2. O nome dele era Jesus. Nasceu bem
longe das bandas capixabas, lá praqueles
lados do Jequitinhonha. Mudou-se para um
bairro humilde da Grande Vitória ainda pe-
quenino e era tão acostumado com tudo ao
seu redor que, em sua percepção de garoto
de dez anos, não via muito sentido em ima-
ginar um mundão maior que aqueles becos.
Na verdade, Jesus só lembrava de ter ido a
outro lugar ainda muito novinho, quando
o pai, motorista, acabou morrendo em um
acidente na não-duplicada-BR-101. Depois
daquilo só saia mesmo dali para estudar
em bairro quase-vizinho. “Sorte escola tão
pertinho”, celebrava a mãe, de nome Maria,
capital onde sua velha trabalhava na casa
de uma gente “muito boa e caridosa” – que
só não legalizavam a situação da moça por
causa dessas coisas chatas de burocracia
trabalhista. “É por isso que o Brasil não dá
certo”, dizia a patroa exaltando as vantagens
Na mesa, Jesus nunca vira fartura, mas tam-
bém não vira faltar nada com a multiplicação
quase divina do meio salário da mãe. E Jesus,
bom aluno ainda que de vez em sempre faltasse
um professor ou outro, nunca precisou bater um
prego. Devia se dedicar na escola para se formar
“doutor”. As coisas até caminhavam, mas a vida
não é uma linha perfeita. Sabe aqueles apertos
de dar nó na gente? Maria descobriu que estava
com câncer. Não tinha plano, entrou na fila do
SUS e teve que parar de trabalhar. Sem carteira
assinada, não recebia mais o meio salário (qui-
çá o seguro que nem sabia da existência). Com
a coisa apertando, Jesus não segurou a onda e
decidiu pedir ajuda. Pulou a roleta e saltou no
cruzamento do bairro bacana, cheio daquela
gente que parecia gringo. Foi ao semáforo pedir
esmola. Os motoristas, porém, aos montes o
acusavam: “negrinho malandro, querendo grana
para o crack”. Ora ou outra também apareciam os
justos que, levando a filha da aula de inglês para
o ballet, lembravam: “ao invés de ir capinar um
lote prefere ficar pedindo, não vejo problema de
criança trabalhar, se não fosse vagabundo desde
cedo (...)”.
A esmola foi pouca. Com quase nada e a
mãe mal, Jesus foi chamado para o movimento
e começou a entregar coisa errada ou outra de
cheiro engraçado. A grana começou a chegar, mas
ainda era pouco. A situação apertou, a mãe pio-
rou e ele decidiu ajudar a faturar um carro. “Um
alemão cheio da grana que revende, a gente só
pega e ganha o nosso”, garantiu o bom malandro,
outro miserável. E lá foi o menino de dez anos
ao encontro de Jair, patriota e conservador. Jair
nunca tinha sido assaltado, mas quem é que sabe
quando vai precisar de uma arma para defender o
patrimônio, não é mesmo? E depois do que tinha
acontecido em Vitória, sem polícia nem nada, ele
não podia andar mais desarmado. Faltava apenas
a oportunidade de exercer seu direito de cidadão
de bem. E a bala de Jair foi pelo faro, encontrou
Jesus. “Menos um”, disse a senhora que voltava
do convento. “Mito”, disparou o homem que ca-
minhava para o culto. Morreu Jesus. Quem vai se
lembrar do menino Jesus? Além das mães, mais
ninguém.
vitória 21
3. -
seadoemcondições reaisquetêmtencionado
a luta de classes em nosso país, levando dife-
rentes formas de violência às camadas mais
humildes da sociedade. Entre tais condições
estão a retirada de direitos trabalhistas e o
congelamento de investimentos nas áreas
da saúde e educação. E, ainda que qualquer
estória seja simplista demais para explicar a
questão, é inegável que a omissão do estado
leva ao avanço da fome, exterminando o fu-
incontáveis e invisíveis meninas e meninos
da periferia.
Mas quem se alimenta da morte cotidia-
na dos nossos jovens? Ou, trazendo o debate
para o Espírito Santo, quem
duas centenas de vidas
(barbaramente reduzidas
a números) durante a greve
da PM no início do ano?
Minha tese é que
o ódio foi o vencedor. Ser-
vimos pão ao ódio ao es-
quecer a história de cada
um dos mortos. E nossos
meios de comunicação são
especialistasemgarantirtal
esquecimento, agendando
novos debates emburrece-
dores através de espetáculos imagéticos mais
de nosso Jair.
O Jair do nosso causo, aliás, são homens
e mulheres comuns (qualquer um de nós),
formados em um contexto cultural onde
aprendem que a violência é resolvida com
mais violência. Eles acreditam ser fortes,
mas são fracos, pois incapazes de qualquer
empatia com o diferente por puro medo de
mudar. Como diria Dito, personagem de Gui-
marães Rosa em “Manuelzão e Miguilim”: “Só
quem é bronco carece de ter raiva de quem
não é bronco, eles acham que é moleza, não
gostam... Eles têm medo que aquilo pégue e
amoleça neles mesmos – com bondades...”.
a multiplicação do Jair. Basta lembrar, no
meio da crise da segurança, da corrida entre
os condomínios por vigilantes armados –
preparados ou não – ou olhar, por exemplo,
para o absurdo Projeto de Lei 224/2017,
que autoriza o porte de arma de fogo para
moradores da zona rural.
Outro dia saia da Ufes quando me de-
parei com um outdoor sugerindo facilidades
para o porte e aquisição de armas de fogo.
Lembrei da ótima tese de doutorado da pro-
fessora Flávia Mayer (Ufes) sobre a formação
dosindivíduosapartirdosoutdoorsnacidade
e pensei em quantos verão ali uma saída
própria universidade quando ao anunciar a
patrulha armada da PM como solução para
a violência no campus.
história que Jesus (não o nosso, o mais anti-
go) falava sobre atirar a primeira pedra. Por
isso lembro um ‘recado’ dele: “Dou-vos um
novo mandamento: Amai-vos uns aos outros.
Comoeuvostenhoamado,assimtambémvós
deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13: 34).
Amai-vos, não armai-vos, entendeu!?
“
“
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