Neste artigo de opinião, faço uma breve análise a partir da F-Scale sobre a postura da base bolsonarista que tenta desqualificar a investigação sobre as fake news.
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Bolsonaristas acusam STF de nazismo ao invés de encarar a verdade
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Bolsonaristas olham no espelho para acusar STF de “nazismo”
Emerson Campos Gonçalves1
Não é a primeira vez que escrevo sobre isso, mas vamos lá: quando os estudos de linguagem fazem parte
da sua pesquisa há mais de uma década, em algum momento você acaba compreendendo que – com um
tipo de rigor e/ou paciência que só é viável produzindo ciência séria – é possível antecipar algumas
"tendências discursivas" impostas à opinião pública. E, quando se trata dos assuntos pautados pela extrema-
direita brasileira, esses movimentos são extremamente previsíveis (e seriam até "burros", caso a estupidez
de parte considerável dos seguidores desse grupo não fosse maior ainda).
Por que escrevo sobre isso neste artigo?
Simples! Porque quem estiver disposto a buscar quais são os eixos temáticos predominantes na nuvem de
ódio, fake news e desinformação que é propagada pelos bots e pelo rebanho fascista conduzido pelo
Gabinete do Ódio, facilmente conseguirá constatar que, desde ontem, o "tema" da moda é bradar que o STF
e os críticos do governo são "nazistas" que querem "ceifar a liberdade dos patriotas".
Impõe-se, assim, uma inversão bizarra (e desesperada, a meu ver) na tendência do debate, algo como o
menino que foi flagrado pelo coleguinha roubando doce do pote e, com o pirulito na mão, respondeu: "não
fui eu, foi você".
Tomando um exemplo dentro do tema, seria como se manifestar contra a queima de livros
(Bücherverbrennung) pelo Terceiro Reich e ser acusado pelo próprio Joseph Goebbels (ministro da
propaganda de Hitler) de que o nazista é você, que ousa se levantar contra a “liberdade de desinformar o
povo alemão”. Estranho né? Pois é o que está acontecendo no Brasil neste exato segundo!
Como eu disse, essa seria/é uma tática imbecil quando pensamos em qualquer grupo minimamente formado,
já que parte de uma retórica vazia. Mas funciona que é uma maravilha com a base mais fiel do bolsonarismo
e acho que isso já não provoca espanto em ninguém. Na verdade, quem se coloca contra essa tendência
precisa reiteradamente e com uma paciência (talvez monástica?) explicar o óbvio para não atestar que
concorda com a insanidade coletiva - e hoje nada vai ilustrar melhor isso do que a descrição constrangida
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Doutor em Educação (PPGE/Ufes) e Mestre em Estudos de Linguagens (Posling/Cefet-MG). Pesquisador no Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Educação, Filosofia e Linguagens (Nepefil/CE/Ufes). Professor substituto no Departamento de Linguagens,
Cultura e Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (DLCE/CE/Ufes). E-mail: professoremersoncampos@gmail.com.
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de William Bonner (até ele!), durante o JN dessa quarta (27/05), sobre o blogueiro defensor do
terraplanismo.
Mas vamos lá... mais uma vez explicar o absurdo na terra dos absurdos! A terra é redonda, a cloroquina
não é uma cura mágica para a SARS-CoV-2 e acho que ontem, após a operação da PF, todo mundo
descobriu pela enésima vez que a Havan (adivinha?) é daquele ser abjeto que atende por Véio da Havan –
e não da filha da Dilma.
Tá, mas cadê o “nazismo” nessa explicação?
Vamos lá! Quando se fala em indivíduos (ou personalidades) fascistas, são diversas as possibilidades que
temos para estudar a formação desses sujeitos (do ponto de vista da psicologia, da psicanálise, de uma
análise sociológica ou histórica), mas aqui vou me ater àquela que domino de forma mais profunda e que
serviu de base para o estudo que desenvolvi na minha tese de doutorado: a Escala de Fascismo (ou F-Scale)
elaborada por Theodor W. Adorno e seus colaboradores do Grupo de Berkeley.
Resumindo o resumo do resumo, essa escala traz nove traços e/ou características que compõem a base do
pensamento antidemocrático dos indivíduos que se alinharam com o nazifascismo e que, sob determinadas
condições objetivas e ideológicas, poderia reaparecer em outros povos e sociedades. O objetivo do estudo
conduzido por Adorno era verificar essa possibilidade na sociedade estadunidense do pós-Segunda Guerra
(talvez hoje ele se assustasse com os resultados por lá, mas vamos focar no caso brasileiro).
Essas características apontadas pelo Grupo de Berkeley ajudam a identificar, um a um, quais são os traços
de comportamento de uma pessoa que tende a se alinhar com uma concepção fascista de mundo, sendo
elas: i) o convencionalismo; ii) a submissão autoritária; iii) a agressividade autoritária; iv) a
antissubjetividade ou anti-intracepção; v) a superstição e estereotipia; vi) a redução das relações a questões
de poder e dureza/rigidez; vii) a destruição e o cinismo; viii) a projeção; e, por fim, ix) a obsessão com sexo
e sexualidade.
Quando olhamos para cada uma dessas características e depois miramos figuras constrangedoras da
extrema-direita brasileira, como o “mito”, seus filhotes-numerais, os ministros [sic] do seu (des)governo
ou aquela defensora da “ucranização” (termo da moda para a implementação de um estado neofascista) que
está tentando virar mártir do ódio e que por isso prefiro nem mencionar o nome, testemunhamos
materializações jocosas dos traços da F-Scale. Esses arremedos de fascistas, porém, mais do que deboche,
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têm a capacidade de provocar asco em qualquer um que, minimamente, tem consciência da dor e da barbárie
que foram promovidas pelos nazistas contra milhões de pessoas.
Pois bem, são justamente essas figuras odiosas que querem se livrar da pecha de “nazistas”, empurrando-a
para quem combate sua máquina de mentiras. A grande contradição – e por isso analisar a realidade com
os olhos da ciência ajuda e muito! – é que para isso se valem justamente de alguns dos principais traços que
formam sua personalidade fascista, mas especificamente de cinco: da agressividade, da submissão
autoritária, do poder/dureza/rigidez, do cinismo e da projeção. Ou seja, tentam se livrar da suástica marcada
na testa, mas para isso se valem do que tem de pior em suas almas: nada poderá limpá-los (é a frase da peça
de Brecht que, com muita sensibilidade, rememorou Lima Duarte: “Os que lavam as mãos, o fazem numa
bacia de sangue”).
Explico um pouco mais!
Adorno e seus colaboradores de Berkeley identificaram que a submissão autoritária é o componente
masoquista das personalidades autoritárias, enquanto a agressividade autoritária é o componente sádico.
Isso é: eles (os indivíduos fascistas) precisam se submeter mansamente ao ódio e aos delírios bélicos de um
Führer, aceitando qualquer humilhação que ele imponha (eis o gado manso); mas precisam manifestar o
mesmo espírito de ódio àqueles que não concordam com seu líder, despejando discursos repletos de
palavras chulas, convites para a briga, ameaças e por aí vai (ou seja, paradoxalmente, eis o gado bravo e
tudo o que os seguidores do “mito” fizeram ontem depois da operação da PF contra as fake news).
Mais. Para conseguir adicionar alguma lógica à sua visão moral corrompida, precisam se amparar numa
concepção de mundo pautada pura e simplesmente em jogos de intriga, conspirações e tentativas
imaginárias de luta pelo poder, isso é: tudo que não convêm ocorre porque existe uma conspiração global
(provavelmente comunista-lulopestista-soviética) para lhes tirar do trono. É sobre isso que versa a categoria
de poder e dureza/rigidez, sobre a redução de toda a complexidade das relações sociais a um jogo violento
por poder. Lembra do menino flagrado roubando doce? O indivíduo fascista provavelmente culparia a
professora, argumentando que ela não educou a criança porque quer destruir e corromper a moral das
famílias conservadoras e cristãs! Bizarro, mas é assim que funciona.
E aí chegamos nas duas últimas categorias, afinal é necessária uma dose considerável de cinismo e desprezo
pelo humano para impor aos demais um tipo de violência que, moralmente, você próprio não pode justificar.
Assim, projeta-se no outro aquilo que – sem rodeios – diz mais do próprio sujeito: quando um indivíduo
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acusa os demais de um comportamento que não conseguimos identificar de forma alguma nesses (como,
por exemplo, a acusação de que impedir a propagação de fake news é um ato de censura e um atentado
contra a liberdade, algo descabido aos olhos de qualquer um com um mínimo de razoabilidade ou bom-
senso), ele acaba externando aqueles anseios que tem reprimido – seja nas profundezas ou mais próximo
da superfície de sua personalidade – e que não pode manifestar abertamente. Sobre isso, sobre a projeção,
sugiro um exercício: sejam criativos e imaginem o motivo de tantas menções a objetos fálicos nas postagens
do 02.
Enfim, o que pretendo com essa análise é demonstrar que uma das maravilhas da ciência é que, ao fim, ela
não pode ser vencida pela pós-verdade ou pelo olavismo (que é um tipo pior e mais desprezível de pós-
verdade). Ao menos não dentro de uma sociedade sadia (e aqui cabe questionar até que ponto a nossa está
adoecida). E, olhando para a campanha discursiva que a extrema-direita tenta agitar, o uso da ciência aponta
que, justamente neste momento em que tentam acusar os demais de “nazistas”, eles próprios se tornam mais
autoritários, antidemocráticos e fascistas do que nunca. Tentam disfarçar o cheiro, mas a carne cada vez
mais pobre denuncia sua presença. Fascistas não passarão!
Leituras sugeridas:
ADORNO, T.; et al. The authoritarian personality. New York: Harper & Brothers, 1950.
ADORNO, T. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
GONÇALVES, E.C. Jornalismo como antifilosofia e a formação de indivíduos
potencialmente fascistas na sociedade excitada: um estudo dos comentários sobre o golpe de 2016 em
Veja e Carta Capital. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
da Universidade Federal do Espírito Santo, 2020.
GONÇALVES, E. C.; LOUREIRO, R. Notas sobre os estudos de T. Adorno em Berkeley: a ‘farsa da farsa’
na América Latina e o vigor da Escala F. Problemata: Revista Internacional de Filosofia, v. 10. n. 4, dez.
de 2019, p. 227-254.