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O cão Catravo
                                                               Jailson Alves


                                                      Ao amigo Aquilino Paiva.




     Aquele animal era parte da família. Meu pai trouxe a avó, uma
cadela labrador, cor caramelo, para a nossa casa quando eu ainda era
menino de cueiro. A cadela deu cria, meu pai ficou com uma cadelinha que
possuía as duas patas dianteiras pretas. Ele não gostava de animais
machos, preferia as fêmeas por elas serem mais obedientes e mais dóceis
com as crianças. A mãe morreu. Ficou doente após minha irmã ter morrido
de tuberculose. A cadelinha foi definhando e entristecendo-se com a
ausência da minha irmã. Sentia falta da pessoa que menos atenção lhe
dava. Acho que minha irmã tinha ciúmes da minha amizade com a cadela,
por isso não tratava bem o animalzinho, embora meu pai fosse taxativo
contra maus tratos aos bichos. Sempre dizia que não podíamos usar a
força com quem não pode usá-la na mesma intensidade contra nós.


     Ficamos com a cadela das patas dianteiras pretas. Esta também deu
cria e porque nenhum dos filhotes fosse fêmea, meu pai escolheu o único
cor de caramelo que existia. Ele possuía as quatro patas pretas, o que
chamamos de catravo de pé e mão. Meu pai não lhe deu nome, aliás,
como não havia dados aos outros, então, o chamávamos de catravo.
Substantivamos o adjetivo e ele ficou sendo chamado de Catravo mesmo.


     Era esperto, não parava desde a hora que acordava. E antes de
alguém na casa levantar-se, ele já estava em meu quarto, arranhando a
porta. Dali até eu ir para a escola, ele não saía de perto me mim.


                                                                             1
Ninguém foi capaz de fazer esta associação, nem mesmo de pensar
nisso, não foi feita qualquer alusão a isso, pois, não éramos
supersticiosos, mas desde que este animalzinho nasceu, as coisas
começaram a se modificar rapidamente em nossa família. Primeiro, meu
pai enfrentou diversas dificuldades nos negócios e passamos por muitos
apertos econômicos; depois, minha mãe, que sempre gozou de boa
saúde, foi hospitalizada com uma dor no abdômen que nenhum médico
conseguiu identificar. Ela voltou para casa e sentiu dores durante quinze
dias. Pediu para que o seu quarto fosse isolado. Não suportava mesmo
era a presença de Catravo. Toda vez que ele aparecia, ela alterava-se,
queixava-se de que as dores aumentavam e que o cão não era amistoso
com ela. Seus gritos ficavam mais agudos e nós sofríamos o resto do dia
com seus gemidos. Já sem esperança de cura, morreu antes da
primavera. Meu pai ameaçou matar o cão Catravo, tão possuído que
estava pelo desespero que agora perturbava nossa vida tão sossegada,
numa demonstração de ódio, desses que brotam no coração dos homens
mais serenos, abrindo espaço a crenças tão irracionais.


     Meu pai envolveu-se em uma briga com um dos homens com quem
ele fazia negócios. Esse homem veio até a nossa casa num final de tarde,
com um rifle na mão, e com uma voz engasgada de tanta ferocidade,
perguntou-me por meu pai; meu pai ainda não havia chegado. Mesmo
assim ele não se acalmou. O cão Catravo tratou de correr o mais rápido
que pôde e escondeu-se, ganindo baixinho, na mesa da sala; meu pai
chegou nessa hora, o homem ficou mais furioso ainda, eles discutiram
violentamente, ameaçaram-se mutuamente e meu pai entrou em casa
para pegar sua arma. Nessa hora, o homem atirou em nossa direção. Aí
eu não sei mais o que aconteceu. Era no fim da tarde e acho que
escureceu rapidamente.

                                                                        2
Após esse episódio, as coisas voltaram à normalidade. Eu ainda
estava sendo acordado pelo Catravo, que cumpria seu ritual de me
acompanhar até a estrada e me esperava na volta da escola.


     Porém, fui começando a ver coisas extraordinárias. E vocês só
podem acreditar em mim se achar que é possível acontecer, ao menos
uma vez, com vocês também. Passei a ver o cão levantar-se e seguir um
caminho como se seguisse alguém. Ele estava ao pé da cadeira vazia de
meu pai, de repente, levantava as orelhas e, como se tivesse ouvido
alguém chamá-lo, ia até a cozinha, lá, abanava o rabo e esperava que
alguém lhe desse algo para comer. Durante duas ocasiões eu fui
acompanhando-o e ele cumpria o caminho e as ações como se fosse um
autômato. Ele não me obedecia. Eu o chamava, mas ele continuava seu
caminho, indo até a cozinha ou a árvore que ficava na frente da casa,
solitário, porém abanando o rabo, com aquela obediência feliz dos cães.
Não adiantava eu o chamar, ele simplesmente ignorava meu chamado.


     Meu pai também ficou muito estranho. Passou a me ignorar, e por
mais que eu o chamasse, ele não se voltava em minha direção. Passei por
muitos momentos como se estivesse num daqueles pesadelos, quando um
ladrão está em nossa casa, em nosso quarto, nós estamos deitados, de
olhos abertos, o ladrão ou assassino (não importa, é o mesmo terror) se
aproxima e não conseguimos gritar, por mais que nos esforcemos, não
conseguimos gritar até que, ufa! levantamos – tudo está normal à nossa
volta, embora estejamos quase sempre suados e extenuados, e nos
invade, mais que no cérebro, no corpo todo até a extremidade dos dedos,
aquele alívio das lembranças de realidades terríveis não concretizadas.
Era essa a sensação de pesadelo eterno que eu tinha quando chamava

                                                                      3
meu pai e ele continuava seu caminho, me renegando como se já
estivesse morto e eu chamasse por um espectro, e, por estarmos agora
formados por naturezas materiais diferentes, não conseguíamos nos
comunicar. Muitas vezes, ocorria-me este pensamento, e era uma maneira
de acalmar meu coração que sentia muita falta daquele calor do meu pai,
que era em outros tempos tão atencioso comigo. Sentia falta também de
Catravo, de quando ele vinha ao meu encontro na volta da escola.


                                                 Dili, primavera de 2006.




                                                                        4

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O cão catravo

  • 1. O cão Catravo Jailson Alves Ao amigo Aquilino Paiva. Aquele animal era parte da família. Meu pai trouxe a avó, uma cadela labrador, cor caramelo, para a nossa casa quando eu ainda era menino de cueiro. A cadela deu cria, meu pai ficou com uma cadelinha que possuía as duas patas dianteiras pretas. Ele não gostava de animais machos, preferia as fêmeas por elas serem mais obedientes e mais dóceis com as crianças. A mãe morreu. Ficou doente após minha irmã ter morrido de tuberculose. A cadelinha foi definhando e entristecendo-se com a ausência da minha irmã. Sentia falta da pessoa que menos atenção lhe dava. Acho que minha irmã tinha ciúmes da minha amizade com a cadela, por isso não tratava bem o animalzinho, embora meu pai fosse taxativo contra maus tratos aos bichos. Sempre dizia que não podíamos usar a força com quem não pode usá-la na mesma intensidade contra nós. Ficamos com a cadela das patas dianteiras pretas. Esta também deu cria e porque nenhum dos filhotes fosse fêmea, meu pai escolheu o único cor de caramelo que existia. Ele possuía as quatro patas pretas, o que chamamos de catravo de pé e mão. Meu pai não lhe deu nome, aliás, como não havia dados aos outros, então, o chamávamos de catravo. Substantivamos o adjetivo e ele ficou sendo chamado de Catravo mesmo. Era esperto, não parava desde a hora que acordava. E antes de alguém na casa levantar-se, ele já estava em meu quarto, arranhando a porta. Dali até eu ir para a escola, ele não saía de perto me mim. 1
  • 2. Ninguém foi capaz de fazer esta associação, nem mesmo de pensar nisso, não foi feita qualquer alusão a isso, pois, não éramos supersticiosos, mas desde que este animalzinho nasceu, as coisas começaram a se modificar rapidamente em nossa família. Primeiro, meu pai enfrentou diversas dificuldades nos negócios e passamos por muitos apertos econômicos; depois, minha mãe, que sempre gozou de boa saúde, foi hospitalizada com uma dor no abdômen que nenhum médico conseguiu identificar. Ela voltou para casa e sentiu dores durante quinze dias. Pediu para que o seu quarto fosse isolado. Não suportava mesmo era a presença de Catravo. Toda vez que ele aparecia, ela alterava-se, queixava-se de que as dores aumentavam e que o cão não era amistoso com ela. Seus gritos ficavam mais agudos e nós sofríamos o resto do dia com seus gemidos. Já sem esperança de cura, morreu antes da primavera. Meu pai ameaçou matar o cão Catravo, tão possuído que estava pelo desespero que agora perturbava nossa vida tão sossegada, numa demonstração de ódio, desses que brotam no coração dos homens mais serenos, abrindo espaço a crenças tão irracionais. Meu pai envolveu-se em uma briga com um dos homens com quem ele fazia negócios. Esse homem veio até a nossa casa num final de tarde, com um rifle na mão, e com uma voz engasgada de tanta ferocidade, perguntou-me por meu pai; meu pai ainda não havia chegado. Mesmo assim ele não se acalmou. O cão Catravo tratou de correr o mais rápido que pôde e escondeu-se, ganindo baixinho, na mesa da sala; meu pai chegou nessa hora, o homem ficou mais furioso ainda, eles discutiram violentamente, ameaçaram-se mutuamente e meu pai entrou em casa para pegar sua arma. Nessa hora, o homem atirou em nossa direção. Aí eu não sei mais o que aconteceu. Era no fim da tarde e acho que escureceu rapidamente. 2
  • 3. Após esse episódio, as coisas voltaram à normalidade. Eu ainda estava sendo acordado pelo Catravo, que cumpria seu ritual de me acompanhar até a estrada e me esperava na volta da escola. Porém, fui começando a ver coisas extraordinárias. E vocês só podem acreditar em mim se achar que é possível acontecer, ao menos uma vez, com vocês também. Passei a ver o cão levantar-se e seguir um caminho como se seguisse alguém. Ele estava ao pé da cadeira vazia de meu pai, de repente, levantava as orelhas e, como se tivesse ouvido alguém chamá-lo, ia até a cozinha, lá, abanava o rabo e esperava que alguém lhe desse algo para comer. Durante duas ocasiões eu fui acompanhando-o e ele cumpria o caminho e as ações como se fosse um autômato. Ele não me obedecia. Eu o chamava, mas ele continuava seu caminho, indo até a cozinha ou a árvore que ficava na frente da casa, solitário, porém abanando o rabo, com aquela obediência feliz dos cães. Não adiantava eu o chamar, ele simplesmente ignorava meu chamado. Meu pai também ficou muito estranho. Passou a me ignorar, e por mais que eu o chamasse, ele não se voltava em minha direção. Passei por muitos momentos como se estivesse num daqueles pesadelos, quando um ladrão está em nossa casa, em nosso quarto, nós estamos deitados, de olhos abertos, o ladrão ou assassino (não importa, é o mesmo terror) se aproxima e não conseguimos gritar, por mais que nos esforcemos, não conseguimos gritar até que, ufa! levantamos – tudo está normal à nossa volta, embora estejamos quase sempre suados e extenuados, e nos invade, mais que no cérebro, no corpo todo até a extremidade dos dedos, aquele alívio das lembranças de realidades terríveis não concretizadas. Era essa a sensação de pesadelo eterno que eu tinha quando chamava 3
  • 4. meu pai e ele continuava seu caminho, me renegando como se já estivesse morto e eu chamasse por um espectro, e, por estarmos agora formados por naturezas materiais diferentes, não conseguíamos nos comunicar. Muitas vezes, ocorria-me este pensamento, e era uma maneira de acalmar meu coração que sentia muita falta daquele calor do meu pai, que era em outros tempos tão atencioso comigo. Sentia falta também de Catravo, de quando ele vinha ao meu encontro na volta da escola. Dili, primavera de 2006. 4