpretação da psique que, neste caso, pode significar os ciclos ininterruptos da vida e de suas possibilidades e potencialidades de narrativas. Neste capítulo é enfatizada a relação imbricada entre o mito e o fantástico na contação e na reinvenção das estórias na história do mundo. No último capítulo ou epílogo que traz como imagem a mandala, além da reflexão final sobre os temas anunciados e dissertados, trataremos das várias linguagens e memórias que, como cordas, foram lançadas ao ar, à dispersão, para ao final serem recolhidas numa embolada, à rede que intentou conjugar fios e peixes, conjugando culturas com o artesanal dos homens e a sorte de seu alimento. E talvez caiba aqui um último esclarecimento: esta tese reside, sobretudo na defesa de uma literatura que pode parir a qualquer momento um gigante bufo, como Gargântua ou Pantagruel, uma literatura em carne e água vivas feita pela defesa de uma prática que é poética e que transgride - sem castigo, as práticas da casmurrice a favor de uma arte docente que valorize as múltiplas linguagens, enfatizando sobremaneira a cultura oral como importante universo de significação nas experiências literárias. Trataremos nos capítulos que virão de não nos descuidar da “lúcida” (a diurna) e nem tampouco menosprezar a “louca” (a noturna) que geraram juntas este feito. Convido a todos então a este banquete: Agora, existe um outro sentido, mais profundo, do tempo do sonho, o de um tempo que é não tempo, apenas um estado de ser que se prolonga.
  • 36. 36 Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e seu término. No início, de acordo com essa história, os ancestrais não se distinguiam, em termos de sexo. Não havia nascimentos, não havia mortes. Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços foram enterrados. No momento daquela morte, os sexos se separaram, para que a morte pudesse ser, a partir de então, equilibrada pela procriação, procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer, e de matar e comer outros seres vivos, para a preservação da vida. (Campbell, 1990, p.53-54) Gargântua, pai de Pantagruel. 13 13 Ilustração de Gustave Doré, 1873.
  • 37. 37 CAPÍTULO 1 Memória Singular e a escolarização da literatura: Narrar para não esquecer... Pedro Nava aos quatro anos de idade.14 Eu não teria sido um escritor de memórias se não tivesse tido minha época de exteriorização literária num momento em que nós estávamos debaixo de uma ditadura, uma ditadura militar. E comecei a escrever, talvez para me livrar desse espantalho, para conversar comigo mesmo na impossibilidade de fazer isso com os outros.15 Pedro Nava 14 Acervo Pedro Nava da Casa Rui Barbosa. 15 Em entrevista. Texto publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 15 de maio de 1984.
  • 38. 38 É com essa pergunta que entro nesta fase de minhas memórias, fase tão irreal e mágica e adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu fosse historiador, tudo se resolveria. Se ficcionista, também. A questão é que o memorialista é forma anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação. (Pedro Nava, Chão de Ferro) Há uma poética no tempo da narrativa literária, uma trama poética que faz da narrativa de vida pela via do texto memorialístico uma ou mais de uma possibilidade de existência e de resistência ao esquecimento. Existe uma poética do tempo que é um mergulho único na eternidade, o tempo fluído da memória que se narra é Kairós, um tempo que guarda dentro dos ponteiros a não-linearidade e que por isso é o próprio movimento e também é a alquimia, numa mudança contínua de um estado para o outro. Voltamos assim ao pensamento de Heráclito, filósofo que entendia o mundo como fluxo contínuo de mudanças. Heráclito foi muito mais do que um filósofo que precedeu Sócrates. Ele foi, sem dúvida, fonte para muitos pensadores que acreditaram - como ele – na dinâmica das coisas. Para Heráclito o devir da existência não poderia ser estático já que o mundo não era estático. Dessa cosmologia pré-socrática podemos retirar algumas pistas para compreender o fluxo da narrativa memorialística que se localiza numa alternância sutil entre ficção e história, entre o real e o imaginário, entre o natural e o maravilhoso, entre o consciente e o inconsciente. E a busca pela verdade pertence a todos os tempos, a todas épocas humanas. Nós buscamos a verdade nas divindades, na fé que remove montanhas, buscamos a verdade como atividade intelectual e por isso refletimos sobre as coisas e queremos saber o porquê das existências ordinárias e extraordinárias. Enfim, a realidade o que é? E as verdades guardadas na realidade, quantas são? Sim, nós queremos saber é das coisas, da matéria dos sonhos, como disse Shakespeare sobre o teatro. A literatura memorialista é como um teatro da narrativa e as máscaras com os quais o narrador se apresenta vêm em camadas num sutil palimpsesto de rostos. Sim, “o poeta é um fingidor”, me alertou Célia16, anagrama de Alice. O narrador memorialista é um fingidor, chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.17 16 Conversa com a professora Célia Linhares quando ela destacou o lugar do imaginário na poética da palavra e o lugar da verdade, lembrando que “o poeta é um fingi-dor”. 17 Poema: Autopsicografia. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. (Anexos)
  • 39. 39 Nas memórias de Pedro Nava, nosso principal escritor memorialista, encontramos um narrador que carrega como questão central a linguagem poética da memória e como esta vai ser um elemento fundamental de reflexão. Reflexão naquilo que Jung conceituou como um voltar-se a si mesmo. Com isso, percebemos claramente no romance que o narrador fará o uso da linguagem poética como ascese, uma busca do seu mundo ontológico e dialógico, significando e situando a memória dentro do seu próprio texto memorialístico: A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com ele estabelece contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho _ porque só este sabe que existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética. 18 Graças às numerosas e “esmagadoras oportunidades poéticas” e à urdidura da narrativa memorialística, o narrador vivenciará a sua consciência dialética: “que sujeito é esse que eu sou?”, “que sujeito diz de mim?”, “quem é esse ser que diz que eu sou e o que vivi”... Fazendo da escrita um fluxo imanente e analítico da própria constituição mnemônica daquilo que narra, o narrador memorialista cria uma espécie de metamemória literária, pensada sob a estrutura do rememorar e a partir do próprio discurso memorialístico num jogo espelhar, num jogo de linguagem onde as entrelinhas são as linhas e vice-versa, onde o profundo e a superfície interagem para compor o ato de criação. É diferente da tentativa de escrita (auto)biográfica, quando se pretende escrevê-la unicamente como registro e “ilusão” histórica, como se a existência humana e a memória ou até mesmo os documentos dessa existência fossem lineares. Por sua vez a escrita memorialista se lança às reminiscências para também pensá-las pelos seus avessos, nas idas e vindas, e ao pensá-las repensar ressentimentos e esquecimentos, através das falhas, das lacunas de uma história, dos “brancos” como numa “cegueira branca”19 também da História. Autor e herói se unem para tecer a narrativa que se inscreve tanto no devir quanto naquilo que permanece, lembrando o princípio pré-socrático da não-dicotomia do ser. 18 NAVA, Pedro. 1974, p.17. 19 Referência ao livro de Saramago: Um ensaio sobre a cegueira.
  • 40. 40 Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muita coisa mineral dos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra _ mas que ele pode suscitar de repente (como o mágico que abre a caixa dos mistérios) na cor dos bigodes, no corte do paletó, na morrinha do fumo, no ranger das botinas de elástico, no andar, no pigarro, no jeito _para o menino que está escutando e vai prolongar por mais cinquenta, mais sessenta anos e lembrança que lhe chega não como coisa morta, mas viva qual flor toda olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como um fato presente. 20 Nenhuma lembrança poderá ser mais presente e flagrante que aquela que nos são oferecidas pelos mais velhos e os mais experientes. Porque a lembrança do velho é uma lembrança trabalhada artesanalmente pela memória de quem olha para a passagem do tempo com a sabedoria da lavoura, do trabalho de quem semeia de memória a própria existência. Em Galo das Trevas, quinto livro de memórias, Pedro Nava nos apresenta sua casa na Glória, a última morada de um homem de memória irrequieta, de lembranças sem paradeiro: Edifício Apiacá, Casa de Pedro. 21 20 Ibidem. 21 Acervo pessoal.
  • 41. 41 Há trinta e cinco anos moro no Edifício Apiacá, à Rua da Glória, 190, apartamento 702. Quando para aqui mudei o número era 60. Nosso arranha-céu levanta-se em terreno onde existiu famoso bordel do bairro nunca completamente saneado. Aqui passei quase metade da minha vida. Aqui envelheci. Quer dizer: aqui tive contados minutos de paz e um roldão de dias noites de tormento. Aqui caminho no escuro como um cego nas noites de insônia como um cego. Ah! longe de mim maldizer de minha casa. Estou impregnado de suas paredes do seu ar do mesmo modo que ela o está de minha pessoa, dos desgastes do meu corpo cujos fragmentos ficam pulverizados nos revestimentos, no chão, no teto – cabelos caídos, esfoliações da pele, excretas pelo cano, ar expirado, palavras vivas um instante, gemidos murmúrios resmungos. Só que ela e outras que habitei vida afora não são mais a casa que deixei e que procuro para pedir de volta minha infância. 22 Meu avô... Minha avó... A casa de minha avó. A casa de meu avô. As águas da casa... E um dia acordar avó, acordar avô de tanto beber das águas do tempo. Os avós sabem bem da porosidade que há no corpo da memória e do quanto pode ser perecível viver, sabem que a existência humana é frágil, falível e incompleta. Sabem que a morte é a maior certeza que temos em relação à vida. E saber do perecível é desfazer-se de certa onipotência que não nos permite a alteridade, é transformar a ferida de Narciso novamente em flor. Sartre defendia que a experiência era a capacidade de aproveitar bem o que acontece conosco. Os velhos já sabem da experiência o bolor e a sua irreversibilidade, conhecem da sabedoria a capacidade de partindo do imaginário – significar o real. São grandes memorialistas e ficcionistas. Nas reminiscências de Nava, a reconstituição da saga e da gênese da família. A importância do avô Pedro como marco de fundação da trajetória memorialista que o narrador compõe para si mesmo: Pedro da Silva Nava, meu avô, nasceu na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de São Luís do Maranhão, a 19 de outubro de 1843, e foi batizado a 7 de setembro de 1844 na sua Matriz, pelo Reverendo Raimundo Alves dos Santos, tendo como padrinho João Joaquim Lopes de Souza e como madrinha D. Maria Euquéria Nava. Meu avô, negociante e dono de casa comissária (...) Sua grandeza, como se verá, vinha das qualidades – de que basta o homem ter uma – para 22 Idem, 1987, p.26.