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Autor e Contexto
A seguir, vamos contextualizar Foucault e situar sua importância. Parte do
trecho abaixo foi autoral, e parte retirado da Wikipedia (em relação ao autor e sua
história).
Vigiar e punir: nascimento da prisão (em francês: Surveiller et Punir:
Naissance de la prison) é um livro do filósofo francês Michel Foucault, publicado
originalmente em 1975 e tido como uma obra que alterou o modo de pensar e fazer
política social no mundo ocidental.
É um exame dos mecanismos sociais e teóricos que motivaram as grandes
mudanças que se produziram nos sistemas penais ocidentais durante a era
moderna. É dedicado à análise da vigilância e da punição, que se encontram em
várias entidades estatais (hospitais, prisões e escolas). Embora baseado em
documentos históricos franceses, as questões sobre as quais se debruça são
relevantes para as sociedades contemporâneas. É uma obra seminal que teve
grande influência em intelectuais, políticos, activistas sociais e artistas.
Michel Foucault foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo e
crítico literário. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como
eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais.
Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista,
Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento
como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto
para grupos acadêmicos, quanto para ativistas.
Foucault é um filósofo que realiza em sua obra uma análise do discurso, ou
seja, a grosso modo, qual o discurso que se sustenta sobre uma instituição ou
objeto, e qual a sua verdadeira função dentro da ótica social. Portanto, seu estudo
em vigiar e punir é apenas uma aplicação do sua análise de discurso que realizou
sobre diversos outros temas, por exemplo, a loucura.
VIGIAR E PUNIR
Michel Foucault
Nascido em Poitiers, na França, em uma família de classe
média-alta, Foucault foi educado no Lycée Henri-IV e tinha uma tensa relação com
seu pai, que chegou a interná-lo aos 22 anos de idade acusando-o de ser louco,
após tentativa de suicídio. Na idade adulta, Foucault entrou para a Escola Normal
Superior de Paris, onde ele desenvolveu seu interesse por filosofia e teve influência
de seus tutores, Jean Hyppolite e Louis Althusser
Depois de vários anos como diplomata cultural no exterior, ele retornou à
França e publicou seu primeiro grande livro, A História da Loucura. Após trabalhar
entre 1960 e 1966 na Universidade de Clermont-Ferrand, ele produziu duas
publicações mais significativas, O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas,
que exibiu seu crescente envolvimento com o estruturalismo, um movimento teórico
na antropologia social, do qual ele distanciou-se mais tarde. Essas três primeiras
obras foram exemplos de uma técnica historiográfica que Foucault estava
desenvolvendo e que ele chamou de "arqueologia".
De 1966 a 1968, Foucault lecionou na Universidade de Túnis, na Tunísia,
antes de retornar para a França, onde se tornou chefe do departamento de filosofia
de uma nova universidade experimental, a Paris VIII. Em 1970, ele foi admitido no
Collège de France, onde permaneceu até sua morte. Ele também tornou-se ativo em
alguns grupos de esquerda envolvidos em campanhas anti-racistas, contra
violações aos direitos humanos pela luta por uma reforma penal. Ele passou a
publicar A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir e História da Sexualidade. Nestes
livros, ele desenvolveu métodos arqueológicos e genealógicos que enfatizavam os
jogos de poder na evolução do discurso na sociedade. Foucault morreu em Paris
por conta de problemas neurológicos agravados por HIV/AIDS; ele foi a primeira
figura pública francesa que morreu por causa desta doença, sendo que seu parceiro
Daniel Defert criou a fundação da caridade AIDES em sua memória.
Foucault é conhecido pelas suas críticas às instituições sociais,
especialmente à psiquiatria, à medicina, às prisões, e por suas ideias sobre a
evolução da história da sexualidade, suas teorias gerais relativas à energia e à
complexa relação entre poder e conhecimento, bem como por estudar a expressão
do discurso em relação à história do pensamento ocidental. Têm sido amplamente
discutidas a imagem da "morte do homem", anunciada em As Palavras e Coisas, e a
ideia de subjetivação, reativada no interesse próprio de uma forma
ainda problemática para a filosofia clássica do sujeito. Parece então que mais do
que em análises da "identidade", por definição, estáticas e objetivadas, Foucault
centra-se na vida e nos diferentes processos de subjetivação.
Seu trabalho é muitas vezes descrito como pós-moderno ou pós-estruturalista
por comentadores e críticos contemporâneos, ele foi mais frequentemente
associado com o movimento estruturalista, especialmente nos primeiros anos após
a publicação de As Palavras e as Coisas. Inicialmente aceitou a filiação;
posteriormente, ele marcou a sua distância à abordagem estruturalista, explicando
que ao contrário desta última, não tinha adaptado uma abordagem formalista. Ele
aceitou não ver o rótulo de pós-modernista aplicado ao seu trabalho, dizendo que
preferia discutir como se dá a definição de modernidade em si. Sua filiação
intelectual pode estar relacionada ao modo como ele próprio definiu as funções do
intelectual não garante certos valores, mas em questão de ver e dizer, seguindo um
modelo de resposta intuitiva para o "intolerável".
As teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções
modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores,
contrariando a própria opinião de si mesmo, um pós-moderno. Os primeiros
trabalhos (História da Loucura, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, A
Arqueologia do Saber) seguem uma linha pós-estruturalista, o que não impede que
seja considerado geralmente como um estruturalista devido a obras posteriores
como Vigiar e Punir e a História da Sexualidade. Além desses livros, são publicadas
hoje em dia transcrições de seus cursos realizados no Collège de France e
inúmeras entrevistas, que auxiliam na introdução ao pensamento deste autor.
Michel Foucault é mais conhecido por ter destacado as formas de certas
práticas das instituições em relação aos indivíduos. Ele destacou a grande
semelhança nos modos de tratamento dado ou infligidos aos grandes grupos de
indivíduos que constituem os limites do grupo social: os loucos, prisioneiros, alguns
grupos de estrangeiros, soldados e crianças. Ele acredita que, em última análise,
eles têm em comum o fato de serem vistos com desconfiança e excluídos por uma
regra em confinamento em instalações seguras, especializadas, construídas e
organizadas em modelos semelhantes (asilos, presídios, quartéis, escolas),
inspirados no modelo monástico; instalações que ele chamou de
"instituições disciplinares".
Em 1971, Michel Foucault, Jean-Marie Domenach e Pierre Vidal-Naquet
criaram um grupo chamado Groupe d'information sur les prisons, que tinha como
objetivo investigar e trazer a público a situação do sistema penitenciário francês.
Figura do panóptico (projeto arquitetônico de prisão inventado por Jeremy
Bentham e destinada a garantir que todos os prisioneiros possam ser vistos a partir
de uma torre central) como um paradigma da evolução da nossa sociedade, ou o
que já é bastante (ver o conceito deleuziano de "sociedade de controle", na
discussão com a obra de Foucault).
Os estudos de Foucault são fundamentais para a construção da criminologia
crítica moderna.
Adiante, iremos iniciar a leitura da obra, apresentando os conceitos
mais relevantes, bem como realizando links com temas contemporâneos e
contextualizando a obra de Michel Foucault.
A obra é escrita no formato de um tratado histórico sobre a pena. Contudo,
Foucault é um excelente crítico sobre o discurso, ou seja, analisa determinado
elemento, como ele é apresentado na sociedade e qual a sua função real. Portanto,
a pena serve como objeto de estudo do trabalho, mas o resultado é uma análise
crítica que supera o objeto da pena e alcança toda a estrutura do sistema penal.
A obra é dividida em quatro partes: Suplício, Punição, Disciplina e Prisão.
Atenção: a ordem de construção do texto em si já é importante, demonstrando uma
linha de raciocínio que o autor vai desenvolver.
Suplício
O autor inicia a obra apresentando duas narrativas: uma sobre um
esquartejamento (suplícios, da idade média) e outra sobre a rotina em uma “Casa
dos Jovens Detentos” em Paris. Ambos os relatos são relativos ao final do século
XVIII e início do século XIX. Nessa parte, faz uma análise de cunho mais histórico
sobre a transformação da pena ao longo desse período.
Destaca o autor para o fim dos suplícios e o discurso de uma
possível evolução humanística, que seria responsável por operar um alívio na ideia
da pena, uma vez que some de cena as penas corporais – ou, na verdade, apenas
uma redução das penas meramente físicas, com uma discrição na arte de fazer
sofrer.
Junto com as penas corporais extremas, some o “espetáculo punitivo” - a
humilhação pública. Ao contrário, a execução pública da pena é vista como uma
incitação à violência, o que não deve ocorrer. Por causa disso, a punição passa a
ser mais “escondida” e burocratizada: torna-se a parte mais velada do processo
penal. A “certeza da punição” é que teria o condão de impedir o cometimento de
crimes, e não mais o “terror” decorrente do teatro das maldades anteriores.
A justiça, por sua vez, torna a violência não mais sua função em si, mas sim
um “ônus” que ela deve ter que aplicar e lhe é intrínseca. Não é glorioso punir, mas
é necessário. Com isso, a execução da pena vai se tornando um setor autônomo,
sendo burocratizado e virando um aspecto administrativo, o que isenta a justiça de
enfrentar esse aspecto.
Até a própria pena deixa de ter um perfil de punição e passa a assumir um
discurso de recuperação, correção e cura do indivíduo, o que retira dos juízes o
papel de castigadores.
Link: relacione essa análise de Foucault com as mudanças
operadas pelas escolas criminológicas. Enquanto na Escola
Clássica o livre arbítrio justificava a punição do indivíduo, na
Escola Positiva era a periculosidade quem o fazia, e a pena
tinha um objetivo de prevenção.
A substituição da pena dolorosa não é em vão. “O castigo passou de uma
arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”. Caso a
justiça precise atingir uma pessoa, fará isso com um discurso de distanciamento do
corpo e com um fim muito mais “elevado”. Assim, a figura do carrasco – quem
aplicava a dor da pena – é substituída (burocratizado o papel e pulverizada a
responsabilidade) por outras: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras
etc.
Nessa nova ordem, até mesmo a pena capital passaria por
modificações. Destaca o código francês que previa a morte por decaptação, o que
implicava em: uma morte igual para todos, uma só morte por pessoa (rápida e sem
prolongar), e a pena somente atingindo o condenado, não mais a humilhação
pública que alcança os familiares.
Explica uma certa “recaída” dessas mudanças, quando, com a Revolução
Francesa, a morte voltou a um ritual público de “ostentação” da violência. Para
contornar, até essa pena foi enclausurada, ocorrendo no interior das prisões.
Lança um novo foco sobre a forma tradicional que o Direito enxerga esse
fenômeno. Via de regra, vemos essas mudanças da pena como resultados de um
processo de humanização. Para Foucault, o que ocorre é uma mudança no objetivo
da ação punitiva. O objetivo não é mais atingir o corpo, e sim a alma do indivíduo.
Nesse ponto, Foucault destaca qual é o problema da suposta historicidade do direito
entendida como o direito funcionando de forma organizada e direcionada a uma
evolução histórica, que sempre acumula mais e mais elementos positivos, uma ideia
de crescimento humanístico da sociedade através do direito desde os tempos idos
até hoje.
Além disso, destaca que operou-se uma mudança na sociedade do que seria
o objeto “crime”. Embora a definição formal não tenha se alterado com tanta
substância, as paixões, os instintos, as anomalias e outras coisas são também
julgadas junto com o crime. Por exemplo: pune-se as agressões, mas, por meio
delas, escolhem-se as agressividades, violações e perversões que serão punidas ou
não. Contudo, o discurso jurídico não admite que são essas pessoas que são
punidas, sempre justificando que é um fato o objeto e essas pessoas são chamadas
à explicar tais fatos, e, em decorrência deles, eventualmente, serem penalizadas.
Da mesma forma, na própria fixação da pena se qualifica o indivíduo
(circunstâncias atenuantes subjetivas, por exemplo). A alma dos criminosos é
julgada, embora sem se admitir isso. Isso implicou que se modificou a própria
atividade do juiz, não mais apenas de julgar o fato enquanto verdade ou não. Agora,
o julgamento trata sobre “o que é realmente esse fato, o que significa essa violência
ou esse crime? Em que nível ou em que campo da realidade deverá ser colocado?
Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade? De que
modo será ele mais seguramente corrigido?”
Foucault apresenta uma distinção também do papel da loucura nesse
contexto. Antes, a loucura era capaz de descaracterizar o ato como crime. Era
impossível declarar alguém, ao mesmo tempo, culpado e louco. Posteriormente a
isso, rompe-se com essa ideia e admite-se a condenação da pessoa culpada e
louca. Ou, no mínimo, a sua punição.
O juiz, portanto, não julga mais sozinho (nem aplica a pena sozinho).
Prolifera-se uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos
surgem: peritos psiquiátricos e psicológicos, funcionários da administração
penitenciária etc. Afirma-se que nenhum deles tem, de fato, o poder de julgar, mas
somente aplicar a pena fixada. Contudo, se é deixado na mão de diversos autores a
possibilidade de a pessoa ser posta ou não em liberdade, são essas novas formas
de punição e novos juízes.
Link: relacione essa análise de Foucault com quatro temas: a)
o poder disciplinar nas unidades prisionais, em que, a mercê
da administração penitenciária, fica o indivíduo condicionado
a seguir uma série de regras disciplinares, sob pena de
cometimento de falta grave que importa no atraso da sua
progressão de regime e outros direitos; b) a utilização de
laudo criminológico como pressuposto para concessão da
liberdade; c) a aplicação de medidas de segurança, cujo fim é
condicionado à declaração de cessação da periculosidade,
sendo que o interno é submetido a testes psicológicos e
psiquiátricos para fundamentar tal declaração; e d) as
internações compulsórias fundadas em laudos médicos, e
cuja cessação, igualmente, passa por uma análise clínica.
“Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal — o definido pelos
grandes códigos dos séculos XVIII e XIX — um processo global levou os juízes a
julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer
coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a
instâncias que não são as dos juizes da infração.”
A partir daí, Foucault esclarece qual seu objetivo nessa obra: “Objetivo deste
livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma
genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia,
recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua
exorbitante singularidade.”
Para tanto, ele estabelece quatro regras gerais: a) não estudar os
mecanismos punitivos funcionando só como sanção, mas também de seus efeitos
positivos (prevenção etc), tomando a punição como uma função social complexa; b)
analisar os métodos punitivos não só como decorrentes de uma regra jurídica (uma
consequência lógica de um fato jurídico), mas sim como uma técnica que atua
dentro dos outros processos de poder (castigo tem uma função-técnica política); c)
aproximar o estudo da história do direito penal das ciências humanas; d) verificar
como a entrada da alma na atuação da justiça e todo um discurso de uma
justificativa por um saber “científico” não decorre da maneira como o próprio corpo é
tratado nas relações de poder atuais.
Assim, Foucault propõe estudar a pena sob uma ótica muito mais ampla,
enxergando qual a sua função dentro da sociedade, e sob diversos aspectos:
porque houve essa mudança da pena, qual a função de se modificar os modelos de
punir, como as relações e disputa de poder se valem disso, etc.
Entre esses papéis que a pena pode assumir, destaca a visão de Rushe e
Kirchheimer que estabelecem algumas relações: em uma sociedade de economia
servil, os mecanismos punitivos servem para aumentar a mão-de-obra suplementar
(“escravidão civil”); durante o feudalismo, crescem os castigos corporais, já que a
moeda e produção são pouco desenvolvidas; nas Casas de Correção, o trabalho
obrigatório está relacionado ao desenvolvimento do comércio. Por sua vez, no
sistema industrial (DESTAQUE), a mão-de-obra é livre, diminuindo-se o trabalho
obrigatório. Daí surgem as prisões com fins “corretivos”, servindo para adequar o
indivíduo ao novo sistema de produção.
Utiliza o conceito de microfísica do poder, que é uma outra obra sua. Via
de regra, o poder é visto como algo que emana de cima para baixo,
sendo os indivíduos meras peças de uma grande estrutura. Na
microfísica do poder, destaca-se o papel do indivíduo como
(con)formador da estrutura do poder. As análises tradicionais invocam o
poder como algo abstrato e centralizado em uma estrutura superior
(inalcançável e quase mística). Na microfísica, o poder é entendido, não
como uma entidade ou algo que tenha um local determinado para
acontecer, mas sim como estando em todos os lugares. Não existe “o
poder”, mas somente relação de poder. Flutuante, não há alguém que o
detenha. É nas práticas cotidianas que ele se realiza.
Destaca uma importante relação existente entre o poder e o saber. Poder e
saber estão diretamente relacionados. Não se constrói uma relação de poder sem
constituir um correlato campo de saber que o legitime, e tampouco um saber que
não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Com isso, temos que a própria
construção “científica” do direito se justifica para a legitimação de um poder, e, por
isso, é objeto de crítica e desconstrução.
Daí que a pena enquanto técnica punitiva tem uma função dentro da estrutura
do corpo político, não sendo uma mera consequência de uma teoria jurídica.
Ao fim desta parte, destaca que as revoluções que ocorrem nos corpos
prisionais dizem respeito também à aspectos materiais: sufocamento, superlotação,
submissão, humilhação e outros tantos elementos. Mas, além de uma revolta contra
esses pontos materiais específicos, as revoltas prisionais são, também, uma
oposição a toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, ao uso da prisão como
instrumento e vetor do poder.
Inicia novo capítulo tratando da ostentação dos suplícios. Sobre os suplícios,
destaca que se tratavam, desde seu uso, de uma técnica que não pode ser reduzida
a uma “raiva sem lei” ou barbárie qualquer (ausente de racionalidade). Tanto que a
pena, para ser um suplício, precisava: produzir uma considerável quantidade de
sofrimento; a morte figura como um suplício pelo meio que era alcançada, através
da intensificação do sofrimento – que podia ser reduzido (decapitação) ou
maximizado (esquartejamento); a morte-suplício exige uma refinada
arte de provocar “mil mortes”, obtida através da maximização do sofrimento do
indivíduo.
Além disso, a aplicação da pena suplício segue um ritual (processo) que
segue exigências. Para a vítima, deve ser marcante – importa em uma marca
(cicatriz) que lhe caracteriza como infame. Importa numa função de expurgar o
crime, mas sem deixar de registrar para a sociedade que aquela pessoa carrega,
consigo, a marca de tê-lo cometido (LINK: estigmatização da pessoa presa). Por
outro lado, da parte da justiça, o suplício deve ser ostentoso, publicizado. Tanto que
continuavam até depois da morte (queimar o corpo, desfilar com partes dele e expor
em praça pública).
Em seguida destaca o funcionamento do ritual-processo de condenação do
sistema inquisitivo, sobretudo marcado pelo sigilo da acusação em que o acusado
somente conhecia qualquer informação sobre sua condição na oportunidade do
interrogatório, o que era sucedido imediatamente pela condenação. Isso porque,
nesse modelo, o soberano e os juízes tinham um “direito” de estabelecer o que era a
verdade.
IMPORTANTE: conhecer os conceitos fundamentais sobre o sistema
inquisitivo – características, como se desenvolvia, as formas de
julgamento, provas e demais elementos.
Destaca que a confissão, no sistema inquisitivo, além de ser a “rainha das
provas”, possuía uma função muito maior que elemento de convencimento.
Enquanto prova irrefutável, implicava em uma vitória do processo, uma vez que o
próprio acusado tomava para si o crime que lhe era imputado, assumindo a
responsabilidade por todas as consequências (ainda que anteriores – a tortura).
Acrescentamos: no sistema inquisitivo, a confissão é a verdadeira função do
processo. O crime, confundido com o pecado, importa na condenação do apenado à
danação eterna. A única forma de obter a sua redenção (salvação), é através da
confissão. Com a confissão, é possível aplicar uma penitência (muitas vezes mais
brandas que os rituais de confissão) e a expiação da culpa, salvando-se o acusado.
Por isso, qualquer conduta era possível de se ter para conduzir o acusado à
confissão, uma vez que até as piores práticas terrestres – como a
tortura – eram mais brandas que a condenação do acusado à danação eterna nos
infernos.
Em seguida, Foucault apresenta uma crítica ponderada sobre a suposta
humanização da pena e todo o contexto envolvido. No capítulo de título “a punição
generalizada”, inicia afirmando que a partir da segunda metade do século XVIII,
inicia-se uma generalizada crítica aos suplícios e reclamação por uma nova forma
de punir, sempre revestido de uma necessidade de respeitar a “humanidade”.
Todavia, destaca que os conceitos relacionados a essa nova prática são tão
necessários quanto difusos. Quando se fala em “economia dos castigos” chega a
ser paradoxo, uma vez que a relação que se pode estabelecer entre punição e
humanização é, pelo menos, duvidosa.
LINK: Abolicionismo – corrente que realiza crítica ferrenha a função
omissa do Direito Penal, buscando eliminar toda forma de punição,
dando destaque, em certas partes, também ao fato de que não existe
punição humanizada.
Essa “suavização” da pena é a razão pela qual diversos “reformadores”
passaram a ser conhecidos (Beccaria, por exemplo). Foucault propõe recolocar a
leitura desse movimento, analisando que ao mesmo tempo em que os crimes
perdem a violência e as penas a crueldade, as intervenções se multiplicam. Crimes
contra a propriedade passam a representar mais que os crimes de sangue. Com
isso, a própria criminalidade migra de uma “criminalidade das massas” (crimes
violentos, de sangue, são também os delitos praticáveis por qualquer indivíduo,
sobretudo quando passionais) para uma “criminalidade marginal”, ou seja,
concentra-se a criminalização das condutas praticadas por pessoas que estão a
margem do sistema econômico.
Aumentam-se, por consequência, as repressões, a “delinquência”, os
processos. Foucault relaciona a migração dessa forma de criminalidade a um
conjunto complexo de fatores: aumento da riqueza, valorização/proteção moral
maior da propriedade, técnicas de vigilância e policiamento mais apurados, um
afinamento das práticas punitivas.
Como plano de fundo de tudo isso, temos um alerta: antes da
“reforma” operada, o poder punitivo não era concentrado e era irregular. Havia uma
má distribuição (ou desconcentração) da justiça enquanto poder, o que implicava
numa ausência de um monopólio sobre os corpos em relação a punição. Por isso, o
autor explica que:
O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas
formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de
punir a partir de princípios mais eqüitativos; mas estabelecer
uma nova “economia” do poder de castigar, assegurar uma
melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado
demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais
entre instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos
homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de
maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social. A
reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia
para o remanejamento do poder de punir, de acordo com
modalidades que o tornam mais regular, mais eficaz, mais
constante e mais bem detalhado em seus efeitos; enfim, que
aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja,
dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e
vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias
decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário do
poder monárquico).
Portanto, a conjuntura que viu nascer a reforma não é a de uma nova
sensibilidade; mas a de outra política em relação às ilegalidades. No antigo regime,
a ilegalidade possuía uma margem tolerável considerada. A criminalidade (de
sangue), por sua vez, se fundamentava numa ilegalidade mais vasta, à qual as
camadas populares estavam ligadas como a condições de existência.
Com o andar do século XVIII, o processo tende a se inverter. O aumento
geral da riqueza e o crescimento demográfico faz com que o alvo principal da
ilegalidade (tolerada) popular passe dos direitos (e, nessa medida, atacam uns aos
outros, dentro de uma mesma casta social) para os bens e a
propriedade (passando a representar um ataque entre as castas, e não mais
internamente). Com isso, a tolerância à ilegalidade popular entra em crise, uma vez
que atinge agora a burguesia, e não mais entre os próprios indivíduos à margem da
sociedade.
Por isso, é necessário controlar e codificar todas essas práticas ilícitas. “É
preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança, que nessa
massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com
ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável.” Em suma, a
reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do
soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas, que
agora ameaçava também a burguesia.
Todas as mudanças operadas pela reforma implica, também, em uma função
posta e outra menos explícita.
Quer dizer que se, aparentemente, a nova legislação criminal
se caracteriza por uma suavização das penas, uma codificação
mais nítida, uma considerável diminuição do arbitrário, um
consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir
(na falta de uma partilha mais real de seu exercício), ela é
apoiada basicamente por uma profunda alteração na economia
tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para
manter seu novo ajustamento. Um sistema penal deve ser
concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as
ilegalidades, não para suprimi-las a todas.
Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas
táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue mas
também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar
novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos
efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar,
afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu
exercício. Diminuir seu custo econômico e político
aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos.
Em resumo, constituir uma nova economia e
uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem
dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no
século XVIII.
Nesse momento, amigo leitor, seu mundo caiu, não
é? Pois é… Isso é criminologia. Você ai que tinha
um crush por Beccaria e todos os reformistas. Que
enxergava, como uma Poliana, apenas o lado bom
da reforma. Essa é a essência da criminologia
crítica. Encontrar o lado “funcional” que fica
escondido em relação a tudo, inclusive aquilo que é
apresentado como um avanço humanístico.
Em conjunto com essa perspectiva, formula-se, finalmente, a teoria geral do
contrato em relação à vida social. O cidadão, de forma suposta, aceita a lei da
sociedade e, inclusive, uma cláusula que permite sua punição. O criminoso é
paradoxal: rompe o pacto, e, portanto, é inimigo de toda a sociedade – mas, ao
mesmo tempo, integra essa sociedade e participa – aceita – da sua própria punição.
Na verdade, a infração faz com que se possa lançar todo o corpo social contra o
sujeito, permitindo-se que se exija uma punição, operando-se uma luta
desequilibrada: de um lado, todas as forças – sociedade, poder e o próprio
indivíduo; e de outro uma só pessoa – paradoxal – que já havia aceito anteriormente
o pacto e o rompeu. Eis um formidável surgimento (construção) de um Direito de
Punir. Cria-se o inimigo em comum.
Tudo isso é reforçado com a ideia da suavização das penas, da existência da
aplicação igual entre todas as pessoas, proporcionalidade dos castigos, um sistema
dogmático infalível de incidência da lei e configuração do crime. Até mesmo a ideia
de que você aplica uma sanção “humana” ao pior dos indivíduos que sequer possui
ainda um traço de humanização. O poder punitivo é benevolente e possui valores
superiores.
A semiotécnica com que se sustenta o direito de punir repousa
sobre algumas regras:
 Regra da quantidade mínima: um crime é cometido porque traz
vantagens. Se a ideia do crime for associada à ideia de uma
desvantagem maior que a sua vantagem, ele deixa de ser desejável.
[“Vale a pena?” A expressão traduz essa
regra em que se compara o ônus com o
bônus de determinada conduta.]
 Regra da idealidade suficiente: se o motivo de um crime é a
vantagem que se representa com ele, a eficácia da pena está na
desvantagem que se espera dela – uma ideia de aplicação de uma
dor, um desprazer, uma pena – evitando-se a reincidência.
 Regra dos efeitos laterais: pena deve ter efeitos mais intensos
naqueles que não cometeram a falta; em suma, se pudéssemos ter
certeza de que o culpado não poderia recomeçar, bastaria convencer
os outros de que ele fora punido.
 Regra da certeza perfeita: é preciso que, à ideia de cada crime e das
vantagens que se esperam dele, esteja associada a ideia de um
determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele
resultam. Leis claras que definem os crimes. Penas previstas antes.
Certeza da aplicação da pena e ausência de impunidade.
 Regra da verdade comum: contrapondo ao sistema probatório do
antigo regime – a verificação do crime passa a exigir critérios gerais
de qualquer verdade, dando homogeneidade ao julgamento com
base no uso das provas lícitas – abandonando as torturas, provas
legais e estabelecendo uma presunção de inocência.
 Regra da especificação ideal: todas as infrações precisam ser
qualificadas, cobrindo-se todas as ilegalidades - é então necessário
um código, e que seja suficientemente preciso para que cada tipo de
infração possa estar claramente presente nele. A esperança da
impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei. É necessário um
código exaustivo e explícito, que defina os crimes, fixando as penas.
Finalizando a (re)leitura histórica da pena, Foucault adentra ao capítulo de
título “a mitigação das penas”. Estabelece algumas condições que devem ser
observadas sobre a nova tecnologia da punição.
Entre elas, destaca-se a “naturalização da pena”. Para tanto, é necessário
afastar a ideia de que a aplicação de um poder punitivo é arbitrário. O crime é
reconhecido como algo definido pela sociedade (não ontológico/natural). Contudo, a
aplicação de uma punição precisa ter uma associação imediata – naturalizada –
com a existência de um crime. Assim, tomando a forma de uma consequência
natural, a punição não aparece como efeito arbitrário de um poder humano. A
punição passa a ser uma analogia do crime, e na punição analógica, esconde-se o
poder que pune. Até esse momento, a prisão ainda não era compreendida como
uma resposta adequada.
Atenção: até este momento, não fala-se em prisão como pena adequada
e na sua naturalização. Entretanto, posteriormente, o mesmo fenômeno
de naturalização da pena é focado na ideia da prisão, sendo a prisão a
resposta apresentada em seguida como medida punitiva, “naturaliza-se”
as prisões, passando a compreender tal medida como algo indissociável
à ideia do crime. Afinal, sempre existiram prisões, certo?… certo?
A limitação temporal da pena também ingressa nesse aspecto, uma vez que
a função declarada é a do retorno virtuoso do indivíduo à sociedade, e, portanto,
uma pena definitiva e irreversível não alcança tal fim. A ideia da progressividade da
pena igualmente entra em cena.
A pena interessa não só ao culpado, mas a todos os culpados possíveis
(prevenção geral). Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural,
mas interessante; é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem. Que
não haja mais essas penas ostensivas, mas inúteis. Que também cessem as penas
secretas; mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o
culpado faz a cada um.
Abre-se espaço para a ideia do utilitarismo da pena. “Que os
condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas
do país, por um tempo proporcional a seu crime.” Obra pública quer dizer duas
coisas: interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível, controlável do
castigo. O culpado, assim, paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pelos
sinais que produz. No centro da sociedade, nas praças públicas ou nas grandes
estrada, o condenado irradia lucros e significações. Ele serve visivelmente a cada
um; mas, ao mesmo tempo, introduz no espírito de todos o sinal crime-castigo:
utilidade secundária, puramente moral esta, mas tanto mais real.
Aponta que a partir de 1810 (Novo Código Penal Francês), a prisão passa a
assumir o protagonismo da punição.
E esse encarceramento, pedido pela lei, o Império resolvera
transcrevê-lo logo para a realidade, segundo uma hierarquia
penal, administrativa, geográfica: no grau mais baixo,
associada a cada justiça de paz, delegacia municipal; em cada
distrito, prisões; em todos os departamentos, uma casa de
correção; no cume, várias casas centrais para os condenados
criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de
um ano; enfim, em alguns portos, prisão com trabalhos
forçados. É programado um grande edifício carceral, cujos
níveis diversos devem-se ajustar exatamente aos andares da
centralização administrativa. O cadafalso onde o corpo do
supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do
soberano, o teatro punitivo onde a representação do castigo
teria sido permanentemente dada ao corpo social, são
substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa e
hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do
Estado. Uma materialidade totalmente diferente, uma física do
poder totalmente diferente, uma maneira de investir o corpo do
homem totalmente diferente.
Para a prisão ganhar força, diversos elementos foram
reformulados, destacando-se sua utilidade positiva:
A prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando-se os
detentos trabalhar em comum. As razões positivas em seguida:
o isolamento constitui “um choque terrível”, a partir do qual o
condenado, escapando às más influências, pode fazer meia-
volta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem;
o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício de
conversão quanto de aprendizado; não reformará
simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo
oeconomicus, mas também os imperativos do indivíduo moral.
A cela, esta técnica do monaquismo cristão e que só subsistia
em países católicos, torna-se nessa sociedade protestante o
instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmo
tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa. Entre o
crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um
“espaço entre dois mundos”, um lugar para as transformações
individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este
perdera.
Entre os diversos modelos de reclusão, o da Filadélfia apresentou as
melhores condições para que a prisão ganhe relevo enquanto mecanismo
punitivo.Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio
das despesas da prisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos
prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da
economia; os condenados são então “constantemente empregados em trabalhos
produtivos para fazê-los suportar os gastos da prisão, para não deixá-los na inação
e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu
cativeiro”.
Em conjunto com isso, algumas mudanças dogmáticas foram operadas. A
primeira, diz respeito a não-publicidade da pena. A condenação que a motivou
obedece a regra da publicidade, mas a execução da pena que é
decorrente deve ser feita em segredo, não devendo o povo intervir como
testemunha ou abonador do que acontece no interior das casas prisionais.
A própria administração (prisional) tem o papel de empreender a
transformação do indivíduo. A solidão não basta. A prisão e administração formam
uma máquina de modificar o espírito. Recorta trecho do regulamento de uma das
casas:
Ao mesmo tempo, os inspetores procuram fortalecer nele as
obrigações morais onde ele está; demonstram-lhe a infração
em que caiu em relação a eles, o mal que disso
conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e
a necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e
ao se emendar. Fazem-no em seguida comprometer-se a
cumprir seu dever com alegria, a se comportar decentemente,
prometendo-lhe, ou fazendo-o esperar, que antes da expiração
do termo da sentença poderá obter seu relaxamento, se se
comportar bem... De vez em quando os inspetores, sem falta,
conversam com os criminosos um depois do outro,
relativamente a seus deveres como homens e como membros
da sociedade.
No modelo fundado no funcionamento da Walnut Street, surge, basciamente,
o que compreende-se ainda hoje, para alguns, como o procedimento administrativo
da execução da pena:
O mais importante sem dúvida é que esse controle e essa
transformação do comportamento são acompanhados — ao
mesmo tempo condição e conseqüência — da formação de um
saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo que o próprio
condenado, a administração de Walnut Street recebe um
relatório sobre seu crime, as circunstâncias em que foi
cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notas sobre
a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença.
Outros tantos elementos indispensáveis se
queremos “determinar quais serão os cuidados necessários
para destruir seus hábitos antigos”.58 E durante todo o tempo
da detenção ele será observado; seu comportamento será
anotado dia por dia, e os inspetores — doze notáveis da
cidade designados em 1795 — que, dois a dois, visitam a
prisão toda semana, deverão se informar do que se passou,
tomar conhecimento da conduta de cada condenado e
designar aqueles para os quais será pedida a graça.
Destaca as convergências e disparidades entre os diversos modelos
punitivos. Entre as convergências, em primeiro lugar, o retorno temporal da punição,
uma vez que a pena tem por função não apagar o crime, mas evitar que recomece.
A pena é uma técnica corretiva. O corpo e a alma do indivíduo são o objeto da
punição, sendo o alvo da intervenção punitiva. A técnica implica no uso de
instrumentos de coerção e controle: horários, distribuição do tempo, movimentos
obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio,
aplicação, respeito, bons hábitos. O que se busca com isso? Recuperar o sujeito de
direito? Nem tanto. A função é muito mais a de recriar um sujeito obediente, o
indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce
continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar
automaticamente nele, sujeito a um poder qualquer. DOCILIZAR O HOMEM.
ILEGALIDADE X ILEGALISMOS
Esse tópico está relacionado com boa parte da leitura já feita até esse
ponto. Relaciona-se com a parte em que Foucault apresenta que algumas
condutas, em determinado contexto, apesar de representar uma
ilegalidade, possui uma função dentro do processo econômico e social de
forma que é tolerada, enquanto em outro contexto, mudando-se os
processos econômicos e sociais, passam a ser condutas perseguidas.
Diante disso, a existência e incidência de um sistema punitivo que
acompanha essa ilegalidade em um ou em outro contexto não possui uma
função neutra. Nem toda prática ilegal deve ser punida.
A punição do que é ilegal não decorre de um sistema lógico-dedutivo, muito
menos natural, ainda que sustentado por uma lógica racionalizada (ciência,
direito). Diante disso, o movimento reformista tratou de operar uma
mudança no regime dos ilegalismos presentes naquelas sociedades. Foi
um movimento de gestão das ilegalidades. Cada grupo social possuia uma
margem de ilegalismos tolerados, enquanto eram de interesse aos
processos econômicos e sociais. Com a alteração de tais processos,
operou-se, também, um redirecionamento dessa tolerância das
ilegalidades. Assim, os ilegalismos se definem como essa margem de
tolerância, essa flexibilização da incidência do código certo-errado que
existe em cada sociedade. Tal margem de tolerância pode ter diversas
naturezas: formais ou estatuárias, quando corresponde a uma isenção
regular no cumprimento de determinada regra; maciça e geral, muitas das
vezes relativas aos costumes; decorrentes dos desusos progressivos; ou
até em razão do consentimento tácito do poder ou impossibilidade de
perseguição.
Em razão das mudanças já anotadas que ocorreram na segunda metade
do século XVIII, opera-se uma inversão do eixo em que os ilegalismos se
sustentavam. Os bens passaram a ser o objeto principal, o que implicou em
uma violação que ultrapassava os efeitos intra-classes dos ilegalismos, já
que passavam a atingir a propriedade. Há, em decorrência disso, uma
reformulação (reforma) das margens de tolerância, e, por consequência,
uma alteração dos ilegalismos, ampliando-se as ilegalidades – aquelas
condutas que violam os interesses e não se isentam da aplicação de uma
punição.
Disciplina
A abertura da terceira parte da obra foca na ideia da disciplina e
sua função. “Corpos dóceis” é o capítulo inaugural, abordando a imagem do soldado
enquanto algo possível de se fabricar sobre o corpo humano: aquele que se produz
a partir de um corpo inapto para se transformar em uma máquina útil. O corpo, até
nas ciências, passa a ser algo que pode ser objeto do poder para sofrer
transformações: é possível manipular, treinar, adestrar, fazer responder, tornar hábil,
aumentar as forças e diminuir as fraquezas.
A despeito de não ser um conceito novo, diversas mudanças são sentidas: a
escala, uma vez que não se trata mais de cuidar do corpo em massa, mas trabalhá-
lo detalhadamente, aplicando, sem folga, uma coerção ao nível da mecânica,
controlando-se dos pequenos gestos ao funcionamento como um todo. O objeto do
controle passa a ser a economia – eficácia dos movimentos. Esse conjunto de
relações operadas sobre o corpo para domá-lo é o que nomeia como “disciplina”.
Diverge da escravidão, por exemplo, em que o poder se opera a partir da
apropriação dos corpos. Aqui, não há apropriação do corpo, mas sua docilização.
Diferencia-se também da domesticação ou vassalidade.
A “invenção” dessa nova anatomia política não surge do nada. É decorrente
de um complexo de relações que inclui uma preparação anterior, desde os colégios,
passando pelas escolas primárias, alcançam o espaço hospitalar – e os estudos
realizados neles – e a própria organização militar.
A nova arte da disciplina se realiza pelos detalhes, operando o controle de
cada aspecto mínimo da vida e do corpo, no quadro da escola, do quartel, do
hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou
técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito.
Quanto a arte das distribuições, afirma que um primeiro passo para a
disciplina consiste em saber distribuir os indivíduos nos espaços. Para isso, diversas
técnicas são úteis. Em alguns momentos, a disciplina exige a cerca enquanto
obstáculo capaz de especificar um local, torná-lo heterogêneo a todos os outros e
fechados em si mesmos. Entre tais espaços estão os ambientes de
encarceramento, mas também outros mais sutis (colégios, quartéis, conventos).
Contudo, a clausura não é indissociável da disciplina. Existem técnicas mais
flexíveis, como o princípio do quadriculamento (localização imediata) – cada
indivíduo no seu lugar, e em cada lugar um indivíduo. Retira-se
qualquer potencialidade que o coletivo pode oferecer de nocivo à disciplina. Baseia-
se no isolamento do ser.
Por sua vez, a regra das localizações funcionais implica que há uma definição
do uso de cada espaço. Lugares determinados para satisfazer a necessidade de
vigiar e outras. A exemplo, os hospitais onde se operam as vigilâncias médicas, por
meio do controle das epidemias e uma divisão de cada espaço (alas, corredores,
salas) com um grande rigor.
Essa lógica evolui para os espaços das fábricas, sendo o quadriculamento
responsável por distribuir os indivíduos de forma que se possa isolar cada um, mas
também localizá-los, ao mesmo tempo que deve funcionar para uma estrutura maior
que é o aparelho de produção da fábrica. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a
arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na
distribuição dos “postos”.
Todos os elementos são intercambiáveis, pois cada um ocupa um lugar numa
série, numa cadeia de lógica própria.
A unidade não é portanto nem o território (unidade de
dominação), nem o local (unidade de residência), mas a
posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação,
o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo
numa série de intervalos que se pode percorrer
sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da
técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os
corpos por uma localização que não os implanta, mas os
distribui e os faz circular numa rede de relações.
Essa formatação é sentida em diversos aspectos da vida moderna. A
organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do
ensino elementar, por exemplo. Saiu-se de um modelo em que cada aluno recebia a
atenção individual do professor, enquanto os demais restavam no ócio, para o
modelo de exposição, o que implicou na separação e classificação dos alunos
(salas, turmas, anos, níveis) e dos professores (disciplinas, nível).
Avançamos, com isso, para uma segunda possibilidade para
exercer uma microfísica do poder que chama de “celular”. Nessa, após a disciplina
da distribuição dos espaços, temos o controle da atividade.
Diversas são as técnicas utilizadas para o controle da atividade. O horário
potencializa o controle do tempo, dividindo-se em detalhes os turnos, horas,
minutos, o que permite controlar quando e quanto irá durar cada atividade. A isso se
segue a elaboração temporal do ato enquanto a possibilidade de controlar os gestos
e atos dos corpos. Por exemplo, ajustar o tempo de marcha de um batalhão. Ou o
tempo de ajuste de uma peça na manufatura da fábrica. Outra técnica é o
estabelecimento de uma relação entre corpo e gestos: o controle disciplinar não
consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a
melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de
eficácia e de rapidez. Um gesto eficiente exige um corpo disciplinado. Imagine, por
exemplo, a rotina de um atleta, em que a disciplina do treinamento importa no
aperfeiçoamento do seu gesto – arte. A articulação corpo-objeto também é útil ao
controle das atividades, tornando uma engrenagem única entre o ser e a coisa,
operando-se uma “codificação instrumental do corpo”. A utilização exaustiva, por
sua vez, importa em utilizar ao máximo do corpo, proibindo-se o uso ocioso do corpo
e desperdício do tempo.
Avança para tratar da organização das gêneses. Aponta como exemplo das
primeiras experiências da nova organização disciplinar a escola de Gobelins, o que
representa o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para a
apropriação do tempo das existências singulares; para reger as relações do tempo,
dos corpos e das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter
em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que passa.
Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus
corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de
utilização e de controle? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que
analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser
também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.
Aponta que a organização militar reponde a isso a partir de quatro processos:
1º – dividir a duração em segmentos, sucessivos ou paralelos, dos quais cada um
deve chegar a um termo específico. Por exemplo: isolar o tempo de
formação e o período da prática; não misturar a instrução dos recrutas e o exercício
dos veteranos; abrir escolas militares distintas do serviço armado etc; 2º – Organizar
essas seqüências segundo um esquema analítico — sucessão de elementos tão
simples quanto possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente; 3º
– Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova,
que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de
garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e
diferenciar as capacidades de cada indivíduo; e 4º – Estabelecer séries de séries;
prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os
exercícios que lhe convêm; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e
cada diferença comporta exercícios específicos.
E para que tanto controle, se não fosse útil? Quanto a utilidade dessa
disciplinar, destaca:
A colocação em “série” das atividades sucessivas permite todo
um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um
controle detalhado e de uma intervenção pontual (de
diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) a cada
momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de
utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries
que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a
atividade, de encontrá-los totalizados e utilizáveis num
resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo.
Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e
conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder
se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e
garante sua utilização.
A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de
extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho
eficiente. Com isso, o corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar,
mover, articular com outros, constituindo o corpo uma peça de uma máquina
multissegmentar. São também peças as várias séries cronológicas que
a disciplina deve combinar para formar um tempo composto. Essa combinação
cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando. Toda a
atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja
eficiência repousa na brevidade e na clareza; a ordem não tem que ser explicada,
nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento
desejado (adestramento).
Com base nisso, passa para novo capítulo em que discorre sobre técnicas
para o bom adestramento, sendo a arte de fazer a aplicação correta do
estabelecimento do poder disciplinar. A disciplina é uma técnica transformadora dos
corpos e das almas dos indivíduos.
A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de
um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como
objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder
triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em
seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que
funciona a modo de uma economia calculada, mas
permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores,
se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou
aos grandes aparelhos do Estado.
Afirma que o aparelho judiciário não escapa dessa invasão. Na verdade, o
sucesso do poder disciplinar se apoia justamente na sua variação de espaços em
que se percebe, apontando o êxito aos instrumentos simples que se utiliza: o olhar
hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num procedimento que lhe
é específico e que vem a chamar de exame.
Sobre a vigilância hierárquica destaca que o poder disciplinar “supõe um
dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que
permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção
tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.”
Geograficamente falando, a construção dos espaços passa a observar essa
vigilância hierárquica. Os hospitais, asilos, prisões, casas de educação, escolas
passam a adotar um modelo refinado dos acampamentos militares – o
encaixamento espacial da vigilância hierarquizada (um ambiente em que o poder
possa tudo observar, e demonstrar a todos que estão sendo observados).
Não basta à arquitetura que permita ver e ser visto, mas sobretudo possuir
um controle interior e detalhado das atividades, intervindo quando necessário pelo
poder disciplinar. Por exemplo:
Assim é que o hospital-edifício se organiza pouco a pouco
como instrumento de ação médica: deve permitir que se possa
observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os
cuidados; a
forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos doentes,
deve impedir os contágios; a ventilação que se faz circular em
torno de cada leito deve enfim evitar que os vapores deletérios
se estagnem em volta do paciente, decompondo seus humores
e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos.
A mesma sorte seguem as escolas, os asilos e outras instituições. Entre elas,
as fábricas e grandes oficinas. “A vigilância torna-se um operador econômico
decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de
produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.”
Por sua vez, em relação a sanção normalizadora afirma que:
Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona
um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma
espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias,
seus delitos especificados, suas formas particulares de
sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas
estabelecem uma “infra-penalidade”; quadriculam um
espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um
conjunto de comportamentos que escapava aos grandes
sistemas de castigo por sua relativa indiferença.
A essência do pensamento de Foucault neste ponto
exige a compreensão de tudo que foi apresentado.
Observe que após o ingresso do autor na terceira
parte da obra, há certo distanciamento do tema da
sanção penal e do crime. Aqui é a reaproximação.
Este é o ponto de convergência da associação que o
filósofo faz sobre todo o discurso da pena e sua
funcionalidade de acordo com os processos sociais
e econômicos, e a utilização do poder disciplinar nos
tempos modernos.
Em todos as instituições em que o poder disciplinar se mostra mais presente,
existe um sistema de micropenalidade. Em sua maioria, este código de condutas e
sanções está relacionado ao uso do tempo (chegar atrasado, sair antes, faltar),
maneira de ser (grosseria, falta de respeito e desobediência), discursos (insolência,
tagarelice), do corpo (atitudes incorretas, gestos inadmissíveis, sujeira), da
sexualidade (imodéstia, indecência).
LINK: neste ponto, observe que podemos aproximar a crítica de Foucault
com a criminalização de diversas condutas que não ofendem, de fato, a
qualquer bem jurídico se não à manutenção e funcionalidade do poder
disciplinar. O crime de desacato e a criminalização de elementos morais
como a exposição do corpo (atentado ao pudor, em protestos), por
exemplo, se encaixam perfeitamente nessa crítica do filósofo.
Por consequência, uma gama de instrumentos de sancionamentos passam a
ser utilizados, sendo desde os mais leves (admoestações) até os mais severos
(humilhação, privação de acesso).”Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis
as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos
aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo
possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre
preso numa universalidade punível-punidora.”
A disciplina traz consigo uma maneira específica de punir que é uma cópia
reduzida do modelo do tribunal. A penalidade disciplinar alcança qualquer desvio,
ainda que seja decorrente do não alcance de um padrão exigido para o indivíduo
(ex.: reprovar na escola por tirar nota baixa). A punição em regime disciplinar
comporta uma dupla referência jurídico-natural: uma ordem “artificial” que é
colocada de maneira explícita por uma lei, programa, regulamento (todos conhecem
as metas e as sanções); e uma ordem definida por processos naturais e
observáveis, ou seja, aquilo que diria respeito a cada indivíduo mas que é fixado
anteriormente (o tempo para realizar um exercício, o nível de aptidão) e se torna,
também, uma regra.
O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios, sendo
precipuamente corretivo. Tanto é que as penalidades, muitas vezes, são da ordem
do exercício (aprendizado intensificado para quem não atinge o nível exigido,
repetição excessiva do exercício não realizado). Estabelece-se uma relação
isomorfa entre a própria obrigação que gerou a punição e esta: ela é menos a
vingança da lei que sua repetição, sua insistência redobrada – o que faz com que o
próprio poder disciplinar se reafirme. O arrependimento e a expiação são
acessórios, sendo o objetivo o castigo que é exercitar e reforçar o próprio poder
disciplinar.
A punição na disciplina é um elemento de um sistema duplo: gratificação-
sanção. Esse sistema é operante no processo de treinamento e correção. Somente
a sanção-castigo não opera tão perfeitamente, havendo seu contraponto que é a
gratificação-bonificação.
Este mecanismo de dois elementos permite um certo número
de operações características da penalidade disciplinar. Em
primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos
desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do
mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito
pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo e
pólo negativo; todo o comportamento cai no
campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus
pontos.
Opera-se uma hierarquização entre os “bons” e os “maus” indivíduos. Essa
divisão possui uma dupla função: marcar desvios, hierarquizar as qualidades,
competências e aptidões; mas também castigar e recompensar. “A disciplina
recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e
lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale
como recompensa ou punição”.
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não
visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão.
Põe em funcionamento cinco operações bem distintas:
relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos
singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de
comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra
a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e
em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer
funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como
o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos
quantitativos e hierarquizar em termos de valor as
capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer
funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de
uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá
a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira
externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar).
A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e
controla todos os instantes das instituições disciplinares
compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma
palavra, ela normaliza.
Portanto, essa sanção disciplinar seria o oposto daquela
decorrente do direito penal judicialmente aplicado. Na penalidade judiciária, toma-se
por referência um corpo de lei, não diferenciando-se indivíduos, mas especificando
atos num certo número de categorias (teoria geral do direito penal – legalidade,
tipicidade). Não se hierarquiza, pois há um código binário simples entre proibido e
permitido. “Os dispositivos disciplinares produziram uma 'penalidade da norma' que
é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei.”
Ocorre que o funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da
penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das
ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao
humanismo que ela traria consigo (retoma a crítica a perspectiva da construção do
novo regime a partir – exclusivamente – de um novo paradigma humanístico); ele
tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos
mecanismos de sanção normalizadora.
Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei
da sociedade moderna? Digamos antes que desde o século
XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas
delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da Tradição.
O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino,
com a instauração de uma educação estandardizada e a
criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para
organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação
capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde;
estabelece-se na regularização dos processos e dos produtos
industriais. Tal como a vigilância e junto com ela, a
regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no
fim da era clássica. As marcas que significavam status,
privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos
acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são
sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm
em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e
de distribuição de lugares. Em certo sentido, o
poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas
individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os
níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças,
ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da
norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade
formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele
introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida,
toda a gradação das diferenças individuais. funcione facilmente
dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma
homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um
imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação
das diferenças individuais.

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Foucault e Vigiar e Punir

  • 1. Autor e Contexto A seguir, vamos contextualizar Foucault e situar sua importância. Parte do trecho abaixo foi autoral, e parte retirado da Wikipedia (em relação ao autor e sua história). Vigiar e punir: nascimento da prisão (em francês: Surveiller et Punir: Naissance de la prison) é um livro do filósofo francês Michel Foucault, publicado originalmente em 1975 e tido como uma obra que alterou o modo de pensar e fazer política social no mundo ocidental. É um exame dos mecanismos sociais e teóricos que motivaram as grandes mudanças que se produziram nos sistemas penais ocidentais durante a era moderna. É dedicado à análise da vigilância e da punição, que se encontram em várias entidades estatais (hospitais, prisões e escolas). Embora baseado em documentos históricos franceses, as questões sobre as quais se debruça são relevantes para as sociedades contemporâneas. É uma obra seminal que teve grande influência em intelectuais, políticos, activistas sociais e artistas. Michel Foucault foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo e crítico literário. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Foucault é um filósofo que realiza em sua obra uma análise do discurso, ou seja, a grosso modo, qual o discurso que se sustenta sobre uma instituição ou objeto, e qual a sua verdadeira função dentro da ótica social. Portanto, seu estudo em vigiar e punir é apenas uma aplicação do sua análise de discurso que realizou sobre diversos outros temas, por exemplo, a loucura. VIGIAR E PUNIR Michel Foucault
  • 2. Nascido em Poitiers, na França, em uma família de classe média-alta, Foucault foi educado no Lycée Henri-IV e tinha uma tensa relação com seu pai, que chegou a interná-lo aos 22 anos de idade acusando-o de ser louco, após tentativa de suicídio. Na idade adulta, Foucault entrou para a Escola Normal Superior de Paris, onde ele desenvolveu seu interesse por filosofia e teve influência de seus tutores, Jean Hyppolite e Louis Althusser Depois de vários anos como diplomata cultural no exterior, ele retornou à França e publicou seu primeiro grande livro, A História da Loucura. Após trabalhar entre 1960 e 1966 na Universidade de Clermont-Ferrand, ele produziu duas publicações mais significativas, O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas, que exibiu seu crescente envolvimento com o estruturalismo, um movimento teórico na antropologia social, do qual ele distanciou-se mais tarde. Essas três primeiras obras foram exemplos de uma técnica historiográfica que Foucault estava desenvolvendo e que ele chamou de "arqueologia". De 1966 a 1968, Foucault lecionou na Universidade de Túnis, na Tunísia, antes de retornar para a França, onde se tornou chefe do departamento de filosofia de uma nova universidade experimental, a Paris VIII. Em 1970, ele foi admitido no Collège de France, onde permaneceu até sua morte. Ele também tornou-se ativo em alguns grupos de esquerda envolvidos em campanhas anti-racistas, contra violações aos direitos humanos pela luta por uma reforma penal. Ele passou a publicar A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir e História da Sexualidade. Nestes livros, ele desenvolveu métodos arqueológicos e genealógicos que enfatizavam os jogos de poder na evolução do discurso na sociedade. Foucault morreu em Paris por conta de problemas neurológicos agravados por HIV/AIDS; ele foi a primeira figura pública francesa que morreu por causa desta doença, sendo que seu parceiro Daniel Defert criou a fundação da caridade AIDES em sua memória. Foucault é conhecido pelas suas críticas às instituições sociais, especialmente à psiquiatria, à medicina, às prisões, e por suas ideias sobre a evolução da história da sexualidade, suas teorias gerais relativas à energia e à complexa relação entre poder e conhecimento, bem como por estudar a expressão do discurso em relação à história do pensamento ocidental. Têm sido amplamente discutidas a imagem da "morte do homem", anunciada em As Palavras e Coisas, e a
  • 3. ideia de subjetivação, reativada no interesse próprio de uma forma ainda problemática para a filosofia clássica do sujeito. Parece então que mais do que em análises da "identidade", por definição, estáticas e objetivadas, Foucault centra-se na vida e nos diferentes processos de subjetivação. Seu trabalho é muitas vezes descrito como pós-moderno ou pós-estruturalista por comentadores e críticos contemporâneos, ele foi mais frequentemente associado com o movimento estruturalista, especialmente nos primeiros anos após a publicação de As Palavras e as Coisas. Inicialmente aceitou a filiação; posteriormente, ele marcou a sua distância à abordagem estruturalista, explicando que ao contrário desta última, não tinha adaptado uma abordagem formalista. Ele aceitou não ver o rótulo de pós-modernista aplicado ao seu trabalho, dizendo que preferia discutir como se dá a definição de modernidade em si. Sua filiação intelectual pode estar relacionada ao modo como ele próprio definiu as funções do intelectual não garante certos valores, mas em questão de ver e dizer, seguindo um modelo de resposta intuitiva para o "intolerável". As teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores, contrariando a própria opinião de si mesmo, um pós-moderno. Os primeiros trabalhos (História da Loucura, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, A Arqueologia do Saber) seguem uma linha pós-estruturalista, o que não impede que seja considerado geralmente como um estruturalista devido a obras posteriores como Vigiar e Punir e a História da Sexualidade. Além desses livros, são publicadas hoje em dia transcrições de seus cursos realizados no Collège de France e inúmeras entrevistas, que auxiliam na introdução ao pensamento deste autor. Michel Foucault é mais conhecido por ter destacado as formas de certas práticas das instituições em relação aos indivíduos. Ele destacou a grande semelhança nos modos de tratamento dado ou infligidos aos grandes grupos de indivíduos que constituem os limites do grupo social: os loucos, prisioneiros, alguns grupos de estrangeiros, soldados e crianças. Ele acredita que, em última análise, eles têm em comum o fato de serem vistos com desconfiança e excluídos por uma regra em confinamento em instalações seguras, especializadas, construídas e organizadas em modelos semelhantes (asilos, presídios, quartéis, escolas),
  • 4. inspirados no modelo monástico; instalações que ele chamou de "instituições disciplinares". Em 1971, Michel Foucault, Jean-Marie Domenach e Pierre Vidal-Naquet criaram um grupo chamado Groupe d'information sur les prisons, que tinha como objetivo investigar e trazer a público a situação do sistema penitenciário francês. Figura do panóptico (projeto arquitetônico de prisão inventado por Jeremy Bentham e destinada a garantir que todos os prisioneiros possam ser vistos a partir de uma torre central) como um paradigma da evolução da nossa sociedade, ou o que já é bastante (ver o conceito deleuziano de "sociedade de controle", na discussão com a obra de Foucault). Os estudos de Foucault são fundamentais para a construção da criminologia crítica moderna. Adiante, iremos iniciar a leitura da obra, apresentando os conceitos mais relevantes, bem como realizando links com temas contemporâneos e contextualizando a obra de Michel Foucault. A obra é escrita no formato de um tratado histórico sobre a pena. Contudo, Foucault é um excelente crítico sobre o discurso, ou seja, analisa determinado elemento, como ele é apresentado na sociedade e qual a sua função real. Portanto, a pena serve como objeto de estudo do trabalho, mas o resultado é uma análise crítica que supera o objeto da pena e alcança toda a estrutura do sistema penal. A obra é dividida em quatro partes: Suplício, Punição, Disciplina e Prisão. Atenção: a ordem de construção do texto em si já é importante, demonstrando uma linha de raciocínio que o autor vai desenvolver. Suplício O autor inicia a obra apresentando duas narrativas: uma sobre um esquartejamento (suplícios, da idade média) e outra sobre a rotina em uma “Casa dos Jovens Detentos” em Paris. Ambos os relatos são relativos ao final do século XVIII e início do século XIX. Nessa parte, faz uma análise de cunho mais histórico sobre a transformação da pena ao longo desse período.
  • 5. Destaca o autor para o fim dos suplícios e o discurso de uma possível evolução humanística, que seria responsável por operar um alívio na ideia da pena, uma vez que some de cena as penas corporais – ou, na verdade, apenas uma redução das penas meramente físicas, com uma discrição na arte de fazer sofrer. Junto com as penas corporais extremas, some o “espetáculo punitivo” - a humilhação pública. Ao contrário, a execução pública da pena é vista como uma incitação à violência, o que não deve ocorrer. Por causa disso, a punição passa a ser mais “escondida” e burocratizada: torna-se a parte mais velada do processo penal. A “certeza da punição” é que teria o condão de impedir o cometimento de crimes, e não mais o “terror” decorrente do teatro das maldades anteriores. A justiça, por sua vez, torna a violência não mais sua função em si, mas sim um “ônus” que ela deve ter que aplicar e lhe é intrínseca. Não é glorioso punir, mas é necessário. Com isso, a execução da pena vai se tornando um setor autônomo, sendo burocratizado e virando um aspecto administrativo, o que isenta a justiça de enfrentar esse aspecto. Até a própria pena deixa de ter um perfil de punição e passa a assumir um discurso de recuperação, correção e cura do indivíduo, o que retira dos juízes o papel de castigadores. Link: relacione essa análise de Foucault com as mudanças operadas pelas escolas criminológicas. Enquanto na Escola Clássica o livre arbítrio justificava a punição do indivíduo, na Escola Positiva era a periculosidade quem o fazia, e a pena tinha um objetivo de prevenção. A substituição da pena dolorosa não é em vão. “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”. Caso a justiça precise atingir uma pessoa, fará isso com um discurso de distanciamento do corpo e com um fim muito mais “elevado”. Assim, a figura do carrasco – quem aplicava a dor da pena – é substituída (burocratizado o papel e pulverizada a responsabilidade) por outras: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras etc.
  • 6. Nessa nova ordem, até mesmo a pena capital passaria por modificações. Destaca o código francês que previa a morte por decaptação, o que implicava em: uma morte igual para todos, uma só morte por pessoa (rápida e sem prolongar), e a pena somente atingindo o condenado, não mais a humilhação pública que alcança os familiares. Explica uma certa “recaída” dessas mudanças, quando, com a Revolução Francesa, a morte voltou a um ritual público de “ostentação” da violência. Para contornar, até essa pena foi enclausurada, ocorrendo no interior das prisões. Lança um novo foco sobre a forma tradicional que o Direito enxerga esse fenômeno. Via de regra, vemos essas mudanças da pena como resultados de um processo de humanização. Para Foucault, o que ocorre é uma mudança no objetivo da ação punitiva. O objetivo não é mais atingir o corpo, e sim a alma do indivíduo. Nesse ponto, Foucault destaca qual é o problema da suposta historicidade do direito entendida como o direito funcionando de forma organizada e direcionada a uma evolução histórica, que sempre acumula mais e mais elementos positivos, uma ideia de crescimento humanístico da sociedade através do direito desde os tempos idos até hoje. Além disso, destaca que operou-se uma mudança na sociedade do que seria o objeto “crime”. Embora a definição formal não tenha se alterado com tanta substância, as paixões, os instintos, as anomalias e outras coisas são também julgadas junto com o crime. Por exemplo: pune-se as agressões, mas, por meio delas, escolhem-se as agressividades, violações e perversões que serão punidas ou não. Contudo, o discurso jurídico não admite que são essas pessoas que são punidas, sempre justificando que é um fato o objeto e essas pessoas são chamadas à explicar tais fatos, e, em decorrência deles, eventualmente, serem penalizadas. Da mesma forma, na própria fixação da pena se qualifica o indivíduo (circunstâncias atenuantes subjetivas, por exemplo). A alma dos criminosos é julgada, embora sem se admitir isso. Isso implicou que se modificou a própria atividade do juiz, não mais apenas de julgar o fato enquanto verdade ou não. Agora, o julgamento trata sobre “o que é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Em que nível ou em que campo da realidade deverá ser colocado?
  • 7. Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade? De que modo será ele mais seguramente corrigido?” Foucault apresenta uma distinção também do papel da loucura nesse contexto. Antes, a loucura era capaz de descaracterizar o ato como crime. Era impossível declarar alguém, ao mesmo tempo, culpado e louco. Posteriormente a isso, rompe-se com essa ideia e admite-se a condenação da pessoa culpada e louca. Ou, no mínimo, a sua punição. O juiz, portanto, não julga mais sozinho (nem aplica a pena sozinho). Prolifera-se uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos surgem: peritos psiquiátricos e psicológicos, funcionários da administração penitenciária etc. Afirma-se que nenhum deles tem, de fato, o poder de julgar, mas somente aplicar a pena fixada. Contudo, se é deixado na mão de diversos autores a possibilidade de a pessoa ser posta ou não em liberdade, são essas novas formas de punição e novos juízes. Link: relacione essa análise de Foucault com quatro temas: a) o poder disciplinar nas unidades prisionais, em que, a mercê da administração penitenciária, fica o indivíduo condicionado a seguir uma série de regras disciplinares, sob pena de cometimento de falta grave que importa no atraso da sua progressão de regime e outros direitos; b) a utilização de laudo criminológico como pressuposto para concessão da liberdade; c) a aplicação de medidas de segurança, cujo fim é condicionado à declaração de cessação da periculosidade, sendo que o interno é submetido a testes psicológicos e psiquiátricos para fundamentar tal declaração; e d) as internações compulsórias fundadas em laudos médicos, e cuja cessação, igualmente, passa por uma análise clínica. “Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal — o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX — um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer
  • 8. coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são as dos juizes da infração.” A partir daí, Foucault esclarece qual seu objetivo nessa obra: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade.” Para tanto, ele estabelece quatro regras gerais: a) não estudar os mecanismos punitivos funcionando só como sanção, mas também de seus efeitos positivos (prevenção etc), tomando a punição como uma função social complexa; b) analisar os métodos punitivos não só como decorrentes de uma regra jurídica (uma consequência lógica de um fato jurídico), mas sim como uma técnica que atua dentro dos outros processos de poder (castigo tem uma função-técnica política); c) aproximar o estudo da história do direito penal das ciências humanas; d) verificar como a entrada da alma na atuação da justiça e todo um discurso de uma justificativa por um saber “científico” não decorre da maneira como o próprio corpo é tratado nas relações de poder atuais. Assim, Foucault propõe estudar a pena sob uma ótica muito mais ampla, enxergando qual a sua função dentro da sociedade, e sob diversos aspectos: porque houve essa mudança da pena, qual a função de se modificar os modelos de punir, como as relações e disputa de poder se valem disso, etc. Entre esses papéis que a pena pode assumir, destaca a visão de Rushe e Kirchheimer que estabelecem algumas relações: em uma sociedade de economia servil, os mecanismos punitivos servem para aumentar a mão-de-obra suplementar (“escravidão civil”); durante o feudalismo, crescem os castigos corporais, já que a moeda e produção são pouco desenvolvidas; nas Casas de Correção, o trabalho obrigatório está relacionado ao desenvolvimento do comércio. Por sua vez, no sistema industrial (DESTAQUE), a mão-de-obra é livre, diminuindo-se o trabalho obrigatório. Daí surgem as prisões com fins “corretivos”, servindo para adequar o indivíduo ao novo sistema de produção.
  • 9. Utiliza o conceito de microfísica do poder, que é uma outra obra sua. Via de regra, o poder é visto como algo que emana de cima para baixo, sendo os indivíduos meras peças de uma grande estrutura. Na microfísica do poder, destaca-se o papel do indivíduo como (con)formador da estrutura do poder. As análises tradicionais invocam o poder como algo abstrato e centralizado em uma estrutura superior (inalcançável e quase mística). Na microfísica, o poder é entendido, não como uma entidade ou algo que tenha um local determinado para acontecer, mas sim como estando em todos os lugares. Não existe “o poder”, mas somente relação de poder. Flutuante, não há alguém que o detenha. É nas práticas cotidianas que ele se realiza. Destaca uma importante relação existente entre o poder e o saber. Poder e saber estão diretamente relacionados. Não se constrói uma relação de poder sem constituir um correlato campo de saber que o legitime, e tampouco um saber que não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Com isso, temos que a própria construção “científica” do direito se justifica para a legitimação de um poder, e, por isso, é objeto de crítica e desconstrução. Daí que a pena enquanto técnica punitiva tem uma função dentro da estrutura do corpo político, não sendo uma mera consequência de uma teoria jurídica. Ao fim desta parte, destaca que as revoluções que ocorrem nos corpos prisionais dizem respeito também à aspectos materiais: sufocamento, superlotação, submissão, humilhação e outros tantos elementos. Mas, além de uma revolta contra esses pontos materiais específicos, as revoltas prisionais são, também, uma oposição a toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, ao uso da prisão como instrumento e vetor do poder. Inicia novo capítulo tratando da ostentação dos suplícios. Sobre os suplícios, destaca que se tratavam, desde seu uso, de uma técnica que não pode ser reduzida a uma “raiva sem lei” ou barbárie qualquer (ausente de racionalidade). Tanto que a pena, para ser um suplício, precisava: produzir uma considerável quantidade de sofrimento; a morte figura como um suplício pelo meio que era alcançada, através da intensificação do sofrimento – que podia ser reduzido (decapitação) ou
  • 10. maximizado (esquartejamento); a morte-suplício exige uma refinada arte de provocar “mil mortes”, obtida através da maximização do sofrimento do indivíduo. Além disso, a aplicação da pena suplício segue um ritual (processo) que segue exigências. Para a vítima, deve ser marcante – importa em uma marca (cicatriz) que lhe caracteriza como infame. Importa numa função de expurgar o crime, mas sem deixar de registrar para a sociedade que aquela pessoa carrega, consigo, a marca de tê-lo cometido (LINK: estigmatização da pessoa presa). Por outro lado, da parte da justiça, o suplício deve ser ostentoso, publicizado. Tanto que continuavam até depois da morte (queimar o corpo, desfilar com partes dele e expor em praça pública). Em seguida destaca o funcionamento do ritual-processo de condenação do sistema inquisitivo, sobretudo marcado pelo sigilo da acusação em que o acusado somente conhecia qualquer informação sobre sua condição na oportunidade do interrogatório, o que era sucedido imediatamente pela condenação. Isso porque, nesse modelo, o soberano e os juízes tinham um “direito” de estabelecer o que era a verdade. IMPORTANTE: conhecer os conceitos fundamentais sobre o sistema inquisitivo – características, como se desenvolvia, as formas de julgamento, provas e demais elementos. Destaca que a confissão, no sistema inquisitivo, além de ser a “rainha das provas”, possuía uma função muito maior que elemento de convencimento. Enquanto prova irrefutável, implicava em uma vitória do processo, uma vez que o próprio acusado tomava para si o crime que lhe era imputado, assumindo a responsabilidade por todas as consequências (ainda que anteriores – a tortura). Acrescentamos: no sistema inquisitivo, a confissão é a verdadeira função do processo. O crime, confundido com o pecado, importa na condenação do apenado à danação eterna. A única forma de obter a sua redenção (salvação), é através da confissão. Com a confissão, é possível aplicar uma penitência (muitas vezes mais brandas que os rituais de confissão) e a expiação da culpa, salvando-se o acusado. Por isso, qualquer conduta era possível de se ter para conduzir o acusado à
  • 11. confissão, uma vez que até as piores práticas terrestres – como a tortura – eram mais brandas que a condenação do acusado à danação eterna nos infernos. Em seguida, Foucault apresenta uma crítica ponderada sobre a suposta humanização da pena e todo o contexto envolvido. No capítulo de título “a punição generalizada”, inicia afirmando que a partir da segunda metade do século XVIII, inicia-se uma generalizada crítica aos suplícios e reclamação por uma nova forma de punir, sempre revestido de uma necessidade de respeitar a “humanidade”. Todavia, destaca que os conceitos relacionados a essa nova prática são tão necessários quanto difusos. Quando se fala em “economia dos castigos” chega a ser paradoxo, uma vez que a relação que se pode estabelecer entre punição e humanização é, pelo menos, duvidosa. LINK: Abolicionismo – corrente que realiza crítica ferrenha a função omissa do Direito Penal, buscando eliminar toda forma de punição, dando destaque, em certas partes, também ao fato de que não existe punição humanizada. Essa “suavização” da pena é a razão pela qual diversos “reformadores” passaram a ser conhecidos (Beccaria, por exemplo). Foucault propõe recolocar a leitura desse movimento, analisando que ao mesmo tempo em que os crimes perdem a violência e as penas a crueldade, as intervenções se multiplicam. Crimes contra a propriedade passam a representar mais que os crimes de sangue. Com isso, a própria criminalidade migra de uma “criminalidade das massas” (crimes violentos, de sangue, são também os delitos praticáveis por qualquer indivíduo, sobretudo quando passionais) para uma “criminalidade marginal”, ou seja, concentra-se a criminalização das condutas praticadas por pessoas que estão a margem do sistema econômico. Aumentam-se, por consequência, as repressões, a “delinquência”, os processos. Foucault relaciona a migração dessa forma de criminalidade a um conjunto complexo de fatores: aumento da riqueza, valorização/proteção moral maior da propriedade, técnicas de vigilância e policiamento mais apurados, um afinamento das práticas punitivas.
  • 12. Como plano de fundo de tudo isso, temos um alerta: antes da “reforma” operada, o poder punitivo não era concentrado e era irregular. Havia uma má distribuição (ou desconcentração) da justiça enquanto poder, o que implicava numa ausência de um monopólio sobre os corpos em relação a punição. Por isso, o autor explica que: O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos; mas estabelecer uma nova “economia” do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social. A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que o tornam mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos; enfim, que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja, dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário do poder monárquico). Portanto, a conjuntura que viu nascer a reforma não é a de uma nova sensibilidade; mas a de outra política em relação às ilegalidades. No antigo regime, a ilegalidade possuía uma margem tolerável considerada. A criminalidade (de sangue), por sua vez, se fundamentava numa ilegalidade mais vasta, à qual as camadas populares estavam ligadas como a condições de existência. Com o andar do século XVIII, o processo tende a se inverter. O aumento geral da riqueza e o crescimento demográfico faz com que o alvo principal da ilegalidade (tolerada) popular passe dos direitos (e, nessa medida, atacam uns aos
  • 13. outros, dentro de uma mesma casta social) para os bens e a propriedade (passando a representar um ataque entre as castas, e não mais internamente). Com isso, a tolerância à ilegalidade popular entra em crise, uma vez que atinge agora a burguesia, e não mais entre os próprios indivíduos à margem da sociedade. Por isso, é necessário controlar e codificar todas essas práticas ilícitas. “É preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável.” Em suma, a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas, que agora ameaçava também a burguesia. Todas as mudanças operadas pela reforma implica, também, em uma função posta e outra menos explícita. Quer dizer que se, aparentemente, a nova legislação criminal se caracteriza por uma suavização das penas, uma codificação mais nítida, uma considerável diminuição do arbitrário, um consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir (na falta de uma partilha mais real de seu exercício), ela é apoiada basicamente por uma profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para manter seu novo ajustamento. Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas. Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue mas também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos.
  • 14. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII. Nesse momento, amigo leitor, seu mundo caiu, não é? Pois é… Isso é criminologia. Você ai que tinha um crush por Beccaria e todos os reformistas. Que enxergava, como uma Poliana, apenas o lado bom da reforma. Essa é a essência da criminologia crítica. Encontrar o lado “funcional” que fica escondido em relação a tudo, inclusive aquilo que é apresentado como um avanço humanístico. Em conjunto com essa perspectiva, formula-se, finalmente, a teoria geral do contrato em relação à vida social. O cidadão, de forma suposta, aceita a lei da sociedade e, inclusive, uma cláusula que permite sua punição. O criminoso é paradoxal: rompe o pacto, e, portanto, é inimigo de toda a sociedade – mas, ao mesmo tempo, integra essa sociedade e participa – aceita – da sua própria punição. Na verdade, a infração faz com que se possa lançar todo o corpo social contra o sujeito, permitindo-se que se exija uma punição, operando-se uma luta desequilibrada: de um lado, todas as forças – sociedade, poder e o próprio indivíduo; e de outro uma só pessoa – paradoxal – que já havia aceito anteriormente o pacto e o rompeu. Eis um formidável surgimento (construção) de um Direito de Punir. Cria-se o inimigo em comum. Tudo isso é reforçado com a ideia da suavização das penas, da existência da aplicação igual entre todas as pessoas, proporcionalidade dos castigos, um sistema dogmático infalível de incidência da lei e configuração do crime. Até mesmo a ideia de que você aplica uma sanção “humana” ao pior dos indivíduos que sequer possui ainda um traço de humanização. O poder punitivo é benevolente e possui valores superiores.
  • 15. A semiotécnica com que se sustenta o direito de punir repousa sobre algumas regras:  Regra da quantidade mínima: um crime é cometido porque traz vantagens. Se a ideia do crime for associada à ideia de uma desvantagem maior que a sua vantagem, ele deixa de ser desejável. [“Vale a pena?” A expressão traduz essa regra em que se compara o ônus com o bônus de determinada conduta.]  Regra da idealidade suficiente: se o motivo de um crime é a vantagem que se representa com ele, a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela – uma ideia de aplicação de uma dor, um desprazer, uma pena – evitando-se a reincidência.  Regra dos efeitos laterais: pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta; em suma, se pudéssemos ter certeza de que o culpado não poderia recomeçar, bastaria convencer os outros de que ele fora punido.  Regra da certeza perfeita: é preciso que, à ideia de cada crime e das vantagens que se esperam dele, esteja associada a ideia de um determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele resultam. Leis claras que definem os crimes. Penas previstas antes. Certeza da aplicação da pena e ausência de impunidade.  Regra da verdade comum: contrapondo ao sistema probatório do antigo regime – a verificação do crime passa a exigir critérios gerais de qualquer verdade, dando homogeneidade ao julgamento com base no uso das provas lícitas – abandonando as torturas, provas legais e estabelecendo uma presunção de inocência.  Regra da especificação ideal: todas as infrações precisam ser qualificadas, cobrindo-se todas as ilegalidades - é então necessário um código, e que seja suficientemente preciso para que cada tipo de infração possa estar claramente presente nele. A esperança da impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei. É necessário um código exaustivo e explícito, que defina os crimes, fixando as penas.
  • 16. Finalizando a (re)leitura histórica da pena, Foucault adentra ao capítulo de título “a mitigação das penas”. Estabelece algumas condições que devem ser observadas sobre a nova tecnologia da punição. Entre elas, destaca-se a “naturalização da pena”. Para tanto, é necessário afastar a ideia de que a aplicação de um poder punitivo é arbitrário. O crime é reconhecido como algo definido pela sociedade (não ontológico/natural). Contudo, a aplicação de uma punição precisa ter uma associação imediata – naturalizada – com a existência de um crime. Assim, tomando a forma de uma consequência natural, a punição não aparece como efeito arbitrário de um poder humano. A punição passa a ser uma analogia do crime, e na punição analógica, esconde-se o poder que pune. Até esse momento, a prisão ainda não era compreendida como uma resposta adequada. Atenção: até este momento, não fala-se em prisão como pena adequada e na sua naturalização. Entretanto, posteriormente, o mesmo fenômeno de naturalização da pena é focado na ideia da prisão, sendo a prisão a resposta apresentada em seguida como medida punitiva, “naturaliza-se” as prisões, passando a compreender tal medida como algo indissociável à ideia do crime. Afinal, sempre existiram prisões, certo?… certo? A limitação temporal da pena também ingressa nesse aspecto, uma vez que a função declarada é a do retorno virtuoso do indivíduo à sociedade, e, portanto, uma pena definitiva e irreversível não alcança tal fim. A ideia da progressividade da pena igualmente entra em cena. A pena interessa não só ao culpado, mas a todos os culpados possíveis (prevenção geral). Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural, mas interessante; é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem. Que não haja mais essas penas ostensivas, mas inúteis. Que também cessem as penas secretas; mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um.
  • 17. Abre-se espaço para a ideia do utilitarismo da pena. “Que os condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas do país, por um tempo proporcional a seu crime.” Obra pública quer dizer duas coisas: interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível, controlável do castigo. O culpado, assim, paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pelos sinais que produz. No centro da sociedade, nas praças públicas ou nas grandes estrada, o condenado irradia lucros e significações. Ele serve visivelmente a cada um; mas, ao mesmo tempo, introduz no espírito de todos o sinal crime-castigo: utilidade secundária, puramente moral esta, mas tanto mais real. Aponta que a partir de 1810 (Novo Código Penal Francês), a prisão passa a assumir o protagonismo da punição. E esse encarceramento, pedido pela lei, o Império resolvera transcrevê-lo logo para a realidade, segundo uma hierarquia penal, administrativa, geográfica: no grau mais baixo, associada a cada justiça de paz, delegacia municipal; em cada distrito, prisões; em todos os departamentos, uma casa de correção; no cume, várias casas centrais para os condenados criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de um ano; enfim, em alguns portos, prisão com trabalhos forçados. É programado um grande edifício carceral, cujos níveis diversos devem-se ajustar exatamente aos andares da centralização administrativa. O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado. Uma materialidade totalmente diferente, uma física do poder totalmente diferente, uma maneira de investir o corpo do homem totalmente diferente.
  • 18. Para a prisão ganhar força, diversos elementos foram reformulados, destacando-se sua utilidade positiva: A prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando-se os detentos trabalhar em comum. As razões positivas em seguida: o isolamento constitui “um choque terrível”, a partir do qual o condenado, escapando às más influências, pode fazer meia- volta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem; o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício de conversão quanto de aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo oeconomicus, mas também os imperativos do indivíduo moral. A cela, esta técnica do monaquismo cristão e que só subsistia em países católicos, torna-se nessa sociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa. Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um “espaço entre dois mundos”, um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera. Entre os diversos modelos de reclusão, o da Filadélfia apresentou as melhores condições para que a prisão ganhe relevo enquanto mecanismo punitivo.Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das despesas da prisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da economia; os condenados são então “constantemente empregados em trabalhos produtivos para fazê-los suportar os gastos da prisão, para não deixá-los na inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro”. Em conjunto com isso, algumas mudanças dogmáticas foram operadas. A primeira, diz respeito a não-publicidade da pena. A condenação que a motivou
  • 19. obedece a regra da publicidade, mas a execução da pena que é decorrente deve ser feita em segredo, não devendo o povo intervir como testemunha ou abonador do que acontece no interior das casas prisionais. A própria administração (prisional) tem o papel de empreender a transformação do indivíduo. A solidão não basta. A prisão e administração formam uma máquina de modificar o espírito. Recorta trecho do regulamento de uma das casas: Ao mesmo tempo, os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde ele está; demonstram-lhe a infração em que caiu em relação a eles, o mal que disso conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e ao se emendar. Fazem-no em seguida comprometer-se a cumprir seu dever com alegria, a se comportar decentemente, prometendo-lhe, ou fazendo-o esperar, que antes da expiração do termo da sentença poderá obter seu relaxamento, se se comportar bem... De vez em quando os inspetores, sem falta, conversam com os criminosos um depois do outro, relativamente a seus deveres como homens e como membros da sociedade. No modelo fundado no funcionamento da Walnut Street, surge, basciamente, o que compreende-se ainda hoje, para alguns, como o procedimento administrativo da execução da pena: O mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados — ao mesmo tempo condição e conseqüência — da formação de um saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo que o próprio condenado, a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime, as circunstâncias em que foi cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença.
  • 20. Outros tantos elementos indispensáveis se queremos “determinar quais serão os cuidados necessários para destruir seus hábitos antigos”.58 E durante todo o tempo da detenção ele será observado; seu comportamento será anotado dia por dia, e os inspetores — doze notáveis da cidade designados em 1795 — que, dois a dois, visitam a prisão toda semana, deverão se informar do que se passou, tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles para os quais será pedida a graça. Destaca as convergências e disparidades entre os diversos modelos punitivos. Entre as convergências, em primeiro lugar, o retorno temporal da punição, uma vez que a pena tem por função não apagar o crime, mas evitar que recomece. A pena é uma técnica corretiva. O corpo e a alma do indivíduo são o objeto da punição, sendo o alvo da intervenção punitiva. A técnica implica no uso de instrumentos de coerção e controle: horários, distribuição do tempo, movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos. O que se busca com isso? Recuperar o sujeito de direito? Nem tanto. A função é muito mais a de recriar um sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele, sujeito a um poder qualquer. DOCILIZAR O HOMEM. ILEGALIDADE X ILEGALISMOS Esse tópico está relacionado com boa parte da leitura já feita até esse ponto. Relaciona-se com a parte em que Foucault apresenta que algumas condutas, em determinado contexto, apesar de representar uma ilegalidade, possui uma função dentro do processo econômico e social de forma que é tolerada, enquanto em outro contexto, mudando-se os processos econômicos e sociais, passam a ser condutas perseguidas. Diante disso, a existência e incidência de um sistema punitivo que
  • 21. acompanha essa ilegalidade em um ou em outro contexto não possui uma função neutra. Nem toda prática ilegal deve ser punida. A punição do que é ilegal não decorre de um sistema lógico-dedutivo, muito menos natural, ainda que sustentado por uma lógica racionalizada (ciência, direito). Diante disso, o movimento reformista tratou de operar uma mudança no regime dos ilegalismos presentes naquelas sociedades. Foi um movimento de gestão das ilegalidades. Cada grupo social possuia uma margem de ilegalismos tolerados, enquanto eram de interesse aos processos econômicos e sociais. Com a alteração de tais processos, operou-se, também, um redirecionamento dessa tolerância das ilegalidades. Assim, os ilegalismos se definem como essa margem de tolerância, essa flexibilização da incidência do código certo-errado que existe em cada sociedade. Tal margem de tolerância pode ter diversas naturezas: formais ou estatuárias, quando corresponde a uma isenção regular no cumprimento de determinada regra; maciça e geral, muitas das vezes relativas aos costumes; decorrentes dos desusos progressivos; ou até em razão do consentimento tácito do poder ou impossibilidade de perseguição. Em razão das mudanças já anotadas que ocorreram na segunda metade do século XVIII, opera-se uma inversão do eixo em que os ilegalismos se sustentavam. Os bens passaram a ser o objeto principal, o que implicou em uma violação que ultrapassava os efeitos intra-classes dos ilegalismos, já que passavam a atingir a propriedade. Há, em decorrência disso, uma reformulação (reforma) das margens de tolerância, e, por consequência, uma alteração dos ilegalismos, ampliando-se as ilegalidades – aquelas condutas que violam os interesses e não se isentam da aplicação de uma punição. Disciplina
  • 22. A abertura da terceira parte da obra foca na ideia da disciplina e sua função. “Corpos dóceis” é o capítulo inaugural, abordando a imagem do soldado enquanto algo possível de se fabricar sobre o corpo humano: aquele que se produz a partir de um corpo inapto para se transformar em uma máquina útil. O corpo, até nas ciências, passa a ser algo que pode ser objeto do poder para sofrer transformações: é possível manipular, treinar, adestrar, fazer responder, tornar hábil, aumentar as forças e diminuir as fraquezas. A despeito de não ser um conceito novo, diversas mudanças são sentidas: a escala, uma vez que não se trata mais de cuidar do corpo em massa, mas trabalhá- lo detalhadamente, aplicando, sem folga, uma coerção ao nível da mecânica, controlando-se dos pequenos gestos ao funcionamento como um todo. O objeto do controle passa a ser a economia – eficácia dos movimentos. Esse conjunto de relações operadas sobre o corpo para domá-lo é o que nomeia como “disciplina”. Diverge da escravidão, por exemplo, em que o poder se opera a partir da apropriação dos corpos. Aqui, não há apropriação do corpo, mas sua docilização. Diferencia-se também da domesticação ou vassalidade. A “invenção” dessa nova anatomia política não surge do nada. É decorrente de um complexo de relações que inclui uma preparação anterior, desde os colégios, passando pelas escolas primárias, alcançam o espaço hospitalar – e os estudos realizados neles – e a própria organização militar. A nova arte da disciplina se realiza pelos detalhes, operando o controle de cada aspecto mínimo da vida e do corpo, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito. Quanto a arte das distribuições, afirma que um primeiro passo para a disciplina consiste em saber distribuir os indivíduos nos espaços. Para isso, diversas técnicas são úteis. Em alguns momentos, a disciplina exige a cerca enquanto obstáculo capaz de especificar um local, torná-lo heterogêneo a todos os outros e fechados em si mesmos. Entre tais espaços estão os ambientes de encarceramento, mas também outros mais sutis (colégios, quartéis, conventos). Contudo, a clausura não é indissociável da disciplina. Existem técnicas mais flexíveis, como o princípio do quadriculamento (localização imediata) – cada
  • 23. indivíduo no seu lugar, e em cada lugar um indivíduo. Retira-se qualquer potencialidade que o coletivo pode oferecer de nocivo à disciplina. Baseia- se no isolamento do ser. Por sua vez, a regra das localizações funcionais implica que há uma definição do uso de cada espaço. Lugares determinados para satisfazer a necessidade de vigiar e outras. A exemplo, os hospitais onde se operam as vigilâncias médicas, por meio do controle das epidemias e uma divisão de cada espaço (alas, corredores, salas) com um grande rigor. Essa lógica evolui para os espaços das fábricas, sendo o quadriculamento responsável por distribuir os indivíduos de forma que se possa isolar cada um, mas também localizá-los, ao mesmo tempo que deve funcionar para uma estrutura maior que é o aparelho de produção da fábrica. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos “postos”. Todos os elementos são intercambiáveis, pois cada um ocupa um lugar numa série, numa cadeia de lógica própria. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações. Essa formatação é sentida em diversos aspectos da vida moderna. A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar, por exemplo. Saiu-se de um modelo em que cada aluno recebia a atenção individual do professor, enquanto os demais restavam no ócio, para o modelo de exposição, o que implicou na separação e classificação dos alunos (salas, turmas, anos, níveis) e dos professores (disciplinas, nível).
  • 24. Avançamos, com isso, para uma segunda possibilidade para exercer uma microfísica do poder que chama de “celular”. Nessa, após a disciplina da distribuição dos espaços, temos o controle da atividade. Diversas são as técnicas utilizadas para o controle da atividade. O horário potencializa o controle do tempo, dividindo-se em detalhes os turnos, horas, minutos, o que permite controlar quando e quanto irá durar cada atividade. A isso se segue a elaboração temporal do ato enquanto a possibilidade de controlar os gestos e atos dos corpos. Por exemplo, ajustar o tempo de marcha de um batalhão. Ou o tempo de ajuste de uma peça na manufatura da fábrica. Outra técnica é o estabelecimento de uma relação entre corpo e gestos: o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. Um gesto eficiente exige um corpo disciplinado. Imagine, por exemplo, a rotina de um atleta, em que a disciplina do treinamento importa no aperfeiçoamento do seu gesto – arte. A articulação corpo-objeto também é útil ao controle das atividades, tornando uma engrenagem única entre o ser e a coisa, operando-se uma “codificação instrumental do corpo”. A utilização exaustiva, por sua vez, importa em utilizar ao máximo do corpo, proibindo-se o uso ocioso do corpo e desperdício do tempo. Avança para tratar da organização das gêneses. Aponta como exemplo das primeiras experiências da nova organização disciplinar a escola de Gobelins, o que representa o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo. Aponta que a organização militar reponde a isso a partir de quatro processos: 1º – dividir a duração em segmentos, sucessivos ou paralelos, dos quais cada um
  • 25. deve chegar a um termo específico. Por exemplo: isolar o tempo de formação e o período da prática; não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos veteranos; abrir escolas militares distintas do serviço armado etc; 2º – Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico — sucessão de elementos tão simples quanto possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente; 3º – Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo; e 4º – Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convêm; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos. E para que tanto controle, se não fosse útil? Quanto a utilidade dessa disciplinar, destaca: A colocação em “série” das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) a cada momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e utilizáveis num resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização. A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho eficiente. Com isso, o corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com outros, constituindo o corpo uma peça de uma máquina
  • 26. multissegmentar. São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina deve combinar para formar um tempo composto. Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando. Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a ordem não tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento desejado (adestramento). Com base nisso, passa para novo capítulo em que discorre sobre técnicas para o bom adestramento, sendo a arte de fazer a aplicação correta do estabelecimento do poder disciplinar. A disciplina é uma técnica transformadora dos corpos e das almas dos indivíduos. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. Afirma que o aparelho judiciário não escapa dessa invasão. Na verdade, o sucesso do poder disciplinar se apoia justamente na sua variação de espaços em que se percebe, apontando o êxito aos instrumentos simples que se utiliza: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num procedimento que lhe é específico e que vem a chamar de exame. Sobre a vigilância hierárquica destaca que o poder disciplinar “supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.” Geograficamente falando, a construção dos espaços passa a observar essa vigilância hierárquica. Os hospitais, asilos, prisões, casas de educação, escolas
  • 27. passam a adotar um modelo refinado dos acampamentos militares – o encaixamento espacial da vigilância hierarquizada (um ambiente em que o poder possa tudo observar, e demonstrar a todos que estão sendo observados). Não basta à arquitetura que permita ver e ser visto, mas sobretudo possuir um controle interior e detalhado das atividades, intervindo quando necessário pelo poder disciplinar. Por exemplo: Assim é que o hospital-edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica: deve permitir que se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos doentes, deve impedir os contágios; a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente, decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos. A mesma sorte seguem as escolas, os asilos e outras instituições. Entre elas, as fábricas e grandes oficinas. “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.” Por sua vez, em relação a sanção normalizadora afirma que: Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infra-penalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.
  • 28. A essência do pensamento de Foucault neste ponto exige a compreensão de tudo que foi apresentado. Observe que após o ingresso do autor na terceira parte da obra, há certo distanciamento do tema da sanção penal e do crime. Aqui é a reaproximação. Este é o ponto de convergência da associação que o filósofo faz sobre todo o discurso da pena e sua funcionalidade de acordo com os processos sociais e econômicos, e a utilização do poder disciplinar nos tempos modernos. Em todos as instituições em que o poder disciplinar se mostra mais presente, existe um sistema de micropenalidade. Em sua maioria, este código de condutas e sanções está relacionado ao uso do tempo (chegar atrasado, sair antes, faltar), maneira de ser (grosseria, falta de respeito e desobediência), discursos (insolência, tagarelice), do corpo (atitudes incorretas, gestos inadmissíveis, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). LINK: neste ponto, observe que podemos aproximar a crítica de Foucault com a criminalização de diversas condutas que não ofendem, de fato, a qualquer bem jurídico se não à manutenção e funcionalidade do poder disciplinar. O crime de desacato e a criminalização de elementos morais como a exposição do corpo (atentado ao pudor, em protestos), por exemplo, se encaixam perfeitamente nessa crítica do filósofo. Por consequência, uma gama de instrumentos de sancionamentos passam a ser utilizados, sendo desde os mais leves (admoestações) até os mais severos (humilhação, privação de acesso).”Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo
  • 29. possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.” A disciplina traz consigo uma maneira específica de punir que é uma cópia reduzida do modelo do tribunal. A penalidade disciplinar alcança qualquer desvio, ainda que seja decorrente do não alcance de um padrão exigido para o indivíduo (ex.: reprovar na escola por tirar nota baixa). A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídico-natural: uma ordem “artificial” que é colocada de maneira explícita por uma lei, programa, regulamento (todos conhecem as metas e as sanções); e uma ordem definida por processos naturais e observáveis, ou seja, aquilo que diria respeito a cada indivíduo mas que é fixado anteriormente (o tempo para realizar um exercício, o nível de aptidão) e se torna, também, uma regra. O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios, sendo precipuamente corretivo. Tanto é que as penalidades, muitas vezes, são da ordem do exercício (aprendizado intensificado para quem não atinge o nível exigido, repetição excessiva do exercício não realizado). Estabelece-se uma relação isomorfa entre a própria obrigação que gerou a punição e esta: ela é menos a vingança da lei que sua repetição, sua insistência redobrada – o que faz com que o próprio poder disciplinar se reafirme. O arrependimento e a expiação são acessórios, sendo o objetivo o castigo que é exercitar e reforçar o próprio poder disciplinar. A punição na disciplina é um elemento de um sistema duplo: gratificação- sanção. Esse sistema é operante no processo de treinamento e correção. Somente a sanção-castigo não opera tão perfeitamente, havendo seu contraponto que é a gratificação-bonificação. Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar. Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo e
  • 30. pólo negativo; todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos. Opera-se uma hierarquização entre os “bons” e os “maus” indivíduos. Essa divisão possui uma dupla função: marcar desvios, hierarquizar as qualidades, competências e aptidões; mas também castigar e recompensar. “A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição”. Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
  • 31. Portanto, essa sanção disciplinar seria o oposto daquela decorrente do direito penal judicialmente aplicado. Na penalidade judiciária, toma-se por referência um corpo de lei, não diferenciando-se indivíduos, mas especificando atos num certo número de categorias (teoria geral do direito penal – legalidade, tipicidade). Não se hierarquiza, pois há um código binário simples entre proibido e permitido. “Os dispositivos disciplinares produziram uma 'penalidade da norma' que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei.” Ocorre que o funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo (retoma a crítica a perspectiva da construção do novo regime a partir – exclusivamente – de um novo paradigma humanístico); ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora. Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da Tradição. O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos produtos industriais. Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e
  • 32. de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais. funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais.