Prática de Texto: leitura e redação não é um formulário, um catálogo de estratégias para a produção de texto. Talvez o maior desafio do ato da escrita seja o de não se reduzir a uma espécie de fórmula mágica que, uma vez aprendida e aplicada, resulte na solução dos problemas que se impõem ao aluno.
A escrita, por não ser um ato mecânico, como parece sugerir vários manuais de redação, exige o reconhecimento dos elementos ligados a fatores pessoais, sociais, educacionais... enfim, aos formadores da experiência de quem escreve.
É sintomático que os manuais do gênero não se detenham num problema crucial como o da subjetividade ---- que,, por sua vez, está intrinsecamente relacionado à criatividade ---- justo porque ela não de enquadra nos limites estreitos dos esquemas propostos para o ensino de redação.
Pensando nisso, o livro pretende propor, sem desprezar o auxílio eventual que determinados esquemas possam oferecer (como o de estruturação da frase no português, por exemplo), noções básicas para o desenvolvimento de repertório do leitor, dentre várias outras estratégias que favorecem a capacidade de análise e interpretação, linhas de força indispensáveis à constituição do pensamento crítico.
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
Luiz Roberto Dias de Melo & Celso Leopoldo Pagnan: Prática de texto leitura e redação
1.
2. Melo & Pagnan
LUiZ Ro b e r to DlAS DE MELO
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
Professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing - São Paulo
C e ls o L e o p o ld o P a g n a n
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista
Professor da Unopar - Universidade Norte do Paraná
2
A ! EDITORA
(11) 3565-0142
2
3. Prática de texto: leitura e redação
MELO, Luiz Roberto Dias de. Prática de texto: leitura e
redação / Luiz Roberto Dias de Melo e Celso Leopoldo
Pagnan. 3* ed., revista e ampliada. São Paulo : ai Editora, 2008
ISBN 85-87792-01-6
1. Análise de discurso 2. Comunicação escrita e impressa 3.
Leitura 4. Textos I. Título. II Série
CDD-808
-028
-410
índices para catálogo sistem ático
1. Análise do discurso: Lingüística 410
2. Leitura de textos: Ciências da informação 028
3. Texto: Organização e produção: Retórica 808 3
4. Texto: Produção; Retórica 808 _
4. Melo & Pagnan
Capítulo 1
Caracterização de texto
O objeto de trabalho deste livro é o texto (do latim textum: tecido),
considerado uma unidade básica de organização e transmissão de idéias,
conceitos e informações de modo geral. Em sentido amplo, uma escultura, um
quadro, um símbolo, um sinal de trânsito, uma foto, um filme, uma novela de
televisão também são formas textuais. Tal como o texto escrito, todos esses
objetos geram um todo de sentido, propriedade a partir da qual iniciaremos nossa
reflexão sobre nosso objeto de estudo.
Para tanto, será necessário definir algumas características do objeto - o
texto -, salientando as implicações de cada uma delas, a fim de se aprofundar a
análise e delimitar o ponto de partida que orientará nossa abordagem nos
próximos capítulos.
Observe ao lado
exemplo de texto verbal
e não-verbal, do
cartunista Angeli, pois
mescla palavra e
imagem.
a)
dessas características é,
como referimos, a do texto como um todo gerador de sentido, uma totalidade.
Um fragmento, uma parte (frase, palavra) não possuem autonomia, não podem
ser tomados isoladamente, na medida em que cada parte liga-se ao todo. Fora do
contexto (o texto como um todo), uma determinada parte poderá ter seu sentido
original alterado, impedindo a depreensão do que de fato se desejou transmitir -
o real significado do texto como expressão do autor. Há ainda uma propriedade
4
4
5. Prática de texto: leitura e redação
básica na organização dos textos, que é a coesão; além dessa, há outra,
identificada com os mecanismos de constituição de sentidos, que é a coerência,
ambas estudadas no capítulo 14;
b) Por mais neutro que pretenda ser - como as instruções para uso de
determinado equipamento ou uma notícia de jornal -, um texto sempre revela a
perspectiva1 (a visão de mundo) que o autor constrói da realidade. Vale dizer
que os textos são dotados de certo grau de intencionalidade, fenômeno mais
notável em textos argumentativos, (conforme estudaremos no capítulo 9). Um
exemplo típico disso pode ser verificado na edição de 15 de maio de 2000, do
Jornal de Londrina, em que se lê na primeira página a seguinte chamada: "Os
poucos torcedores que foram ontem à tarde ao Estádio do Café deveriam receber
um prêmio. Além de assistirem a um péssimo jogo e verem o Tubarão perder
para o Paraná por 1 a 0, /../ ainda tiveram de aturar a arbitragem insuportável do
juiz e seus asseclas". Observe o efeito de trechos como: deveriam receber um
prêmio ou assistirem a umpéssimojogo e, por fim, de forma mais contundente a
arbitragem insuportável dojuiz e seus asseclas. As palavras aí não são neutras,
revestem-se de um caráter judicatório, avaliativo, expressando um ponto de
vista, talvez o do torcedor ou do comentarista de futebol;
5
c) A visão de mundo que está na base do discurso de um autor pode ser
chamada de ideologia2, o processo de produção de significados, signos e valores
da vida social. O texto traz consigo, de modo mais ou menos evidente, valores
identificados com certa cultura e formação histórica e social na medida em que o
autor é um ator social que comunga com esses valores;
d) Pelo fato de ser um produto de uma época e de um lugar específicos,
há no texto as marcas desse tempo e espaço. Por isso, nenhum texto é um objeto
inteiramente autônomo, há sempre um diálogo estabelecido com outros textos e
com o contexto. O texto, ainda que implicitamente, incorpora diferentes
perspectivas a respeito de uma mesma questão3. O que se tem é uma inter-
1 Em que medida essa afirmação vale para um texto literário, um filme, uma escultura, um
quadro, um projeto arquitetônico? De modo simplificado, poderíamos responder que essas
formas textuais estão contagiadas de historicidade, possuem um caráter histórico, não como um
simples reflexo da realidade, mas como objetos construídos na História e, portanto, como
produtos pensados pelo homem em determinado tempo, de acordo com certas necessidades, de
natureza econômica, psicológica, existencial, religiosa, entre outras.
2O conceito clássico de ideologia, como má consciência, será desenvolvido no capítulo 4.
3 Algumas teorias do discurso, apoiadas nos estudos de J. Derrida e M. Foucault, abordam
inclusive como a perspectiva do próprio leitor é capaz de dar novo sentido ao texto. A esse
respeito ver: Maria José R. Faria Coracini (org.). Ojogo discursivo na aula de leitura. Campinas
: Pontes, 1995, especialmente pp. 13-20.
6. Melo & Pagnan
relação entre textos que tratam do mesmo assunto, ou de assuntos semelhantes,
com, eventualmente, abordagens diferentes. A esse respeito, Eni Orlandi afirma
o seguinte: "o sentido está sempre no viés. Ou seja, para se compreender um
discurso é importante se perguntar: o que ele não está querendo dizer ao dizer
isto? Ou: o que ele não está falando, quando está falando disso?"4 Por exemplo,
quando se defende a prática do aborto, não se reconhece a existência da vida, em
sentido mais pleno, no útero, bem como o poder do Estado em regular o direito
ao corpo.
Vejamos essas características no poema abaixo:
Provérbio revisto
Newton de Lucca
A voz do povo
é a voz de Deus...
Que povo?
Que Deus?
O que beijou Stálin?
O que delirou com Hitler?
Ou o que soltou Barrabás?
(Será que Deus já não teria se
enforcado em suas próprias cordas vocais?)
□ Totalidade
Se lêssemos apenas os dois primeiros versos do poema, travaríamos
contato tão-somente com o provérbio, portanto a revisão proposta pelo título não
se completaria. Somente por esse motivo já devemos considerar o texto em sua
totalidade. O mesmo aconteceria se isolássemos os dois últimos versos do
restante do poema. Qual a interpretação que poderia ser-lhes dada? Poderíamos,
por exemplo, entender que o autor estivesse decretando a morte de Deus e,
consequentemente, propondo uma visão ateísta do mundo, o que não é o caso. O
6
4A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2a ed., Campinas : Pontes, 1987, p.
275.
6
7. Prática de texto: leitura e redação
ponto, portanto, é determinar a organização do poema, para daí depreender o
sentido produzido.
□ Diálogo com outros textos e com o contexto
Ao provérbio, sucedem-se seis questões. Para que essas indagações sejam
resolvidas, é preciso determinar com quais textos este poema dialoga.
Inicialmente, há o desejo, expresso no título, de revisão do provérbio
apresentado nos dois primeiros versos. Esse provérbio afirma a supremacia dos
desígnios do povo, visto que há uma identi- dade entre este e Deus. No entanto,
a esse falso axioma (que se revela
dogmático), o eu-lírico5 opõe uma
série de situações factuais, verificá
veis na História, as quais, em
princípio, contestariam a pretensa
confirmação divina. Melhor
explicando, além de estabelecer uma
reflexão sobre o provérbio, o poema
traz para seu interior um fato bíblico
(o povo teria pedido a libertação de
Barrabás no lugar de Jesus Cristo, o
que, pela lógica do provérbio, teria
tido o aval de Deus), além de dois
fatos da História contemporânea (a
glorificação de Hitler e de Stálin,
líderes alemão e soviético,
respectivamente, que tiveram apoio popular e que foram responsáveis pela morte
de milhões de pessoas, os quais, mais uma vez, portanto, pela lógica do
provérbio, teriam tido o aval divino).
É nesse sentido que se estabelece um diálogo com outros textos (Bíblia e
provérbio) e com contextos específicos (a Europa nas décadas de 30 e 40).
Porém, se o leitor desconhece quem foram Hitler, Stálin ou Barrabás, a leitura
do poema como um objeto de revisão de determinado conteúdo histórico não se
complementa. É necessário, pois, conhecer o referente (o contexto) que
fundamenta o enunciado.
Axioma: verdade consensual,
baseada em uma lógica comprovável.
Ex.: “a educação deve ser a base de
uma sociedade forte”, ou “dois corpos
não podem ocupar o mesmo espaço no
mesmo momento”.
Dogma: verdade que se
pretende absoluta, não-relativa,
incontestável, pois. Muito comum na
argumentação religiosa: “Deus é o
criador de todo o Universo e dos seres
que nele vivem”. É possível também
encontrar dogmas na política, na
economia e mesmo na ciência.
7
5 O eu-lírico é a voz de um poema, como o narrador o é em um romance ou conto, com a
diferença que, no poema, não se narra, necessariamente, uma história.
8. Melo & Pagnan
□ Perspectiva e ideologia
Da leitura atenta do poema, pode-se chegar ainda à perspectiva do autor
e qual o sistema de idéias que norteia a construção de seu texto. Ora, ao propor
uma série de perguntas, o autor pretende revelar ou a incoerência de Deus ou a
não-validade da visão de mundo que o provérbio encerra. Assim, tem-se a
perspectiva de alguém contrário às pretensas verdades absolutas que nos são
colocadas, seja via provérbios, seja através de outros enunciados moralistas.
Exercícios
1) Leia o texto abaixo e responda às questões a seguir:
Uma reflexão definal de ano
Roberto Shinyashiki
Todo natal é a mesma coisa. Parece que uma poção mágica nos inebria e
nos induz a um comportamento fraterno e reflexivo. Ficamos mais sensíveis às
coisas que realmente importam. Mas o ideal mesmo seria m anter essa sensibilidade
durante todo o ano. Para a grande maioria dos mortais, o arrependimento e a
frustração são os grandes vilões que perturbam a paz que deveria anteceder nossos
momentos finais.
Pude comprovar isso quando eu era médico recém-formado. N a época, tive
a oportunidade de trabalhar num hospital de pacientes terminais. Trata-se de um
lugar onde é comum você acompanhar várias mortes por dia. Eu sempre dava um
jeito de estar junto aos pacientes em seus últimos minutos. Acompanhei muitos
deles no momento de sua passagem, e a grande maioria vivia a morte com muita
frustração e arrependimento.
Alguns diziam: “Doutor, sempre me sacrifiquei e agora que ia começar a
viver, estou morrendo. Não é justo...”
A maioria das pessoas morre frustrada por não haver aproveitado sua vida.
Elas passaram o tempo todo lutando pelas coisas erradas e se esqueceram de
cultivar a felicidade no seu dia-a-dia. Não entenderam a importância dos pequenos
momentos. D o almoço com a esposa, dos 15 minutos de brincadeira com o filho,
das amizades construídas ao longo da vida... jamais vi alguém arrependido por não
ter sido mais duro, por não ter se vingado, por não ter sido egoísta. Todos se
arrependiam por não ter amado mais, por não ter aproveitado a vida. A família, o
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9. Prática de texto: leitura e redação
amor, os sonhos e os amigos são, no fundo, o que realmente importam. Quando os
pacientes enxergavam isso, já era tarde demais. Nessa hora, as pessoas se
arrependiam porque descobriam que as coisas profundas, extremamente
significativas de sua vida, eram formadas de palavras simples e não de termos como
dólar, real, pressão, inflação, recessão...
O mesmo podemos dizer da felicidade. As palavras que a acompanham são
simples. Simples como amigos, filhos, família e companheirismo. Infelicidade,
portanto, nada mais é do que adiar a felicidade para depois. É não prestar atenção
nas pequenas coisas. Grande parte das pessoas deixa a felicidade sempre para
depois. É como dizer: “Serei feliz quando terminar a faculdade. Serei feliz quando
me casar. Serei feliz quando me aposentar”. Isso está errado! É preciso ser feliz
hoje. Já. Conheço uma história que ilustra isso tudo muito bem.
“Um sujeito estava caindo em um barranco e se agarrou às raízes de uma
árvore. Em cima do barranco havia um urso imenso querendo devorá-lo. Embaixo,
prontas para engoli-lo, estavam seis onças tremendamente famintas. As onças
embaixo querendo comê-lo, e o urso em cima querendo devorá-lo também. Em
determinado momento, ele olhou para o lado esquerdo e viu um morango
vermelho, lindo, com aquelas escamas douradas refletindo ao sol. N um esforço
supremo, apoiou seu corpo, sustentado apenas pela mão direita, e, com a esquerda,
pegou o morango.
Quando pôde olhá-lo melhor ficou inebriado com sua beleza. Então, levou
o morango à boca e se deliciou com o sabor doce e suculento. Foi um prazer
supremo colher aquele morango.”
Deu para entender?
Talvez você pergunte:
—Mas e o urso?
Dane-se o urso e coma o morango!
—E as onças?
Azar das onças, coma o morango!
Às vezes, você está em sua casa no final de semana com seus filhos e
amigos comendo um churrasco. Percebendo seu mau humor, sua esposa lhe diz:
—Meu bem, relaxe e aproveite o domingo!
E você, chateado, responde: “Como posso curtir o domingo se amanhã vai
ter um monte de ursos querendo me pegar na empresa?”
Mais do que nunca você tem que aprender a ter prazer em enfrentar os
ursos e aprimorar-se contra as onças, porque são eles, de fato, que farão parte do
seu dia-a-dia. Mas não deixe de comer os morangos, porque sem felicidade nossa
passagem pelo planeta Terra não vai ter a mínima graça.
Revista VocêS.A., dez. 1998
10. Melo & Pagnan
a) Identifique e reescreva com as suas palavras a idéia-chave do texto.
b) O autor para desenvolver a idéia-chave baseia-se em uma concepção que
poderia ser classificada como lugar-comum, como um clichê. Qual é esse lugar-
comum, essa idéia desgastada pelo uso rotineiro, presente no 5° parágrafo?
c) De que ponto de vista Roberto está escrevendo? Essa perspectiva possibilita-
lhe tratar do assunto com autoridade? Explique.
d) Nesse sentido, o lugar-comum toma ares de validade universal, ou não?
Explique.
2) Leia o texto abaixo:
A mensagempublicitária
A mensagem publicitária é o braço direito da tecnologia moderna. É a
mensagem de renovação, progresso, abundância, lazer e juventude, que cerca as 10
inovações propiciadas pelo aparato tecnológico. —
Ao contrário do panorama caótico do m undo apresentado nos noticiários
dos jornais, a mensagem publicitária cria e exibe um mundo perfeito e ideal,
verdadeira ilha da deusa Calipso, que acolheu Ulisses em Odisséia —sem guerras,
fome, deterioração ou subdesenvolvimento. Tudo são luzes, calor e encanto, numa
beleza perfeita e não-perecível.
Essa mensagem, contudo, não se limita ao mundo dos sonhos. Ela concilia o
princípio do prazer com o da realidade, quando, normativa, indica o que deve ser
usado ou comprado, destacando a linguagem da marca, o ícone do objeto.
Em bora nem todas as mensagens surtam o efeito desejado, a onipresença da
publicidade comercial na sociedade de consumo cria um ambiente cultural próprio,
um novo sistema de valores, co-gerador do ‘espírito do tem po’. (...) De mãos dadas
com a taumaturgia publicitária, a sociedade da era industrial produz e desfruta dos
objetos que fabrica, mas sobretudo sugere atmosferas, embeleza ambientes e
artificializa a natureza —que vende de água mineral a sopinhas enlatadas.
Possuir objetos passa a ser sinônimo de alcançar a felicidade: os artefatos e
produtos proporcionam a salvação do homem, representam bem-estar e êxito. Sem
a auréola que a publicidade lhes confere, seriam apenas bens de consumo, mas
mitificados, personalizados, adquirem atributos da condição humana.
Nelly de Carvalho. Publicidade: alinguagemdasedução. São Paulo: Ed. Atica, 1996.
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11. Prática de texto: leitura e redação
a) O que a autora quis dizer com a seguinte afirmação: "a mensagem publicitária
é o braço direito da tecnologia moderna"?
b) Determine em qual trecho do texto fica clara a relação deste texto com um
outro texto ou contexto.
c) Qual o papel da publicidade, segundo Nelly, na sociedade industrial?
3) (Ita) Assinale a opção em que a manchete de jornal está mais em acordo com
os cânones da "objetividade jornalística":
a) O mestre do samba volta em grande forma (O Estado de S. Paulo,
17/07/1999.)
11
b) O pior do sertão na festa dos 500 anos (O Estado de S. Paulo, 17/07/1999.) —
c) Proteína direciona células no cérebro (Folha de S. Paulo, 24/07/1999.)
d) A farra dos juros saiu mais cara que a da casa própria (Folha de S. Paulo,
13/06/1999.)
e) Dono de telas "falsas" diz existir "armação". (O Estado de S. Paulo,
21/07/1999.)
4) Observe a foto abaixo, de Murilo Clareto, do jornal O Estado de S. Paulo,
feita em 8 de outubro de 1996. Nela vemos a silhueta de Celso Pitta, ex-afilhado
político de Paulo Maluf, no segundo plano.
a) Podemos considerar a foto como um texto? Explique.
12. Melo & Pagnan
b) Que significados podem ser atribuídos a essa foto, considerando os
acontecimentos políticos que envolveram as duas personalidades?
c) O "realismo ingênuo" tende a considerar uma foto jornalística como uma
reprodução fiel do real, um retrato preciso dos fatos. Se assim fosse, a foto
abaixo não incorporaria as "marcas" do seu autor, isto é, ela seria um texto
neutro, não deixando transparecer uma intenção do fotógrafo. Explique.
5) Leia o texto abaixo:
Cinema: revelação e engano
Ismail Xavier
Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por
outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelatório como uma simulação de
acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de uma estratégia. Discuto esta
questão especificando determinadas condições de leitura das imagens; ao mesmo tempo,
faço uma recapitulação histórica, pois o binômio revelação/engano se projeta no tempo,
referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa maior, aurora do
século, e o do desencanto, anos 70/80.
12
13. Prática de texto: leitura e redação
Comento, de início, uma situação extraída do documentário Point of Order (1963),
de Emílio de Antonio, filme que focaliza os processos e as seções de tribunal no período
do macarthismo6 nos Estados Unidos. Trata-se de uma remontagem da documentação
colhida ao vivo nos interrogatórios. Em determinado momento, uma testemunha da
acusação é inquirida pelo advogado de defesa de um militar acusado de atividades
antiamericanas. Esse advogado mostra uma foto à testemunha. Nesta foto se vê, numa
tomada relativamente próxima, duas figuras: o réu e, a seu lado, alguém já comprometido,
já indexado na caça às bruxas. A imagem, ao mostrar os dois conversando em tom de certa
intimidade, é assumida pela promotoria como peça importante da acusação. O advogado
pergunta à testemunha se considera a foto verdadeira. A resposta é “sim”. O advogado,
então, mostra uma foto maior onde aparece, numa reunião ampla, um grupo de pessoas —
dentre elas algumas insuspeitas —que traz num dos seus cantos a dupla anteriormente vista
na foto menor. Entendemos sem demora que a primeira imagem é um recorte da segunda,
ou seja, é parte de um contexto maior, com muita gente envolvida, uma situação pública
que não denota qualquer cumplicidade maior entre o réu e seu interlocutor. O curioso no
fato é que, ao ser reiterada a pergunta — “você continua achando esta foto [menor]
verdadeira?” — a resposta é de novo “sim”. Chegamos aqui ao dado significativo. A
resposta nos surpreende mas ilustra muito bem uma certa noção de verdade, noção muito
mais presente no senso comum de uma sociedade como a nossa do que talvez gostaríamos.
A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada pedacinho da foto, como
também da realidade. Aquele canto da imagem, aquele fragmento extraído da situação
maior, foi obtido sem que se adulterasse cada ponto da foto, sem maquiagem, sem
alteração das relações que lhe são internas. Logo, ele “contém” a verdade. É uma imagem
“captada”: as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da câmera (não importa aí o
contexto). O recorte, definidor da moldura, não incomodou a testemunha para quem a
verdade é soma, está em cada parte.
Em nossa cultura, o processo fotográfico tem grande poder sobre as convicções
deste tipo de observador assim embalado pela evidência empírica trazida pela imagem. Mais
até do que a acuidade da reprodução (eixo da semelhança), a imagem fotográfica (e
cinematográfica) ganha autenticidade porque corresponde a um registro automático: ela se
imprime na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causalidade
fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema de lentes (a objetiva da
câmera) e o “acontecimento”, fica depositada uma imagem deste que funciona como um
documento. Quando se esquece a função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da
imagem isolada, temos um sujeito totalmente cativo ao processo de simulação por mais
simples que ele pareça. Caso típico é o desta testemunha de McCarthy a consagrar o
engodo de uma promotoria.
In: NOVAES, Adauto et al., O olhar. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, pp. 368-367
6 Segundo o dicionário Aurélio: “atitude política radicalmente infensa ao comunismo, e que se
desenvolveu nos EUA com a campanha desencadeada pelo Senador Joseph Raymond
MacCarthy [1909-1957]”. Nota dos autores.
14. Melo & Pagnan
a) Que relações podemos estabelecer entre o “recorte” da imagem fotográfica,
mencionado por Ismail Xavier, e as considerações, desenvolvidas neste
capítulo, em torno do princípio de não-autonomia das partes de um texto?
b) Segundo o texto, como se deu a “consagração” do engodo praticado pelo
promotor?
c) O depoimento da testemunha segue uma lógica cuja natureza identifica-se
com certo modo de percepção e julgamento muito arraigados na nossa
sociedade. Explique.
Proposta de Redação
"Desde seu surgimento e ao longo de sua trajetória, até os nossos dias, a 14
fotografia tem sido aceita e utilizada como prova definitiva, 'testemunho da —
verdade' do fato ou dos fatos. Graças a sua natureza fisioquímica — e hoje
eletrônica — de registrar aspectos (selecionados) do real, tal como estes de fato
se parecem, a fotografia ganhou elevado status de credibilidade. Se, por um
lado, ela tem valor incontestável por proporcionar continuamente a todos, em
todo o mundo, fragmentos visuais que informam das múltiplas atividades do
homem e de sua ação sobre os outros homens e sobre a Natureza, por outro lado,
ela sempre se prestou e sempre se prestará aos mais diferentes e interesseiros
usos dirigidos.
As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre tiveram na
imagem fotográfica um poderoso instrumento para a veiculação das idéias e da
conseqüente formação e manipulação da opinião pública, particularmente, a
partir do momento em que os avanços tecnológicos da indústria gráfica
possibilitaram a multiplicação massiva de imagens através dos meios de
informação e divulgação.
E tal manipulação tem sido possível justamente em função da
mencionada credibilidade que as imagens têm junto à massa, para quem, seus
conteúdos são aceitos e assimilados como a expressão da verdade. Comprova
14
15. Prática de texto: leitura e redação
isso a larga utilização da fotografia para a veiculação da propaganda política, de
preconceitos raciais e religiosos, entre outros usos dirigidos."
Trecho de “Estética, memória e ideologia fotográfica” In:
KOSSOY, B. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo :
Ateliê, 1999
Considerando-se algumas informações que você obteve a propósito da
natureza de um texto e as reflexões de Kossoy em torno do texto fotográfico,
faça uma redação sobre a questão da intencionalidade (de um autor) no texto
escrito.
15
16. Melo & Pagnan
Capítulo 2
Repertório e escrita
Neste capítulo, abordaremos alguns aspectos ligados à produção de texto,
como o uso do vocabulário, sem que haja ainda uma preocupação sistemática
com os gêneros redacionais.
A palavra repertório tem a seguinte etimologia: é uma "matéria
metodicamente disposta"; uma "coleção", um "conjunto"; um "inventário" ou
"compilação". Você já ouviu essa palavra ser relacionada ao universo da música,
quando se diz que certo cantor ou compositor possui (ou não) bom repertório.
Ao se emitir tal opinião, adota-se um juízo de valor de acordo com
determinado critério de qualidade. No caso de um cantor, ainda que se reconheça
o valor intrínseco do repertório, pode-se dizer que este, por uma série de razões,
não se ajusta bem ao intérprete: exigências técnicas de voz não correspondidas
pelo artista; baixa capacidade dramática do cantor; inadequação à personalidade
do profissional etc.
Essas considerações valem em parte para a discussão que nos interessa
em torno da noção de repertório. Há uma relação íntima entre o cantor e seu
repertório, o seu "conjunto de canções", na medida em que este, guardadas certas
diferenças de personalidade dos artistas, é produto de uma intensa disposição
para o experimento, para o ensaio, para a repetição, cujo resultado concorre
também para configurar a identidade do intérprete no mundo do espetáculo.
A noção de inventário de experiências, que constitui uma prática de vida,
é útil para compreendermos o sentido mais extenso da palavra. O repertório,
nessa última acepção, é resultado do esforço de auto-conhecimento do indivíduo,
de uma determinação em saber-se de si e saber sobre o mundo, de uma
capacidade a um só tempo de reflexão, de projeção e conservação de uma
matéria que se impõe como decisiva e confirmadora de uma existência.
Nossa experiência na família e na sociedade, nossa educação escolar,
nossas leituras, nosso trabalho, nossa memória e imaginação, a matéria
efetivamente vivida ou ludicamente inventada. Tudo isso se articula como um
conjunto de informações organizadas em nossa consciência que servirá de
substância para o ato da escrita, sendo ela mesma produto e elemento
transformador do conjunto.
Ao contrário do cantor eventualmente mal-adaptado ao repertório
musical, a constelação de elementos acima indicada nunca está em desarmonia
conosco, pois que somos o próprio repertório.
16
17. Prática de texto: leitura e redação
Podemos pensar o modo de convívio entre as partes integrantes do
repertório individual como uma rede, um sistema de relações na forma de
linguagem, capaz de assimilar e gerar conhecimento.
No âmbito de um livro como este, destinado a um público específico e
comprometido com um enfoque prático do fenômeno da escrita, temos que
afastar a pretensão de introduzir o leitor no campo do método científico
propriamente dito, inclusive porque este não pode ser limitado ao ato da escrita.
No entanto, torna-se viável uma aproximação dos princípios do método das
ciências humanas - o compreensivo-interpretativo - como referência para o
trabalho crítico de leitura e de produção de textos.
Segundo a filósofa Marilena Chaui, as "ciências humanas têm métodos
de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos
comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos
desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é
um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas"7. Perceber,
compreender e julgar, etapas fundamentadoras da prática de leitura e redação,
são os três movimentos do trabalho intelectual para o qual você foi e será
solicitado, em sintonia com um princípio geral do método das ciências humanas.
Interpretar significa "traduzir, ajuizar da intenção, do sentido" do objeto
de estudo; a palavra indica também um movimento em direção ao interior
(interpretação) do objeto, descobrindo-lhe as especificidades, compreendendo a
sua natureza e oferecendo uma explicação, atributo determinante do
conhecimento.
A percepção, a compreensão e o julgamento comparecem em escala
diferenciada no contexto dos gêneros redacionais. Além disso são categorias
relacionadas ao indivíduo que não dispensam a intuição, um processo de
contemplação do objeto de estudo por meio do qual se alcança uma verdade
diferente daquela atingida pela razão ou pelo conhecimento discursivo e
analítico. O que seria da literatura se não fosse a intuição? Grandes escritores
traçam os perfis psicológicos das personagens, pressentem sua fala, seu modo
de agir, amparados pela intuição.
"A memória é um diário que todos andamos carregando" - escreveu
Oscar Wilde, escritor inglês do século XIX. Evocando a imagem do diário,
Wilde vale-se de uma metáfora que nos remete a uma forma especial de registro
da memória. A escrita de imediato determina um critério seletivo à exposição
dos fatos ocorridos no dia; o diário retém a lembrança do que se julga
significativo, não acolhendo toda a experiência de um dia de vida.
7 Convite à filosofia. 3aed., São Paulo : Ática, p. 159
18. Melo & Pagnan
A memória certamente extrapola os limites do diário porque ela é capaz,
entre tantas outras possibilidades, de reter sensações, como os cheiros e aromas
que não se deixam facilmente apreender pela via analítica, pela descrição de sua
"anatomia".
Esse nosso acervo pessoal, que é a memória, possibilita-nos a evocação
de significados afetivos, de gestos, atitudes e situações vitais para o nosso ser, ao
mesmo tempo que se dissolve em grande parte na ação do tempo. Tempo e
memória são inseparáveis, pois nesta preservamos o passado e extraímos dele,
na forma de experiência, o sentido que ordena o presente, o qual, por sua vez,
poderá conferir novos sentidos ao passado. A memória é identidade e impulso
que nos lança no futuro como seres únicos, donos de uma história pessoal que
determina nossas convicções e participa das escolhas e das exigências ao nosso
discernimento.
Possivelmente a memória guarda ainda a virtualidade não só de nos
transportar ao passado, por via da evocação, mas também a de nos "transformar"
no presente, embora por poucos instantes, naquilo que fomos um dia... Marcel
Proust, autor de Em busca do tempo perdido, romance dividido em sete volumes,
deixa entrever essa propriedade da memória, ao longo de várias páginas, das
quais destacamos esta passagem de À sombra das raparigas em flor, o segundo
volume da obra:
... a maior parte de nossa memória está fora de nós, numa viração de chuva,
num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte
onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência desdenhara, por não
lhe achar utilidade, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas
as nossas lágrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer-nos chorar. Fora de nós?
Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhares, num
esquecimento mais ou menos prolongado.
(Tradução de Mário Quintana)
A propósito da integração das partes do repertório na forma de uma rede
geradora de sentido, leia a crônica abaixo, na qual Zuenir Ventura faz referência
a uma série de dados da atualidade. É preciso que o leitor faça uma conexão
eficiente entre os fatos apresentados pelo autor para assimilar o sentido integral
do texto.
18
19. Prática de texto: leitura e redação
Em vez das células, as cédulas
Nesses tempos de clonagem, recomenda-se assistir ao documentário
Arquitetura da destruição, de Peter Cohen. A fantástica história de Dolly, a
ovelha, parece saída do filme, que conta a ventura demente do nazismo, com
seus sonhos de beleza e suas fantasias genéticas, seus experimentos de eugenia e
purificação da raça.
Os cientistas são engraçados: bons para inventar e péssimos para prever.
Primeiro, descobrem; depois se assustam com o risco da descoberta e aí então
passam a gritar "cuidado, perigo". Fizeram isso com quase todos os inventos,
inclusive com a fissão nuclear, espantando-se quando "o átomo para a paz"
tornou-se uma mortífera arma de guerra. E estão fazendo o mesmo agora.
(...) Desde muito tempo se discute o quanto a ciência, ao procurar o bem,
pode provocar involuntariamente o mal. O que a Arquitetura da destruição
mostra é como a arte e a estética são capazes de fazer o mesmo, isto é, como a
beleza pode servir à morte, à crueldade e à destruição.
Hitler julgava-se "o maior ator da Europa" e acreditava ser alguma coisa
como um "tirano-artista" nietzschiano ou um "ditador de gênio" wagneriano.
Para ele, "a vida era arte," e o mundo, uma grandiosa ópera da qual era diretor e
protagonista.
O documentário mostra como os rituais coletivos, os grandes espetáculos de
massa, as tochas acesas (...) tudo isso constituía um culto estético - ainda que
redundante (...) E o pior - todo esse aparato era posto a serviço da perversa
utopia de Hitler: a manipulação genética, a possibilidade de purificação racial e
de eliminação das imperfeições, principalmente as físicas. Não importava que os
mais ilustres exemplares nazistas, eles próprios, desmoralizassem o que
pregavam em termos de eugenia.
O que importava é que as pessoas queriam acreditar na insensatez apesar dos
insensatos, como ainda há quem continue acreditando. No Brasil, felizmente,
Dolly provoca mais piada do que ameaça. Já se atribui isso ao fato de que a
nossa arquitetura da destruição é a corrupção. Somos craques mesmo é em
clonagem financeira. O que seriam nossos laranjas e fantasmas senão clones e
replicantes virtuais? Aqui, em vez de células, estamos interessados é em
manipular cédulas.
Zuenir Ventura, Jornal do Brasil, 1997
19
Reproduzimos o texto abaixo do site da Rede Escola, mantido pelo
Estado do Rio de Janeiro. Note como os autores enfatizam o caráter intertextual
e a inserção histórica da crônica acima, na relação com o repertório do leitor.
20. Melo & Pagnan
“Tendo como ponto de partida a alusão ao documentário Arquitetura da
Destruição, o texto mantém sua unidade de sentido na relação que estabelece com
outros textos, com dados da História.
Nesta crônica, duas propriedades do texto são facilmente perceptíveis: a
intertextualidade e a inserção histórica.
O texto se constrói à medida que retoma fatos já conhecidos. Nesse sentido,
quanto mais amplo for o repertório do leitor, o seu acervo de conhecimentos,
maior será a sua competência para perceber como os textos 'dialogam uns com os
outros' por meio de referências, alusões e citações.
Para perceber as intenções do autor desta crônica, ou seja, a sua
intencionalidade, é preciso que o leitor tenha conhecimento de fatos atuais, como
as referências ao documentário recém lançado no circuito cinematográfico [fita
disponível em vídeo], à ovelha clonada Dolly, aos 'laranjas' e 'fantasmas' —termos
que dizem respeito aos envolvidos em transações econômicas duvidosas. É preciso
que conheça também o que foi o nazismo, a figura de Hitler e sua obsessão pela
raça pura, e ainda tenha conhecimento da existência do filósofo Nietzsche e do
compositor Wagner.
O vocabulário utilizado aponta para campos semânticos [ou lexicais] relacionados à
clonagem, à raça pura, aos binômios arte/beleza - arte/destruição, corrupção.
clonagem
experimentos
avanços genéticos
ovelhas
cientistas
inventos
células
clones
replicantes
manipulação genética
descoberta
raça pura
aventura demente do nazismo
fantasias genéticas
experimentos de eugenia
utopia perversa
manipulação genética
imperfeições físicas
eugenia
arte/beleza - arte/destruição
estética, sonhos de beleza
crueldade
tirano artista
ditador de gênio
nietzschiano
wagneriano
20
21. Prática de texto: leitura e redação
grandiosa ópera
diretor, protagonista
espetáculos de massa
tochas acesas
corrupção
laranjas
clonagem financeira
cédulas
fantasmas
Esses campos semânticos se entrecruzam, porque englobam referências
múltiplas dentro do texto”.
Exercícios
1. Escreva um pequeno texto sobre os seus primeiros dias de estudante. Tente
descrever as sensações vividas naquele tempo, as primeiras impressões do prédio
da Escola, da sua sala de aula, dos seus colegas e professor; procure trazer à
memória os aromas que envolviam aquele ambiente e os sons que pouco a pouco
tornaram-se familiares. 21
2. Imagine que uma folha do seu caderno é uma página do seu diário. Reflita
sobre o que você fez no dia anterior (ou anteriores) a este e registre algo que
julgue importante para ser relido no futuro. (Não se prenda necessariamente a
fatos; se for o caso, privilegie uma reflexão sobre um sentimento, uma amizade,
um gesto...)
3. Qual ou quais são os assuntos que você gostaria de discutir em sala de aula
mas que nunca teve oportunidade de fazê-lo? Explique o motivo de sua escolha.
4. João Guimarães Rosa, autor de grandes clássicos da literatura brasileira, entre
os quais sua obra-prima - Grande sertão: veredas -, possuía uma biblioteca que
reunia títulos sobre os mais variados assuntos; um desses títulos era o do
pensador francês Antoine D. Sertillanges, em cujos Devoirs (Deveres) Rosa
sublinhou o seguinte trecho: “O ser que recebemos ao nascer não é definitivo; é
embrionário, plástico”. O leitor de Grande sertão encontra o aforisma do escritor
francês ficcionalizado em uma das muitas reflexões de Riobaldo, protagonista do
romance:
22. Melo & Pagnan
“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas —mas que elas vão sempre
mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior”. (pp. 20-21)
A transcriação operada por Guimarães Rosa em relação ao texto-matriz de
Sertillanges é um exemplo de incorporação de uma leitura ao repertório de um
dos nossos maiores escritores. Releia os dois textos e faça uma tradução criativa
do mesmo conteúdo.
5. Leia o texto abaixo e depois responda.
“Com gemas para financiá-lo, nosso herói desafiou valentemente todos os
ricos desdenhosos que tentaram dissuadi-lo de seu plano. 'Os olhos enganam' disse
ele, 'um ovo e não uma mesa tipificam corretamente esse planeta inexplorado'.
Então as três irmãs fortes e resolutas saíram à procura de provas, abrindo caminho,
às vezes através de imensidões tranqüilas, mas amiúde através de picos e vales
turbulentos. Os dias se tornaram semanas, enquanto os indecisos espalhavam
rumores apavorantes a respeito da beira. Finalmente, sem saber de onde, criaturas
aladas e bem vindas apareceram anunciando um sucesso prodigioso."
In: KLEIMAN, Angela. Texto eleitor: aspectos cognitivos
da leitura. Campinas : Pontes, 1989.
O texto é bastante difícil à primeira vista. Pensamos mesmo tratar-se de um
texto mal escrito, sem coerência. No entanto, a partir de uma releitura atenta será
possível depreender elementos que, juntos, configuram um campo semântico
coerente, pleno de sentido, na medida em que todos os elementos se interligam
entre si. Para chegar a tal conclusão, será preciso que você possua determinado
repertório, isto é, que você seja capaz de articular os sintagmas do texto
preenchendo-os de sentido; esta operação, por sua vez, fica na dependência de
você possuir certas informações. É um exercício de cognição, de “cultura geral”
e de perspicácia.
a) Depois que você for capaz de decifrar o “enigma”, dê um título adequado ao texto, um título
que de imediato esclareça o leitor sobre a matéria que irá ler.
b) Explique o sentido de dois sintagmas (palavras, expressões, frases), conforme o contexto
depreendido por você.
22
23. Prática de texto: leitura e redação
6. O texto narrativo abaixo é alegórico, isto é, ele se constrói pelo
entrelaçamento de metáforas que remetem o leitor a assuntos da atualidade.
Reescreva no seu caderno os trechos que se referem metaforicamente a esses
assuntos e em seguida interprete o sentido de cada trecho sempre considerando
seu caráter relacionado ao cotidiano.
d ;;
Frei Beto
Revista Bundas, jul. 1999
Era uma vez um reino de bobos. Exceto um, é claro —o rei! O rei era o único
inteligente, culto, poliglota e, além de tudo, bonito. Um dia, para alegria dos reinóis,
ordenou Sua Majestade cunhar a moeda real. Decretou que ela seria tão forte
quanto as moedas dos mais poderosos reinos. Os bobos acreditaram que, com tal
moeda em mãos, teriam pela frente um futuro de prosperidade e fartura. 23
A moeda era forte, mas os salários, fracos. Os nobres, em cujas mãos se —
acumulavam moedas reais, viram suas fortunas multiplicarem-se como coelhos do
reino. Os servos, obsequiados com míseros trocados, eram tragados pela miséria
que lhes assomava à porta.
O rei, contudo, julgando-se bondoso, quis poupar a capacidade produtiva de
seus súditos. N um reino com tantas praias, rios, lagos e belezas naturais, não seria
bom alvitre importar os produtos necessários? Assim, alegou o soberano, os reinóis
só teriam o trabalho de consumir, jamais produzir.
Logo, o reino passou a importar caravelas e caravelas de produtos. Inclusive
moedas mais fortes de outros reinos, para encher suas burras. Como os súditos
eram bobos, o rei considerou medida de somenos penhorar o reino ao Fundo
Majestático de Investimentos, uma instituição que administrava riquezas das cortes
poderosas e jamais permitia que um reino pobre viesse a ter melhor sorte.
Os bobos aplaudiram quando o rei decidiu entregar as fontes de riquezas do
reino aos grandes impérios. Tudo iria funcionar melhor, prometia o rei, e a corte
ficaria mais rica. Os bobos acreditaram, as fontes de riquezas foram repassadas aos
estrangeiros e o tesouro real engordou.
Porém, a aura de fortaleza da moeda real se desfez quando o poder dos magos
do reino entrou em crise e, em poucos meses, o tesouro real perdeu tanto de sua
fortuna que se tornou possível enxergar o seu piso. E os problemas com os serviços
24. Melo & Pagnan
estrangeiros implantados no reino começaram a se tornar crônicos. Basta dizer que
as comunicações entre os súditos ficaram prejudicadas pelos mensageiros que
quebravam as pernas, cavalos que deslizavam na lama, corneteiros que encontravam
seus instrumentos entupidos.
O rei viu-se obrigado a devolver aos credores do reino o dinheiro pago pelas
fontes de riquezas. De modo que os credores ficaram com o dinheiro e as fontes.
Mas os arautos do reino explicaram à plebe que se tratava de uma borrasca
passageira. A crise mundial, a tempestade no país vizinho respingava no reino, mas
logo se recuperaria a riqueza perdida. Os bobos acreditaram.
A rainha, do alto da sacada do palácio, jurou que os pobres não seriam
atingidos pela crise. Claro, os pobres do reino não possuíam saúde e instrução,
moradia e terra, e vagavam maltrapilhos por estradas e encruzilhadas. A rainha
tinha razão. Os pobres nada tinham a perder, exceto o fio de vida que lhes restava.
Mas isso, na opinião dos conselheiros do rei, não seria uma perda, seria um
consolo.
O segredo do rei era governar para a corte e com o corte. Para beneficiar a
corte, ele cortava o pouco que quedava a seus súditos: cortaram-se anos dos velhos,
obrigados a morrer aos 65 anos; estipêndios dos mestres, forçando-os a ensinar o
que não podiam aprender; infância das crianças, condenando-as ao trabalho
precoce; fomentos de agricultores, para que suas lavouras não viessem ameaçar os
belos campos reservados à caça e aos jogos da nobreza.
Certo dia, os bobos surpreenderam ministros do rei fazendo uso da carruagem
real para levar suas famílias a passeios. Por um momento, os bobos acreditaram que
estavam começando a deixar de ser bobos. Mas os arautos do rei esclareceram que
os cocheiros deveriam cumprir umas tantas horas anuais de viagens pelas estradas
do reino.
Os bobos contentaram-se com a explicação, assim como já se haviam
conformado quando lhes foi dito que as riquezas sonegadas do tesouro real para
beneficiar certos nobres eram perfeitamente legais. Como eram bobos, não
questionaram. Assim como engoliram a seco quando o rei nomeou um carrasco
para comandar a guarda do reino.
E assim, o rei e a rainha viveram felizes para sempre, cercados de homenagens
da nobreza rica, bela e sadia. Quanto aos súditos... Bem, isso é outra história.
7. O texto a seguir é um representante da poesia de caráter participativo (de crítica social).
Cartilha
a MATIlha
contra a Ilha
24
25. Prática de texto: leitura e redação
Ilha recUSA?
Ilha reclUSA
USA e abUSA
América LATina
AméRICA ladina
LATe a MATilha
Ilha trIlha
CartIlha
José Paulo Paes. Invenções. 1967. In: Umpor todos.
poesia reunida. São Paulo : Brasiliense, 1986, p. 96
a) O poema registra momentos de transformação social e histórica. Indique-os.
b) No texto há uma série de jogos formais explorando as possibilidades fônicas e
visuais dos vocábulos. No primeiro verso (linha), o grafema (símbolo gráfico)
"MAT" realça qual sentido em relação à "Ilha"?
c) Explique ojogo formal do quinto verso do texto.
d) Explique o significado dos dois últimos versos.
e) O vocábulo cartiIlha assume um sentido positivo ou negativo no interior do
processo histórico? Explique.
Proposta de redação
Tudo o que eu preciso saber aprendi no jardim da infância
26. Melo & Pagnan
A maior parte do que realmente preciso para saber como viver, o que fazer,
como ser, eu aprendi no Jardim da Infância.
A sabedoria não estava no topo da m ontanha do conhecimento, que é a
faculdade, mas sim, no alto do monte de areia do Jardim da Infância.
Essas são algumas das coisas que eu aprendi: dividir tudo; brincar dentro
das regras; não machucar ninguém; colocar as coisas de volta no lugar de onde
foram tiradas; arrumar a própria bagunça; nunca pegar o que não é meu; pedir
desculpas sempre que machucar alguém; lavar as mãos antes das refeições; dar
descarga; leite com bolachas fazem bem para nossa saúde.
Tirar uma soneca todos os dias.
Quando sair na rua olhar os carros, dar as mãos e ficar junto. Estar atento
às maravilhas. Lembra daquela sementinha de feijão no potinho de Danone? As
raízes crescem para baixo e as folhas para cima e ninguém sabe com certeza como
ou por que, mas todos nós somos exatamente como ela.
Peixinhos dourados, hamsters e ratinhos brancos, e até a pequena semente
de feijão no potinho de Danone —todos morrem —assim como nós.
E lembre do primeiro livro de leitura que você leu e das primeiras palavras
que você aprendeu. As maiores de todas: mamãe e papai.
Tudo o que você precisa saber está lá em algum lugar. Regras sobre a vida, o
amor, saneamento básico, ecologia, política, igualdade e fraternidade. Pegue
qualquer um desses temas e extrapole para sofisticadas palavras de linguagem adulta
e então aplique em sua vida familiar, no trabalho, no governo ou no mundo e tudo
continua firme e verdadeiro.
Pense como o mundo seria melhor se nós —o mundo inteiro —tomássemos
leite com bolachas às três da tarde, todas as tardes, e, depois, deitássemos com
nossos travesseiros no sofá da sala para uma soneca.
Ou então, se todos os governos tivessem como política básica sempre colocar as coisas de
volta no lugar de onde foram tiradas e também arrumassem suas próprias bagunças.
E continua verdade, não importa sua idade: quando sair para o mundo, dê
as mãos, fique junto.
Traduzido e adaptado do texto original do Pastor Robert Fulghum
Unitarian Church/Edmonds, Washington
a) Certamente você já ouviu que determinados textos possuem uma natureza
“poética”, como geralmente o são todos aqueles compostos em versos, a que
damos o nome de “poema”. Você diria que o texto de Robert Fulghum é
poético? Justifique.
26
27. Prática de texto: leitura e redação
b) Inspirado no texto acima, escreva outro sobre o processo de amadurecimento
do indivíduo. Destaque os saberes aprendidos na infância que você julga
decisivos para a formação da sensibilidade, para o fortalecimento da
capacidade ou do desejo de aprender.
Capítulo 3
Desenvolvimento do Vocabulário
27
Pensamento e linguagem são indissociáveis. Dizer, como no passado, que
a linguagem é um revestimento do pensamento, seria reduzi-la a meio ou a
utensílio por meio do qual se exprimem as idéias, o "conteúdo" do pensamento.
Essa posição já foi há muito superada pela Lingüística - a ciência que
estuda a linguagem -, quando defendeu a noção, hoje dominante, do caráter
material desse fenômeno. Segundo esse conceito, a linguagem é um sistema de
sons articulados, ao mesmo tempo que uma rede de marcas escritas (uma escrita)
ou ainda um sistema de gestos, os quais produzem e expressam o pensamento.
Não há, portanto, pensamento sem linguagem e linguagem sem pensamento.
Diante dessa realidade, qual a importância da aquisição de vocabulário? Há relações diretas
entre extensão do vocabulário e conhecimento da língua?
Sem muito exagero, pode-se dizer que o vocabulário coloca-se ao lado dos elementos
identificadores do indivíduo (impressão digital, DNA, arcada dentária), com a diferença,
óbvia, de que ele é produto de circunstâncias externas, de variada natureza, e dependente, em
28. Melo & Pagnan
grande parte, do livre arbítrio para ser assimilado. Transformações de natureza sócio-
econômica contribuem de forma decisiva para o crescimento do acervo lexical da língua,
envolvendo necessariamente um número expressivo de "usuários” das novas palavras.
Surgimento de novas profissões e campos do conhecimento, ao lado de novas acepções,
incorporadas por determinados vocábulos, estão na base dessas mudanças.
O vocabulário individual é uma marca registrada, um traço de diferença
no interior de um sistema lingüístico gerado por uma espécie de contrato entre os
componentes de certo grupo social.
Engana-se, contudo, quem levantar a hipótese de que um vocabulário
rico implica necessariamente maior conhecimento do mecanismo da língua, pois
o domínio das relações lógicas e das estruturas textuais depende de uma série de
operações que superam em muito a capacidade de reter o significado das
palavras.
De igual modo continuaria equivocado quem defendesse a idéia de que
falar e escrever bem relacionam-se tão somente ao conhecimento de normas
gramaticais, as quais, uma vez assimiladas, dotariam o indivíduo de "soluções"
lingüísticas previsíveis em maior ou menor grau. Tal raciocínio colocaria no
nível do conhecimento gramatical o que não é legado dele, exclusivamente, já
que a escrita se relaciona a uma atitude mental irredutível ao normativismo, por
estar alicerçada pela capacidade criadora e transformadora.
Do ponto de vista estrito da aquisição de vocabulário, a melhor lição será aquela que
enfatizar o papel da experiência e realçar a função das circunstâncias geradas pelo cotidiano, nas
quais haja necessidade do uso de um vocabulário mais rico ou especializado. O chamado
vocabulário ativo - aquele incorporado e posteriormente empregado - encontra maiores
possibilidades de se efetivar na prática do dia-a-dia, seja na conversa com as pessoas, seja no
exercício do trabalho, situações estas com um contexto bem definido.
No entanto, como recurso à ampliação do vocabulário, propomos a seguir exercícios que
correspondem, pelo menos em parte, às condições favorecedoras para tal fim. Trata-se, é bom
frisar, de manobras com certo grau de artifício, que poderão, além disso, ter esse caráter
acentuado, caso você se dê por satisfeito e não siga em frente com muita dedicação; os
exercícios deste capítulo tentam apenas reforçar a necessidade do aprimoramento do
vocabulário. O resto é com você.
28
29. Prática de texto: leitura e redação
Exercícios
1) Leia o texto abaixo:
A estranha (e eficiente) linguagem dos namorados
Carlos Drummond de Andrade
— Oi, meu berilo!
— Oi, meu anjo barroco!
— Minha tanajura! Minha orquestra de câmara!
— Que bom você me chamar assim, meu pessegueiro-da-flórida!
— Você gosta, minha calhandra?
— Adoro, meu teleférico iluminado!
— Eu também gosto muito de ser tudo isso que você me chama!
— De verdade, meu jaguaretê de paina?
— Juro, meu cavalinho de asas!
— Então diz mais, diz mais! 29
— Meu oitavo, décimo, décimo quinto pecado capital, minha janela sobre a —
Acrópole, meu verso de Rilke, minha malvasiara, meu minueto de
Versailles...
— Mais, agapanto meu, tempestade minha!
— Minha folia com vana%oni, de Corelli, meu isto-e-aquilo enguirlandado,
meu eu anterior a mim, meus diálogos com Platão e Plotino ao
entardecer, minha úlcera maravilhosa!
— Ai que lindo, liiiiindo, meu colar de cavalheiro inglês num retrato de
Ticiano! Meu fundo-do-mar, você me põe louca, louca de amar as
pedras, de patinar nas nuvens!
— E eu então, minha górgone, minha gárgula de Notre-Dame, e eu, minha
sintaxe de Deus?
— Você fala como falam os balões de junho de Portinari, as jóias da coroa
do reino de Samarcanda, você, meu imperativo categórico, você, minha
espada maçônica, você me mata!
— E você também me trucida, me degola, me devolve ao estado de música,
meu tam bor de mina!
— Todos os incentivos oficiais reunidos e multiplicados não valem a tua
alquimia, meu ministro do fogo!
30. Melo & Pagnan
— Tuas paisagens, teu subsolo infernal, teus labirintos são superiores em
felicidade a qualquer declaração dos direitos do homem!
— A primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as
pirâmides e as cataratas não valiam a tua unha do dedo mindinho!
— Porque você é o Banco das Estrelas, e pode comprar todas as coisas do
mundo, inclusive as águas e os animais, para restituí-los à vida em
liberdade!
— Como posso ouvir outras palavras senão as tuas, meu almanaque do
céu? Minha ciência do insabível? Meu terremoto, meu objeto voador
identificado?
— Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos
nessa desde antes do começo dos séculos, meu nenúfar!
— E estaremos mesmo depois que os séculos se evaporarem, ó meu
desenho rupestre, meu formigão atômico!
— Mandala, raio laser,; sextina! Tudo meu, é claro!
— Pomba-gira!
— Clepsidra!
— Sequóia minha minha minha!
Diálogo aparentemente louco, mas que dois namorados de imaginação 30
mantêm todos os dias, com estas ou outras palavras igualmente mágicas. Não —
inventei nada. Apenas colecionei expansões ouvidas aqui e ali, e que me
pareceram espontâneas, isto é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer,
de tal modo as palavras saíam entrecortadas de risos, interrompidas por afagos,
brotando da situação. O amor é incentivo e anula os postulados da lógica. Ele
tem sua lógica própria, tão válida quanto a outra. E os amantes se entendem sob
os signos do absurdo - não tão absurdo assim, como parece aos não-amorosos.
Já ouvi no interior de Minas alguém chamar seu amor de “meu bicho-do-pé” e
receber em troca o mais cálido beijo de agradecimento.
Esta coletânea de frases de amor está aqui como introdução ao projeto não-
comercial de comemorações do Dia dos Namorados. Não para que elas sejam
repetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar as
besteiras líricas e deliciosas que a gente não diz para qualquer pessoa, só para
uma, e só em momentos de pura delícia. Funcionam? E como!
30
31. Prática de texto: leitura e redação
Bocadeluar. São Paulo : Círculo do Livro, 1984, pp. 24-26
a) Escreva uma carta para a pessoa amada usando qualificativos inesperados,
como no texto de Drummond. Para que a carta possa se prolongar, descreva um
passeio que vocês dois farão no próximo fim de semana. Não se prenda à
experiência cotidiana - evoque lugares exóticos, com paisagens deslumbrantes,
que lhe ofereçam a oportunidade de utilizar adjetivos nunca ou pouco ouvidos
no seu dia-a-dia.
2) "Última clareza - No necrológio de um homem de negócios lia-se: 'A
largueza de sua consciência rivaliza com a bondade de seu coração'. O
deslize cometido pelos enlutados parentes e amigos na linguagem solene que se
reserva para tais ocasiões, a involuntária admissão de que o bondoso falecido era
inescrupuloso, remete o cortejo fúnebre pelo caminho mais curto ao país da
verdade".
Theodor W. Adorno. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2aed.
São Paulo : Ática, 1993, p. 18
a) Explique o “deslize” (a falha no uso da língua) cometido no texto acima.
b) Reescreva a frase de modo a corrigir a incongruência a que se refere Adorno.
3) No exercício abaixo você deve se utilizar de palavras das várias classes
gramaticais (verbos, adjetivos etc.) para preencher os espaços em branco.
Brinquedos incendiados
Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo_______ desapareceram
____________os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos
consumidos, de tanto mirá-los nos______________ — uns, pendentes de longos
barbantes; outros, apenas___________em suas__________ . Ah! maravilhosas bonecas
__________, de chapéus d e ________ !pianos ________ sons cheiravam a __________ e
____________!___________ lanudos, d e__________ no pescoço! piões____________ !—
e uns bondes com algumas letras escritas a o _________ , coisa que muito nos
_____________— filhotes que éramos, então, de Mr. Jordain, fazendo a nossa
___________concreta antes do tempo.
32. Melo & Pagnan
Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber___
presente algum bonequinho d e _____________, modestos cavalinhos de lata,
aquelas
.de gude, barquinhos sem ____
_____ bonecas de seda e _____
_ de chumbo, aquelas casas de .
__de navegação... — pois
_, aqueles batalhões completos de
___ com _____________ e
_, isso não chegávamos a ________
___ os brinquedos sem esperança _
_às nossas mãos, possuindo-os _
isso, apenas, tivessem sido feitos.
_, sequer, para onde iria. -
_________inveja, sabendo que jamais
_____________ em sonho, como se
Assim, o bando que , _, de casa para a _
_, parava longo tempo a __
_nítidos preços, com seus ,
_de valor porque nós,___
_, éramos só ___________
_______e da escola para
_____ aqueles brinquedos e lia
_____e zeros, sem muita
,de bolsos vazios, como namorados
e amor. Bastava-nos levar
memória aquelas imagens, e
olhos.
Ora, um a________
cravados nelas, como , nossos
foi uma espécie de ,
_, correu a notícia de , o bazar se incendiara.
.fantástica. O fogo ia _
.rubro, voavam chispas e ,
queriam ver o incêndio_
_portas e janelas, fugiam _
_perto, não se
_____a rua, onde
_pelo bairroalto, o céu ficava___
todo. A s__________
contentavam ______
brilhavam_____________entre jorros d’água. A ____________ não interessavam nada
peças de pano, cetins,___________, cobertores,______________os adultos lamentavam.
Sofriam____________cavalinhos e bonecas, o s______________ e os palhaços, fechados,
.em suas grandes caixas. _
_ apenas da infância, amor
.que jamais teriam possuído,
O incêndio, porém, levou__
_________ galpão de cinzas.
. O bazar ficou sendo um
Felizmente, tinha morrido — diziam em
Como não tinha morrido
_um mundo, e , dentro ,
.? — pensavam as crianças. Tinha
______________ , os olhos amorosos da
crianças, ali deixados.
E começamos_____
Em outras idades. De outros
_pressentir que viriam outros_
____ . Até que um dia também
.sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos
32
Cecília Meireles. Escolha oseusonho. 8aed., Rio de Janeiro : Record, s.d.
Clichês
32
33. Prática de texto: leitura e redação
Você com certeza já deve ter ouvido algum artista na televisão, diante de uma platéia,
agradecer o aplauso "desse auditório maravilhoso" ou algum folião considerar o carnaval
uma "festa maravilhosa" ou ainda ter escutado de um visitante, ao se despedir, um sorridente
"desculpe por alguma coisa". Seqüências vocabulares como essas são repetidas
automaticamente e, ao que parece, muitas vezes com a cerimônia de quem imagina ter
acabado de contribuir para o enriquecimento do vernáculo.
São idéias prontas que estão sempre à mão na falta de outra melhor e
mais expressiva. Os clichês (ou chavões) acabam qualificando ou especificando
muito mal aquilo a que se referem, pois, ao retomarem pela enésima vez a
mesma idéia, a sua carga informacional não desperta no ouvinte ou no leitor
qualquer surpresa, antes pelo contrário, pode chocar pela sua trivialidade.
Os clichês são idéias cristalizadas, não necessariamente ideológicas, lugares-comuns
que denunciam a estreiteza do repertório de quem os usa. A banalidade, do ponto de vista
lingüístico, dos dois primeiros exemplos acima, acaba revelando um pouco do senso estético do 33
falante, que não se deu conta do enorme número de vezes em que aquelas expressões são
repetidas.
O terceiro exemplo acusa uma atitude ingênua, algo como um sentimento de culpa sem
origem determinada, redundando num formalismo ridículo e absolutamente dispensável.
Existem clichês para todas as situações, mas sem dúvida os que merecem
maior censura são aqueles incorporados pela escrita. Clichês relacionados ao
universo familiar, ao amor, à paisagem, são algumas das categorias de
ocorrência do fenômeno, conforme os exemplos abaixo, coletados pela
professora Maria Thereza Fraga Rocco, no exame da FUVEST de 1978:
□ Familiar
"Estava triste pois minha querida mãezinha ainda nem havia me parabenizado.
Acalmei-me quando ela disse:
— Filhinha, você é meu tesouro; quero tudo, tudo de bom a você".
34. Melo & Pagnan
□ Amoroso
"Você meu amor só podia ter nascido no dia da Primavera. Você é uma flor".
□ Paisagístico
"E mais um dia que começa. Os passarinhos voam e cantam para homenagear os primeiros
raios de sol".
□ Existencial
"A incerteza do amanhã me invade e penetra no mais recôndito do meu ser".
É necessário, porém, contrabalançar o peso das restrições dirigidas aos clichês, lembrando
que o processo de aprendizagem e refinamento da escrita se dá, em parte, pela adoção de
séries vocabulares que se instalaram na cultura como modelos dignos de serem repetidos. A
uma pessoa que não tenha o hábito da leitura, pode parecer que uma série vocabular como
"imenso mar azul" ou "a lua cor de prata navegava no céu" represente uma contribuição
original ao acervo literário da língua portuguesa.
Um juízo desses, em tais circunstâncias, é natural. E isto porque em
algum lugar do passado essas imagens foram de fato originais, provocaram,
talvez, nos seus primeiros leitores, uma emoção estética invulgar e até se fizeram
motivo de um riso satisfeito, graças ao feitio de voluntária redundância das
frases: ora, todo mar é imenso e freqüentemente azul e a lua só poderia, claro,
estar no céu. São imagens que guardam alguma semelhança com outra muito
conhecida do nosso cancioneiro; n’ “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, ouve-
se num dos versos: “esse coqueiro que dá coco..." Como se vê, as imagens
anteriores são apenas um pouco mais discretas na tautologia...
O poder de sedução conservado por alguns clichês ao longo dos tempos não encontra uma
explicação plenamente satisfatória. A renúncia total ao estereótipo é impossível, já que esta
se confunde com a ilusão da originalidade absoluta, o que implicaria, por sua vez, a criação
34
35. de uma nova língua. Diante disso, será preciso saber conviver com o lugar-comum até o
ponto em que ele não ocupe espaço demais no nosso pensamento, nos nossos textos e na
nossa vida.
Prática de texto: leitura e redação
Exercícios
1) As séries vocabulares a seguir são lugares-comuns do discurso pretensamente literário ou
jornalístico. Reescreva os textos fazendo cortes e substituições que os valorizem estilisticamente.
a) Tinha nos olhos o brilho irradiante das estrelas.
b) Conservava na lembrança a mais grata recordação dos inesquecíveis
momentos de felicidade, passados naquela boa e acolhedora terra, entre
velhos amigos da infância.
c) Ficaram-lhe na lembrança as marcas indeléveis daquele passado risonho e
feliz da mocidade, que não voltam mais.
d) Montou o fogoso ginete e saiu galopando a toda brida pela estrada afora,
deixando atrás de si uma densa nuvem de pó.
e) A brisa matutina acariciava-lhe os cabelos e beijava-lhe a face delicada.
f) Ouvia-se, dali, o bramido ensurdecedor das ondas revoltosas, batendo
furiosamente contra os impassíveis rochedos.
g) Permaneceu ali, por muito tempo, engolfado em profundos pensamentos.
h) Um silvo longo e agudo ecoou na amplidão. O trem vencia a distância,
devorando sofregamente os quilômetros. A locomotiva, qual fabuloso
dragão, resfolegava, vomitando fagulhas e rolos de fumaça pelas enormes
ventas abertas.
i) Declinando mansamente, o sol foi estendendo o seu manto de púrpura sobre
os montes.
j) O flagelo da seca está dizimando toda aquela região do nordeste brasileiro.
k) Essa inversão de valores é o sinal dos tempos; nota-se em todos os setores da
atividade humana.
l) Aproveitando os domingos e feriados, o paulistano procura fugir do bulício
trepidante desta cidade, que se transformou numa desumana megalópole, em
face do seu progresso vertiginoso.
m) Nessa reunião de cúpula, foram ventilados magnos problemas que o País tem
que enfrentar na atual conjuntura.
36. Melo & Pagnan
n) O Prefeito vai envidar todos os esforços no sentido de solucionar os
angustiantes problemas básicos de infra-estrutura dos bairros periféricos da
Capital.
o) Com a voz embargada pela emoção, o ilustre homenageado agradeceu,
comovido, a expressiva homenagem que lhe fora tributada.
2) O Manual de Redação e Estilo do jornal “O Estado de S. Paulo” relaciona
uma série de lugares-comuns que devem ser evitados “a todo custo” no
noticiário. Procure substituir alguns dos clichês abaixo por expressões menos
desgastadas.
Abrir com chave de ouro; acertar os ponteiros; a duras penas; dar a volta
por cima; agradar a gregos e troianos; alto e bom som; ao apagar das luzes;
aparar as arestas; a sete chaves; atingir em cheio; a toque de caixa; banco dos
réus; bater em retirada; cair como uma bomba; chegar a um denominador
comum; chover no molhado; colocar um ponto final; coroado de êxito; deitar
raízes; deixar a desejar; depois de um longo e tenebroso inverno; desbaratada a
quadrilha; dirimir dúvidas; divisor de águas; do Oiapoque ao Chuí; faca de dois
gumes; inserido no contexto; lugar ao sol; pôr as cartas na mesa; reta final;
trocar farpas.
3) Escreva uma frase com cada uma das expressões que você utilizou para
substituir os clichês.
4) O poema abaixo, de José Paulo Paes, é uma crítica à automatização, entendida como um
processo de condicionamento de nossa percepção, de estereotipação contínua em relação ao
mundo que nos cerca. Explique como ocorre essa crítica. Segundo o poeta, há algum setor da
vida social, capaz de resistir ao condicionamento?
PAVLOVIANA
a sineta
a saliva
a comida
a revolta
a doutrina
o partido
a sineta
a saliva
a doutrina
o partido
36
37. Prática de texto: leitura e redação
a saliva
a saliva
a saliva
a saliva
o mistério
o rito
a igreja
o rito
a igreja
a igreja
a igreja
a igreja
a igreja
o partido
o partido
o partido
o partido
a emoção
a idéia
a palavra
a idéia
a palavra
a palavra
a palavra
a palavra
A PALAVRA
37
Capítulo 4
Conceito de Ideologia
A linguagem é um sistema de signos ou sinais, um conjunto de elementos
verbais e não-verbais que serve como meio de comunicação entre as pessoas na
forma de idéias, sentimentos e valores. Por ter importância decisiva na relação
entre os indivíduos, a linguagem apresenta-se como campo permanente de
incursão da ideologia, conceito que passaremos a estudar desde seu
estabelecimento como teoria no decorrer do século XIX.
Antes, porém, relacionamos a seguir alguns dos significados mais
comuns associados à ideologia, conforme Terry Eagleton8, um teórico inglês:
8Ideologia: uma introdução. Rio de Janeiro : Unesp/Boitempo, 1997, p. 15.
38. Melo & Pagnan
a) o processo de produção de significados, signos e valores da vida
social;
b) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe
social;
c) idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante;
d) idéias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante;
e) comunicação sistematicamente distorcida;
f) formas de pensamento motivadas por interesses sociais;
g) ilusão socialmente necessária;
h) a conjuntura de discurso e poder.
A palavra ideologia é usada pela primeira vez por Destutt de Tracy
(1754-1836) num livro publicado em 1801 - Elements d ’Ideologie (Elementos
de Ideologia). Compreendida como ciência das idéias, a ideologia seria uma
disciplina filosófica criada para servir de substrato para todas as outras ciências,
o verdadeiro método para o conhecimento do homem.
Como a ideologia pretendia ser uma espécie de radiografia do
conhecimento, ao tempo da Revolução Francesa (1789-1799), nada mais natural
que seus teóricos se colocassem em posições supostamente avançadas, ora
apoiando Napoleão Bonaparte no golpe de 18 Brumário (9 de novembro de
1799)9, quando então acreditavam que ele daria prosseguimento aos ideais da
revolução burguesa, ora fazendo oposição ao líder por constatarem depois que
Napoleão tornara-se um restaurador do Antigo Regime. À crítica ao
autoritarismo bonapartista, segue-se a reação de Napoleão que tachava os
ideólogos de “falastrões”, acusando-os de destruírem todas as ilusões, sendo que
era justamente a era das ilusões, segundo ele, para os indivíduos como para os
povos, a era da felicidade. Em 1812, após ser derrotado pelo exército russo,
Napoleão ataca os ideólogos em um de seus mais célebres discursos:
É à doutrina dos ideólogos - a essa metafísica difusa que artificialmente
busca encontrar as causas primárias e sobre esse alicerce erigir a legislação dos
povos, em vez de adaptar as leis do conhecimento do coração humano e das
lições da história - que se deve atribuir todos os infortúnios que se abateram
sobre nossa amada França.
A ideologia, como lembra Eagleton, tem “raízes profundas no sonho
iluminista de um mundo totalmente transparente à razão, livre do preconceito, da
9À época da Revolução Francesa (1789-1799), houve mudanças na maneira de marcar as datas,
de nomear os meses, por isto 18 Brumário equivale a 9 de novembro.
38
39. Prática de texto: leitura e redação
superstição e do obscurantismo do Ancien Régime10”. Ser um “ideólogo”
significava ser um "crítico da 'ideologia', no sentido aqui dos sistemas de crença
dogmáticos e irracionais da sociedade tradicional". (p. 66)
Tal projeto era visivelmente ambicioso e não imune a contradições, pois se de um lado, como
porta-vozes da burguesia revolucionária da Europa do século XVIII, os ideólogos
acreditavam poder reconstruir a sociedade de alto a baixo sob bases racionais, sonhando
“com um futuro no qual se teria em apreço a dignidade de homens e mulheres, como
criaturas capazes de sobreviver sem ópio nem ilusão” (quer dizer, sem crenças), de outro lado
não eram capazes de perceber que tal causa encerrava em si mesma uma debilidade que se
tornou depois flagrante. É que aojulgarem que a consciência humana poderia ser
transformada, na direção da felicidade humana, por um projeto pedagógico sistemático, não
se perguntaram quais seriam os determinantes desse projeto. Como destaca Eagleton:
Se toda consciência é materialmente condicionada [é histórica e,
portanto, relacionada ao modo como o homem age sobre a natureza criando o
trabalho], isso não deveria aplicar-se também às noções aparentemente livres e
desinteressadas que iluminariam as massas em seu caminho para fora da
autocracia, rumo à liberdade? Se tudo deve ser submetido à luz translúcida da
razão não se deveria incluir aí a própria razão? (p. 66).
Em outros termos, como o fez o filósofo alemão Karl Marx, quem
educaria os educadores? Karl Marx e outro alemão, Friedrich Engels, estudaram
a ideologia no livro A ideologia alemã (publicado entre 1845-1846, mas cuja
versão integral só pôde vir à luz em 1932), obra que não se restringe ao estudo
do fenômeno naquele país, transformando-se num dos mais sólidos referenciais
sobre o assunto e inaugurando uma tradição de pensamento crítico que se
mantém viva e atuante ainda hoje. No livro, os teóricos alemães revisam a obra
de Destutt de Tracy, apontando para uma ordem de problemas não considerada
pelo autor de Elementos de Ideologia..
10 O Ancien Régime (Antigo Regime) é o termo pelo qual ficou conhecido o sistema de governo
baseado em um rei, em um monarca. A Revolução Francesa pretendeu derrubar esse tipo de
regime governamental para implantar outro baseado na razão do indivíduo.
40. Melo & Pagnan
Para Marx, a ideologia resulta da divisão social do trabalho em dois
grandes campos: trabalho manual e trabalho intelectual ou, dito de outra forma,
entre trabalhadores e pensadores.
No processo histórico, o trabalho intelectual é identificado à classe
dominante de uma época; no contexto da Revolução Francesa, a classe em
ascensão - a burguesia - exerce o domínio sobre as demais classes (pequenos
comerciantes, pequenos artesãos, servos e aprendizes) que continuam
compartilhando com ela os ideais revolucionários de liberdade e igualdade.
Mas como essas idéias podem continuar vigorando se na prática não
existe igualdade entre os homens e a liberdade é reduzida a uma abstração, a um
sentimento flutuante, sem história e incapaz de transformar a sociedade?
A resposta deve evocar de novo a separação dos trabalhos que impõe
uma aparente autonomia do trabalho intelectual diante do trabalho manual. Vista
dessa forma, a autonomia, aparente, produz como resultado a autonomia dos
intelectuais - dos que produzem as idéias - e por conseguinte destas em relação
aos seus produtores. Como as idéias parecem nesse momento não se originar
especificamente de um grupo social, instalam-se na sociedade como senso
comum (como idéias universais, válidas em todo lugar e sempre), escondendo as
diferenças existentes entre as classes. Nesse sentido, a ideologia é um discurso
que deforma a realidade, mas que não é percebida como tal, ganhando livre
trânsito e levando os dominados a aceitar, como naturais, os valores da classe
dominante.
Para entender em que sentido as palavras “explorador” e “explorado”
comparecem nesse âmbito é preciso localizá-las no centro de uma sociedade
dividida entre proprietários dos meios de produção (e dos produtos do trabalho)
e de não-proprietários que vendem a sua força de trabalho. Esta relação
necessariamente tensa é “regulada” por um mecanismo, por um código operado
no interior das instituições (Estado, Igreja, Escola etc.), que dissimula, oculta, o
significado violento das divisões sociais, cujo objetivo é a dominação.
A ideologia não é, portanto, apenas uma representação imaginária do
real a serviço da classe dominante, nem se limita, tampouco, a ser uma inversão
imaginária do processo histórico na medida em que as idéias viessem a ocupar o
lugar dos agentes históricos reais, como por exemplo as instituições. A ideologia
- que não pode ser tomada como sinônimo de “mentira” ou de “falsidade”, no
sentido corrente das palavras - é o processo pelo qual os agentes sociais
representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político de tal modo
que essa “aparência”, impondo-se como a forma imediata e abstrata de
manifestação do processo histórico, produz o ocultamento ou a dissimulação do
real. Assim, tenderíamos a buscar “explicações” mais ou menos exteriores, mais
ou menos artificiais para fenômenos que, na realidade, possuem um lugar e uma
40
41. Prática de texto: leitura e redação
natureza histórica bem definidos. A pobreza, por esse prisma, poderia ser
explicada por uma resistência ou inaptidão ao trabalho ou ainda por uma
incapacidade (nata?) de adaptação dos indivíduos a um mercado
ultracompetitivo sob o signo da globalização.
A ideologia como uma mitologia social, não pode ser superada por uma
ideologia não-falsa ou real, já que havendo ideologia estaríamos sempre no
âmbito da dominação de uma classe social por outra. O que deve ser feita é a
crítica da ideologia, a instauração de um contradiscurso, como diz a filósofa
Marilena Chaui, em busca de um saber real, expressão necessária da verdade. Ou
seja, para se chegar à verdade das coisas, é preciso desmascarar a ideologia
dominante através da crítica, através de análise, do exame das idéias e do seu
lugar nas relações sociais. Por exemplo, para se derrubar a ideologia do
machismo, é preciso criticá-la através de um discurso contrário ao machismo,
um discurso que prega a igualdade entre os sexos, um contradiscurso, pois.
Destaque-se, portanto, que, segundo essa visão, a ideologia seria sempre
um fenômeno “negativo” que deve a todo custo ser repudiado - um fenômeno
que não pode ser confundido como um corpo de idéias característico de uma
determinada classe social, independentemente de qual seja. A seu modo, a
ideologia é uma linguagem, um discurso, ou como parece ser mais adequado
dizer, este último é que se torna suporte da ideologia; os discursos podem
cristalizar a ideologia, uma visão de mundo parcial, como um valor absoluto e
universal (na forma de um provérbio, por exemplo), válido para todas as
pessoas.
Como o compromisso daquele que escreve deve ser idealmente com o
conhecimento (a literatura, às vezes, tomada como um exercício
“descompromissado”, é também uma forma de conhecimento), numa operação
crítica de apreensão do mundo, julgamos necessário, a título de exemplo e
reflexão, enfocar nas linhas seguintes o fenômeno da ideologia em diversas
situações. Por representarem uma visão de mundo comprometida com certos
interesses de classe, os temas dos tópicos abaixo dispõem-se como uma
“conjuntura de discurso e poder” cuja marca dos “produtores” a análise tenta
elucidar. Os discursos e seu respectivos comentários poderão servir para debate
na sala de aula ou como referência para a crítica de outros discursos.
Análises da presença da ideologia
• Na publicidade
42. Melo & Pagnan
O discurso da propaganda tem dois objetivos gerais que definem sua
natureza: convencer e persuadir o público-alvo ao consumo. Deixando de lado a
propaganda política, vale a pena refletir sobre a propaganda comercial. A
persuasão na propaganda relaciona-se geralmente a uma atmosfera onírica (de
sonho) que envolve a idéia ou o objeto que ela valoriza. Visto desse modo, esse
processo de persuasão identifica-se com uma força irracional, cuja manifestação
tenta mentalizar o olhar crítico do público. A adesão não-crítica à mensagem
veiculada pela propaganda mantém um nexo, em maior ou menor grau,
dependendo de cada caso, com o fenômeno da alienação - a ação pela qual (ou
estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se
tornam alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou aos produtos de
sua própria atividade (e à atividade ela mesma), e/ou à natureza na qual vivem
e/ou a outros seres humanos.
Roberto Menna Barreto, autor de Análise transacional da propaganda11,
faz um julgamento radical do objeto de suas reflexões:
Propaganda, qualquer que seja, é de fato “uma técnica de controle social”,
sempre que posta em prática pelo status quo dominante. Tal técnica realiza-se pela
“venda”, lato sensu, segundo a terminologia profissional: “vendendo” um Plano 42
Qüinqüenal, metas de trabalho, místicas racistas, ou uma pasta dentifrícia, a
Propaganda é uma técnica para “conseguir a adesão” política, social e
psicológica: ao Estado, ao Líder, ao Partido, à Empresa, a um Regime de Vida. A
sua, amigo!
A sua adesão, no mundo ocidental consumista [o texto é anterior ao colapso
do comunismo] não é dirigida a esforços de produção, nem a delírios racistas,
mas à pasta dentifrícia. As duas pessoas mais envolvidas no fenômeno —eu e
você, o publicitário e o consumidor —tornaram-se inconscientes do fenômeno
em que interatuam. Reconhecemos que o que estamos fazendo —vendendo e
comprando —tem significado econômico (o aumento de produção, o giro de
capital); reconhecemos também significações psicológicas (as motivações, as
satisfações internas atendidas); reconhecemos, tangencialmente, que tem
significados sociais (as classes a que se destinam os anúncios). Mas, como num
passe de mágica, obliteramos totalmente o significado político do que estamos
fazendo. Não é um absurdo?
Numa sociedade onde foram abertos grandes fossos entre as classes
sociais, ao mesmo tempo que, toda ela, foi submetida à ideologia publicitária
do consumo, surge um processo político dinâmico: a insatisfação dos
11São Paulo : Summus, 1981, pp. 37-39.
42
43. Prática de texto: leitura e redação
destituídos recrudesce, para horror dos beneficiários desse consumo. Se,
acaso, essa insatisfação não dispõe de canais efetivos para se expressar, nem
base de atuação para contestar em profundidade o sistema, com vista à sua
mudança - não importam as razões dessa impossibilidade - quer dizer, se o
sistema, de um modo ou de outro, liqüida com a verdadeira oposição política
da insatisfação resultante, se aliena num fenômeno a que os brasileiros já
devem estar acostumados: a criminalidade.
/.../
A propaganda comercial açula a reivindicação política e, quando esta é
esmagada, açula a criminalidade.
/.../
Não estou dizendo que a propaganda comercial seja responsável de per si
por quadro tão nefasto /.../ Estou dizendo, isso sim, é ser ela um fermento
atuante, poderoso, nesse quadro de compressão social. A propaganda é
conservadora enquanto atinge camadas potencialmente beneficiárias do
sistema; induz ao conformismo e ao conservadorismo; mas é revolucionária,
ou instigadora da patologia social, quando chega, como uma demonstração
acintosa do luxo e abundância, ao grosso da população despossuída, e sem
horizonte político e econômico.
Talvez não seja errado dizer que esse processo de incitamento ao
consumo tenha sido reforçado nos últimos anos devido à oferta propiciada pela
globalização. Com efeito, o acesso a certos bens de consumo, apenas por uma
exígua parte da sociedade, parece tomar dimensões que dão novas nuances ao
exibicionismo. Basta atentar para o desfile de carros importados e roupas de
griffe a cargo de “personalidades” em alta exposição na mídia e com forte
influência sobre determinados segmentos da sociedade.
O psicólogo Jurandir Freire, em entrevista à revista Época, contou que
ouviu uma conversa entre duas mendigas no Aterro do Flamengo, no Rio de
Janeiro, que classificou de “grotesca” e ao mesmo tempo “emblemática”. Uma
delas queixava-se a outra de que o bronzeador que estava usando era muito
vermelho e por isso estragava sua pele; a amiga disse: “quem manda comprar
produto barato?”; a primeira retrucou: “Mas este é bom, não é uma coisa
vagabunda”. Freire enfatiza que as duas mulheres não eram loucas, mas
demonstravam que para pertencer ao atual mundo precisavam possuir aquele
“signo de cuidado corporal”. O relato de Freire ilustra, de forma quase
melancólica, o exagero dado às questões privadas e seus efeitos, entre eles o da
preocupação constante em aumentar o nível de riqueza de modo a que cada um
possa consumir sempre mais e mais.
43
44. Melo & Pagnan
• No uso daspalavras
Toda uma geração cresceu ouvindo que os EUA invadiram o Vietnã (ou
interferiram em algum país da América Latina) para “salvar a liberdade”
ameaçada pela ofensiva comunista. Reportagens da época do conflito no Vietnã
demonstravam, no entanto, que os soldados americanos repetiam esse slogan
sem ter a exata noção de quem era o inimigo a combater, em que medida o
comunismo implicava o fim da liberdade e, finalmente, qual liberdade se
defendia: a dos vietnamitas, oprimidos pelos guerrilheiros vietcongs, a dos
americanos ou a do mundo ocidental (leia-se capitalismo) que, por extensão do
avanço do comunismo, segundo se julgava, corria perigo. Essas questões,
contudo, não davam conta do próprio conceito de liberdade, tão obsessivamente
resguardada e ao mesmo tempo tão sujeita a distorções que, afinal, reduziam-na
a uma mercadoria para uso da propaganda ideológica.
Palavras como “liberdade”, “conservador”, “reacionário”, “liberal”,
“nacionalista”, “livre-empresa” e tantas outras possuem um campo semântico
(de sentidos) muito amplo, dando margem a várias interpretações sob o efeito
das ideologias. Hoje em dia tornou-se comum defender o neoliberalismo com
seu vocabulário peculiar: globalização, abertura de mercado, privatização, 44
especialização...
Porém, em determinados meios, quando alguém é tachado de
“neoliberal” pode significar que essa pessoa esteja servilmente atendendo aos
interesses do que no passado recente se denominava “imperialismo”, o poder
político econômico exercido em escala mundial pelos países centrais (sobretudo
pelos Estados Unidos).
Resistir à abertura, muitas vezes indiscriminada, de mercado é atitude
comum aos “nacionalistas” que, além desse rótulo, são classificados como
“conservadores” pela ala dos liberais (grupo que de igual forma recebe a mesma
pecha dos oponentes). Em decorrência do excesso de sentidos absorvido por
essas palavras, deve-se procurar usá-las com o máximo rigor, já que, conforme o
contexto, correm o risco de designar muitas coisas e nada a um só tempo. Neste
caso, a polissemia (vários significados) não se reveste de um valor positivo,
como se observa na literatura, em que o fenômeno passa a ser condição, entre
outras, do efeito estético obtido pelas palavras usadas num romance, por
exemplo. Rigorosamente, pois, não teríamos apenas o fenômeno da polissemia,
mas também o da "polarização" - a tendência acusada por certas palavras em
apresentar sentidos de natureza oposta, cujo uso se conforma a contextos de
ocasião, como os referidos acima.
44
45. Prática de texto: leitura e redação
• Na pesquisa científica
Faz parte da natureza da Ciência querer-se neutra, comprometida com o progresso,
chegando a ser confundida com este, sem prejuízo para o fato de que a própria noção de
progressojá é em si ideológica. Esse desejo de neutralidade, ou melhor, essa pretensão, é em
si mesma ideológica, pois oculta toda a dimensão das condições em que a Ciência foi gerada
e os fins a que ela se volta. A figura do cientista, detentora de um saber altamente
especializado, é abstraída, sendo seu lugar ocupado pelo discurso científico em forma de
pesquisa.
Como o trabalho científico é patrocinado pelo Estado ou financiado por empresas, nem
num caso nem noutro a sociedade participa ou sequer chega a tomar conhecimento das
políticas e interesses que o determinam.
Um exemplo é o das pesquisas “científicas” promovidas por empresas. No livro O fundo
falso das pesquisas, a autora, Cynthia Crossen, discute o papel daquelas pesquisas tão
esdrúxulas quanto alarmantes anunciadas periodicamente pelas empresas comerciais.
Cynthia, editora do Wall StreetJournal, conta o caso das fraldas descartáveis, alvo de
uma entidade ecológica, que afirmava ser o produto prejudicial ao meio ambiente. A
denúncia provocou uma queda sensível de vendas do produto no mesmo período - 1988 a
1990 - em que a compra de fraldas de pano quase duplicou.
A reação dos fabricantes veio em seguida: encomendaram uma pesquisa que
demonstrou que o consumo de água e energia para lavar as fraldas de pano e de óleo diesel,
46. Melo & Pagnan
usado pelos navios para o transporte dos tecidos, representava uma ação tão prejudicial ao
meio ambiente quanto os danos causados pelas fraldas descartáveis.
• No discurso competente
Em 1977, a filósofa Marilena Chaui participou da reunião anual da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC - onde, no simpósio
“Ideologia e linguagem”, apresentou o texto intitulado “O discurso
competente”12, aqui parafraseado (sobre “paráfrase”, ver o capítulo 7 - “Gêneros
de Síntese”). Nele, Chaui tenta demonstrar que no capitalismo contemporâneo a
dominação e a exploração se fazem sobrepondo à divisão de classes uma
segunda divisão social que é aquela entre os que sabem, e por isso dirigem, e os
que não sabem, e, conseqüentemente, executam.
Tal divisão, entre dirigentes e executantes, cristaliza-se, por sua vez,
como uma divisão entre “competentes” e “incompetentes” numa sociedade
alicerçada sobre o princípio da Organização e da Burocracia. Esta última é um
processo que impõe ao trabalho, independentemente do nível - direção, gerência
e execução de um modo geral -, uma dinâmica tal que tudo em sua órbita
(salários, cargos, regime de promoções, divisão de responsabilidades,
estabilidade geral no emprego etc.) gira conforme um princípio de status sócio-
econômico. Os efeitos desse processo não se limitam ao “ambiente” da empresa,
já que podemos observá-los em outros setores da sociedade civil, como nas
burocracias escolares, hospitalares, de saúde pública, partidárias, entre outras.
Como essas burocracias envolvem toda a sociedade civil, é por este motivo,
portanto, que podemos dizer que o próprio Estado, como organismo político e
administrativo com um governo e um espaço territorial próprios, também se
sujeita ao processo de burocratização.
O processo de burocratização, como vimos, opera no interior da
Organização, ou seja, dentro das instituições (sendo o Estado a maior delas) que
passam a ser o lugar mesmo de uma racionalidade imanente, aquela inseparável
do objeto. Para se compreender a natureza da racionalidade a que nos referimos
é preciso vê-la numa perspectiva histórica. Assim, quando a burguesia passa a
ser a classe dominante, ela constrói um tipo de conhecimento que não depende
12 Reunido em CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas.
São Paulo, Cortez, 1982. As referências ao ensaio têm como base o texto da 7aedição, publicada
em 1997, pp. 3-13.
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47. Prática de texto: leitura e redação
mais da imagem de um Deus como poder uno e transcendente, pois esta
condição é incorporada pelo Estado, que agora exerce o poder sobre uma
sociedade baseada na divisão de classes. No entanto, e eis uma das
peculiaridades dessa transformação, não ocorre concomitantemente a passagem
de uma política teológica a uma política racional ateológica ou atéia, “mas
apenas uma transferência das qualidades que eram atribuídas à Divina
Providência à imagem moderna da racionalidade. A nova ratio [razão] é
teológica na medida em que conserva tanto em política quanto em ideologia dois
traços fundamentais do poder teológico: de um lado, a admissão da
transcendência do poder face àquilo sobre o que este se exerce (Deus face ao
mundo criado, o Estado face à sociedade, a objetividade das idéias face àquilo
que é conhecido); por outro lado, a admissão de que somente um poder separado
e externo tem força para unificar aquilo sobre o que se exerce - Deus unifica o
mundo criado, o Estado unifica a sociedade, a objetividade unifica o mundo
inteligível [o mundo “visível”, tal como se oferece a nós]” (p. 6)
O Estado sob o olho racional da Organização e da Burocracia incorpora e
consome as novas idéias que, por assim dizer, não o põem em perigo. Desse
modo, o saber, visto como um trabalho de elevação à dimensão do conceito uma
situação de “não-saber” (p. ex.: Galileu Galilei, a partir das descobertas de
Copérnico, coloca em xeque os pressupostos sobre o lugar da Terra no mapa
celeste) é aceitável e passível de incorporação quando “já foram acionados
dispositivos econômicos [transformações no processo de produção], sociais [a
legitimação de uma nova classe social no poder] e políticos [o modo de interação
da classe dominante com o poder] que permitam acolher o saber novo não
porque seja inovador, nem porque seja verdadeiro, mas porque perdeu a força
instituinte [de revolução], já se transformou de saber sobre a natureza em
conhecimentos físicos, já foi neutralizado, e pode servir para justificar a suposta
neutralidade racional de uma certa forma de dominação”. (p. 6)
É nesse contexto que surge o discurso competente, o discurso instituído,
o discurso da Organização, burocratizado e, como tal, hierarquizado; nele a
linguagem sofre uma restrição, resumida por Chaui nos seguintes termos: “não é
qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e
em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a
linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso
no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o
direito de falar e ouvir, no qual as circunstâncias já foram predeterminadas para
que seja permitido falar e ouvir [na hora “certa”, poderíamos dizer] e, enfim, no
qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones [os modelos,
os limites] da esfera de sua própria competência”. (p. 7)
48. Melo & Pagnan
Como não devemos perder de mira os conceitos de Burocratização e
Organização, afinal os processos que instituem o discurso competente como
código, devemos atentar para o que Chaui chama de “determinações” tanto de
uma quanto de outra: hierarquia; status dos cargos, de tal modo que parece que o
cargo possui uma autonomia em relação ao indivíduo que o ocupa, daí serem
atribuídas ao primeiro, e não ao segundo, qualidades determinadas; identificação
entre os membros de uma burocracia com a função que exercem e o cargo que
ocupam, fato realçado por um cerimonial que, por sua vez, fixa os papéis de
superiores e subalternos; uma direção que não se coloca acima da burocracia ou
da organização, “mas também faz parte dela sob a forma de administração, isto
é, a dominação tende a permanecer oculta e dissimulada graças à crença em uma
ratio administrativa ou administradora tal que dirigentes e dirigidos pareçam ser
comandados apenas pelos imperativos racionais do movimento interno à
Organização”. (p. 9) É por isso que somos levados a crer que ninguém exerce o
poder, o poder existe por ele mesmo, como uma lei que convive em harmonia
com a racionalidade do mundo organizado ou, se preferirmos, com a
competência dos cargos e funções que, por acaso, estão ocupados por homens
determinados, e daí a continuidade do poder como neutralidade.
No contexto acima, distinguem-se três registros de discurso competente:
o discurso competente do administrador-burocrata, o discurso competente do
administrado-burocrata e o discurso competente e genérico de executantes do
nível mais inferior da escala hierárquica, homens reduzidos à condição de
“objetos sócio-econômicos e sócio-políticos, na medida em que aquilo que são,
aquilo que dizem ou fazem, não depende de sua iniciativa como sujeitos, mas do
conhecimento que a Organização julga possuir a respeito deles”. (p. 10)
Esse contigente anônimo, pode-se concluir, é indispensável para a
manutenção do poder. Pensemos de passagem no período das eleições para os
diversos cargos do legislativo. É um momento no qual candidatos incorporam
aos seus discursos de campanha significados que atendem de forma determinada
às expectativas da “massa”. Assim, há o candidato que se revestirá, por exemplo,
com os símbolos do homem-da-lei e imprimirá à sua campanha os significados
próprios desse status: segurança, defesa da pena de morte, instituição da prisão
perpétua, intensificação da repressão policial etc. Um outro, apresentar-se-á
como a encarnação idealizada do “grande administrador” e como tal se louvará
de sua competência como empreendedor e assim por diante. O discurso de
campanha, nestes termos, não deve ser confundido com propaganda, no sentido
comum de uma ação voltada para a criação e divulgação de uma marca. Se o
“homem-da-lei” e o “grande administrador” se apossam de tais discursos é
porque ambos têm consciência da sua posição em relação ao discurso que
adotam, do “cargo” que ocupam diante da comunidade e da própria natureza do
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