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O Poço e a pirâmide social: uma análise sobre desigualdade e necropolítica
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Notas sobre O Poço e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Emerson Campos Gonçalves1
isponibilizado pela Netflix em março, o longa-metragem espanhol O Poço (GAZTELU-
URRUTIA, 2020) provavelmente é a melhor metáfora para compreender a necropolítica
(MBEMBE, 2018)2
que foi acentuada – afinal, ela sempre existiu – nas sociedades capitalistas
durante o período de isolamento social que tenta conter o coronavírus. Serve tanto para uma análise sobre
a desigualdade entre classes (e isso é muito evidente no filme), como, também, para compreender a disputa
de poder geopolítico entre nações “liberais”. E isso perpassando uma lógica muito simples, que pode ser
traduzida em: aos que estão fora do poço: tudo; aos que estão nos primeiros níveis: a ilusão do banquete;
aos que estão nos níveis mais baixos: a morte.
É o que acontece quando uma classe (que está fora do poço) acha justo organizar uma carreata (com todos
os alertas para que nenhum de seus “preciosos” pares saia do automóvel) pedindo que aqueles que estão
nos “níveis inferiores” se sacrifiquem em ônibus lotados durante a pandemia para que os de cima possam
continuar esbanjando.
Nota importante! Não estou falando de você, pequeno “empreendedor”, “microempresário” ou
profissional liberal. Você, que depende do dinheiro de cada mês e do fluxo diário do caixa para
sobreviver/não quebrar, é tão proletário quanto qualquer um de nós. Ainda que tenham te convencido do
contrário, você não saiu do poço e, ainda que sua classe ocupe os primeiros níveis, seu banquete é uma
ilusão que pode ser fugaz.
A mesma lógica (tudo / ilusão do banquete / morte) se repete quando um shopping, sem qualquer pudor,
“condiciona” a doação de respiradores para atender os doentes à liberação do funcionamento de suas lojas
em meio à quarentena3
. Na frieza dos números não precisamos nem saber estatística para perceber que, no
atual ritmo de propagação exponencial dos casos de Covid-19, esses aparelhos seriam insuficientes até
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Doutor em Educação (PPGE/Ufes) e Mestre em Estudos de Linguagens (Posling/Cefet-MG). Pesquisador no Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Educação, Filosofia e Linguagens (Nepefil/CE/Ufes). Professor substituto no Departamento de Linguagens,
Cultura e Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (DLCE/CE/Ufes). E-mail: professoremersoncampos@gmail.com.
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MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios. v. 32, p. 123-51, 2016.
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“Dono de rede de shopping oferece respiradores em troca da reabertura de lojas em Santa Catarina” (O Estado de S. Paulo).
Reportagem publicada em 06 de abril de 2020.
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mesmo para contemplar as pessoas que seriam contaminadas ali, afinal, segundo dados do próprio setor, os
shoppings brasileiros recebem, em média, 502 milhões de visitantes por mês4
. Para além dessa matemática
da morte, a chantagem imposta revela a pouca preocupação do grupo de proprietários do shopping em expor
seu posicionamento de que algumas (ou muitas) vidas perdidas (na parte inferior do poço) seriam aceitáveis
se, com isso, fosse possível continuar oferecendo a ilusão da fartura a uma parcela significativa dos
lojistas/locatários e esbanjando sua gula com outro grupo mais enxuto desses.
Essa mesma arquitetura também está presente quando uma nação como os Estados Unidos julga justo e
aceitável confiscar máscaras, respiradores e equipamentos hospitalares destinados a outros países, num ato
que – mais do que a total ausência de fraternidade, tão propagada na ética de seu modelo liberal – desvela
um total despreparo para conter uma pandemia que já atinge números que ultrapassam os 1.300 mortos por
dia no país (lembremos, nos Estados Unidos não existe um SUS). Ou seja, é a tentativa de, na disputa entre
países, estabelecer um “aos Estados Unidos: tudo; para a América Latina: a morte”. (Des)governados por
quem bate continência para eles, seguimos no poço e descendo.
Mas voltemos ao filme. Em entrevista recente publicada na Rolling Stone5
, o diretor do longa, Galder
Gaztelu-Urrutia, disse que O Poço é uma metáfora para o capitalismo, mas não apenas isso: "Pode haver
uma crítica ao capitalismo no início, mas mostramos que assim que Goreng e Baharat (personagens do
filme) tentam convencer os outros prisioneiros a adotar o socialismo e deliberadamente dividir a comida,
acabam matando metade das pessoas que eles queriam ajudar".
Fato é que a postura violenta mencionada pelo diretor surge entre os personagens depois do fracasso na
militância no campo das ideias, do convencimento, espaço prioritário da educação. E, no meu ponto de
vista, isso ocorre justamente porque, como escreveu Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o
sonho do oprimido é ser o opressor” (FREIRE, 2019)6
.
Uma análise possível é de que essa transição para a imposição de um modelo que acaba promovendo outras
mortes seria uma espécie de alegoria do longa-metragem (não sei se intencional) para o exemplo soviético
na transição do marxismo-leninismo (numa perspectiva que hoje podemos compreender como trotskista)
para o stalinismo. Isso é, da alternância de uma sociedade que busca formar a consciência revolucionária
para um regime que tenta se garantir pela imposição da força.
Trata-se, efetivamente, de uma interessante e pertinente crítica presente no filme. Contudo, em tempos em
que a solidariedade vem da ilha de Cuba, que envia seus médicos para ajudar no combate da pandemia em
4
Dados de monitoramento (2019) realizado pela Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce).
5
https://rollingstone.uol.com.br/noticia/diretor-de-o-poco-explica-final-aberto-do-melhor-filme-de-suspense-do-ano-spoilers/
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 69ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.
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outros países, e em que as apostas são justamente na socialização dos bens mais elementares para produção
da nossa existência – como água, energia elétrica, gás e uma renda mínima para a sobrevivência – é preciso
cuidado ao embarcar na crítica pela crítica. Isso porque talvez seja mais pertinente olhar para os erros da
experiência soviética mirando um socialismo possível (aquele da personagem Imoguiri, que tenta
implementar a distribuição igual a partir de um convencimento no campo das ideias) do que aceitar como
possibilidade viável a manutenção do poço-capitalista, apenas pela segurança de ser a barbárie à qual
“estamos acostumados”.
Em suma, talvez seja importante retomar uma perspectiva mais gramsciana, de luta na – e pela –
superestrutura. E é aí que vejo o papel fundamental do jornalista no poço. É ele quem, mais do que qualquer
outra categoria profissional, tem o poder de fazer a informação circular entre os diferentes níveis. E, sejamos
justos: no descompasso em que o Brasil se encontra, o trabalho árduo dos jornalistas – muitas vezes sob
condições de pressão, risco e desvalorização extremas – tem sido fundamental para ajudar na manutenção
do isolamento social, ação importante em nossa luta contra o coronavírus.
O problema é que ainda que eles (os jornalistas) consigam promover uma distribuição mais significativa
das informações necessárias para que as coisas melhorem um pouco (como no caso do coronavírus, em
que, a depender do Governo Federal e sem o trabalho da imprensa, estaríamos condenados), os proprietários
da estrutura midiática (simbolicamente, a plataforma) estão fora do poço. E por mais que esses donos da
plataforma julguem ser importante que as coisas melhorem um pouco no poço, com uma justiça maior na
distribuição dos alimentos, eles não podem abrir mão de que exista uma camada que não recebe nada,
tampouco aceitar que as pessoas saiam do poço ou que a divisão por níveis não exista7
, pois, na sua
ganância, eles dependem do poço-capitalista para continuar esbanjando.
Por isso, para além de socializar a ilusão de banquete ou um simulacro de igualdade (que, ao fim, são apenas
as sobras dos interesses de quem está fora do poço), devemos socializar mensagens que nos permitam
destruir esse poço-pirâmide. Afinal, se existe uma verdade que o filme atenuou é essa: nosso poço social é
uma pirâmide (óbvio!). A comida não apenas é mais escassa nos níveis inferiores, como o número de
pessoas dependendo dela também é maior. Para mudar isso, temos que iniciar pela consciência. É um
processo lento, mas necessário. Muitos jornalistas têm ajudado nessa missão. A todos esses, um feliz dia
do Jornalista!
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Assim como no último ensaio que publiquei (COVID-19 e “pós-verdade”: o escárnio da racionalidade técnico-instrumental),
sugiro a leitura do editorial de O Globo de 20 de março de 2020, que, em linhas resumidas, defende o sacrifício do salário de
servidores públicos como contribuição para o combate do Covid-19. Tal texto deixa explícito o posicionamento dos barões da
mídia de ataque às classes e categorias que deveriam ser amparadas em momentos de instabilidade social e marca, por conseguinte,
a indisposição desses de tornar seu banquete um pouco menos pomposo.