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Gonçalo Leandro
    5/05/2011

                  1
Esta é a história de dois gatos. Mas não pensem que
são dois gatos quaisquer. Não. Eles são os meus gatos e
chamam-se Cusco e Manhoso. E o meu nome… bem o meu
nome é Gonçalo. Gonçalo Leandro para ser mais preciso.

     Tudo começou numa altura em que eu, não sei bem
porquê, queria ter um animal de estimação. Parece que
naquela idade tinha um fascínio por animais, especialmente
por cães.

     Estava decidido. Nunca iria ter um gato. Sei que a
minha mãe e o meu pai já tinham tido alguns e que todos
eles tiveram um final infeliz. Lembro-me de uma gata cuja
morte foi chorada pela minha mãe durante meses. Vi o
quão triste a deixara a morte da sua gata, não queria passar
pelo mesmo.

     Nessa altura eu acreditava que ter um animal que me
pudesse entender e que quisesse brincar comigo toda a hora
era o meu maior desejo. Simplesmente achava que se
tivesse um animal de estimação, um amigo que estivesse
sempre disposto a dar-me ouvidos, iria tornar-me num
rapaz mais responsável e popular.




                                                          2
Todos os dias pedia aos meus pais para me
comprarem um cão mas eles diziam-me sempre tentando
fugir à conversa:

     -Logo se vê.

     Eu não queria que logo se visse, tinha que ser no
momento. Mas bem. Tive que me aguentar e puxar pela
paciência,   uma    parte   muito   diminuta      da   minha
personalidade.

     Um dia, quando essa ideia ainda estava bem viva na
minha mente, tive um forte pressentimento de que o que eu
há tanto tempo desejava, iria finalmente concretizar-se. O
dia em que chegaria a casa e iria encontrar um grande cão
sentado à porta de entrada que, ao ver-me, viria logo a
correr para junto de mim.

     Estava com muita esperança porque sempre que tinha
um pressentimento, era hábito este realizar-se.

     Saí da escola a correr e quando finalmente cheguei a
casa não vi cão nenhum.

     A única coisa que vi à entrada de casa foi uma
pequena caixa de cartão já velha e estragada colocada sobre
a neve.


                                                           3
Tive um grande desgosto mas sempre mantive a
esperança de que o tal dia ainda estaria para chegar.

     Decidi ignorar a caixa. Sabia que o meu pai logo a
retiraria do quintal quando passasse por ali. Mas no
instante em que a contornei, ouvi um miado. Um miado
baixinho e aflito que mais parecia o choro de um bebé.
Aproximei-me da pequena caixa de cartão que estava
coberta por flocos de neve e abri-a. Olhei para o seu interior
e vi um pequeno gatinho de pêlo comprido e faces
arredondadas, os seus olhos azuis reluziam como pequenos
diamantes imaculados.

     Corri para dentro para avisar os meus pais. Eles
vestiram os seus roupões e foram logo a correr para junto
do pequeno gatinho. Olharam para o interior da caixa mas
não viram gato nenhum. Ambos ficaram a olhar-me de lado
e pelas suas caras, comecei a imaginar de imediato o que
estariam a pensar:

     -Fizeste-nos vir para a rua neste frio!? Estamos em
pleno Inverno e ainda por cima estamos de pijama!

     -Juro que vi aqui um gato. Era pequeno e tinha o pêlo
muito comprido. – Disse-lhes eu sabendo que estava lúcido
e que não tinha imaginado gato nenhum.

                                                            4
Já sabia o que esperar. Por causa daquele maldito gato,
eu ia agora ser repreendido. Semicerrei os olhos e encolhi
os ombros. Olhei de relance para os meus pais e vi-os
virarem-se na minha direcção. Fechei os olhos e pensei:

        -É agora. Esta vai doer.

        Já se tinham passado uns quantos segundos. O que se
estava a passar? Porque é que ainda não estava a sentir as
suas palmadas na minha pele congelada pelo frio?

        Tinha receio de abrir os olhos mas mesmo assim fi-lo.
Olhei em frente e os meus pais já lá não estavam.

        -Devem estar com frio. – Murmurei. – Devem ter
desistido da ideia de me repreenderem e decidiram ir para
casa.

        Virei-me para trás e vi que não estava enganado. Iam
ambos a correr em direcção a casa.

        Mas depois pararam, sentaram-se no pequeno degrau
da entrada e disseram:

        -Parece que ele já fez questão de se hospedar. – Riam
enquanto faziam festas num pequeno gatinho de pelo
comprido e olhos azuis que se encontrava entre si.



                                                              5
Nesse dia soube logo que o meu sonho de vir a ter um
cão tinha ido por água abaixo.

    E foi assim que tudo começou.

    Passaram-se uns quantos meses e eu comecei a
habituar-me à ideia de ter um gato como animal de
estimação.

    Cusco sempre foi um gato muito brincalhão, amistoso
e como o seu próprio nome o diz, muitíssimo curioso.
Queria estar sempre a par das últimas novidades. Punha-se
a cheirar todos os locais por onde passava para tentar
descobrir um novo odor que lhe despertasse a atenção. Mas
nada. Todos os odores que descobria eram-lhe familiares.
Apesar de nunca encontrar nada de novo para o seu
focinho poder apreciar, isso não o impedia de voltar a
tentar. Todos os dias procurava, todos os dias cheirava, mas
nunca encontrava nada.

    Era também um gato muito teimoso. Eu insistia
dizendo-lhe para parar de procurar porque não valia a
pena, nunca iria encontrar nada.

    Que poderia eu fazer, ele nunca me dava ouvidos.
Estava sempre a ralhar com ele por ser tão teimoso e


                                                           6
curioso, mas que haveria eu de fazer. Já nascera assim. Não
se pode alterar o que a Natureza criou.

     Sempre que recebia visitas ou fazia festas em minha
casa, o Cusco metia-se detrás da porta à espera que os
convidados entrassem.

     Os convidados entravam, olhavam para ele e depois
diziam sempre a mesma lengalenga – “Que gatinho tão
lindo, é um doce de animal”.

     Se o conhecessem tão bem quanto eu, logo saberiam o
porquê de eu estar sempre a franzir a testa quando diziam
que ele era um doce de animal. Lá lindo era, mas um doce
de animal… não me parece. Logo saberiam o porquê de eu
lhes dizer para terem cuidado com o que diziam. Era
escusado. Cusco com o seu pêlo comprido, a sua cara
arredondada, a sua cauda felpuda, e os seus olhinhos azuis,
consiga fazer qualquer um apaixonar-se por si à primeira
vista.

     Lembro-me muito bem de um dia em que os meus
pais tinham decidido celebrar o meu décimo segundo
aniversário em casa. Eu odiava quando faziam isso, dizia-
lhes sempre:



                                                          7
-Porque não posso antes ir ao cinema com os meus
amigos!? Porque tenho eu de aturar os beijos molhados e os
apertos de mão estranguladores dos tios e dos avôs? Porque
não me deixam celebrar o meu aniversário à minha
maneira?! Porque tem que ser sempre tudo como vocês
querem?

    Era desnecessário, não valia a pena usar a minha
cultura em argumentos inúteis. Sei que sim. Sei que tinha
que ser sempre tudo à maneira dos meus pais, nunca à
minha.

    Achavam que era irresponsável da sua parte se me
deixassem ir passear sem a sua super vigilância. Eu pedia-
lhes sempre uma oportunidade para poder provar que
aquilo que diziam era mentira; que eu já era crescido e que
só precisava que me dessem uma oportunidade para poder
demonstrar o que dizia.

    E eles lá me diziam fitando-se um ao outro como se
falassem por código:

    -Nós acreditamos em ti. Sabemos que és responsável e
que já não és nenhuma criancinha. Nós só não queremos
deixar-te ir porque ambos sabemos que te podes perder e
que existem por aí muitos rufias capazes de te magoar.

                                                          8
Sabia que tinham ganho a discussão. Se argumentasse
mais alguma desculpa para tentar festejar o meu
aniversário à minha maneira, sem que eles estivessem
sempre a vigiar-me como se fossem duas aves de rapina,
teria levado uma bela palmada. Ou pior ainda, ficar sem
jogar “Playstation” durante uma semana – era o castigo
mais provável e habitual - isso sim, isso seria um castigo
bem pior do que levar umas boas palmadas.

     Que mais poderia eu fazer a não ser refugiar-me no
meu quarto. Ao menos sabia que estaria lá o Cusco à minha
espera. Sabia também que ele se sentia triste quando me via
triste e isso deixava-me ainda mais triste. Pelo que, antes de
abrir a porta do quarto, limpava sempre as lágrimas para
que ele não me visse a chorar. Odiava vê-lo triste por minha
causa.

     Nessa mesma noite, nesse mesmo aniversário saí do
quarto seguido por Cusco e desci as escadas para receber os
convidados. Lembro-me muito bem do momento em que
pisei o primeiro degrau e qual foi a minha surpresa quando
vi que os meus primos também tinham vindo. Tínhamos os
mesmos gostos e dávamo-nos sempre muito bem. Desci as
escadas a correr e por pouco não me estatelei nos últimos
degraus.
                                                            9
Se não me falha a memória, todos eles vestiam longos
casacos e usavam cachecóis. Devia estar mesmo muito frio.
Afinal, estávamos já no Inverno e o canal de meteorologia
previra grandes nevões para aquela semana.

     Cumprimentei os meus primos – tantas saudades que
eu tinha deles – e depois o resto da família.

     Como é óbvio, Cusco seguiu-me e foi fazer o seu ritual
do costume, cheirar os recém-chegados - digamos que essa
era a sua maneira de receber as visitas.

     Também sabia que ele não iria ficar por ali. Sabia que
ele tinha alguma na manga… e não é que tinha mesmo.

     Quando a minha tia se agachou para lhe dar uma
festinha, adivinhem o que ela disse. Como já era de esperar,
contribuiu para a divulgação da lengalenga já tão bem
conhecida:

     -Que gatinho tão lindo, é um doce de animal.

     E lá pensei eu para mim:

     -Será que todas as pessoas que viam o pobre animal -
que de pobre não tinha nada pois no Natal até recebia mais
presentes do que eu - tinham que dizer sempre a mesma
coisa?

                                                          10
Será que nunca ouviram aquele provérbio que diz:
“Nunca julguem um livro pela capa”?

    Sabia que ela não me iria prestar atenção. Mesmo
assim achei melhor avisá-la.

    Eu, por outro lado, quando vira aquele gato pela
primeira vez há já uns quantos meses atrás, soube logo que
ele era matreiro. Ele a mim não me enganava com aquele ar
fofo e com os seus grandes olhos azuis.

    E não é que acertei? Todos os que o viam diziam-me
que era um sortudo por ter um gato como aquele. Eu bem
lhes dizia que aquela história estava muito mal contada. Ele
não era nada do que pensavam.

    A minha tia foi uma das que não quis acreditar em
mim. No momento em que ela lhe fora fazer a tal festinha,
ele atirou-se para cima da sua cabeça com as garras bem
afiadas e sobressaídas. A coitada nem teve tempo de reagir.
Ele era um daqueles gatos que adoravam todo o tipo de
brinquedos, quer seja um rato de brincar, um novelo de lã
ou até mesmo a peruca da minha tia.

    Eu ri-me. Tinha-a avisado acerca das consequências
mas ela não quis saber.


                                                          11
Os meus pais repararam e começaram a ralhar comigo.
Era impossível não rir numa situação daquelas, mesmo
impossível. Ela tinha ficado careca de um momento para o
outro.

     Recordo-me muito bem de ter ficado de castigo
durante o resto do dia. Tive que ir para o meu quarto que
ficava no segundo andar e nem pude provar o delicioso
jantar que a minha mãe preparara. Como sempre, Cusco
acompanhou-me. Conseguia ver lacunas de satisfação nos
seus bigodes e no seu focinho empinado.

     -Isto é tudo culpa tua! – Disse-lhe enquanto subíamos
os degraus de madeira que chiavam a cada passo que
dávamos. – Agora, vou ter que passar o resto do meu
aniversário fechado no quarto, não vou poder estar lá em
baixo a conversar com os meus primos e nem vou poder
festejar o meu próprio aniversário.

     Não me ligou nenhuma. Como sempre, fez de conta
que não era nada com ele e virou-me as costas.

     -Nem sabes a sorte que tens! – Pensei eu cá para mim.

Entrei no meu quarto e fechei-lhe a porta mesmo diante do
focinho.


                                                         12
Como é que aquele gato poderia ter o descaramento de
querer entrar no meu quarto depois do que me fizera
passar. Nem pensar.

    Recostei-me sobre a minha cama.

    Passado    um     pouco,   comecei   a   ouvir   grandes
gargalhadas vindas do andar de baixo. Estavam todos
muito alegres, já se deviam ter esquecido do aniversariante
abandonado – Eu.

    Apesar de estar muito frustrado, decidi não pensar
mais no assunto. Logo iria ver se os meus pais teriam a lata
de me vir pedir desculpa. Não tinha sido o único a rir-me,
os meus primos também se riram e a eles não fizeram nada.

    Fixei os olhos no tecto e comecei a imaginar como seria
ter uma vida longe daquela família, longe daquela injustiça,
longe daquele gato descarado. Tentei imaginar-me em
diferentes situações mas em todas elas aparecia o meu
maior amor-ódio, o Cusco. Deixei esses pensamentos de
parte e comecei a pensar como seria se em todo o Universo,
só existíssemos eu e ele? Como seria a vida se só
existíssemos nós os dois? Ele não teria ninguém para
enganar e eu não teria ninguém para me meter de castigo.



                                                          13
Penso que poderíamos viver em paz, mas só por uns
tempos.

     Esses pensamentos desvaneceram-se logo na minha
cabeça assim que ouvi um som muito semelhante a um
ramalhar vindo de um dos cantos inferiores da porta. Fui
ver o que seria.

     Abri a porta muito devagar na esperança de que
fossem os meus primos. Olhei em redor mas não avistei
ninguém. Depois olhei um pouco mais para baixo e lá
estava Cusco. Tocava-me levemente com a pata miando
baixinho.

     Olhei-o de lado durante instantes e pensei:

     -O que fazes tu aqui, vens pedir desculpa? Não sei se
te perdoo. – Começou a olhar-me com aqueles olhinhos que
costumava     fazer   quando    estava   muito     triste   ou
arrependido. – Vá, entra. Eu desculpo-te.

     Comecei a ouvir, vindos do andar de baixo, pequenos
sussurros que pareciam dizer como a comida estava
agradável e como tinham adorado o tempo ali passado.
Imagino que sim. De mim ninguém se lembrou. Ouvi a
porta de entrada fechar-se e, momentos depois, fez-se
silêncio.
                                                            14
Regressei ao meu quarto e tranquei a porta.

      Coloquei-o no meu colo e sentei-me na extremidade da
cama.

      Ele parecia perceber o quanto eu estava a sofrer por ter
que passar ali o meu aniversário. Era um dia muito
especial, era um dia em que se celebrava o meu nascimento,
um dia que só é comemorado uma vez por ano. O pior de
tudo é que aquele era o aniversário mais importante de
todos! Era o aniversário em que se comemorava os meus
doze anos.

      Sentado sobre as minhas pernas dormia Cusco
ronronando. Comecei a chorar. Mas por que é que eu
haveria de passar o meu aniversário com um gato? Uma
lágrima caiu-lhe sobre o pêlo. Ele acordou e fitou-me de
relance. Fez de novo aqueles olhinhos que só ele sabia fazer.

      Fixei nele o meu olhar:

      -Não faças isso agora. Assim deixas-me ainda mais
triste!

      Ele soltou um pequeno miado e pouco depois,
começou a lamber-me as mãos.



                                                           15
-Não sei como é que consegues ser tão temperamental.
Numas vezes viras-me as costas, noutras lambes-me! És um
gato muito estranho, sabias? – Murmurei pensando que
talvez ele me fosse entender.

     E não é que entendeu mesmo! E até pareceu ter levado
a mal. Pôs-se em posição de ataque e depois atirou-se para
cima de mim. Como se atrevia ele a atacar-me depois da
situação em que me tinha posto?

     Dei-lhe uma pequena bofetada mas imediatamente me
arrependi. Nunca gostei de lhe bater, apesar de às vezes
saber que ele bem merecia umas belas palmadas. Lembro-
me muito bem de ter lido um livro da biblioteca da minha
escola que era sobre animais de estimação mas só falava de
gatos. Dei-lhe uma rápida vista de olhos e em quase todas
as páginas li que os gatos não aprendem nada se lhes
batermos, apenas ficam muito amuados e tristes connosco.

     Pela maneira como ele me fitou, vi que não tinha
ficado nada satisfeito e que se sentira da mesma maneira
que como o livro dizia.

     Não gostei nada de lhe ter batido e aposto que nem ele
gostou.

     -Desculpa. – Disse eu fazendo-lhe festas.
                                                         16
Deitei-o sobre a cama e comecei a esfregar-lhe a
barriga freneticamente. Sabia que era aí onde ele sentia
muitas cócegas. Ambos riamos, eu ria à minha maneira e
ele à sua.

     Estávamos já muito cansados de tanto brincar.
Olhamo-nos nos olhos durante instantes. Depois fechámo-
los e deixámo-nos dormir. Comecei a sonhar. E penso que
Cusco também. Normalmente, quando me deitava junto
dele, tinha sempre sonhos em que ambos aparecíamos. O
estranho é que isso nunca acontecia quando ele não estava
por perto. Acordávamos quase sempre à mesma hora e
quase sempre ele ficava a olhar para mim estupefacto como
se estivesse a sorrir. Sei que quando o sonho não era lá
muito bom, ele acordava, virava-me as costas e saia do
quarto abanando o rabo. Penso que o que nos permitia
conviver juntos no mesmo sonho era o forte laço de
amizade que nos unia.

     Porque sim. Porque apesar de nem sempre nos darmos
bem e por quase sempre achar que ele era um gato matreiro
e aldrabão, sabia que ambos sentíamos um grande amor e
uma grande amizade um pelo outro. E estes sentimentos
eram sentimentos que não se demonstravam muito no
nosso dia-a-dia mas sim, nos nossos sonhos. Desde que me
                                                       17
apercebi que ambos partilhávamos este dom, decidi
aproveitá-lo ao máximo. Durante as noites que se
sucederam, começámos a dormir juntos, começámos a
poder voar em conjunto, começámos também a poder dar
longos passeios pelos parques (coisa impossível na vida
real devido aos cães que por lá andavam) e a puder rebolar
por grandes colinas verdejantes e floridas.

     Mas um sonho que nunca esquecerei, foi o sonho deste
dia, o dia do meu décimo segundo aniversário. Foi o sonho
em que conhecemos mais alguém. Coisa rara, pensávamos
que só nós tínhamos esta habilidade mas parece que
estávamos enganados.

     Nesse mesmo sonho apareceu também um gato. Mas
um gato muito diferente de Cusco. Deveriam ter
aproximadamente a mesma idade. À primeira vista,
pareceu-me um gato vadio. Tinha o pêlo curto e negro, uma
cauda comprida e os seus olhos eram amarelo-torrados.

     Também ele pareceu muito admirado por nos ver ali.

     Ajoelhei-me e comecei a chamá-lo. Fiz pequenos
gestos com as mãos para o tentar atrair. Notei que ele tinha
ar de ser um gato abandonado, um gato triste e solitário.



                                                          18
Olhava-nos de lado pensando se seriamos amigos ou
apenas intrusos no seu sonho.

     Não sei lá muito bem porquê, mas quando eu e Cusco
sonhávamos, imaginávamos sempre sítios bonitos, sítios ao
ar livre, sítios em que na vida real nunca poderíamos estar
ou até mesmo conviver. Quase sempre sonhávamos com
grandes parques verdes nos quais podíamos fazer todo o
tipo de brincadeiras.

     O que eu estou a querer dizer é que todos os sonhos
que tínhamos provinham da nossa imaginação e acho que
nenhum de nós poderia ter imaginado um sonho como
aquele. Encontrávamo-nos numa pequena rua com um
aspecto abandonado. As casas não tinham portas, os vidros
das janelas estavam partidos, as paredes rachadas assim
como a estrada. Os caixotes de lixo transbordavam.

     No geral, acho que posso dizer que aquele era um sítio
triste, um sítio sem vida, um sítio cheio de mágoa e solidão.
O ar estava impregnado por um suave odor a ovos podres,
um odor a enxofre.

     Olhei Cusco nos olhos e apercebi-me que ambos
partilhámos a mesma ideia: Aquele não era o nosso sonho.



                                                          19
Tínhamos ido parar ao sonho daquele gato preto. -Mas
como? – Era a pergunta que se fazia soar nas nossas mentes.

     Decidi não ir ter com ele. Penso que seria mal-educado
da minha parte visto que não sabíamos nada acerca daquele
gato e nem acerca dos seus sonhos.

     Decidi examinar por instantes a pequena ruela onde
nos encontrávamos. Quando olhei novamente para Cusco,
este fixava o olhar no outro gato.

     -Que foi? – Perguntei-lhe sem obter resposta.

     Ambos os gatos se entreolhavam. Pareciam conhecer-
se há já muito tempo.

     Como já era costume, Cusco empinou o focinho
tentando cheirar algo de novo.

     Finalmente descobrira o tal cheiro que há tanto
ansiava encontrar. O seu pêlo eriçou-se e ele começou a
saltitar. Correu em direcção ao outro gato e quando lá
chegou começou a cheirá-lo.

     Levei as mãos à cabeça e pensei:

     -Porque será que este gato tem sempre estas manias?
Será que não consegue tentar ser um gato normal como


                                                         20
todos os outros gatos pelo menos uma vez na vida. Mas que
posso eu fazer? Ele nunca bateu lá muito bem dos carretos.

     Ordenei a Cusco que parasse mas ele não me deu
ouvidos.

     O outro gato pareceu não se importar muito e
começou também a cheirá-lo.

     -Afinal já não és o único, meu amigo, parece que
conseguiste encontrar a tua alma gémea. – Sei que Cusco
conseguiu entender-me quando disse isto pois fitou-me de
soslaio e eu consegui notar felicidade no seu olhar.

     Sei que o outro gato também o sentiu. Sei que sentiu a
mesma ligação que Cusco sentira, pois o sonho começou a
tornar-se, de uma certa maneira, mais alegre e harmonioso.

     Desviei o meu olhar dos dois gatos e observei em
redor. A pequena rua ia, aos poucos, transformando-se
num local sem lixo, sem vidros partidos, sem rachas nas
paredes. Debaixo dos meus pés, por entre o alcatrão,
começaram a brotar pequenos rebentos de todo o tipo de
plantas. Todos os edifícios começaram a ficar cobertos por
grandes e vistosas trepadeiras. Os passeios transformaram-
se em pequenos e cristalinos ribeiros. Árvores enormes


                                                         21
irromperam de todos os cantos e as suas copas atingiram as
nuvens.

     Aquele local ficou soberbo, magnífico. Quem diria que
uma tão pequena e suja rua pudesse dar origem a uma tão
imponente e magnífica floresta.

     Fixei novamente o meu olhar em ambos os gatos mas
quando o fiz, eles já lá não estavam. O local onde se
situavam estava cercado por grandes arbustos que me
impediam de ver fosse o que fosse.

     Eu estava no meio de um labirinto. Um labirinto do
qual não conseguia ver escapatória possível.

     De repente surgiu uma pequena sombra mesmo à
minha frente. A sombra aproximou-se e vi que era o gato
preto. Deveria querer brincadeira.

     Desatei a correr atrás dele e quando o estava quase a
alcançar… desapareceu.

     -Ele ainda agora aqui estava. Onde se terá metido? –
Pensei.

     Olhei em redor mas já não o consegui ver em lado
nenhum. Detrás de mim, soou um pequeno “Miau”.



                                                        22
Fui ver o que seria e foi então que vi ambos os gatos a
observarem-me. Mas como era possível. Ainda agora
acabara de desaparecer diante de mim. O gato preto
pareceu esboçar um pequeno sorriso de satisfação.

     -És um gato muito matreiro. – Disse-lhe – Vou
começar a chamar-te Manhoso. Espero que não te importes.

     E assim foi. Passámos todo o dia – ou sonho – a brincar
por entre aquela gigantesca floresta.

     Brincámos às escondidas, à apanhada e à brincadeira
preferida de Cusco, às cócegas.

     O sol já se punha.

     Estávamos estafados de tanto brincar e decidimos
relaxar um pouco sobre aquela relva fresca acabada de
nascer.

     Eu e Cusco começámos a desenvolver uma enorme
amizade para com aquele gato. Naquele momento único,
naquele   pôr-do-sol,     sentimo-nos   como   se   já   nos
conhecêssemos há muito tempo.

     Os laços de amizade que criei para com aqueles dois
gatos foram laços que nunca criei com mais ninguém, nem
mesmo com colegas ou até com os meus primos.

                                                          23
-O que achaste deste sonho, Cusco? - Perguntei ao meu
já tão conhecido companheiro. – Não achas que foi o
melhor de todos?

     Cusco grunhiu notando-se em si um tom alegre, um
tom de alguém que acabara de fazer um amigo para toda a
vida.

     -Eu penso o mesmo. – Afirmei. – Espero que isto dure
para sempre.

     Quando acabei de proferir estas palavras, apercebi-me
de que aquele nosso desejo era impossível de se concretizar.
Estávamos num sonho. Como seria possível fazer com que
aquela amizade pudesse durar para sempre. Era impossível
e nenhum de nós podia fazer nada para o alterar ou evitar.

     Comecei a sentir-me muito triste e apeteceu-me
chorar. Não consegui. O meu corpo perdera todas as suas
forças. Comecei por me sentir pesado, depois senti preguiça
e por fim sono. Fechei os olhos e adormeci.

     Comecei a sentir algo a saltar sobre mim. Acordei
muito preguiçosamente e bocejei. Depois vi que era Cusco
quem me acordara:




                                                          24
-Sai daqui. Sai, não me chateies! – Disse-lhe
escondendo-me debaixo dos lençóis.

     Tentei adormecer de novo mas não consegui. Não
sabia bem porquê mas depois lembrei-me.

     Dei um sobressalto e olhei em redor tentando
vislumbrar a maravilhosa floresta onde eu, Cusco e o outro
gato brincávamos antes de termos adormecido.

     Apercebi-me que tudo aquilo tinha sido apenas uma
ilusão, mais um simples e inútil sonho. Os sonhos sempre
foram e sempre serão apenas mundos imaginários.

     Olhei para Cusco e as lágrimas começaram a
escorrerem-me pelas faces. Comecei a notar em si tristeza.

     Deitei-me ao seu lado e disse-lhe:

     -Não fiques assim. Tu sabes que os nossos sonhos,
apesar de muito reais, nunca poderiam tornar-se realidade.

     Cusco olhou para mim e miou. Depois desviou o olhar
na direcção da porta e eu fui abri-la.

     Ambos saímos para o corredor e o Cusco sentou-se a
meu lado olhando para a porta de entrada.

     Pouco depois a maçaneta rodou e a porta abriu-se.


                                                             25
Vi pequenos flocos de neve a entrar para o interior e
arrepiei-me quando senti uma brisa gélida subir as escadas.

    Olhei novamente na direcção da porta de entrada e o
meu olhar deparou-se com um vulto envolto por um
comprido sobretudo.

    Depois o vulto virou-se na minha direcção, tirou o
capuz da cabeça e disse-me:

    -Olha o que tenho aqui. – Vi que era a minha mãe.
Devia estar arrependida depois do que me fizera na noite
anterior e decidiu compensar-me pela manhã.

    Cusco olhou para mim e senti o que ele queria dizer.
Queria dizer-me apenas que continuava triste e que não era
uma simples prenda de aniversário que me iria alegrar.
Não que ele quisesse que eu me sentisse mal comigo
mesmo. Apenas queria que eu não esquecesse aqueles
mágicos momentos que tínhamos passado com Manhoso.
Sabíamos que haviam sido muito poucos mas também
sabíamos que tinham sido aproveitados ao máximo,
tinham-se tornado especiais, únicos.

    Depois o Cusco fixou novamente o seu olhar na minha
mãe. Mas desta vez estava contente. O seu pêlo eriçou-se e


                                                         26
o seu focinho parecia querer saltar de alegria. Sentia-se
como se sentira quando conhecera Manhoso.

     Olhei também para a minha mãe. Vi-a a abrir o fecho
do longo sobretudo e olhando para o seu interior disse:

     -Espero que gostes. É um pouco pequena mas aqui
estás muito melhor do que na rua.

     De dentro do casaco saltou um gato preto. Um gato
que à primeira vista me pareceu muito familiar. Eu e Cusco
entreolhámo-nos e esboçámos um largo sorriso.

     Ambos tivemos a mesma ideia. Queríamos ir receber o
nosso já tão conhecido amigo. O Manhoso.

     Descemos as escadas a correr e quando chegámos
perto de Manhoso, atirámo-nos contra ele de braços
abertos.

     -Ui. Ainda agora ele chegou a casa e vocês já o estão a
assustar.

     Eu e Cusco olhámo-nos e rimo-nos. Como sempre, eu
ri-me à minha maneira e ele à sua.

     Eu sei e Cusco também o sabia. Nós não o estávamos a
assustar. Já o conhecíamos e ele já se tinha tornado um
membro oficial desta família.
                                                          27
Depois apercebi-me do enorme erro que cometera. Das
terríveis coisas que dissera a Cusco:

     “-Não fiques assim. Tu sabes que os nossos sonhos,
apesar   de   muito    reais,   nunca   poderiam   tornar-se
realidade.”

     Como fui eu capaz de lhe dizer aquilo? Como fui
capaz de lhe dizer que os sonhos não se podem tornar
realidade. Como pude ter sido uma tão má pessoa e um tão
mau amigo?

     Naquele momento o Cusco sabia e sempre soube que
todos os nossos sonhos, apesar de ilusões vindas da nossa
imaginação, têm o poder de se concretizar. Só precisamos
de batalhar e de continuar a acreditar. Acreditar em nós.
Acreditar que tudo é possível. Não existem barreiras
suficientemente fortes para nos impedir de continuar a
lutar pelo que queremos, pelo que desejamos, pelos nossos
objectivos.

     Esta é uma das razões pela qual eu adoro e sempre
adorei Cusco. Ele nunca deixou de acreditar. Nunca deixou
de cheirar. Todos os dias acordava e ia vaguear por toda a
casa à procura de um novo odor. Podia ser um gato
matreiro e muitíssimo curioso mas era também um gato

                                                         28
muito amoroso e além de tudo um guerreiro, um lutador.
Conseguira sobreviver a um Inverno gelado, um dos mais
frios de sempre, quando ainda era um pequeno gatinho, um
gatinho que procurava encontrar o seu lugar e o seu
conforto junto de uma família que o acarinhasse e que lhe
desse todo o amor do Mundo.

     Era assim que eu via Cusco. Como um amigo que
estaria sempre a meu lado nos momentos mais difíceis e
que estaria sempre lá para me acordar ou até mesmo para
conversar comigo quando mais ninguém o quisesse fazer.

     O dia em que Manhoso entrou em nossa casa foi o dia
em que tomou o seu lugar na família.

     Todos os dias depois da escola, quando chegava a
casa, ia brincar com o Cusco e com o Manhoso.
Aproveitávamos      sempre   ao   máximo   o   tempo   que
passávamos juntos. Para nós, a altura mais valiosa do dia
era quando a noite se instalava. Quando chegava a hora de
nos irmos deitar.

     Todas as noites dormíamos juntos e todas as noites
sonhávamos com novos mundos mágicos nos quais
fazíamos todo o tipo de brincadeiras e travessuras. Lembro-
me de que em alguns desses sonhos, Cusco e Manhoso

                                                         29
uniam forças e faziam a minha parte do sonho tornar-se
num completo pesadelo.

     As   suas   travessuras   manifestavam-se   das   mais
diversas maneiras. Podiam ir desde a cair-me uma
montanha de peixes em cima até a vir um enorme grupo de
ratos atrás de mim.

     Mas enfim, fizessem o que fizessem, eu nunca os iria
castigar por isso. Afinal, estávamos a sonhar. Quando
acordasse não iria estar coberto de ratos e nem cheiraria a
peixe podre. Por isso não me importava. Se isso os fazia
sentirem-se felizes então também eu me sentia feliz.
Aqueles dois gatos eram tudo para mim.

     Os anos foram passando. As nossas brincadeiras
tornaram-se cada vez menos habituais assim como os
nossos sonhos.

     Eu cresci, tornei-me num adolescente e como todos os
adolescentes, comecei a sair. Deixei de ser aquela criança
que adorava sonhar, que adorava imaginar e até mesmo
voar. Comecei a sentir-me cada vez mais distante dos meus
dois amigos. Comecei a sentir a nossa amizade perder o seu
valor.



                                                         30
Cada vez mais comecei a ignorar os pedidos de Cusco
e de Manhoso para participar nas suas brincadeiras. Deixei
de brincar às escondidas e até mesmo à brincadeira
preferida de Cusco, às cócegas.

     Quando entrei para a Universidade tive que deixar os
meus fiéis companheiros com os meus pais. O apartamento
que alugara não permitia a entrada ou a residência de
animais de estimação.

     Apesar de tudo, todos os fins-de-semana ia visitar os
meus pais e os meus dois amigos.

     Passado algum tempo, também as visitas se foram
tornando cada vez menos habituais.

     Certo dia, estava eu dentro da sala de aula quando o
meu telemóvel começou a tocar. Coisa rara de acontecer.

     Pedi autorização para sair da aula e poder atender.
Quando cheguei ao corredor, olhei para o ecrã e vi o
número de telefone da casa dos meus pais.

     -O que terá acontecido? Nunca costumam telefonar-
me em tempo de aulas. – Pensei.

     Atendi e fiquei em choque quando ouvi a minha mãe,
muito histericamente, dizer-me:

                                                          31
-Vem depressa, o Manhoso está muito mal. Tens que
levá-lo ao veterinário.

     Nem consegui regressar para a sala de aula. As
lágrimas escorriam-me pela cara.

     Quando cheguei a casa, deparei-me com a minha mãe
à porta de entrada com o Manhoso nos braços. Ela estava
pálida. Não reagiu à minha chegada. Corri na sua direcção
e tomei Manhoso nos braços. Ele olhou para mim, miou
baixinho e depois soltou o seu último suspiro.

     Perdi as forças, o meu corpo ficou inerte. Ajoelhei-me
e apertei o Manhoso contra o peito.

     Cusco correu na nossa direcção miando alto. Nem
consegui olhar para ele. Como é que iria explicar-lhe que o
seu amigo já não poderia mais brincar connosco, como é
que iria explicar-lhe o facto de os nossos sonhos nunca mais
poderem ser partilhados com Manhoso?

     Quando o Cusco chegou perto de nós coloquei o corpo
de Manhoso, já sem vida, no chão. Cusco olhou na sua
direcção e depois olhou para mim. Quando se apercebeu do
sucedido olhou novamente para Manhoso.




                                                          32
Fui incapaz de lhe dizer fosse o que fosse. Não tive
qualquer reacção quando vi Cusco aproximar-se dele. Só
quando ele começou a amassar o corpo de Manhoso e a
miar baixinho aos seus ouvidos é que me desfiz em
lágrimas.

     Cusco rugia como um leão. Como poderia o seu amigo
estar morto. Como é que isso fora possível. Ainda tinham
muitos sonhos para partilhar e muitas brincadeiras para
concretizar.

     O dia tornou-se triste e cheio de mágoa. Fez-me
recordar o sonho em que conhecemos Manhoso.

     Manhoso foi enterrado no nosso quintal junto de uma
macieira que ele adorava trepar.

     A morte de Manhoso fora um grande choque para
toda a família e eu decidi mudar-me para casa dos meus
pais durante uns tempos.

     Cusco e eu sempre adorámos sonhar juntos mas
ambos tínhamos decidido nunca mais sonhar. Apesar de
em sonhos podermos fazer tudo aquilo que nos apetecesse,
as coisas tinham mudado. A morte de Manhoso não só
deixou um enorme vazio nos corações de todos nós como
também deixou para trás um vazio nos nossos sonhos.
                                                       33
Eu e Cusco bem tentámos partilhar sonhos umas
quantas vezes mas sempre que o fazíamos o sonho
desvanecia-se e acordávamos. Ambos sabíamos a razão do
sucedido, estava bem clara nas nossas mentes. O Manhoso
era indispensável para podermos sonhar. Aquele gato preto
de olhos amarelo-torrados dava alegria aos nossos sonhos.
Desde o dia em que o conhecemos tudo tinha mudado. Ele
trouxera, para esta família, alegria e felicidade. A dupla que
eu e Cusco formávamos tinha ganho um novo elemento.
Um elemento que instalou o seu amor nos nossos corações
de maneira a que nunca pudesse ser apagado ou
substituído.

     Estávamos na Primavera, já se tinham passado uns
quantos meses depois da morte de Manhoso.

     Cusco já não era aquele gato jovem cheio de energia e
adrenalina. Estava a ficar velho. Os anos que passaram
atingiram-no de tal forma que ele mal se conseguia mexer
durante os meses mais frios. A idade impedia-o de trepar às
árvores e os seus ossos também já não eram os mesmos. Já
não tinha aquele andar vaidoso e glorificante. Tinha um
andar desengonçado, cambaleante, um andar muito
semelhante àquele de quando ainda era um pequeno
gatinho, de quando ainda era bebé. Também perdera
                                                           34
aquele espírito jovem, extrovertido e brincalhão, tinha
agora um espírito mais descontraído e calmo, um espírito
sábio e sereno.

     Nunca me esquecerei daquela Primavera, foi a estação
em que Cusco partiu. A época em que faleceu.

     Tudo aconteceu um dia, quando entrei em casa e
diante de mim, no chão, encontrei Cusco a contorcer-se.
Tinha perdido o controlo da bexiga. Debatia-se e lutava
pela vida que não queria abandonar.

     Agachei-me e acariciei-o. Ele retribui-me com um
olhar. Um olhar suplicante que implorava por respostas.
Um olhar que parecia querer dizer:

     -Por que me está acontecer isto? Não percebo. Por
favor, ajuda-me.

     Eu não sabia como ajudá-lo. Não sabia o que fazer.

     Agarrei na sua manta preferida e embrulhei-o com ela.
Encostei-o ao peito e fui directo para a clínica veterinária.

     Quando lá cheguei, ultrapassei todos os pacientes e
exigi atendimento imediato a uma das funcionárias. Ela
apercebeu-se do meu estado e não perdeu tempo a
encaminhar-me ao consultório.

                                                                35
O veterinário examinou-o, suspirou e depois deu-me a
má notícia:

     -Ele está a sofrer muito. Não há nada a fazer. Posso
tentar fazer com que ele sobreviva durante mais alguns dias
mas ele irá estar com muitas dores.

     Olhei Cusco nos olhos durante algum tempo e encostei
a boca ao seu ouvido:

     -Os sonhos são algo poderoso, estão repletos de coisas
boas. Foste tu quem me ensinou isso. Esta nossa jornada foi,
e sempre será, um sonho tornado realidade. Irei sentir
muitas saudades tuas companheiro. Nunca te esqueças que
sempre terás um lugar dentro do meu coração. Manhoso
está à tua espera para poderem brincar, correr e saltar. Está
ansioso para que possam fazer todo o tipo de brincadeiras e
travessuras. Sinto muito por vos ter abandonado nos vossos
momentos finais, por vos ter ignorado quando mais
precisaram de mim. Espero que me perdoes amigo.

     Desviei o meu olhar de Cusco e limpei as lágrimas.
Virei-me para o veterinário e disse-lhe:

     -Não quero que ele tenha dores. Não quero que sofra
mais.


                                                           36
Apertei o Cusco nos braços e acariciei-o.

     O veterinário preparou a injecção e Cusco começou a
arranhar-me tentando soltar-se. Assim que sentiu a
picadela, Cusco rugiu aterrorizadamente e olhou para mim
com o olhar suplicante como se estivesse a dizer:

     -Porque fizeste isto? Já não me amas?

     Depois fechou os olhos e partiu.

     Nunca esquecerei aquele rugido. Irei recordá-lo para
sempre. Sei que fiz o mais acertado mas também sei que
Cusco era um guerreiro, um batalhador. Ele não queria
desistir assim. Queria provar-me que ainda não estava
acabado, que ainda conseguia correr e trepar às árvores
como dantes, que ainda tinha muito para demonstrar.

     Enterrei-o ao lado de Manhoso, debaixo da mesma
macieira.

     Poucos dias depois, quando ainda me sentia muito
afectado pela morte de Cusco, fui ao local de trabalho do
meu pai, uma pequena e modesta livraria cuja clientela era
muito reduzida.




                                                        37
Assim que lá entrei, puxei um pequeno banco de
madeira e sentei-me debruçando-me sobre uma antiga
escrivaninha.

    Comecei a pensar nas brincadeiras que nós os três
fazíamos e isso deixou-me alegre. Mas quando esses
pensamentos se desvaneceram comecei a chorar.

    De repente as portas e as janelas abriram-se
bruscamente e um forte vento fez-se sentir por toda a
livraria. Do topo de uma estante de livros caiu uma
pequena folha de papel com algo escrito.



    Agarrei-a e li-a:



    “Nós, Cusco e Manhoso, oferecemos-te este pequeno
texto em nome da nossa eterna amizade, em nome de tudo
aquilo pelo que passámos:

    As nossas vidas junto de ti foram felizes e risonhas.
Queremos dizer-te que o mais importante para nós foi
poder conquistar a tua confiança e o teu amor. Podermos
oferecer-te a nossa lealdade foi tudo o que sempre
quisemos. Não damos valor a posses materiais. A única

                                                       38
coisa que ambos possuímos e à qual damos mais valor que
tudo o resto, é ao teu amor, o amor que nos ofereceste, um
amor que irá prevalecer nos nossos corações para todo o
sempre, o amor de um dono que não nos poderia ter amado
mais. Não te sintas triste, pois agora estamos felizes, não
sentimos dor nem desconforto. Sentimo-nos jovens como há
muito não nos sentíamos. Agora podemos brincar sem
parar. Agora somos livres para podermos correr e saltar
com o vento a bater-nos nos bigodes e a relva a fazer-nos
cócegas nas patas. Aqui, neste paraíso, ansiamos a tua
chegada. Ansiamos poder partilhar de novo, em conjunto,
os nossos sonhos. Sabemos que, porque partilhámos tantas
coisas juntos, não quererás viver o resto da tua vida com a
companhia de outro animal. Quando tomares essa medida
lembra-te. Lembra-te de não te privares do amor e da
amizade que outro companheiro te poderá trazer. Não
penses que assim poderias estar a substituir-nos porque
isso é impossível. Aquilo que nós partilhámos foi e sempre
será algo insubstituível, algo que nunca será esquecido por
nenhum de nós. Nunca digas que nos abandonaste nos
momentos mais difíceis porque tu não o fizeste. Tu fizeste
amigos, tu descobriste o poder do verdadeiro amor, tu
conheceste tudo aquilo que as pessoas têm de bom para


                                                         39
oferecer. Não nos poderias ter deixado mais orgulhosos!
Sempre estiveste connosco nos momentos mais difíceis e
sempre quiseste ouvir as nossas conversas.

     Acima de tudo lembra-te, querido amigo, que
estaremos sempre contigo, estaremos sempre no teu
coração, na tua mente e nas tuas memórias. Dizemos isto
pois aquilo que partilhámos foi algo especial, é-o hoje, sê-lo-
á amanhã e para todo o sempre. Se alguma vez sentires
uma pata tocar-te de madrugada ou ouvires um ronrom
durante a noite, acredita, no fundo do coração, que somos
nós a dizer-te olá.”



     Com todo o amor:



                       Cusco e Manhoso




                                                            40

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A história de Cusco e Manhoso, os gatos de Gonçalo

  • 1. Gonçalo Leandro 5/05/2011 1
  • 2. Esta é a história de dois gatos. Mas não pensem que são dois gatos quaisquer. Não. Eles são os meus gatos e chamam-se Cusco e Manhoso. E o meu nome… bem o meu nome é Gonçalo. Gonçalo Leandro para ser mais preciso. Tudo começou numa altura em que eu, não sei bem porquê, queria ter um animal de estimação. Parece que naquela idade tinha um fascínio por animais, especialmente por cães. Estava decidido. Nunca iria ter um gato. Sei que a minha mãe e o meu pai já tinham tido alguns e que todos eles tiveram um final infeliz. Lembro-me de uma gata cuja morte foi chorada pela minha mãe durante meses. Vi o quão triste a deixara a morte da sua gata, não queria passar pelo mesmo. Nessa altura eu acreditava que ter um animal que me pudesse entender e que quisesse brincar comigo toda a hora era o meu maior desejo. Simplesmente achava que se tivesse um animal de estimação, um amigo que estivesse sempre disposto a dar-me ouvidos, iria tornar-me num rapaz mais responsável e popular. 2
  • 3. Todos os dias pedia aos meus pais para me comprarem um cão mas eles diziam-me sempre tentando fugir à conversa: -Logo se vê. Eu não queria que logo se visse, tinha que ser no momento. Mas bem. Tive que me aguentar e puxar pela paciência, uma parte muito diminuta da minha personalidade. Um dia, quando essa ideia ainda estava bem viva na minha mente, tive um forte pressentimento de que o que eu há tanto tempo desejava, iria finalmente concretizar-se. O dia em que chegaria a casa e iria encontrar um grande cão sentado à porta de entrada que, ao ver-me, viria logo a correr para junto de mim. Estava com muita esperança porque sempre que tinha um pressentimento, era hábito este realizar-se. Saí da escola a correr e quando finalmente cheguei a casa não vi cão nenhum. A única coisa que vi à entrada de casa foi uma pequena caixa de cartão já velha e estragada colocada sobre a neve. 3
  • 4. Tive um grande desgosto mas sempre mantive a esperança de que o tal dia ainda estaria para chegar. Decidi ignorar a caixa. Sabia que o meu pai logo a retiraria do quintal quando passasse por ali. Mas no instante em que a contornei, ouvi um miado. Um miado baixinho e aflito que mais parecia o choro de um bebé. Aproximei-me da pequena caixa de cartão que estava coberta por flocos de neve e abri-a. Olhei para o seu interior e vi um pequeno gatinho de pêlo comprido e faces arredondadas, os seus olhos azuis reluziam como pequenos diamantes imaculados. Corri para dentro para avisar os meus pais. Eles vestiram os seus roupões e foram logo a correr para junto do pequeno gatinho. Olharam para o interior da caixa mas não viram gato nenhum. Ambos ficaram a olhar-me de lado e pelas suas caras, comecei a imaginar de imediato o que estariam a pensar: -Fizeste-nos vir para a rua neste frio!? Estamos em pleno Inverno e ainda por cima estamos de pijama! -Juro que vi aqui um gato. Era pequeno e tinha o pêlo muito comprido. – Disse-lhes eu sabendo que estava lúcido e que não tinha imaginado gato nenhum. 4
  • 5. Já sabia o que esperar. Por causa daquele maldito gato, eu ia agora ser repreendido. Semicerrei os olhos e encolhi os ombros. Olhei de relance para os meus pais e vi-os virarem-se na minha direcção. Fechei os olhos e pensei: -É agora. Esta vai doer. Já se tinham passado uns quantos segundos. O que se estava a passar? Porque é que ainda não estava a sentir as suas palmadas na minha pele congelada pelo frio? Tinha receio de abrir os olhos mas mesmo assim fi-lo. Olhei em frente e os meus pais já lá não estavam. -Devem estar com frio. – Murmurei. – Devem ter desistido da ideia de me repreenderem e decidiram ir para casa. Virei-me para trás e vi que não estava enganado. Iam ambos a correr em direcção a casa. Mas depois pararam, sentaram-se no pequeno degrau da entrada e disseram: -Parece que ele já fez questão de se hospedar. – Riam enquanto faziam festas num pequeno gatinho de pelo comprido e olhos azuis que se encontrava entre si. 5
  • 6. Nesse dia soube logo que o meu sonho de vir a ter um cão tinha ido por água abaixo. E foi assim que tudo começou. Passaram-se uns quantos meses e eu comecei a habituar-me à ideia de ter um gato como animal de estimação. Cusco sempre foi um gato muito brincalhão, amistoso e como o seu próprio nome o diz, muitíssimo curioso. Queria estar sempre a par das últimas novidades. Punha-se a cheirar todos os locais por onde passava para tentar descobrir um novo odor que lhe despertasse a atenção. Mas nada. Todos os odores que descobria eram-lhe familiares. Apesar de nunca encontrar nada de novo para o seu focinho poder apreciar, isso não o impedia de voltar a tentar. Todos os dias procurava, todos os dias cheirava, mas nunca encontrava nada. Era também um gato muito teimoso. Eu insistia dizendo-lhe para parar de procurar porque não valia a pena, nunca iria encontrar nada. Que poderia eu fazer, ele nunca me dava ouvidos. Estava sempre a ralhar com ele por ser tão teimoso e 6
  • 7. curioso, mas que haveria eu de fazer. Já nascera assim. Não se pode alterar o que a Natureza criou. Sempre que recebia visitas ou fazia festas em minha casa, o Cusco metia-se detrás da porta à espera que os convidados entrassem. Os convidados entravam, olhavam para ele e depois diziam sempre a mesma lengalenga – “Que gatinho tão lindo, é um doce de animal”. Se o conhecessem tão bem quanto eu, logo saberiam o porquê de eu estar sempre a franzir a testa quando diziam que ele era um doce de animal. Lá lindo era, mas um doce de animal… não me parece. Logo saberiam o porquê de eu lhes dizer para terem cuidado com o que diziam. Era escusado. Cusco com o seu pêlo comprido, a sua cara arredondada, a sua cauda felpuda, e os seus olhinhos azuis, consiga fazer qualquer um apaixonar-se por si à primeira vista. Lembro-me muito bem de um dia em que os meus pais tinham decidido celebrar o meu décimo segundo aniversário em casa. Eu odiava quando faziam isso, dizia- lhes sempre: 7
  • 8. -Porque não posso antes ir ao cinema com os meus amigos!? Porque tenho eu de aturar os beijos molhados e os apertos de mão estranguladores dos tios e dos avôs? Porque não me deixam celebrar o meu aniversário à minha maneira?! Porque tem que ser sempre tudo como vocês querem? Era desnecessário, não valia a pena usar a minha cultura em argumentos inúteis. Sei que sim. Sei que tinha que ser sempre tudo à maneira dos meus pais, nunca à minha. Achavam que era irresponsável da sua parte se me deixassem ir passear sem a sua super vigilância. Eu pedia- lhes sempre uma oportunidade para poder provar que aquilo que diziam era mentira; que eu já era crescido e que só precisava que me dessem uma oportunidade para poder demonstrar o que dizia. E eles lá me diziam fitando-se um ao outro como se falassem por código: -Nós acreditamos em ti. Sabemos que és responsável e que já não és nenhuma criancinha. Nós só não queremos deixar-te ir porque ambos sabemos que te podes perder e que existem por aí muitos rufias capazes de te magoar. 8
  • 9. Sabia que tinham ganho a discussão. Se argumentasse mais alguma desculpa para tentar festejar o meu aniversário à minha maneira, sem que eles estivessem sempre a vigiar-me como se fossem duas aves de rapina, teria levado uma bela palmada. Ou pior ainda, ficar sem jogar “Playstation” durante uma semana – era o castigo mais provável e habitual - isso sim, isso seria um castigo bem pior do que levar umas boas palmadas. Que mais poderia eu fazer a não ser refugiar-me no meu quarto. Ao menos sabia que estaria lá o Cusco à minha espera. Sabia também que ele se sentia triste quando me via triste e isso deixava-me ainda mais triste. Pelo que, antes de abrir a porta do quarto, limpava sempre as lágrimas para que ele não me visse a chorar. Odiava vê-lo triste por minha causa. Nessa mesma noite, nesse mesmo aniversário saí do quarto seguido por Cusco e desci as escadas para receber os convidados. Lembro-me muito bem do momento em que pisei o primeiro degrau e qual foi a minha surpresa quando vi que os meus primos também tinham vindo. Tínhamos os mesmos gostos e dávamo-nos sempre muito bem. Desci as escadas a correr e por pouco não me estatelei nos últimos degraus. 9
  • 10. Se não me falha a memória, todos eles vestiam longos casacos e usavam cachecóis. Devia estar mesmo muito frio. Afinal, estávamos já no Inverno e o canal de meteorologia previra grandes nevões para aquela semana. Cumprimentei os meus primos – tantas saudades que eu tinha deles – e depois o resto da família. Como é óbvio, Cusco seguiu-me e foi fazer o seu ritual do costume, cheirar os recém-chegados - digamos que essa era a sua maneira de receber as visitas. Também sabia que ele não iria ficar por ali. Sabia que ele tinha alguma na manga… e não é que tinha mesmo. Quando a minha tia se agachou para lhe dar uma festinha, adivinhem o que ela disse. Como já era de esperar, contribuiu para a divulgação da lengalenga já tão bem conhecida: -Que gatinho tão lindo, é um doce de animal. E lá pensei eu para mim: -Será que todas as pessoas que viam o pobre animal - que de pobre não tinha nada pois no Natal até recebia mais presentes do que eu - tinham que dizer sempre a mesma coisa? 10
  • 11. Será que nunca ouviram aquele provérbio que diz: “Nunca julguem um livro pela capa”? Sabia que ela não me iria prestar atenção. Mesmo assim achei melhor avisá-la. Eu, por outro lado, quando vira aquele gato pela primeira vez há já uns quantos meses atrás, soube logo que ele era matreiro. Ele a mim não me enganava com aquele ar fofo e com os seus grandes olhos azuis. E não é que acertei? Todos os que o viam diziam-me que era um sortudo por ter um gato como aquele. Eu bem lhes dizia que aquela história estava muito mal contada. Ele não era nada do que pensavam. A minha tia foi uma das que não quis acreditar em mim. No momento em que ela lhe fora fazer a tal festinha, ele atirou-se para cima da sua cabeça com as garras bem afiadas e sobressaídas. A coitada nem teve tempo de reagir. Ele era um daqueles gatos que adoravam todo o tipo de brinquedos, quer seja um rato de brincar, um novelo de lã ou até mesmo a peruca da minha tia. Eu ri-me. Tinha-a avisado acerca das consequências mas ela não quis saber. 11
  • 12. Os meus pais repararam e começaram a ralhar comigo. Era impossível não rir numa situação daquelas, mesmo impossível. Ela tinha ficado careca de um momento para o outro. Recordo-me muito bem de ter ficado de castigo durante o resto do dia. Tive que ir para o meu quarto que ficava no segundo andar e nem pude provar o delicioso jantar que a minha mãe preparara. Como sempre, Cusco acompanhou-me. Conseguia ver lacunas de satisfação nos seus bigodes e no seu focinho empinado. -Isto é tudo culpa tua! – Disse-lhe enquanto subíamos os degraus de madeira que chiavam a cada passo que dávamos. – Agora, vou ter que passar o resto do meu aniversário fechado no quarto, não vou poder estar lá em baixo a conversar com os meus primos e nem vou poder festejar o meu próprio aniversário. Não me ligou nenhuma. Como sempre, fez de conta que não era nada com ele e virou-me as costas. -Nem sabes a sorte que tens! – Pensei eu cá para mim. Entrei no meu quarto e fechei-lhe a porta mesmo diante do focinho. 12
  • 13. Como é que aquele gato poderia ter o descaramento de querer entrar no meu quarto depois do que me fizera passar. Nem pensar. Recostei-me sobre a minha cama. Passado um pouco, comecei a ouvir grandes gargalhadas vindas do andar de baixo. Estavam todos muito alegres, já se deviam ter esquecido do aniversariante abandonado – Eu. Apesar de estar muito frustrado, decidi não pensar mais no assunto. Logo iria ver se os meus pais teriam a lata de me vir pedir desculpa. Não tinha sido o único a rir-me, os meus primos também se riram e a eles não fizeram nada. Fixei os olhos no tecto e comecei a imaginar como seria ter uma vida longe daquela família, longe daquela injustiça, longe daquele gato descarado. Tentei imaginar-me em diferentes situações mas em todas elas aparecia o meu maior amor-ódio, o Cusco. Deixei esses pensamentos de parte e comecei a pensar como seria se em todo o Universo, só existíssemos eu e ele? Como seria a vida se só existíssemos nós os dois? Ele não teria ninguém para enganar e eu não teria ninguém para me meter de castigo. 13
  • 14. Penso que poderíamos viver em paz, mas só por uns tempos. Esses pensamentos desvaneceram-se logo na minha cabeça assim que ouvi um som muito semelhante a um ramalhar vindo de um dos cantos inferiores da porta. Fui ver o que seria. Abri a porta muito devagar na esperança de que fossem os meus primos. Olhei em redor mas não avistei ninguém. Depois olhei um pouco mais para baixo e lá estava Cusco. Tocava-me levemente com a pata miando baixinho. Olhei-o de lado durante instantes e pensei: -O que fazes tu aqui, vens pedir desculpa? Não sei se te perdoo. – Começou a olhar-me com aqueles olhinhos que costumava fazer quando estava muito triste ou arrependido. – Vá, entra. Eu desculpo-te. Comecei a ouvir, vindos do andar de baixo, pequenos sussurros que pareciam dizer como a comida estava agradável e como tinham adorado o tempo ali passado. Imagino que sim. De mim ninguém se lembrou. Ouvi a porta de entrada fechar-se e, momentos depois, fez-se silêncio. 14
  • 15. Regressei ao meu quarto e tranquei a porta. Coloquei-o no meu colo e sentei-me na extremidade da cama. Ele parecia perceber o quanto eu estava a sofrer por ter que passar ali o meu aniversário. Era um dia muito especial, era um dia em que se celebrava o meu nascimento, um dia que só é comemorado uma vez por ano. O pior de tudo é que aquele era o aniversário mais importante de todos! Era o aniversário em que se comemorava os meus doze anos. Sentado sobre as minhas pernas dormia Cusco ronronando. Comecei a chorar. Mas por que é que eu haveria de passar o meu aniversário com um gato? Uma lágrima caiu-lhe sobre o pêlo. Ele acordou e fitou-me de relance. Fez de novo aqueles olhinhos que só ele sabia fazer. Fixei nele o meu olhar: -Não faças isso agora. Assim deixas-me ainda mais triste! Ele soltou um pequeno miado e pouco depois, começou a lamber-me as mãos. 15
  • 16. -Não sei como é que consegues ser tão temperamental. Numas vezes viras-me as costas, noutras lambes-me! És um gato muito estranho, sabias? – Murmurei pensando que talvez ele me fosse entender. E não é que entendeu mesmo! E até pareceu ter levado a mal. Pôs-se em posição de ataque e depois atirou-se para cima de mim. Como se atrevia ele a atacar-me depois da situação em que me tinha posto? Dei-lhe uma pequena bofetada mas imediatamente me arrependi. Nunca gostei de lhe bater, apesar de às vezes saber que ele bem merecia umas belas palmadas. Lembro- me muito bem de ter lido um livro da biblioteca da minha escola que era sobre animais de estimação mas só falava de gatos. Dei-lhe uma rápida vista de olhos e em quase todas as páginas li que os gatos não aprendem nada se lhes batermos, apenas ficam muito amuados e tristes connosco. Pela maneira como ele me fitou, vi que não tinha ficado nada satisfeito e que se sentira da mesma maneira que como o livro dizia. Não gostei nada de lhe ter batido e aposto que nem ele gostou. -Desculpa. – Disse eu fazendo-lhe festas. 16
  • 17. Deitei-o sobre a cama e comecei a esfregar-lhe a barriga freneticamente. Sabia que era aí onde ele sentia muitas cócegas. Ambos riamos, eu ria à minha maneira e ele à sua. Estávamos já muito cansados de tanto brincar. Olhamo-nos nos olhos durante instantes. Depois fechámo- los e deixámo-nos dormir. Comecei a sonhar. E penso que Cusco também. Normalmente, quando me deitava junto dele, tinha sempre sonhos em que ambos aparecíamos. O estranho é que isso nunca acontecia quando ele não estava por perto. Acordávamos quase sempre à mesma hora e quase sempre ele ficava a olhar para mim estupefacto como se estivesse a sorrir. Sei que quando o sonho não era lá muito bom, ele acordava, virava-me as costas e saia do quarto abanando o rabo. Penso que o que nos permitia conviver juntos no mesmo sonho era o forte laço de amizade que nos unia. Porque sim. Porque apesar de nem sempre nos darmos bem e por quase sempre achar que ele era um gato matreiro e aldrabão, sabia que ambos sentíamos um grande amor e uma grande amizade um pelo outro. E estes sentimentos eram sentimentos que não se demonstravam muito no nosso dia-a-dia mas sim, nos nossos sonhos. Desde que me 17
  • 18. apercebi que ambos partilhávamos este dom, decidi aproveitá-lo ao máximo. Durante as noites que se sucederam, começámos a dormir juntos, começámos a poder voar em conjunto, começámos também a poder dar longos passeios pelos parques (coisa impossível na vida real devido aos cães que por lá andavam) e a puder rebolar por grandes colinas verdejantes e floridas. Mas um sonho que nunca esquecerei, foi o sonho deste dia, o dia do meu décimo segundo aniversário. Foi o sonho em que conhecemos mais alguém. Coisa rara, pensávamos que só nós tínhamos esta habilidade mas parece que estávamos enganados. Nesse mesmo sonho apareceu também um gato. Mas um gato muito diferente de Cusco. Deveriam ter aproximadamente a mesma idade. À primeira vista, pareceu-me um gato vadio. Tinha o pêlo curto e negro, uma cauda comprida e os seus olhos eram amarelo-torrados. Também ele pareceu muito admirado por nos ver ali. Ajoelhei-me e comecei a chamá-lo. Fiz pequenos gestos com as mãos para o tentar atrair. Notei que ele tinha ar de ser um gato abandonado, um gato triste e solitário. 18
  • 19. Olhava-nos de lado pensando se seriamos amigos ou apenas intrusos no seu sonho. Não sei lá muito bem porquê, mas quando eu e Cusco sonhávamos, imaginávamos sempre sítios bonitos, sítios ao ar livre, sítios em que na vida real nunca poderíamos estar ou até mesmo conviver. Quase sempre sonhávamos com grandes parques verdes nos quais podíamos fazer todo o tipo de brincadeiras. O que eu estou a querer dizer é que todos os sonhos que tínhamos provinham da nossa imaginação e acho que nenhum de nós poderia ter imaginado um sonho como aquele. Encontrávamo-nos numa pequena rua com um aspecto abandonado. As casas não tinham portas, os vidros das janelas estavam partidos, as paredes rachadas assim como a estrada. Os caixotes de lixo transbordavam. No geral, acho que posso dizer que aquele era um sítio triste, um sítio sem vida, um sítio cheio de mágoa e solidão. O ar estava impregnado por um suave odor a ovos podres, um odor a enxofre. Olhei Cusco nos olhos e apercebi-me que ambos partilhámos a mesma ideia: Aquele não era o nosso sonho. 19
  • 20. Tínhamos ido parar ao sonho daquele gato preto. -Mas como? – Era a pergunta que se fazia soar nas nossas mentes. Decidi não ir ter com ele. Penso que seria mal-educado da minha parte visto que não sabíamos nada acerca daquele gato e nem acerca dos seus sonhos. Decidi examinar por instantes a pequena ruela onde nos encontrávamos. Quando olhei novamente para Cusco, este fixava o olhar no outro gato. -Que foi? – Perguntei-lhe sem obter resposta. Ambos os gatos se entreolhavam. Pareciam conhecer- se há já muito tempo. Como já era costume, Cusco empinou o focinho tentando cheirar algo de novo. Finalmente descobrira o tal cheiro que há tanto ansiava encontrar. O seu pêlo eriçou-se e ele começou a saltitar. Correu em direcção ao outro gato e quando lá chegou começou a cheirá-lo. Levei as mãos à cabeça e pensei: -Porque será que este gato tem sempre estas manias? Será que não consegue tentar ser um gato normal como 20
  • 21. todos os outros gatos pelo menos uma vez na vida. Mas que posso eu fazer? Ele nunca bateu lá muito bem dos carretos. Ordenei a Cusco que parasse mas ele não me deu ouvidos. O outro gato pareceu não se importar muito e começou também a cheirá-lo. -Afinal já não és o único, meu amigo, parece que conseguiste encontrar a tua alma gémea. – Sei que Cusco conseguiu entender-me quando disse isto pois fitou-me de soslaio e eu consegui notar felicidade no seu olhar. Sei que o outro gato também o sentiu. Sei que sentiu a mesma ligação que Cusco sentira, pois o sonho começou a tornar-se, de uma certa maneira, mais alegre e harmonioso. Desviei o meu olhar dos dois gatos e observei em redor. A pequena rua ia, aos poucos, transformando-se num local sem lixo, sem vidros partidos, sem rachas nas paredes. Debaixo dos meus pés, por entre o alcatrão, começaram a brotar pequenos rebentos de todo o tipo de plantas. Todos os edifícios começaram a ficar cobertos por grandes e vistosas trepadeiras. Os passeios transformaram- se em pequenos e cristalinos ribeiros. Árvores enormes 21
  • 22. irromperam de todos os cantos e as suas copas atingiram as nuvens. Aquele local ficou soberbo, magnífico. Quem diria que uma tão pequena e suja rua pudesse dar origem a uma tão imponente e magnífica floresta. Fixei novamente o meu olhar em ambos os gatos mas quando o fiz, eles já lá não estavam. O local onde se situavam estava cercado por grandes arbustos que me impediam de ver fosse o que fosse. Eu estava no meio de um labirinto. Um labirinto do qual não conseguia ver escapatória possível. De repente surgiu uma pequena sombra mesmo à minha frente. A sombra aproximou-se e vi que era o gato preto. Deveria querer brincadeira. Desatei a correr atrás dele e quando o estava quase a alcançar… desapareceu. -Ele ainda agora aqui estava. Onde se terá metido? – Pensei. Olhei em redor mas já não o consegui ver em lado nenhum. Detrás de mim, soou um pequeno “Miau”. 22
  • 23. Fui ver o que seria e foi então que vi ambos os gatos a observarem-me. Mas como era possível. Ainda agora acabara de desaparecer diante de mim. O gato preto pareceu esboçar um pequeno sorriso de satisfação. -És um gato muito matreiro. – Disse-lhe – Vou começar a chamar-te Manhoso. Espero que não te importes. E assim foi. Passámos todo o dia – ou sonho – a brincar por entre aquela gigantesca floresta. Brincámos às escondidas, à apanhada e à brincadeira preferida de Cusco, às cócegas. O sol já se punha. Estávamos estafados de tanto brincar e decidimos relaxar um pouco sobre aquela relva fresca acabada de nascer. Eu e Cusco começámos a desenvolver uma enorme amizade para com aquele gato. Naquele momento único, naquele pôr-do-sol, sentimo-nos como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Os laços de amizade que criei para com aqueles dois gatos foram laços que nunca criei com mais ninguém, nem mesmo com colegas ou até com os meus primos. 23
  • 24. -O que achaste deste sonho, Cusco? - Perguntei ao meu já tão conhecido companheiro. – Não achas que foi o melhor de todos? Cusco grunhiu notando-se em si um tom alegre, um tom de alguém que acabara de fazer um amigo para toda a vida. -Eu penso o mesmo. – Afirmei. – Espero que isto dure para sempre. Quando acabei de proferir estas palavras, apercebi-me de que aquele nosso desejo era impossível de se concretizar. Estávamos num sonho. Como seria possível fazer com que aquela amizade pudesse durar para sempre. Era impossível e nenhum de nós podia fazer nada para o alterar ou evitar. Comecei a sentir-me muito triste e apeteceu-me chorar. Não consegui. O meu corpo perdera todas as suas forças. Comecei por me sentir pesado, depois senti preguiça e por fim sono. Fechei os olhos e adormeci. Comecei a sentir algo a saltar sobre mim. Acordei muito preguiçosamente e bocejei. Depois vi que era Cusco quem me acordara: 24
  • 25. -Sai daqui. Sai, não me chateies! – Disse-lhe escondendo-me debaixo dos lençóis. Tentei adormecer de novo mas não consegui. Não sabia bem porquê mas depois lembrei-me. Dei um sobressalto e olhei em redor tentando vislumbrar a maravilhosa floresta onde eu, Cusco e o outro gato brincávamos antes de termos adormecido. Apercebi-me que tudo aquilo tinha sido apenas uma ilusão, mais um simples e inútil sonho. Os sonhos sempre foram e sempre serão apenas mundos imaginários. Olhei para Cusco e as lágrimas começaram a escorrerem-me pelas faces. Comecei a notar em si tristeza. Deitei-me ao seu lado e disse-lhe: -Não fiques assim. Tu sabes que os nossos sonhos, apesar de muito reais, nunca poderiam tornar-se realidade. Cusco olhou para mim e miou. Depois desviou o olhar na direcção da porta e eu fui abri-la. Ambos saímos para o corredor e o Cusco sentou-se a meu lado olhando para a porta de entrada. Pouco depois a maçaneta rodou e a porta abriu-se. 25
  • 26. Vi pequenos flocos de neve a entrar para o interior e arrepiei-me quando senti uma brisa gélida subir as escadas. Olhei novamente na direcção da porta de entrada e o meu olhar deparou-se com um vulto envolto por um comprido sobretudo. Depois o vulto virou-se na minha direcção, tirou o capuz da cabeça e disse-me: -Olha o que tenho aqui. – Vi que era a minha mãe. Devia estar arrependida depois do que me fizera na noite anterior e decidiu compensar-me pela manhã. Cusco olhou para mim e senti o que ele queria dizer. Queria dizer-me apenas que continuava triste e que não era uma simples prenda de aniversário que me iria alegrar. Não que ele quisesse que eu me sentisse mal comigo mesmo. Apenas queria que eu não esquecesse aqueles mágicos momentos que tínhamos passado com Manhoso. Sabíamos que haviam sido muito poucos mas também sabíamos que tinham sido aproveitados ao máximo, tinham-se tornado especiais, únicos. Depois o Cusco fixou novamente o seu olhar na minha mãe. Mas desta vez estava contente. O seu pêlo eriçou-se e 26
  • 27. o seu focinho parecia querer saltar de alegria. Sentia-se como se sentira quando conhecera Manhoso. Olhei também para a minha mãe. Vi-a a abrir o fecho do longo sobretudo e olhando para o seu interior disse: -Espero que gostes. É um pouco pequena mas aqui estás muito melhor do que na rua. De dentro do casaco saltou um gato preto. Um gato que à primeira vista me pareceu muito familiar. Eu e Cusco entreolhámo-nos e esboçámos um largo sorriso. Ambos tivemos a mesma ideia. Queríamos ir receber o nosso já tão conhecido amigo. O Manhoso. Descemos as escadas a correr e quando chegámos perto de Manhoso, atirámo-nos contra ele de braços abertos. -Ui. Ainda agora ele chegou a casa e vocês já o estão a assustar. Eu e Cusco olhámo-nos e rimo-nos. Como sempre, eu ri-me à minha maneira e ele à sua. Eu sei e Cusco também o sabia. Nós não o estávamos a assustar. Já o conhecíamos e ele já se tinha tornado um membro oficial desta família. 27
  • 28. Depois apercebi-me do enorme erro que cometera. Das terríveis coisas que dissera a Cusco: “-Não fiques assim. Tu sabes que os nossos sonhos, apesar de muito reais, nunca poderiam tornar-se realidade.” Como fui eu capaz de lhe dizer aquilo? Como fui capaz de lhe dizer que os sonhos não se podem tornar realidade. Como pude ter sido uma tão má pessoa e um tão mau amigo? Naquele momento o Cusco sabia e sempre soube que todos os nossos sonhos, apesar de ilusões vindas da nossa imaginação, têm o poder de se concretizar. Só precisamos de batalhar e de continuar a acreditar. Acreditar em nós. Acreditar que tudo é possível. Não existem barreiras suficientemente fortes para nos impedir de continuar a lutar pelo que queremos, pelo que desejamos, pelos nossos objectivos. Esta é uma das razões pela qual eu adoro e sempre adorei Cusco. Ele nunca deixou de acreditar. Nunca deixou de cheirar. Todos os dias acordava e ia vaguear por toda a casa à procura de um novo odor. Podia ser um gato matreiro e muitíssimo curioso mas era também um gato 28
  • 29. muito amoroso e além de tudo um guerreiro, um lutador. Conseguira sobreviver a um Inverno gelado, um dos mais frios de sempre, quando ainda era um pequeno gatinho, um gatinho que procurava encontrar o seu lugar e o seu conforto junto de uma família que o acarinhasse e que lhe desse todo o amor do Mundo. Era assim que eu via Cusco. Como um amigo que estaria sempre a meu lado nos momentos mais difíceis e que estaria sempre lá para me acordar ou até mesmo para conversar comigo quando mais ninguém o quisesse fazer. O dia em que Manhoso entrou em nossa casa foi o dia em que tomou o seu lugar na família. Todos os dias depois da escola, quando chegava a casa, ia brincar com o Cusco e com o Manhoso. Aproveitávamos sempre ao máximo o tempo que passávamos juntos. Para nós, a altura mais valiosa do dia era quando a noite se instalava. Quando chegava a hora de nos irmos deitar. Todas as noites dormíamos juntos e todas as noites sonhávamos com novos mundos mágicos nos quais fazíamos todo o tipo de brincadeiras e travessuras. Lembro- me de que em alguns desses sonhos, Cusco e Manhoso 29
  • 30. uniam forças e faziam a minha parte do sonho tornar-se num completo pesadelo. As suas travessuras manifestavam-se das mais diversas maneiras. Podiam ir desde a cair-me uma montanha de peixes em cima até a vir um enorme grupo de ratos atrás de mim. Mas enfim, fizessem o que fizessem, eu nunca os iria castigar por isso. Afinal, estávamos a sonhar. Quando acordasse não iria estar coberto de ratos e nem cheiraria a peixe podre. Por isso não me importava. Se isso os fazia sentirem-se felizes então também eu me sentia feliz. Aqueles dois gatos eram tudo para mim. Os anos foram passando. As nossas brincadeiras tornaram-se cada vez menos habituais assim como os nossos sonhos. Eu cresci, tornei-me num adolescente e como todos os adolescentes, comecei a sair. Deixei de ser aquela criança que adorava sonhar, que adorava imaginar e até mesmo voar. Comecei a sentir-me cada vez mais distante dos meus dois amigos. Comecei a sentir a nossa amizade perder o seu valor. 30
  • 31. Cada vez mais comecei a ignorar os pedidos de Cusco e de Manhoso para participar nas suas brincadeiras. Deixei de brincar às escondidas e até mesmo à brincadeira preferida de Cusco, às cócegas. Quando entrei para a Universidade tive que deixar os meus fiéis companheiros com os meus pais. O apartamento que alugara não permitia a entrada ou a residência de animais de estimação. Apesar de tudo, todos os fins-de-semana ia visitar os meus pais e os meus dois amigos. Passado algum tempo, também as visitas se foram tornando cada vez menos habituais. Certo dia, estava eu dentro da sala de aula quando o meu telemóvel começou a tocar. Coisa rara de acontecer. Pedi autorização para sair da aula e poder atender. Quando cheguei ao corredor, olhei para o ecrã e vi o número de telefone da casa dos meus pais. -O que terá acontecido? Nunca costumam telefonar- me em tempo de aulas. – Pensei. Atendi e fiquei em choque quando ouvi a minha mãe, muito histericamente, dizer-me: 31
  • 32. -Vem depressa, o Manhoso está muito mal. Tens que levá-lo ao veterinário. Nem consegui regressar para a sala de aula. As lágrimas escorriam-me pela cara. Quando cheguei a casa, deparei-me com a minha mãe à porta de entrada com o Manhoso nos braços. Ela estava pálida. Não reagiu à minha chegada. Corri na sua direcção e tomei Manhoso nos braços. Ele olhou para mim, miou baixinho e depois soltou o seu último suspiro. Perdi as forças, o meu corpo ficou inerte. Ajoelhei-me e apertei o Manhoso contra o peito. Cusco correu na nossa direcção miando alto. Nem consegui olhar para ele. Como é que iria explicar-lhe que o seu amigo já não poderia mais brincar connosco, como é que iria explicar-lhe o facto de os nossos sonhos nunca mais poderem ser partilhados com Manhoso? Quando o Cusco chegou perto de nós coloquei o corpo de Manhoso, já sem vida, no chão. Cusco olhou na sua direcção e depois olhou para mim. Quando se apercebeu do sucedido olhou novamente para Manhoso. 32
  • 33. Fui incapaz de lhe dizer fosse o que fosse. Não tive qualquer reacção quando vi Cusco aproximar-se dele. Só quando ele começou a amassar o corpo de Manhoso e a miar baixinho aos seus ouvidos é que me desfiz em lágrimas. Cusco rugia como um leão. Como poderia o seu amigo estar morto. Como é que isso fora possível. Ainda tinham muitos sonhos para partilhar e muitas brincadeiras para concretizar. O dia tornou-se triste e cheio de mágoa. Fez-me recordar o sonho em que conhecemos Manhoso. Manhoso foi enterrado no nosso quintal junto de uma macieira que ele adorava trepar. A morte de Manhoso fora um grande choque para toda a família e eu decidi mudar-me para casa dos meus pais durante uns tempos. Cusco e eu sempre adorámos sonhar juntos mas ambos tínhamos decidido nunca mais sonhar. Apesar de em sonhos podermos fazer tudo aquilo que nos apetecesse, as coisas tinham mudado. A morte de Manhoso não só deixou um enorme vazio nos corações de todos nós como também deixou para trás um vazio nos nossos sonhos. 33
  • 34. Eu e Cusco bem tentámos partilhar sonhos umas quantas vezes mas sempre que o fazíamos o sonho desvanecia-se e acordávamos. Ambos sabíamos a razão do sucedido, estava bem clara nas nossas mentes. O Manhoso era indispensável para podermos sonhar. Aquele gato preto de olhos amarelo-torrados dava alegria aos nossos sonhos. Desde o dia em que o conhecemos tudo tinha mudado. Ele trouxera, para esta família, alegria e felicidade. A dupla que eu e Cusco formávamos tinha ganho um novo elemento. Um elemento que instalou o seu amor nos nossos corações de maneira a que nunca pudesse ser apagado ou substituído. Estávamos na Primavera, já se tinham passado uns quantos meses depois da morte de Manhoso. Cusco já não era aquele gato jovem cheio de energia e adrenalina. Estava a ficar velho. Os anos que passaram atingiram-no de tal forma que ele mal se conseguia mexer durante os meses mais frios. A idade impedia-o de trepar às árvores e os seus ossos também já não eram os mesmos. Já não tinha aquele andar vaidoso e glorificante. Tinha um andar desengonçado, cambaleante, um andar muito semelhante àquele de quando ainda era um pequeno gatinho, de quando ainda era bebé. Também perdera 34
  • 35. aquele espírito jovem, extrovertido e brincalhão, tinha agora um espírito mais descontraído e calmo, um espírito sábio e sereno. Nunca me esquecerei daquela Primavera, foi a estação em que Cusco partiu. A época em que faleceu. Tudo aconteceu um dia, quando entrei em casa e diante de mim, no chão, encontrei Cusco a contorcer-se. Tinha perdido o controlo da bexiga. Debatia-se e lutava pela vida que não queria abandonar. Agachei-me e acariciei-o. Ele retribui-me com um olhar. Um olhar suplicante que implorava por respostas. Um olhar que parecia querer dizer: -Por que me está acontecer isto? Não percebo. Por favor, ajuda-me. Eu não sabia como ajudá-lo. Não sabia o que fazer. Agarrei na sua manta preferida e embrulhei-o com ela. Encostei-o ao peito e fui directo para a clínica veterinária. Quando lá cheguei, ultrapassei todos os pacientes e exigi atendimento imediato a uma das funcionárias. Ela apercebeu-se do meu estado e não perdeu tempo a encaminhar-me ao consultório. 35
  • 36. O veterinário examinou-o, suspirou e depois deu-me a má notícia: -Ele está a sofrer muito. Não há nada a fazer. Posso tentar fazer com que ele sobreviva durante mais alguns dias mas ele irá estar com muitas dores. Olhei Cusco nos olhos durante algum tempo e encostei a boca ao seu ouvido: -Os sonhos são algo poderoso, estão repletos de coisas boas. Foste tu quem me ensinou isso. Esta nossa jornada foi, e sempre será, um sonho tornado realidade. Irei sentir muitas saudades tuas companheiro. Nunca te esqueças que sempre terás um lugar dentro do meu coração. Manhoso está à tua espera para poderem brincar, correr e saltar. Está ansioso para que possam fazer todo o tipo de brincadeiras e travessuras. Sinto muito por vos ter abandonado nos vossos momentos finais, por vos ter ignorado quando mais precisaram de mim. Espero que me perdoes amigo. Desviei o meu olhar de Cusco e limpei as lágrimas. Virei-me para o veterinário e disse-lhe: -Não quero que ele tenha dores. Não quero que sofra mais. 36
  • 37. Apertei o Cusco nos braços e acariciei-o. O veterinário preparou a injecção e Cusco começou a arranhar-me tentando soltar-se. Assim que sentiu a picadela, Cusco rugiu aterrorizadamente e olhou para mim com o olhar suplicante como se estivesse a dizer: -Porque fizeste isto? Já não me amas? Depois fechou os olhos e partiu. Nunca esquecerei aquele rugido. Irei recordá-lo para sempre. Sei que fiz o mais acertado mas também sei que Cusco era um guerreiro, um batalhador. Ele não queria desistir assim. Queria provar-me que ainda não estava acabado, que ainda conseguia correr e trepar às árvores como dantes, que ainda tinha muito para demonstrar. Enterrei-o ao lado de Manhoso, debaixo da mesma macieira. Poucos dias depois, quando ainda me sentia muito afectado pela morte de Cusco, fui ao local de trabalho do meu pai, uma pequena e modesta livraria cuja clientela era muito reduzida. 37
  • 38. Assim que lá entrei, puxei um pequeno banco de madeira e sentei-me debruçando-me sobre uma antiga escrivaninha. Comecei a pensar nas brincadeiras que nós os três fazíamos e isso deixou-me alegre. Mas quando esses pensamentos se desvaneceram comecei a chorar. De repente as portas e as janelas abriram-se bruscamente e um forte vento fez-se sentir por toda a livraria. Do topo de uma estante de livros caiu uma pequena folha de papel com algo escrito. Agarrei-a e li-a: “Nós, Cusco e Manhoso, oferecemos-te este pequeno texto em nome da nossa eterna amizade, em nome de tudo aquilo pelo que passámos: As nossas vidas junto de ti foram felizes e risonhas. Queremos dizer-te que o mais importante para nós foi poder conquistar a tua confiança e o teu amor. Podermos oferecer-te a nossa lealdade foi tudo o que sempre quisemos. Não damos valor a posses materiais. A única 38
  • 39. coisa que ambos possuímos e à qual damos mais valor que tudo o resto, é ao teu amor, o amor que nos ofereceste, um amor que irá prevalecer nos nossos corações para todo o sempre, o amor de um dono que não nos poderia ter amado mais. Não te sintas triste, pois agora estamos felizes, não sentimos dor nem desconforto. Sentimo-nos jovens como há muito não nos sentíamos. Agora podemos brincar sem parar. Agora somos livres para podermos correr e saltar com o vento a bater-nos nos bigodes e a relva a fazer-nos cócegas nas patas. Aqui, neste paraíso, ansiamos a tua chegada. Ansiamos poder partilhar de novo, em conjunto, os nossos sonhos. Sabemos que, porque partilhámos tantas coisas juntos, não quererás viver o resto da tua vida com a companhia de outro animal. Quando tomares essa medida lembra-te. Lembra-te de não te privares do amor e da amizade que outro companheiro te poderá trazer. Não penses que assim poderias estar a substituir-nos porque isso é impossível. Aquilo que nós partilhámos foi e sempre será algo insubstituível, algo que nunca será esquecido por nenhum de nós. Nunca digas que nos abandonaste nos momentos mais difíceis porque tu não o fizeste. Tu fizeste amigos, tu descobriste o poder do verdadeiro amor, tu conheceste tudo aquilo que as pessoas têm de bom para 39
  • 40. oferecer. Não nos poderias ter deixado mais orgulhosos! Sempre estiveste connosco nos momentos mais difíceis e sempre quiseste ouvir as nossas conversas. Acima de tudo lembra-te, querido amigo, que estaremos sempre contigo, estaremos sempre no teu coração, na tua mente e nas tuas memórias. Dizemos isto pois aquilo que partilhámos foi algo especial, é-o hoje, sê-lo- á amanhã e para todo o sempre. Se alguma vez sentires uma pata tocar-te de madrugada ou ouvires um ronrom durante a noite, acredita, no fundo do coração, que somos nós a dizer-te olá.” Com todo o amor: Cusco e Manhoso 40